quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Mia Couto (O amante do comandante)


Vou contar vos o que se passou há muito tempo no sítio que antepassou este nosso lugarzito. Certa uma vez chegou à nossa aldeia um barco carregado de marinheiros portugueses. O navio não se afeiçoou à praia. Ficou ao largo, escondido nesse longe onde nascem os cacimbos. Os visitantes ficaram lá fechados, sabe se lá que fazendo. Até que, dias passados, do grande barco saiu uma pequena canoa que se aproximou da costa. Nela vinham três portugueses, enroupados e barbalhudos. Com eles havia a mais um preto, como nós. Não era da nossa gente mas falava nossa língua. Esse tipo escuro desceu e acenou um chamamento:

— Quero falar com as humanas pessoas daqui — disse ele.

E deu a seguinte mensagem: que o comandante do navio carecia de um homem urgente e imediato. Que serviço esse homem deveria executar? Serviço de amor, respondeu o tal preto que acompanhava os brancos.

— De amor?

– Sim, de amor carnudo, quer dizer, trabalho de rasga panos, espreme corpo, afaga suspiro. O povo tentou endireitar entendimento: que esse comandante necessitava era de mulher, dessas bastante cheias de polpa e sumo.

— Não, ele precisa é um homem.

— Um homem?

— Sim, um homem. Preferência, um que fale uma porçãozita de português.

— Mas, desculpa: um homem?

Porém, a delegação visitante já rumava de volta ao barco. Ficou se nessa dúvida: seria lapso do tradutor? Entregava se um masculino ou uma feminina? O caso era de séria maka. Das duas: ou era lapso do língua e mandassem um homem masculino isso seria motivo de castigo por parte dos portugueses ou, se o intérprete falara direito e então mandassem uma mulher polpuda, esperar se ia igual zanga. Não se queria ofensa com os brancos. E reuniram se os mais velhos, a acertar verbo com intenção. No final se consensou: o pedido tinha o sexo certo.

— Pediram macho, entregamos macho.

Haveria, sim, que lhe dar o devido e inadiável andamento. Não se queria desobediência com os tugas.

— Mas mandamos qual homem?

Os aldeões perguntavam-se. Até que um dos mais velhos opinou:

— Já sei, mandamos Josinda.

Mas sendo ela fêmea, já parideira e tudo...

Mulher, sim, mas tão pouco feminina que, às primeiras vistas, passava por homem. Sendo que estranha, masculosa e grosseira. Não fosse ela ter tido filhos nem se daria por ela ser, realmente, fêmea.

O mais velho autor da proposta sustentou a ideia. Josinda vinha mesmo a calhar, dourando sobre azul: ela era meio termo, carne e peixe, ambivolátil. Ainda por mais, ela falava a língua dos brancos.

— Nós mandamos Josinda com outro nome, raspamos os cabelos, vestimos lhe de homem. Pelos sins, pelos nãos.

Saiu um miúdo a correr com mandato de comparecimento da mulher quase homem. Encontrou a moça sereiando pelas praias, à procura do príncipe viúvo.

— Josinda, venha nas pressas: estás ser precisada com os brancos.

— Espera que vou puxar lustro nos meus panos.

— Nada disso, você vem assim mesmo, dessa forma.

— Mas assim com roupas de meu pai, pareço mesmo ele.

— Por isso mesmo. A propósito, você vai dizer que se chama Jezequiel.

— Jezequiel? Porquê Jezequiel, nome de macho tão feio?

— Os portugueses gostam muito desse nome.

Josinda se apresentou aos mais velhos. Eles ordenaram muito conselho, tudo em segredo, boca na orelha. Lhe sugeriram o fingimento dos modos, engrossar de maneiras. Por fim, ela se aprontou e se dirigiu ao barquinho dos portugueses. Falou com o marinheiro que vinha buscar a encomenda:

— Lhe gosto de ver nessa farda, luzidinha, o senhor soldado.

— Sou alferes.

— Desculpa, pensava que fosse militar. Me enganei, quem não se engana? O único que não tropeça é o pássaro que avoa no céu.

E lá foram, engolidos pela noite. Os velhos ficaram toda a noite acordados, receosos das novidades. De madrugada, entre o cacimbo, se vislumbrou o barco dos soldados.

— Então, como foi?

Josinda estava de pé dentro do barco, embrulhada nos panos, só os olhos espreitavam. Mas esses mesmos olhos se repletavam de água: a mulher chorava, coisa que nunca lhe fora vista na vida. E assim, em pranto, ela se afundou silenciosa na escuridão. Os velhos, assustados, se despediram dos portugueses, sublinhando nos respeitos.

Mais tarde, se fez a delegação junto à porta de Josinda. A curiosidade fervia: o que teria feito chorar a mulher? Bateram. Mas ela obstinou um silêncio.

Na noite seguinte, viu se aproximar um barco com soldados. O povo, receoso, em cachos, na praia:

— Vem nos matar a todos!

Mas os portugueses não puxaram de violência. Perguntaram por Josinda.

— O nosso comandante precisa outra vez desse Jezequiel.

E uns jovens foram mandados, súbitos, na demanda da desejada mulher. Chegaram a casa dela, explicaram as exigências. Mas Josinda negou, sacudindo a cabeça:

— Digam que não me encontraram.

— Mas os portugueses...

— Deixem-me.

A voz dela era um não, redondo, incontornável. Insistiram, ameaçaram, imploraram. Nada. Os jovens regressaram à praia, de mentira improvisada. Que desde manhã que ninguém punha as vistas no dito e cujo Jezequiel. Os soldados deixaram promessa: um prêmio caso o descobrissem. E a embarcação fez se de regresso ao navio, acabrunhada como um luto.

Na manhã seguinte, vieram dois barcos: os militares desembarcaram e se espalharam a vasculhar casas e matas. As gentes se contraíam, temerosas. Deram com a casa de Josinda mas estava vazia. Não sobrara rastro nem sequer vizinhança dela. Ao fim da tarde, terminaram as buscas e os soldados se remeteram ao grande navio. Ficou um português, encarregado de obter informação sobre esse mencionado amante do comandante. Começou por modos bravios. Que matava, incendiava, violava. Depois, se adoçou em promessa:

— Eu dou dinheiro a quem disser. Dou todo o dinheiro que quiserem.

— Todo!?

— É que vocês nem imaginam como sofre o nosso comandante. Nunca o vimos assim.

Era madrugada quando se viu desembarcar, despenhado e despenteado, o lusitano comandante. Saltou ainda em água, avançou para terra firme, aos berros tresdoidados. Indagava por Jezequiel, rondava em círculos, todo ele fora das órbitas. Depois, tombou em si, debaixo dos próprios ombros, esgotado. Ficou assim, nebulado e rócheo, durante longos momentos. À sua volta, os soldados aguardavam, indecisos. Passou-se um dia inteiro, sem água a ir nem a vir. Até que o militarão deu ordem: eles que regressassem ao barco, levantassem âncora e partissem.

— E o nosso comandante?

— Eu fico.

E ficou. Primeiro, junto às maresias. Depois, partiu pela savana à procura de seu amante de uma noite só. A última coisa que fez ao abandonar a praia foi empunhar um pequeno pauzinho e gatafunhar a areia. Ninguém ali sabia decifrar aqueles desenhos.

Mas um soldado português que ainda regressou à praia admirou-se de ver escrito no chão: Josinda.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 18

 1º. lugar na Categoria Soneto do  11º Concurso da Academia Madureirense de Letras – 2022

Silmar Böhrer (Croniquinha) 62


Nas horas serenas das manhãs surgem as ideias bem-vindas, benditas, benfazejas, com odores e sabores de pão quente vindo do forno em brasa. E as saboreamos, e as degustamos, e as disseminamos. Mas muitas vezes acordo com o monjolo dos pensares batendo e batendo, gastando águas do pensamento - letrinhas e palavras ficam ali no reservatório sem se encontrarem, fazendo aquele redemoinho que leva a nada - - falta adubo, estrume ou inspiração ?

Pois esta alternância de pensar e escrever - ideias opíparas, ideias vazias - faz parte da história da escrita, da história dos saberes, da história da vida. Os condimentos estão sempre à espera do prato principal para darem a este o gostinho do substantivo e do adjetivo ao alimento-texto que o leitor vai degustar.

Mas (sempre o "mas") quantas vezes os temperos sobressaem deixando o prato principal em segundo plano. Que não se perca o básico, que é o objetivo primeiro dos escreveres.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Giuseppe Paolo Dell'Orso - Feldman (Viagem ao Mundo Fantástico da Babilônia)


Onde? Filme? No Brasil? Onde fica? O que tem de fantástico?

Mas, que você, caro leitor, ficou curioso, com certeza ficou e, apesar de livros como o Guia dos Curiosos ou o Mundo Curioso da Natureza, sempre vem à mente aquilo que nossos pais, os pais deles, os pais dos pais, e assim por diante, diziam: “Meu filho! A curiosidade matou o gato!”.

Fique tranquilo! Após esta leitura, ninguém morrerá, nem de raiva – pelo menos, eu acho.

Nossa história de passa em uma cidade do interior de São Paulo.

Não! Ela não se chama Babilônia!

O nome dela é Piracicaba.

Todo mundo lembra da música “O Rio Piracicaba...” e assim por diante. Se não lembra, não fique chateado, eu também não lembro.

Mas, vamos diminuir a nossa esfera localizacional (“êta” palavra chique, que deixa qualquer um mais perdido do que cego em tiroteio), e vamos para a Rua Boa Morte.

Gente! Os piracicabanos que me perdoem, mas um nome deste é assustador. Eu é que não vou passar nesta rua, sozinho, à meia-noite. Dá o que pensar um nome assim.

Quando você entra na rua deveria haver uma Agencia de Plano Assistencial Boa Morte, com direito a escolha de terreno e advogado para efetuar o testamento. Percorrendo a rua, no meio dela, uma casa funerária e ao final, um cemitério.

- Ô, cumpadi. Pronde ocê vai?

- Prá  Boa Morte.

- Pêsames, finado.

Vamos lá! Pensa um pouco! Um nome destes! Cruz Credo!!!!!

Será que o Bairro se chama Pé na Cova?

Bom! Deixemos estas elocubrações de lado e que sendo boa a morte, resolvi aproveitar a boa vida e fui a um restaurante me fartar no pecado da gula (esta é uma Boa Morte: Comendo bem).

O restaurante chamado Babilônia. Não sei não. Talvez Sodoma e Gomorra casasse mais com o nome da rua. Mas, Babilônia dá um ar de paraíso na Boa Morte.

Entremos neste Éden de delícias, que é comandado pelo César italiano de nome Andrea.

Mas, para não pensarem que eu estou fazendo propaganda do dono que é o Andrea, nascido na Itália (uma duvida fica de repente: Babilônia é colônia italiana?), não vou chama-lo de Andrea, usarei um nome fictício que faz jus aos nomes italianos de seus antepassados. Portanto, Andrea, passa a ser chamado de Toshio Nakama. Portanto, Babilônia é comandada pelo valoroso carcamano Toshio Nakama, que veio da Itália, não recordo bem, mas acho que nas costas de uma tartaruga.

Imagino que seja, pois demorou tantos anos para chegar aqui no Brasil.

Ecco! Tutto bona gente!

Enfim, após a saudação habitual pro-forme: “Ave, Toshio. Os que vão morrer te saúdam”, o banquete estava servido. Uma mesa enorme com iguarias finas dos mais profundos rincões das Itália: feijão, linguiça, palmito, tutu, lazanha. Resumindo, uma salada russa.

Como o leitor pode perceber, nosso amigo Toshio Corleone não discrimina nações.

Mas, o que torna este restaurante fantástico, o que faz viajarmos na Babilônia de nossos sonhos é o molho que é servido por um indivíduo que é uma mistura de Corcunda de Notre Dame com o ator Jean Reno, isto é, é de dar pena, parece uma trombada de dois trem-bala. Este molho, se chama Righetti.

E o bacana de tudo é que quando as pessoas vão lá, vão para comer o Righetti.

- Porque você vai tanto no Babilônia?

- Adoro comer o Righetti.

Vão lá! O Righetti é fantástico!

Concomitantemente (êta palavra linda, e enooooooooooooooorme. Não sei bem o que significa, mas que é bacanona é!), depois que todos comem o Righetti, Toshio Nakama percorre as mesas observando a todos e animando com o seu bom-humor. Afinal por lá tudo é bom. Bom apetite, bom humor, boa morte...ahhhh! A Boa Morte outra vez!

Todos que saem de lá se sentem transportados aos Jardins da Babilônia, um paraíso perdido, ainda mais porque comeram o famoso Righetti.

Finalmente, para não encerrar sem uma boa mensagem a quem suportou esta crônica até agora, não recordo onde li, mas vamos lá:

“O discípulo veio ao mestre Zen, lamentando-se, em plena fossa:

- É curta a vida! É curta a vida!

O mestre Zen, porém aproveitando as mesmas palavras, com variante na pontuação, solucionou:

- É curta a vida, é? Curta a vida!”
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Observação: O Restaurante Babilônia onde Toshio Nakama me aguarda todos os dias com um machado na mão (não sei porquê), fica na Rua Boa Morte, 1262, em Piracicaba. Não esqueçam de dizer que querem comer o Righetti.

(outubro 2009)

Ruy Barata (Pará Poético)

Foto do poeta do Acervo da Família

ARTE POÉTICA


Ah o ofício,
as contorções da espera,
entre a noite e a madrugada!
O litúrgico olhar abre cortinas,
o anjo adormeceu,
dança arbitrária
a minha barba de duzentos anos.
Quem poderá restituir-me intacto ao mistério
com o perfume de rosa não tocada?
Quem senão tu,
cântaro e fonte,
abrigo,
terra e pátria onde se esconde
a negra cicatriz que o peito ostenta?
Eis porque espero
(entre a noite e a madrugada)
para que salves
ou lances no infortúnio
o litúrgico olhar que em nova busca
apodrece sob o sol do desespero.
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FOI ASSIM

Foi assim,
como um resto de sol no mar,
como os lenços da préamar,
nós chegamos ao fim.

Foi assim,
quando a flor ao luar se deu,
quando o mundo era quase meu,
tu te foste de mim.

“Volta, meu bem”, murmurei.
“Volta, meu bem”, repeti.
“Não há canção nos teus olhos,
nem amanhã nesse adeus!”

Horas, dias, meses se passando
e, nesse passar, uma ilusão guardei:
ver-te novamente na varanda,
a voz sumida e quase em pranto,
a murmurar “meu bem, voltei”.

Hoje essa ilusão se fez em nada
e a te beijar outra mulher eu vi,
Vi no seu olhar envenenado
o mesmo olhar do meu passado
e soube então que te perdi.
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BRAÇOS DE SEDA

Ontem,
quando a morte passou
carregando meu corpo,
não sei se para o céu,
ou qualquer outro porto,
onde houvesse lugar
para um filho de Ogum,
eu vi que havia luz e madrugada
e um solo de canção desesperada,
nos olhos da mulher que não me amou.

Ontem,
quando a morte passou,
lá no bar onde bebo,
e como linda Inês,
posta em sossego,
em seus braços de seda me tomou,
senti que a vida inteira me fluía
e que a triste canção que eu perseguia
jazia na mulher que não me amou.
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ANJO DOS ABISMOS

Quero chegar diante de ti
não como o vulto familiar que doura o teu sossego,
não como a imagem do sonho
que se perde na bruma,
mas como o fantasma de dentro de ti mesmo.
Quero chegar diante de ti,
e olharás minha longa cabeleira,
minhas faces esvoaçantes,
meus olhos incolores
e adivinharás que atravessei
os limites do eterno.
Ó esta noite todas as luzes estarão veladas pelo sono,
todos os silêncios serão devorados
pela eternidade,
todas as chagas ressurgirão das dores,
todos os olhos estarão desmesuradamente abertos
mas não poderemos sentir
a Sua presença
porque então passamos à pátria das essências.
Esta noite chegarei diante de ti,
nossas almas se confundirão na grande viagem,
nossos olhos se alongarão ao paraíso dos símbolos
onde nasce o grande mar das almas moribundas.
Chegarei sobre a tranquilidade dos teus cânticos
e te assombrarás com este vulto notívago de morto
que se suspende milagrosamente além dos tempos
e que conduz as asas multicores
no derradeiro voo das espécies.
Ó sim sou eu por sobre as nebulosas,
fantasma que povoa quatro mundos,
imagem perdida e mais tarde encontrada
no limitado céu da poesia.
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HELENA

Da tristeza e da alegria
Somente Helena sabia,
Sabia porque sabia
do bordel à Eucaristia.
Sabia porque sabia
que a noite clareia o dia.

De tantas e tontas coisas
Sabia Helena sabia.
Regando seus muitos sonhos
penteando a maresia
lavando léguas de lodo
no limbo da poesia.

E assim costurava o caos
com a linha da fantasia
a nossa Helena dos bares
aquela que mais sabia
que sabendo se lembrava
e lembrando se esquecia.


Filemon Martins (Tragédia no Jordão)

Poucas pessoas conhecem e alguns moradores da região não se lembram desta história. Nem sempre com um final feliz, como gostaríamos. Essa é uma delas. Mas o pesquisador deve registrá-las, sob pena de alguns fatos se perderem no tempo.

Não deixar que isso aconteça é a missão de quem escreve.

O rapaz viveu boa parte de sua vida na cidade de Jordão. Não se casou, mas ali trabalhava na lavoura plantando e colhendo milho, feijão, mandioca, além de frutas como mamão, romã, mangas de várias espécies, limão, laranjas, melancia, abóboras e outros legumes.

Com o passar dos anos o José foi acometido por uma doença mental, de tal forma que ele já não suportava conviver na cidade. Não queria mais contato com seres humanos. A família, mais conhecida como os "Bruarcas", então, começou a buscar uma solução para driblar a situação delicada que o destino lhe impôs.

É que a população da pequena cidade quando se referia ao moço, chamavam-no de "Zé doido", o que causava mais constrangimento à família.

Construíram, então, uma casinha na roça, propriedade da família, onde o moço poderia morar e trabalhar na lavoura, sem a importunação de curiosos e pessoas de má índole. Assim, o rapaz foi morar afastado da cidade e do contato com pessoas para ele estranhas. Só alguns familiares o visitavam para levar-lhe comida e limpar a casa, eventualmente.

Mais de trinta anos se passaram e a vida do moço, agora já idoso, continuava naquela rotina. Ele não via, nem conversava com ninguém, a não ser alguns familiares que cuidavam dele dentro do possível. Enquanto isso, a cidadezinha saiu da escuridão total e passou a ter luz elétrica das 19h às 21hl0min no máximo. É que essa luz era gerada por motores elétricos. Aliás, é bom lembrar que todas as cidades da região tinham esse tipo de iluminação. Por volta de 21h5min havia o primeiro sinal.

A luz piscava e os moradores já se preparavam acendendo os candeeiros para iluminar as casas. 21hl0min a luz apagava literalmente e a escuridão nas ruas era total.

Quem saía às ruas depois desse horário, usava obrigatoriamente uma lanterna. Era um festival de luzes indo e vindo pelas ruas e praças da cidade, como se fossem vaga-lumes a iluminar a escuridão da noite, A mais próxima Usina Hidrelétrica era de Paulo Afonso. A Usina Hidrelétrica de Sobradinho foi construída muito tempo depois, quando a região do Sertão foi finalmente contemplada. No mês de junho tradicionalmente de festas no calendário católico, 13 de junho - Santo Antonio, 24- São João e 29 - São Pedro, alguns rapazes decidiram entre si, por brincadeira, trazer o "Zé doido" para rever a cidade e de alguma forma participar dos festejos que se realizavam na cidade.

Assim se fez e o Zé estava extasiado com o crescimento da cidade, quando entrou a noite e as luzes se acenderam, foi aquela aclamação do povo. Enquanto isso, o Zé andava pra lá e pra cá pelas ruas da cidade, e acabou se distanciando do grupo, no momento em que as luzes se apagaram. Sobreveio a escuridão e o Zé perdido, desnorteado, pervagava pelas ruas sem saber para onde ir. Corria e andava de um lado para outro, já adentrando roças, pulando cercas, atravessando pastos e acabou se dirigindo, sem saber, para os lados de uma cacimba com alguma profundidade, anexa à Lagoa, ainda hoje existente, e ao pular mais uma cerca caiu naquela cacimba funda, onde se afogou, sem que ninguém o visse e pudesse salvá-lo. O que era brincadeira tornou-se sério e o Zé ficou desaparecido naquela noite. O corpo só foi encontrado no outro dia, quando o pessoal descobriu rastros e se deslocou para o local da cacimba, onde o corpo estava boiando. Seu sepultamento ocorreu no cemitério local.

Assim terminou a vida do "Zé doido", aqui na terra, por culpa talvez de uma brincadeira que acabou mal, como tantas outras que conhecemos ao longo da vida...

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 03

 

Aparecido Raimundo de Souza (Quando as águas do nosso rio interior viram mar?)

A TERRA É COMO o barro. E o barro é encosta, morro e nuvem e é também céu. Deus é o Soberano Espírito como é amor e amor é algo como Deus: não morre nunca, é eterno, sagrado, reluz e resplandece. Celebra em nosso corpo uma concretude interrelacional que é a alma e o espírito fundidos num só corpo e inseridos harmoniosamente no planeta em que vivemos. O título acima é por demais sugestivo e nos leva a questionarmos a nós mesmos. E mais que isso, a nos fazer pensar: quando as águas do nosso rio interior viram mar? Basta estarmos em paz. Melhor dito, deveríamos todos estar em paz.

A paz nos renova, nos conforta, nos reanima. Faz com que todos vivamos em sintonia meridiana com a Natureza. Cultivar a Natureza é agricultar (1) a graça e hortar (2) a graça é ter a quietude e a mansidão para um trilhar e um caminhar prósperos. Elevar o espírito à patamares nunca visitados nos acarreia (3) para bem longe das intempéries, Por conseguinte, não deveríamos ser prolixos, nem nos deixarmos vencer pelos muitos vícios que nos arrastam para o buraco. O buraco, às vezes é raso. Em outras, nos deixa aprisionados e sem volta. Precisamos acreditar piamente num amanhã melhor. Um porvir que revigora.

O simples acreditar, nos fortifica, nos consola e nos vitaliza por dentro. Sem mencionarmos o fato de que edificados por dentro, tudo se torna menos mal e proveitosamente mais saudável. Abonarmos de coração aberto e com Fé naquilo que está por vir, faz com que todas as coisas sejam possíveis e querençosas (4), aprazentes (5) e alcançáveis, bastando apenas que lutemos com perseverança e afinco, força de vontade irrestrita, e, sobretudo, obstinação incondicional. A teimosia (ou repetindo, a obstinação) e a contumácia, precisam ser esmeradas e literalmente obcecadas. O amor é por excelência, a ponte fixa e indestrutível que nos levará ao sucesso, que nos unirá ao futuro e, via igual, afastará de nossas vidas as horas más e repletas de melancolias.

Não existirá nada rotulado de “ruim” ou de “péssimo” para o nosso corpo, se não quisermos, assim como não criará vida as perniciosidades, se estivermos abertos somente para as “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS”. As “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS” estão ao nosso redor, quase nos atropelando. Carecemos, sem mais delongas, afastar o que nos tira o tino, a rota, a bússola, enfim, tudo que atravanca e que, de alguma forma, direta ou indiretamente nos distancia do foco e nos impede de agarrá-las pelos cabelos. As “COISAS BOAS E AGRADÁVEIS” precisam, ou melhor, devem ser agarradas pelos cabelos.

Mesma linha, sem nós ou amarras, deveremos abrir agora, nesse momento, todas as portas e escancararmos as janelas do mais profundo da alma para os fluídos renovadores que vêm do espaço, objetivando que eles se acheguem e em nós façam morada. A nossa alma é a morada do Pai Maior. É a segunda Casa do Altíssimo. Para que tal milagre se faça concreto, basta unicamente que saibamos destravar as Entradas do Universo pessoal que está presente em cada um de nós, deixando que eles entrem e se espalhem e não só espalhem, ESPELHEM o que o Criador de todas as coisas nos deu e continua nos ofertando de presente, de grado vivificante, a cada novo amanhecer, sem nada, absolutamente nada, nos pedir em troca.
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Notas de rodapé:
1 – Agricultar – Trabalhar com agricultura. No sentido do texto, cultivar a graça.   
2 – Hortar – Lavrar a terra, preparando o chão para qualquer tipo de plantação
3 – Acarreia – Outro modo de dizer conduzir ou mostrar o caminho a ser seguido.
4 – Querençosas – Tudo aquilo que se torna benévolo, afetivo ou benigno.    
5 – Aprazentes – Coisas agradáveis que deleitam ou satisfazem.


Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 8 -


CINDERELA

"Como o lírio entre os espinhos é minha amada entre as donzela."
(Ct. 2.2)


Há tanto desengano que me intriga,
Que, não poucas vezes, me castiga
Sem nenhuma piedade.
Meu refrigério de consolação
E saber onde está meu coração,
Por quem vale a saudade.

Como posso viver sem esse amor?
Só nele encontro todo meu vigor
E paz na solidão.
És a minha princesa desejada,
Encantos raros de afetuosa fada,
Grande amor e paixão.

Busco-te muito! - Almejo teu olhar,
Que, apaixonado, amor quer encontrar
Pra saciar seus desejos...
Do meu caminho clara luz, vem logo!
Não mais demores! Escuta meu rogo!..
- Terás milhões de beijos.

Beijos de cavalheiro apaixonado,
Beijos ternos de um príncipe encantado
Por sua princesa bela.
A vida é breve! Veloz é o tempo!
Em pensamento, eu sempre te contemplo,
Ó minha Cinderela!
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DÁDIVA DE AMOR
"O perfume das tuas vestes é como o perfume do Líbano."
(Ct 4.11)


Pra você, meu amor, mais este dia...
Que ele seja repleto de poesia...
Da primavera dou-lhe seu sorrir
E dos jardins, canteiros a florir.

Pra você, meu amor, todo perfume...
Da mais brilhante estrela dou-lhe o lume;
Aos seus pés, com carinho, quero por
Tudo o que vá lhe dar muito louvor.

É certo que das flores a fragrância
É menor que o aroma da elegância
De você recendendo, sem cessar,
Enchendo de perfume todo o ar.

O brilho, eu bem sei, do seu olhar
É capaz de uma estrela ofuscar;
Mas o que lhe ofereço, com ardor,
É tão-somente amor e mais amor.
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Lume: Luz, clarão, brilho.
Fragrância: Cheiro suave, perfume, aroma.
Recendendo: Espalhando, emitindo, exalando (forte aroma).

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MEU SER
"o amor é a fortaleza que levanta sobre mim."
(Ct.2A)


Amo-te muito e jamais sonhei
Que assim pudesse o amor te amar;
O amor que sinto expressar não sei,
Mas sei que o amor é maior que o mar.

Amo-te como ninguém na vida,
Quero-te tanto, bem mais que ao mundo
Esta semente, n'alma nascida,
Cresceu, cresceu - é o amor profundo.

O amor é imenso e arde em minh'alma,
Mas é, contudo, meu lenitivo;
És o que tenho - minha doce palma -
E isso é o tudo pelo que vivo.

A vida é bela te amando assim,
Na luz do dia, sonho feliz;
Quem dera ter-te bem junto a mim,
Daquele jeito que eu sempre quis.

Em cada hora deste meu tempo,
Nestes minutos do meu viver,
Eu peço às nuvens, imploro ao vento:
Daqui me levem, lá está meu ser!

Amo-te muito e jamais sonhei
Que assim pudesse o amor te amar;
O amor que sinto expressar não sei,
Mas sei que o amor é maior que o mar.
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Lenitivo: Conforto, alívio, consolação.
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O SUPER -HOMEM
"És toda bela, minha amiga, em ti não há mancha alguma." (Ct. 4.7)

Quisera ter feroz força do leão
E o rugir impetuoso do trovão,
Que apavoram, de vez, a natureza;
Na verdade, eu seria um super-homem,
Que haveria de ter grandioso nome,
Só para proteger-te, com certeza.

Quisera ter a cauda da baleia
E ser o teu escudo, ó sereia,
Que me atrai com o timbre da tua voz;
Dispensaria arpejos de instrumentos,
Teria meus ouvidos bem atentos
Somente pra te ouvir - te ouvir a sós.

Quisera ter do vento a rapidez
E te levar comigo, de uma vez,
Para o mistério espacial estrelado;
Bem longe deste mundo, sem preceito,
Terias vida longa, em novo leito,
E o imenso amor de eterno namorado.

Na galáxia, só feita de quimera,
Contigo, meu amor, eu bem quisera
Criar indescritível paraíso;
Meus olhos, co'a visão do teu fulgor,
Veriam a grandeza deste amor,
Estampada na luz do teu sorriso.
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Sereia: Fig- Mulher sedutora.
Timbre: Marca, sina, qualidade de voz.
Arpejos: Modulação prolongada, sucessiva e rápida, dos diversos sons de um compasso num instrumento musical.
Preceito: Regra de proceder, ordem, prescrição.
Quimera: Ilusão, fantasia, ideia sem fundamento.

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Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Humberto de Campos (O Ladrão)

Quem lê os jornais desta capital, tem a impressão de que a arte que mais tem progredido, é, no Rio de janeiro, a arte de furtar. Os feitos da gatunagem são, realmente, aqui, tão numerosos e frequentes, que se fica supondo, ao examiná-los, que os nossos gatunos são homens inteligentíssimos, capazes de ludibriar o resto da população.

O caso não é, entretanto, este. Os gatunos não progrediram, não acrescentaram uma página, sequer, ao famoso compêndio do padre Antônio Vieira. O que sucede é coisa diferente: a população ingênua, ou incauta, foi que se tornou mais incauta ou mais ingênua tornando, assim, mais fácil do que outrora, a infração do sétimo mandamento. O caso do comissário Francisco Ambrósio é, mais ou menos, uma viva demonstração dessa verdade.

Funcionário policial de uma argúcia surpreendente, Francisco Ambrósio de Oliveira era apontado em toda a parte como um legítimo espantalho da gatunagem urbana. Não havia meliante, malandro ou desordeiro que ele não conhecesse. O seu faro de perdigueiro, auxiliado por uma perspicácia digna de Sherlock Holmes, constituía, pode-se dizer, o melhor elemento de repressão de que, até hoje, dispôs a policia.

Certa noite, porém, ao entrar, de regresso da ronda, na sua própria casa, ouviu Francisco Ambrósio, de repente, movimentos de gente estranha no pavimento superior. Cauteloso, habituado a essas experiências da própria coragem, galgou, três a três, os degraus da escada, até que observou, espantado, que o visitante noturno se havia homiziado no seu quarto de dormir. Ao abrir o compartimento sofreu, no entanto, uma decepção: a única pessoa que ali se achava era D. Luisinha, a qual, ao escancarar-se a porta, pulou, assustada, da cama, sem saber do que se tratava.

O faro policial é, felizmente, uma virtude que se manifesta contragosto, mesmo, de quem a possui. E assim foi que, sem custo, Francisco Ambrósio descobriu, impondo silêncio com o dedo indicador estirado sobre os lábios, que havia um gatuno debaixo da cama.

- O gatuno está ali debaixo! - rosnou, convicto, ao ouvido da mulher.

E em voz alta, arrancando o revolver do bolso traseiro da calça:

- Quem está aí?

D. Luisinha tremeu, pela sorte do marido.

- Quem está aí? - gritou, de novo, o comissário.

E ia perguntar pela terceira vez. quando a moça, temendo que o ladrão lhe saltasse sobre o esposo, segurou a autoridade pela manga do paletó, puxando-a para fora do quarto, ao mesmo tempo que aconselhava, amorosa:

- Deixa disso, Francisco. Ele, que não responde, é com certeza, porque não é conhecido...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

domingo, 18 de setembro de 2022

Adega de Versos 91: José Antonio Jacob

 

Nilto Maciel (Lampião à Italiana)

Ruggero Figini descobriu o Brasil em 1974. Desembarcou na Bahia e logo tratou de conhecer o Pelourinho. Porém queria muito mais que acarajé e candomblé. Cobiçava um papel no filme Dona Flor e seus dois maridos. De preferência o de um deles. Procurou Bruno Barreto. Talvez estivesse no Rio de Janeiro. E Sônia Braga? Ninguém sabia dela.

Lembrou-se do tempo das filmagens de I Girasoli. Nunca esperara ser trocado por Mastroianni. Desesperou-se, arquitetou escândalos. Imaginou até uma agressão física a De Sica.

Desde menino Ruggero sonhava nos braços das mais belas mulheres da Itália. Um dia ainda contracenaria com Claudia Cardinale, Silvana Mangano, Monica Vitti, Virna Lisa. E ainda escolheria o diretor. Fellini com fulana, Visconti com sicrana, Antonioni com beltrana. E alcançaria o Oscar. Mais de um. Seria famoso no mundo inteiro.

No entanto, os anos se passavam, as atrizes envelheciam, e só lhe sobravam pequenas atuações em filmes medíocres.

E por que não se fazer cineasta? Tudo dependia de encontrar um belo roteiro. Logo alcançaria a fama de Rosselini, Pasolini, Bertolucci. Fossem para o inferno Arnaldo Jabor, Bruno Barreto, Cacá Diegues e todo o alfabeto do cinema brasileiro. Sim, iria dirigir um filme monumental: a vida do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Em italiano o título seria Il Lampione.

Restava encontrar o roteirista. E por que não o já velho amigo Airton Acaiaca? Até porque Airton e Virgulino haviam nascido no Ceará. “Não, Ruggero, Lampião não era cearense. Nem Airton. E onde nascera o roteirista? “Dizem que é mineiro, se não for baiano”. O italiano concluiu: “Melhor assim. Filmaremos em Canudos”. E pôs-se a falar de Antonio Conselheiro.

Para Ruggero, o Lampião do roteirista mais parecia um gângster, um Al Capone. E terminaram se desentendendo. O cineasta chamou Airton de incompetente. Não conhecia a História de seu próprio povo. O brasileiro também não se conteve: “Aventureiro, ator fracassado, impostor”.

Dias depois dessa rusga Ruggero Figini regressou a Roma. Não levava nada, a não ser o roteiro de Acaiaca.

Il Lampione alcançou enorme sucesso na Europa. Não teve, no entanto, a direção de Ruggero, que preferira vender o roteiro a um produtor cinematográfico.

Uma fortuna.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLVII

INSÔNIA

 
MOTE:
Na mais estreita amizade,
sem a menor cerimônia,
à noite, tua saudade
vem deitar com minha insônia!
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
Na mais estreita amizade,
numa amizade tão pura,
unem-se à minha ansiedade
lembranças só de ternura.
 
E a saudade, de repente,
sem a menor cerimônia,
se coloca em minha frente
como conselheira idônea.
 
Revivo, então, na verdade,
velhos dias de alegria...
À noite, tua saudade
vem me fazer companhia...
 
Sentindo-me, assim, amado,
numa beleza-fitônia,
tua saudade, ao meu lado,
vem deitar com minha insônia!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

   ... SE MORRESSE A SAUDADE?
 
MOTE:
... E se morresse a saudade?
Fatalmente eu morreria...
Pois, é esta doce maldade
o alimento do meu dia!
Fernando Câncio Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

GLOSA:

... E se morresse a saudade?
O que seria de mim?
Acho que a fatalidade
seria mesmo o meu fim!
 
Se a saudade fosse embora,
fatalmente eu morreria...
pois com ela, sem demora,
iria junto a alegria!
 
Amo a saudade, é verdade,
ela faz bem a minha alma,
pois, é esta doce maldade
que me faz feliz e acalma!
 
Hoje, são as esperanças
que mantêm esta utopia...
São minhas doces lembranças,
o alimento do meu dia!
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   POETA FINGIDOR
 
MOTE:
O poeta é um fingidor
finge tão completatente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
Fernando Pessoa
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

GLOSA:

O poeta é um fingidor
e tem emoções de artista;
nos seus olhos só de amor
há um fingimento altruísta!
 
Se está triste de verdade,
finge tão completamente,
que mostra felicidade,
sem nem mesmo estar contente!
 
Suspira sem sentir dor,
ou chora e a sente gemendo,
que chega a sentir que é dor
aquela  dor que está tendo!
 
Segue, assim, no seu fingir,
num fingir tão inocente
que,  às vezes, chega a sentir
a dor que deveras sente.
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   SEGUNDA VOZ
 
MOTE:
A vida pôs, por maldade,
tanta distância entre nós,
que, quando eu canto, é a saudade
que faz a segunda voz...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

GLOSA:

A vida pôs, por maldade,
entre nós dois, um adeus...
e nessa triste verdade,
marejam-se  os olhos meus!
 
Eu não consigo aceitar
tanta distância entre nós,
quero e preciso sonhar,
pois nos tornamos dois sós!
 
A nossa realidade
é tão triste, tão sem fim,
que, quando eu canto, é a saudade
que canta dentro de mim!
 
Meu canto é quase um lamento
e é essa saudade atroz,
cantando na voz do vento,
que faz a segunda voz…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas VII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Maio 2003.

Sammis Reachers (Casemiro, O Profeta)

Impossível coordenar no mesmo período os termos Jardim Nazaré e catar ferro-velho sem elencar o terceiro elemento que completa a equação: Profeta. Seu nome, ao que consta, era Casemiro. Possuía um ferro-velho em sua casa, na rua principal do bairro. Quando o conheci, era já um ermitão. Meus pais diziam que tivera esposa, que aparentemente abandonara o coitado.

Era homem já pelos seus 60 ou mais (ou menos, que a vida trata a cada um com um rigor diferente), senhor de suas rugas e verrugas. Seu cabelo, alvo e sempre desgrenhado, lhe alcançava quase os ombros; seus trajes completavam o arquétipo do eremita: shortões ou calças puídos ao máximo, cheios de reparos aparentes, de costura desleixada e cores indefiníveis, dado o encardido. Suas camisas seguiam o mesmo script. A barba não grande, mas sempre por fazer, era o arremate, a cereja do bolo.

Aquele morador dum bairro suburbano de São Gonçalo bem que poderia ser confundido com um elemento antisocial (nossa língua imensa tem até um nome feio para isso: misantropo) morando numa gruta ou caverna no agreste do país. Fato que contribuía para aumentar a aura de mistério que, ao menos para as crianças da época, o envolvia: Quando eu lhe perguntava por que ele era chamado de Profeta, o desconjuntado fazia uma cara de pensador profundo, e dizia:

– Você não ia entender, garoto...

– Mas, diga, diga que eu entendo sim, seu Profeta.

– Garoto, isso está muito além de sua mente de criança. Sabe, eu vejo mundos...

– Mundos??!!! Caramba!!! Fale sobre esses mundos.

– Esqueça isso, moleque, você é muito jovem para entender. São mistérios...

Por incrível que pareça, este diálogo se repetiu algumas boas vezes, sempre com o mesmo desenlace inconclusivo. E vez após vez o diabrete da curiosidade plantava seu feijão mágico em minhas terras férteis.

Pois bem, as primeiras experiências de mercar reciclagem de todos os moleques do bairro começaram com Profeta – ainda que, depois, fôssemos migrando para ferros-velhos mais distantes, mas que em compensação pagavam melhor. Antecipando-se aos movimentos feministas de igualdade laboral, até meninas se apresentavam naquele entreposto para vender ferragens e garrafas!

Recordo de que era comum na época catarmos ferro e latas principalmente. Essas hodiernas embalagens plásticas dos óleos de soja, ou as latinhas com partes de papelão de alguns leites em pó inexistiam: Era tudo tecido na mais pura lata. Assim, era bem fácil acumular boa quantidade do (já àquela época) desvalorizado material. E, como dito nalgum lugar, não havia coleta de lixo pelos despudorados poderes públicos: A cada esquina e meia havia um lixãozinho a céu aberto.

Chegando diante do ferro-velho do Profeta, um ritual se estabelecia: Apanhávamos alguns soquetes bem pesados, feitos de barras de ferro, e nos púnhamos a amassar todas aquelas latas, uma barulheira infernal. Como o produto era pouco, pouquíssimo valorizado, e nossa carestia era grande, recorríamos a um subterfúgio que, acredito, sempre foi e ainda é praticado em todo o grande mundo: Colocar pedras dentro das latas para que, depois de amassadas, seu peso aumentasse. Ah, doce esporte!

Mas tal subterfúgio nem sempre redundava em logro: Se Profeta, apanhando uma das latas a esmo e a balançando, percebesse o engodo, mandava recolher todo o conteúdo que já estava em sua balança e “ir vender em outro lugar”. Era preciso apuro para amassar bem amassadas as latas com pedras, e não colocar pedras em todas, é claro.

Certa feita, a engenhosidade maléfica de Renato teve uma inspiração, um insight criativo, o qual ele comunicou a uns cinco ou seis moleques da rua. Acontece que a casa de Profeta era protegida não por um muro de alvenaria, mas por um emaranhado de chapas de lata, arames e paus entrelaçados. Um quiprocó dos carambas, que lembrava até algumas obras de arte modernas que eu viria a conhecer. Mas, dentre aquele emaranhado muito bem urdido, Renato percebera uma lacuna. Sim, uma chapa de lata que, se corretamente forçada, daria entrada naquele quintal, ainda que fosse pelo menos a uma criança menor que nós.

O que se seguiu foi vergonhoso, mas julgávamos apenas estar empatando o jogo, pois as balanças de Profeta eram algo suspeitas de sempre “roubar para a casa”, ou a banca, outra prática de universal valência...

Toda noite, íamos até aquele ponto da cerca e, forçando silenciosamente a lataria, embutíamos um dos pequenos para dentro – em geral um dos irmãos menores de Renato, Aguinaldo (“Guinaldo”) ou Ricardo (“Cado” ou “Cadim”). Os pequenos safardanas então surrupiavam o que podiam – garrafas e garrafões, pedaços de alumínio que porventura Profeta houvesse esquecido “do lado de fora”, já que os materiais de mais valor eram guardados dentro de casa, e até ímãs. E, no dia seguinte, lá íamos nós... revender as peças para ele mesmo, Profeta.

Lembro que nos regozijávamos com aquilo, acreditando sermos os maiores malandros de todo o orbe terrestre. Dinheiro fácil e justiça, a desejada justiça, feita contra aquelas balanças viciadas em infidelidade!!!!

Mas a alegria durou pouco. O velho, mesmo com todo aquele traquejo de lelé da cabeça ou doidivanas, certo dia nos disparou, na lata:

– Ei, esse ímã aqui não é meu, não?

Antes que pudéssemos negar, o raciocínio daquele misantropo correu rápido como numa visão, e ele imediatamente associou todas as nossas vendas dos dias anteriores a desfalques – agora ele entendia – em sua própria firma.

O resultado: Além de perdermos a carga que fôramos levar naquele dia, ficamos proibidos de ali comerciar por um bom tempo. E o buraco na cerca, ah, o velho encontrou e tapou no mesmo dia!

Com o tempo, o pobre do Profeta foi diminuindo as atividades, e por fim vendeu a parte da frente de seu terreno para um indivíduo que lá construiu sua casa. Ficando ainda mais isolado, pois sua casa agora ficava “escondida” no terreno dos fundos, ali Profeta faleceu, sozinho e misterioso como sozinho e misteriosamente vivera boa parte de sua vida.

Saudades de Profeta, de suas broncas, seu jeito irritadiço, e das muitas risadas que pude dar com aquele simpático, sim, simpático velhinho ranzinza. Velhinho que, além de me ensinar sem querer a exercitar a imaginação, me dera os rudimentos práticos do ofício de catador: saber diferenciar “metal” de cobre, antimônio de “bloco”, ferro de aço e por aí vai...

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 17 de setembro de 2022

Varal de Trovas n. 568

 

Eduardo Affonso (Top)

– Cara, olha como a língua portuguesa é rica: no Dicionário Aurélio constam 435 mil verbetes…

– Top!

– Eu podia dizer que são 435 mil palavras, mas existe uma palavra específica para essas definições que a gente encontra nos dicionários, que é verbete. Este é o termo correto. Verbete não é só a palavra, mas também suas definições, os vários sentidos que ela pode ter, os seus sinônimos…

– Top.

– E veja quantas opções existem para a palavra “palavra”: termo, vocábulo, expressão…

– Top…

– E cada uma com uma nuance.  Por mais que “palavra” e “vocábulo” sejam sinônimos, você nunca vai dizer “vocábulos românticos” ao ouvido de alguém.  Não é por serem sinônimos que podem ser usados, ou empregados, ou utilizados indistintamente.

– Top.

– Temos um vocabulário considerável. “Usar” pode ser o mesmo que “utilizar”, mas depende do contexto. “Usei uma ferramenta” ou “utilizei uma ferramenta”, tanto faz. Mas não há lojas de “roupas utilizadas”.  E ninguém “utiliza drogas” no sentido de “consumir drogas”, mas apenas quando, por exemplo, trabalha com drogas em laboratório.  Viu como é sutil?

– Top…

– E mesmo “sutil” pode ser algo quase imperceptível, ou elegante, sagaz, misterioso, delicado, tênue, fino, suave. Olha quanta sutileza.

– Top.

– O que eu estou querendo dizer é que nós dispomos de um léxico muito vasto – que é uma maneira mais elegante de falar que temos um vocabulário muito grande – para ficar nos valendo sempre dos mesmos termos, entende? Um filme pode ser incrível, ótimo, sensacional, maravilhoso, estupendo, formidável, extraordinário, fascinante, impressionante, magistral, sublime…

– …ou top.

–  … e cada um desses adjetivos… como assim, top?

– Top.

– Sexo quando é gratificante é o quê?

– Top.

– Um churrasco bem servido, com cerveja gelada?

– Top.

– Um aumento de salário? Exame de gravidez negativo? Férias em Noronha? Pênalti a favor no último minuto?

– Top. Top. Top. Top.

– Cara, você precisa desenvolver sua comunicação verbal. Tudo pra você é top. Topa incorporar uma nova palavra por dia? Só hoje você já vai dobrar o seu vocabulário!

– Show.

Myrthes Neusali Spina de Moraes (Caderno de Trovas)


A igreja toda enfeitada,
e a bela noiva no altar.
Que destino... que mancada!
Não veio o noivo casar.
= = = = = = = = = = =

A saudade nos conforta,
na dor por alguém ausente,
pois abre sempre uma porta
a quem se encontra carente.
= = = = = = = = = = =

As folhas caem no outono
vão cobrindo todo chão.
As aves nesse abandono,
debandam sem direção.
= = = = = = = = = = =

Belas flores perfumaram
os jardins de nossas casas.
Os passarinhos cantaram,
bailando, a bater as asas.
= = = = = = = = = = =

Dos folguedos de criança,
eu tenho muita saudade.
Vovó é a doce lembrança
que me traz felicidade!
= = = = = = = = = = =

Em fria noite de inverno
eu dispenso o cobertor,
pois teu abraço tão terno
faz-me até sentir calor!
= = = = = = = = = = =

Já no outono desta vida,
muitos espinhos pisei.
Encontrei uma saída:
em vergeis os transformei.
= = = = = = = = = = =

Mamãe carinhosa e bela,
que saudade de você...
da história da Cinderela
e do Saci-Pererê.
= = = = = = = = = = =

Minha mãe, quanta saudade,
do teu tão doce cantar.
Tempo de felicidade,
que hoje só posso sonhar.
= = = = = = = = = = =

Ninguém foge do destino,
diz um dito popular,
mas, quando se é pequenino,
como nele acreditar?
= = = = = = = = = = =  

No inverno, a formiguinha
trabalhava sem cessar
e a folgada cigarrinha
ficava a cantarolar!
= = = = = = = = = = =

No inverno, em noite bem fria
e insônia a me torturar,
para espantar a agonia,
faço versos ao luar.
= = = = = = = = = = =

O inverno chegou depressa
e com muito vento e frio.
O tempo corre e não cessa
de nos fazer desafio.
= = = = = = = = = = =

O outono já passou,
tão depressa como o vento
e tristonha me deixou
contigo em meu pensamento.
= = = = = = = = = = =

O peão de boiadeiro,
foi na arena o boi montar,
e o destino traiçoeiro
veio a vida lhe roubar.  
= = = = = = = = = = =

Primavera, tu chegaste
florindo nossos jardins
e feliz tu nos deixaste,
quando colhemos jasmins!
= = = = = = = = = = =

Procurei no meu jardim
uma rosa pra lhe dar,
Só encontrei branco jasmim
perfumando todo o ar.
= = = = = = = = = = =

Quando a saudade dorida
sufocar-lhe o coração,
prossiga com fé na vida,
busque a Deus em oração.
= = = = = = = = = = =

Quando as folhas, sem beleza,
no chão a rodopiar,
é o outono, com certeza,
que anuncia seu chegar.
= = = = = = = = = = =

Quando o inverno acabar
e a  tristeza então sumir,
irei de novo cantar
sem pensar mais em partir.
= = = = = = = = = = =

Se com lágrimas pudesse
fazer o outono voltar,
pediria a Deus em prece
pra de novo te encontrar.
= = = = = = = = = = =

Se um acidente acontece,
sem a pessoa querer,
joga a culpa no destino,
para deixar de sofrer.
 = = = = = = = = = = =

Se você tem um pomar,
guarde bem essa lição:
não deixe de acrescentar
bons sucos à refeição!
= = = = = = = = = = =

Uma florzinha cheirosa
dentro de um livro rasgado
trouxe a lembrança saudosa
daquele outono passado.
= = = = = = = = = = =

Um ratinho muito esperto,
saiu  da toca e correu,
mas um gato estava perto,
(triste destino!...) e o comeu!
= = = = = = = = = = =
 
Violetas e jasmins
florescem na primavera.
Alegram nossos jardins,
perfumando a atmosfera.
= = = = = = = = = = = 

Fernando Sabino (O improvável retorno)


— Você vai sair? — perguntava ela, apreensiva, ao vê-lo apanhar o paletó depois do jantar.

— Sair um pouco, dar uma volta.

— Mal acabou de chegar...

— Vou encontrar um amigo, conversar um pouco.

— Por que não traz seu amigo para conversar aqui?

Ele saía sem responder. Uma noite, afinal, ela protestou:

— Hoje não quero que você saia.

— Por quê? — espantou-se ele.

— Porque toda noite é isso, eu não aguento mais! — e ela começou a chorar: — Não aguento mais, fico com saudade de você.

— Mas que bobagem é essa? — e ele procurava acalmá-la, com um gesto de carinho: — Dou uma volta para espairecer, tomo um café, volto logo para casa. Que é que tem isso de mais?

— Hoje eu não quero! — insistiu ela: Hoje você não sai.

Ele sorriu, condescendente, e se dirigiu para a porta — ela cortou-lhe os passos:

— Eu vou com você.

— Você nem está vestida para sair, vai se demorar... Daqui a pouco estou de volta, que diabo.

Como resposta, ela torceu a chave da porta e retirou-a:

— Neste caso, você também não sai.

— Deixa de bobagem e me dá essa chave.

— Não dou.

— Me dá essa chave! — repetiu ele, já trêmulo de raiva.

Ela se esquivou, vitoriosa, foi estender-se no sofá.

— Olha! — insistiu ele, procurando se conter: — Se você não abrir esta porta, vai se arrepender. Eu saio de casa e nunca mais volto, entendeu?

— Não abro. Quero ver você sair.

— Ah, quer ver?

Ele se voltou, caminhou com decisão até a janela, subiu no parapeito. Olhou-a ainda uma vez, fez um gesto de adeus e saltou na escuridão.

Ela deu um grito de horror e se precipitou também até a janela, olhou para a rua, alguns metros abaixo. Teve tempo de vê-lo se erguer com dificuldade e afastar-se arrastando a perna até dobrar a esquina.

Os dias se passavam e ela não tinha dele a menor notícia. Como ele não voltasse, pôs luto fechado, nunca mais saiu. Dias, meses, anos — envelhecia ali, sozinha naquela casa, e não tolerava que se mudasse nada de lugar, que se mexesse nas coisas dele. Os sobrinhos iam visitá-la, ficavam impressionados:

— Titia, a senhora vivendo aqui tão sozinha, por que não vem morar conosco?

— Quero que ele me encontre aqui quando voltar.

Os amigos e parentes concordavam que o tio sempre fora meio esquisito, esquivo, caladão, jamais voltaria. Se ainda estivesse vivo já se teria arranjado por aí noutro lugar, com outra mulher.

Cinco anos, dez, vinte — vinte e cinco anos! Ela acabara de completar cinquenta, quando um dia teve afinal a primeira notícia dele. Notícia vaga, imprecisa, mas notícia: alguém que chegara do Rio Grande do Sul lhe falou de um fazendeiro com o mesmo nome — falou casualmente, sem saber da história, e ela se acendeu: só podia ser ele, o nome não era tão comum assim. Ficou sabendo que ele tinha ido para o Uruguai, casara-se, tivera filhos, enviuvara e afinal viera terminar com uma fazenda de gado na fronteira. Ela se pôs a escrever cartas sigilosas a quem quer que lhe desse, naquela região, maiores informações. Escreveu-lhe diretamente, ele não respondeu. Tornou a escrever — mandava-lhe cartões no seu aniversário, no Natal.

Chegou enfim uma resposta — algumas linhas lacônicas, porém amigas. Depois de mais alguma troca de cartas, ficou estabelecido que ele voltaria. E voltou. Calado, envelhecido, arrastando a perna que fraturara na queda vinte e cinco anos antes, reinstalou-se na casa como se dali jamais houvesse saído. Ela se enfeitara toda para recebê-lo — discretamente os dois procuravam ignorar as marcas que o tempo lhes impusera. A princípio ela o tratou com silencioso desvelo, buscando cativá-lo pela discrição com que aceitava o silêncio dele sobre tantos anos de ausência.

E agora ele já não fazia tanta questão de sair à noite — em geral, depois do jantar ficava no sofá fumando cachimbo e vendo televisão. Ela tricotava feliz — de vez em quando levantava os olhos e o olhava com amor.

Dois meses se passaram, até que uma noite ela se arriscou a perguntar mansamente, desta vez sem levantar os olhos:

— Ela era bonita?

— Ela quem? — estranhou ele.

— Sua mulher. Eu soube que você se casou com outra, teve filhos, enviuvou…

Ele não respondeu. Mas a essa se seguiram outras perguntas — até que um dia ele, inesperadamente, tornou a sair de casa (pela porta) para nunca mais voltar.

Ela tornou a vestir luto e, a casa sempre arrumada, continua obstinadamente a esperar a sua volta.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 39

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 61

Que semana esta que não vi passar!

O mês foi tão ligeiro! O ano desapareceu na encruzilhada do tempo! Mas . . . é assim mesmo? Sempre foi? "Cosa de loco", dizia o amigo querido, "o tempo leva a gente". Vamos na garupa "do tempo e do vento ", escreveu o mago Érico.

Verdade em verdade, quando nascemos parece que o dito tempo vem junto, entranhado no ser. E somos aos poucos "doutrinados" para o costume de sentir e ouvir falar do tempo. Crescemos ouvindo que "o tempo melhorou, o tempo maltrata, não tenho tempo, o tempo vai esquentar, vai faltar tempo, o tempo é implacável".

Falar do tempo, considerar sobre a ideia do tempo sempre foi difícil e seguirá sendo pelo tempo a fora. Filósofos quase todos pensaram o tempo, cada um segundo a sua visão, seu pensamento, sua filosofia.

Santo Agostinho explica a teoria do tempo no trinômio memória, intenção e espera (presente, passado e futuro) existente na mente dos homens. Segundo ele, "quando o homem mede o tempo, assim o faz por meio da impressão ou percepção que tem dele".

Alguém já disse que somos transeuntes do tempo. Se ele é um passageiro, é vero pensar que seguimos esta trilha que sufoca, que alegra, que empurra, que agita, que entristece, que incita, que põe freios. E assim nos ajuda a viver a qualquer tempo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XVIII


APÓS A TEMPESTADE


O vento chega e sopra muito forte
anunciando, em trovões, a tempestade,
as folhas arrancadas sem piedade
revoam à mercê da injusta sorte.

Raios cortam o céu de Sul a Norte,
prenúncio de pavor, calamidade,
estrondos são ouvidos na cidade
gerando medo, caos e a própria morte.

Tristonha, a tarde se vestiu de escuro,
e a chuva desabou estrepitosa
como se castigasse o povo impuro.

A noite chega e adentra pela fresta,
céu estrelado e a lua tão formosa
e a Natureza, eu vi, estava em festa!
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CONVERSA NO TREM

- “Esta vida não faz nenhum sentido,”
dizia o passageiro do meu trem,
- “o mundo inteiro, veja, está perdido,
- esperança não há para ninguém.”

Assim falava o homem ressentido
das promessas que, feitas por alguém,
sequer foram cumpridas e incontido
ele se lamentava do desdém.

- “Mas a vida é assim mesmo,” outro dizia,
- “a tristeza anda ao lado da alegria
e a calma vem após a tempestade.”

Por que, então, meu coração sedento
tem que provar a dor e o sofrimento
para alcançar a tal felicidade?
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O MAR

A noite chega e a solidão do mar
vem me trazer, de leve, um vento fino,
a saudade povoa o meu pensar,
enquanto as vagas seguem seu destino.

E o mar, em movimento, quer mostrar
o poder que fascina ao peregrino,
provocador, feliz, quer carregar
dissabores e mágoas... imagino.

E traz em oferenda a tempestade,
fica agitado e cheio de vontade,
erguendo-se em espumas seu furor.

Depois, torna-se calmo e exuberante,
belo e tranquilo, mostra-se pujante,
esquecendo, talvez, da própria dor!
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O PODER DO AMOR

Quanto mais penso no poder que o amor
exerce sobre mim e me fascina,
convenço-me, serás o meu torpor,
não importa o que diz a medicina.

Se estás comigo, sinto o teu calor
e uma paz silenciosa me domina,
o tempo não mais corre com rancor
e o teu olhar, meus olhos, ilumina.

Eu quero me prender neste pecado,
e em teu amor ficar acorrentado
como fiquei nos versos que compus.

E prometo cantar com tal Doçura
uma canção de Paz e de Ventura
que o nosso Amor nos levará à Luz!
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O TEMPO

O tempo não perdoa e passa velozmente
levando de roldão venturas e bonanças,
O sonho, o entusiasmo, a mágoa, o amor ardente
estão presentes, hoje, apenas nas lembranças.

Uma saudade fala ao coração da gente
e promete calar nossas desconfianças
por um momento só, que a vida, certamente,
vai nos cobrar bem caro o fim das esperanças.

E quando a hora chegar, um vulto solitário
há de se aproximar trazendo um vestuário
e sorrindo, dirá; não temas, sejas forte.

E um silêncio trará a sensação terrível:
- a vida chega ao fim sem fazer o impossível,
restando tão somente o fantasma da morte!

Fontes:
- Filemon Francisco Martins. Sonetos & Trovas. RJ: CBJE, 2014.
Livro enviado pelo autor.
- Blog do autor. https://filemon-martins.blogspot.com/

Aparecido Raimundo de Souza (Marlucia)


TEM GENTE que Deus coloca no nosso caminho só para nos dar paz. Que nos empurra para o melhor de nós, que nos guia para a estrada do bem. Gente que é sorriso em dia feio, que é suporte quando parece faltar chão.

Tem gente que pensa e repensa jeitos e maneiras de nos fazer bem, que se preocupa e demonstra o melhor de si. Gente que é abraço, mesmo de longe, e a certeza que tudo vai dar certo. Que empresta coração para a gente morar, que planta pensamentos bonitos nos dias da gente…

Meu coração é muito precioso por isso. Não guarda mágoas nele. Dentro apenas pessoas especiais que marcaram a minha vida. E você, Marlucia, marcou a minha vida, não só ela, todos os meus sonhos, de maneira dupla.

Me deu duas filhas maravilhosas. Amanda e Luana são os retratos vivos de um amor que vingou. Que deixou marcas em nós, e que, por essa razão, será eterno, apesar de hoje estarmos cada um seguindo por sendas diferentes.

Você me lembra aquela passagem conhecidíssima de um cidadão que pediu à Deus uma coisa e recebeu outra. Recorda da historinha? Vou resumir, para não me tornar chato.

... Certa vez, um homem pediu ao Altíssimo uma flor e uma borboleta. Mas o Todo Poderoso lhe deu um cacto e uma lagarta. O pobre homem ficou triste, pois não entendeu o motivo do seu pedido ter vindo errado. Daí pensou: - também, com tanta gente para atender… e resolveu não questionar...

Passado algum tempo, conclui a história, o homem foi verificar o pedido que deixou esquecido. Para sua surpresa, do espinhoso e feio cacto, havia nascido a mais bela das flores e a horrível lagarta se transformou em uma belíssima borboleta... ’.


Com você, Marlucia, tem sido assim. Deus sempre age certo. O seu trilhar é o melhor, mesmo que aos nossos olhos pareça estar dando tudo errado. Se você pediu à Deus uma coisa e recebeu outra, confie. Tenha a certeza de que Ele sempre dará o que você precisa, no momento certo, na hora certa, tudo no tempo DELE.

Nem sempre o que você deseja, é o que você precisa. Como Ele nunca erra na entrega de seus pedidos siga em frente sem murmurar ou duvidar. Resumindo, o espinho de hoje, será à flor de amanhã!

Para você, nesse dia especial, o melhor de mim, para você que deu o melhor de si, para mim, tantos anos atrás. E agora, recebe nesse dia, nesse dia que não é só seu, mas de todos nós, notadamente de nossas filhas Amanda e Luana, como presentes do pai maior, dois netos lindos, maravilhosos. João Eduardo e Heitor. Que Deus lhe abençoe e guarde.

Carinhosamente,
Aparecido


Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 5: Memórias de seda

 

A. A. de Assis (Mãos dadas)


A natureza é solidária. Sem solidariedade nada existiria. Os animais dependem dos vegetais, os vegetais dependem dos minerais, os minerais dependem dos vegetais, os vegetais dependem dos animais... O fantástico círculo da vida.

Há solidariedade em tudo. Veja o corpo humano: funciona como se fosse uma orquestra. O coração, os pulmões, os rins, os ossos, as veias, as mãos, as pernas. Da cabeça ao dedinho do pé, é um time só, coeso e harmônico. Se um dos componentes entra em pane, todo o organismo, em variados graus, sente a diferença.

Solidariedade, mútua ajuda, cooperação. Numa palavra: amor. Tudo na natureza é uma permanente relação de amor. Deveria ser assim também a convivência humana.

Estamos saindo de uma pandemia que causou prejuízo e dor em todos os lugares do mundo, atingindo a humanidade inteira. Foi um período de universal sofrimento, mas ao mesmo tempo uma oportunidade seriíssima para a gente refletir e tentar mudar o jeito de viver.

Os sobreviventes teremos muito o que agradecer, por todo o sempre, à heroica rede de solidariedade que tornou possível enfrentar o desafio até a chegada das vacinas e a recuperação da esperança. Agradecer aos cientistas, aos médicos, profissionais de enfermagem, voluntários para testes, laboratoristas, infectologistas, farmacêuticos, motoristas, seguranças, equipes de limpeza, auxiliares de serviços gerais, enfim a cada um dos que, com valentia e abnegação, se uniram por nós neste gravíssimo momento da história.

Nunca, antes, foi tão visível a fundamental importância da solidariedade, da capacidade humana de amar o próximo. É hora, portanto, de olhar para o céu e pedir a Deus que nos ajude a crescer como pessoas. Sursum corda. Corações ao alto.

Tudo é solidariedade, em toda a natureza. Só o ser humano permanece conscientemente egoísta. Por ambição, por arrogância, por vaidade, voltam-se irmãos contra irmãos, filhos contra pais, amigos contra amigos, colegas contra colegas. A humanidade é uma família doente. Precisa de tratamento urgente.

Quem pode ajudar nesse tratamento? Pais, professores, dirigentes religiosos, jornalistas. Cada um pode contribuir um pouquinho, pelo menos diminuindo a carga de estímulos à discórdia e colaborando mais assumidamente para a valorização dos bons exemplos de paz, justiça, bondade, mútuo respeito.

Podem dizer que insistir nessa linha é romantismo. Que seja. Bendito romantismo. Já brigamos demais. Agora é hora de serenar os ânimos. Discordar, discutir, debater no acidental, mas somar esforços no essencial.

Temos todos, entre nós, múltiplas diferenças. Isso é natural. Mas precisamos uns dos outros, da mesma forma que o coração precisa dos pulmões e os pulmões precisam do coração. Mãos dadas, intenções honestas, solidariedade. Sursum corda.

Fonte:
Blog do autor. Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 11.8.2022

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 12


Alma de sorriso brando,
sua ternura tem alma;
a mãe é santa? até quando,
na aflição seu filho acalma!
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Aqui, quando tu te aqueces,
que a aurora muda de cor...
As nuvens juntam-se em preces,
em preces rubras de amor!
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Cantando vai para a escola,
a criança de pé no chão;
leva a ilusão na sacola
e enche a vida de ilusão!
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Comparo a espuma dançando
nas ondas, sempre a cantar,
a bordadeiras, bordando
as saias brancas do mar!
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Entre os véus da noite escura
e, os lençóis da ingratidão,
dorme a criança de alma pura,
sempre à espera de outra mão!
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Lembrei do altar da capela,
dos ritos de um velho sino,
que unindo o meu peito ao dela
selou o nosso destino!
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Linda trova pequenina,
gigantesca mundo afora...
Tens nesse olhar de menina
centelhas da luz da aurora!
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Logo assim que, o sol se põe,
diz-me o silêncio e acredito,
que sem tinta, alguém compõe
partituras no infinito!
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Meus olhos, cegos sem dor,
teus lábios cegos, sem dono;
somos dois cegos de amor
curtindo o mesmo abandono!
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Minha vida é tão singela,
que a esperança é quem descobre,
que em pobreza de alma bela
há riqueza de alma nobre!
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Na madrugada sem dono,
num silêncio que arrepia,
caem lágrimas sem sono
dos olhos da nostalgia!
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Não lamente os desenganos;
que o tempo com seus desvãos,
vai pondo os calos dos anos
nas rugas de nossas mãos!
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Na voz dos igarapés,
no choro dos manguezais...
Ouve-se a voz das marés
pranteando os seus tristes ais!!!
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No fogão velho apagado,
entre as cinzas do fogão,
vi meus sonhos do passado
soprando a cinza e o carvão!
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No saco de quem mendiga,
sobra o pão que mata a fome;
mas no pão de quem castiga,
falta a massa que se come!
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Num banco velho sem perna,
sobre uma pedra no chão...
Vi nele, a prisão eterna
do mantra da solidão!
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O amor tem tanta ternura,
que às vezes, me causa espanto,
quando uma lágrima pura
vira uma gota de pranto!
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O meu amor mais profundo,
não é por amor qualquer...
Mas pelo amor, que há no mundo,
da esposa, mãe e mulher!
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O rio, a mata, a emoção!
A alvorada e o sol poente,
que preito de gratidão
que Deus nos deu de presente!
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O orvalho que rega a planta,
é o mesmo que me seduz;
minha alma, orvalhada, canta,
e orvalha a vida de luz!
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Prossigo mesmo sozinho,
sem me sentir no abandono;
tendo Deus em meu caminho
não sinto a idade do outono!
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Se a saudade me persegue,
por capricho ou por maldade,
mesmo que tudo me negue,
não sei viver sem saudade!
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Se à tardinha, os versos meus,
revelam triste desgosto,
é a tristeza dando adeus
à solidão do sol posto!
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Se tu crês, abre a janela,
que a luz do sol quer te ver;
é a luz mais forte e mais bela
aos olhos do amanhecer!
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Sou como as flores caídas,
que aos poucos, sendo pisadas,
vâo adubando outras vidas,
à espera de outras floradas!
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Teu peito é um eterno cofre,
ó mãe, com tanta ternura,
que cura a dor de quem sofre
e a dor de quem não tem cura!
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Tomei mil drogas fatais,
fiz sessões de acupuntura...
Saudade - é a dor de meus ais,
que a medicina não cura!
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Tua tristeza parece,
ó, velho mar, dos meus ais,
o choro triste, da prece,
das mães rezando no cais!...
= = = = = = = = = = =

Varrendo o chão que pisei,
mesmo apesar da distância...
Não tardou, logo encontrei
vestígios de minha infância!
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Vejo em tantas reticências
de um mundo que se desfaz,
que há muitos, temendo ausências,
e há poucos, pedindo paz!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.