quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 41

 

Aparecido Raimundo de Souza (Labirintos de passagens)


ENQUANTO PEQUENO, tudo bem. Nada de anormal ou qualquer situação fora de controle que carecesse maiores cuidados. Os embaraços tiveram início quando, aos cinco anos, entrou para a escola pública da comunidade onde nascera. Logo na primeira semana, se descobriu superior. Tinha dentro de si trinta diabinhos marotos. Quebrou a cara de um garoto. Os pais foram chamados. A partir daí outras desavenças reboaram (1). Em face de sangue nas guelras, brigas e confusões constantes, precisaram mudar de endereço e, de estabelecimento de ensino. Não adiantou. Os engasgos foram juntos, grudados na pele, arrimados na alma, misturados no sangue, acorrentados no coração.

Nova transferência de localidade e de educandário. E o guri, impertinente, sempre que lhe chamavam, fosse para participar de “peladas”, um simples papo descontraído entre amigos na pizzaria, aos domingos, ou para estudos na biblioteca, a confusão, de pronto, se fazia presente e, pior, cada vez mais forte e acirrada.  Chegou então a fase do distanciamento. A ponto de coisa séria. Com isso, ninguém lhe dirigia a palavra. Todos lhe viraram os rostos. As meninas que nutriam por ele um sentimento mais forte, em vista de seu aspecto elegante impressionar mais que cartão de crédito sem limite de gastos, acabaram dando atenção a outros moleques.

O recuo constante e inevitável, passou de forte e mirrado para um divórcio litigioso, sério e agravoso. Do fraco espaçamento, às peripécias desandaram para as sendas do insuportável. Com o passar dos anos, virou egressão (2) disjungida (3). E, como tal, o mal não estancou. Ao oposto, evoluiu. Se fez pesado, áspero, malfadado, azarento e obviamente sem nenhuma previsão de retrocesso ou de reocupação ao estado normal. Um dia, aos quinze, na constância de amigos os mais diversos, convivendo sobre o chão de uma nova matrícula em sequência aos aprimoramentos dos estudos, conheceu o Bira7. Um adolescente que diziam as línguas ferinas, vivia em sociedade com as margens da lei. Seria tão endiabrado que se dependuraria num trapézio da altura de um prédio de dez andares, e o faria pelos dentes, sem usar rede de proteção.

Por conta, para completar, o piá (4) vivia envolvido com armas pesadas e tráfico de drogas. O infeliz lhe vendeu uma Ponto 40. Com ela, se sentindo seguro e dono de si, colocou no vazio da cabeça, a maligna ideia que rezava na sua cartilha particular.  “Se alguém vier me “tirar sarro” ou me motivar “a sair do sério”, em consequência do ataque ao meu patronímico, mandarei o infeliz para a cidade dos pés juntos, com passagem só de ida para a estação final situada nos quintos do inferno”. Aos dezoito, depois de ter ganhado uma partida de futebol (verdade seja dita, o rapaz jogava melhor que o atacante Neymar), um mané lhe fez um convite cordial.

Tomar com os demais partícipes das peladas, “umas cerveja” no restaurante do Gilmar”. O restaurante do Gilmar ficava na entrada do bairro onde fora morar sozinho, depois que resolveu sair definitivamente da casa dos genitores. Aceitou, de pronto o convite. Todavia, ao chegar na porta do estabelecimento, àquela hora cenário de atividades frenéticas, o Luizão Pescoço de Girafa (justamente o técnico que procurava e preparava os novos jogadores), ao vê-lo espichando os olhos em procura dos demais membros da galera, sem querer ofender, de boa, o chamou para a “rodada” onde se achavam reunidos. O grito estridente que o Luizão Pescoço de Girafa emitiu, ecoou como uma pedrada certeira em sua parte desumana, apesar do salão imenso se fazer envolto num mar de conversas e gargalhadas entrelaçadas às nuvens das fumaças dos cigarros consumidos:

— Ei, estamos aqui. Vem pra cá, Noa.

Bailou a gota que deu o salto quântico em seu lado obscuro, fazendo transbordar o copo cheio de ódio que trazia dentro de si. No instante seguinte, da sua lareira interior, crepitou um fogo enorme. Embebido em seus intuitos maléficos, um resto de serenidade se fez verter em fúria repentina. À respiração colérica, puxou da Ponto 40 que carregava na cintura e abriu fogo. Apesar das hordas (5) dos curiosos, a debandada se fez iminente e inesperada. Por conta dos disparos, os amigos, em alvoroço, e diante de uma ameaça de maior porte, trivializaram a cena. Vazaram, como se homiziados (6). Aqueles que se achavam mais próximos dos acessos fáceis, se projetaram para a calçada como prisioneiros tentando escapar de uma rebelião organizada aos reveses do “salve-se quem puder”.  

Outros, aos tropeços, correram para os banheiros. Alguns pularam janelas e meia dúzia se enfiou como possível, por debaixo das mesas. Apesar disso, um dos projéteis acertou a cabeça de Luizão Pescoço de Girafa. O infausto caiu morto, a face alegre repousando em meio a uma enorme poça de sangue. Alguém chamou a polícia. Noa saiu preso e algemado conduzido por vários militares às barbas da delegacia. À autoridade de plantão, Noa explicou ao ser inquirido, “não aguentava mais. Estava, na verdade, cansado de ser chamado de “barquinho””. O adjunto olhou para Noa meio enviesado. Sem entender bulhufas, pediu esclarecimentos:

— Como assim, meu rapaz?  Não entendi a sua colocação. Barquinho?!

Nesse interregno, veio de outra sala, a escrivã que lavraria o flagrante. Com a voz rouquenha conduziu Noa pelo braço:

— Meu rapaz, o delegado vai lhe fazer perguntas.  Se quiser ligar para algum parente, ou advogado, fique à vontade. O doutor é gente fina, apesar de transmitir a aparência de um gorila enjaulado.  Sorriu e, em seguida, apontou uma cadeira ao lado da mesa onde seu depoimento seria levado à termo:

— Venha pra cá, Noa. Senta aqui e fique à vontade...

Noa foi à espadilha (7). Virou fera. Ao invés de se acomodar, pulou, furioso e possesso no pescoço da agente:

— Canoa, sua vagabunda... canoa é a senhora sua mãe.
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Notas de rodapé:
1 – Reboaram – Ecoaram com estrondo, retumbaram de forma desordenada.
2 – Egressão – Afastamento, ou distanciamento.    
3 – Disjungida – Soltar, se desprender, se desanexar.
4 – Piá –  Moleque, criança, menino, guri.
5 – Hordas – Bandos de aventureiros, ou grupos de bêbados.     
6 – Homiziados – Aqueles que se escondem de alguma coisa, notadamente da justiça. 
7  – Espadilha – No sentido do texto, o personagem foi à espadilha. Foi à arma, partiu para o tudo ou nada. Termo usado por Gregório de Matos na “Crônica do Viver Baiano Seiscentista”, Editora Record, Rio de Janeiro 1992. O termo também se fez presente em “Várias histórias”, contos de Machado de Assis, em edição publicada em 1886.

Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

Caldeirão Poético LIV


Corina Rebuá

(1899 – 1957)

QUE INSÔNIA!

Como faz frio neste quarto agora!
A chuva bate em cheio na vidraça.
E o relógio da igreja, de hora em hora,
Soa. Há passos na rua... E a ronda passa...

Não consigo dormir. Como demora
Esta vigília que me torna lassa!
Se abro um livro, não leio. E lá por fora
Chove. Há passos na rua... E a ronda passa...

Dormes? Não creio... Eu sei que estás velando,
Porque eu pressinto que, de quando em quando,
Vem o teu corpo fluídico e me enlaça.

O relógio da igreja está batendo.
São quatro horas... Que insônia! Está chovendo.
Ouço passos na rua... E a ronda passa.
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Pedro de Alcântara Worms
Pinhal/SP

ALMOÇO DE NOIVADO...

"Bom partido", daí dona Consuelo
dar banquete ao noivado de Tereza,
usando essa conversa já modelo:
— ... “a noivinha é quem fez a sobremesa...”

E que celebração!... Quanto desvelo!...
Foi tudo do melhor e com largueza,
não houve um só senão... um atropelo,
até aquele instante — que beleza!...

A hora do brinde, o noivo, empanturrado,
elogia, gentil, o lauto almoço:
— ... "mas eu nunca comi com tal agrado,

mesa assim nunca vi!...” E, num endosso,
diz o filho caçula ao convidado:
— ... "nós também nunca viu, assim, seu moço!...”
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Rosemar Pimentel
Niterói/RJ, 1905 –

PEQUENINO MORTO

Morreu. Vestiram-no de branco e veio
entre outras crianças rútilas, mimosas,
dar o corpinho emagrecido e feio
à tristeza das tumbas dolorosas.

As mãozinhas em cruz, postas no seio,
como duas saudades silenciosas,
tornavam-se mais lívidas, no meio
das grinaldas, dos lírios e das rosas.

Eu, que encontrei o féretro na estrada,
penso na dor de quem ficou sozinho
e vejo, pela aldeia desolada,

que quando passa o corpo desse anjinho,
enquanto os outros pais não dizem nada,
o coração das mães chora baixinho!...
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Waldir Neves
Rio de Janeiro/RJ, 1924 – 2007

VIVER

Vamos, querida, pelo mundo afora,
mirar os lírios brancos dos caminhos...
Vamos beber a luz pura da aurora,
embalados nos cânticos dos ninhos.

Vamos de perto ver a flor que chora,
pela fonte levada em torvelinhos...
Vamos colher as rosas, sem demora,
antes que murchem — sem ligar a espinhos.

Vamos buscar o belo onde ele exista,
sempre a sonhar, sonhando noite e dia,
que é com sonhos que o belo se conquista.

Vamos criar a mística de crer
que a vida é bela... é amor... é fantasia...
e há que sonhar e amar... para viver!...
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Zalina Rolim
Botucatu/SP, 1869 – 1961, São Paulo/SP

CAMPESTRE

Longe da estrada, à beira do riacho
que molha os pés relvosos da colina,
vejo-lhe o teto enegrecido e baixo
e a cancelinha baixa e pequenina.

Da chaminé desprende-se um penacho
de fumo branco. Levemente inclina
a verde palma sobre o loiro cacho
do coqueiro frondoso a aragem fina...

Faísca o sol. Do terreirinho à frente,
galinhas, patos, debicando o milho,
batem as asas preguiçosamente.

Nem um rumor de pássaros palpita;
e a roceirinha, adormecendo o filho,
canta lá dentro uma canção bonita.

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Sammis Reachers (Gambá e o Gran Cassino Palha Seca)


Todo bairro tem suas histórias, seus mitos, seu fabulário. O nosso Jardim Nazaré ou Palha Seca não foge à regra.

Recentemente, ao ver uma notícia inusitada circulando na internet, lembrei-me de uma história acontecida por cá, nos estertores finais da década de oitenta. Que o leitor me permita relatar aqui esta resenha na qual nosso Renato é tão somente um reles coadjuvante...

Em frente à minha casa morava com sua família cidadão de fácil amizade, mineiro como minha mãe, dado porém a uma vida irregular, mantida à base de escambos (o famoso troca-troca de mercadorias). Era um passarinho por uma carroça, uma carroça por uma geladeira e mais um dinheirinho de volta, uma geladeira por um trezoitão capenga da Taurus... E assim esse “malandro”, na boa acepção do termo, ia sobrevivendo.

Para auxiliar nas despesas trazidas pelos quatro filhos (um rapaz, duas moças e uma menininha quase temporã), o bom vizinho abrira uma vendinha, uma birosca, uma “barraca”, como chamávamos, naqueles idos, aqueles pequenos comércios de bairro.

Ao lado disso, o nosso empreendedor palhassequense, desconhecedor ou desrespeitador da lei, esse misto de salvaguarda social e grande estraga-prazeres, resolveu iniciar, dentro de sua casa e no convívio de sua família, uma, depois duas mesas de jogo. Isso mesmo: o homem das transações resolvera instalar um “cassino” em pleno Jardim Nazaré, que é o nome verdadeiro e honrado do nosso hoje difamado Palha Seca. Um rodízio entre variados jogos de baralho (da ronda ao truco, do buraco ao vinte-e-um) e ainda dados e dominó, quando não a prosaica purrinha, jogos que eram praticados à exaustão, indo por vezes madrugada adentro, e sempre valendo dinheiro.

Nada de à brinca, ali era à vera. Na época cheguei a ver gente entrar ali lá pelas 21 horas e, lá pelas 2h da madruga, sair literalmente pelado – isso mesmo, peladão – pois apostara a ROUPA DO CORPO e, não sendo usuário de cuecas, teve que sair pelado, correndo pela night até sua casa... Nosso anti-herói Renato foi um dos tais a escapulir – ou ser ejetado para a sarjeta da rua – liso, tesado e como veio ao mundo...

Bem, toda essa confraternização era regada à muita cachaça, o hidromel dos deuses morenos dos trópicos. Assim nosso amigo gerente de cassinos complementava a renda, e também vendendo os tarimbados tira-gostos do tempo: linguiça frita, ovo cozido, torresmo e vez por outra um caldo ou mocotó.

Numa dessas noitadas no cassino da favelinha Beira do Rio, ainda nos inícios dos trabalhos, que religiosamente se iniciavam às 21h, um dos habitués do local resolveu fazer uma “presença”, um mimo aos amigos de copo e (má) sorte, e trouxe uma grande panela de frango à passarinho para servir aos convivas da casa. A novidade foi celebrada: Era realmente muita carne, bem picadinha e odorosa. O benemérito dissera ter matado três das galinhas do quintal, patrimônio de sua velha mãe, e propusera que, já que ele estava botando o tira-gosto, que os amigos lhe pagassem cachaça, muita cachaça. Sem problemas, pois.

Cada um que chegava ia se fartando naquela riqueza, bem fritinha e espantosamente gratuita. Até a família do amigo – sim, a criança e as mocinhas eram obrigadas a conviver e interagir com aquele ambiente sinistro em sua própria sala – também se serviram a gosto.

Enquanto isso, o nosso amigo aproveitava para pedir, na conta dos demais, boas doses de cachaça e suas variantes destiladas – uma verdinha aqui, um Domecq ali, um licorzinho de coco acolá. Os jogos iam animados e os ânimos, turbados pelo álcool, explodiam em sorrisos naquele miserável lazer suburbano. Foi quando alguém, sem qualquer maldade, perguntou ao indivíduo que lhes fornira com tão saboroso e farto repasto:

– Ô Gambá, você não vai comer não?

Pego assim de surpresa, enquanto tomava um dedo de Catuaba, que era para tonificar o espírito, nosso amigo alegou:

– Ciço, já comi muito em casa, enquanto estava cozinhando. Tô legal...

– Pô, mas já são quase duas da manhã. Desde que você chegou não comeu nada, e sempre come bem...

– Que nada, meu cumpadre, comi bastante em casa mermo, fica tranquilo. Hoje eu só quero beber. Ô Dudu, bota mais um dedinho de Catuaba aqui pro seu amigo.

Ao longo de todo o seu período de permanência ali no “estabelecimento”, Gambá (esse era o apelido do bruto, um sarará parrudo, baixinho, morador do Campo Novo) era o mais feliz, e isso entre felizes. Sorria como um palhaço, enquanto via os amigos fartarem-se com aquela iguaria preparada com carinho. Um coração de ouro o Gambá, quase santo, digno filho de São Gonçalo.

Após o diálogo acima, travado com o Ciço, o embriagado Gambá, que passara da conta habitual valendo-se da boa-vontade alheia em pagar pela bebida, emendou a sorrir ainda mais. A cada vez que alguém pegava um daqueles últimos pedaços de frango, ele, com aquele brilho mortiço no olhar, comum aos ébrios, sorria com gosto – ou quase com cinismo, diria algum espírito de porco...

Ao ser fisgado o último pedaço de carne daquela grande e encardida panela, estando todos já afogados nos humores e vapores alcoólicos, um dos convivas reforçou o argumento de Ciço:

– Aí, acabou o frango e Gambá mesmo não comeu nem um pedaço...

Aproveitando o oportuno da ocasião, o malandrim resolveu abrir seu coração, e expor a inocente, inofensiva eu diria, brincadeira:

– Amigos, eu não comi nenhum pedaço pois essa carne que preparei para vocês não era bem das galinhas da mamãe. Era na verdade um urubu, um baita urubu que matei ali na Ponte Caída.

E antes mesmo que a surpresa, a dúvida e a descrença pudessem manifestar suas máscaras características na audiência humilde e chapada, o sarará de olhos cor de mel entregou a sordidez de alguns detalhes:

– Rapaz, o bicho é ruim de morrer! Carne dura! E na panela?!! Foram duas horas, duas horas malandro, na panela de pressão! – completou, explodindo numa gargalhada carnavalesca.

Gambá, boníssimo coração, acreditou na sorte, sorte que poucas vezes o visitara naquelas mesas de jogo. Imaginou que, dado o inusitado da situação, e o teor alcoólico imenso reinante nas veias dos presentes, todos levariam aquilo na direção do que aquilo era afinal – uma grande brincadeira.

Mas alguém antecipou-se, e passou a chave na porta, a única porta do casebre...

O que se seguiu foi uma prolongada sessão – desengonçada, hilária, ridícula, mas também cruel, medieval, horripilante – de espancamento. Os gritos do bom Gambá, Macunaíma gonçalense, sendo socado e golpeado com tudo que as trêmulas mãos dos bebuns alcançavam, acordaram meia vizinhança. O bitelo apanhou, e apanhou, e apanhou ainda um pouco mais.

Sabe-se lá de onde aquele grupo de mamados encontrou forças para o linchamento; talvez do próprio Satã. Desfeita a graça e também a consciência de Gambá, o corpo desmaiado foi jogado para fora, estabacando-se na rua de chão.

Sabe-se lá como Gambá chegou em sua casinha. O que se soube é que ele lá chegou já com um aviso: nunca mais deveria passar pela rua principal do Palha Seca – justamente o único caminho que ele tinha para ir trabalhar, pois andava dois quilômetros de sua casa para o ponto de ônibus, para pegar a viação que o deixava em Alcântara – sob a pena de ser, bem, literalmente despachado desta vida, como fora o pobre urubu, de tão dura – mas saborosa, alguns depois o confessaram – carne.

Resultado: Além das amizades desfeitas, foram anos e anos andando não dois, mas (agora na direção contrária) coisa de cinco quilômetros, de sua casa até Maria Paula, onde podia pegar outra viação para levá-lo ao batente.

Amargurado por cicatrizes de corpo e alma, ferido em seu brio e espírito fraternal, Gambá, nosso Macunaíma, nunca entendeu o motivo da brutal falta de senso de humor de seus antigos companheiros de jogatina...

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 15


 

Nilto Maciel (Um Sonho Cartesiano)


O capítulo mais soberbo de Sonhos Ilustres, de Domenico Moravia, talvez seja aquele dedicado ao filósofo Descartes.

O autor nem sempre informa onde teria colhido o material para a elaboração de sua interessante e volumosa obra. Porém são os livros de memória a fonte principal de sua pesquisa. Não no caso de René Descartes.

Estranhamente, Moravia duvida da autenticidade do sonho cartesiano inserido e analisado em seu livro. Teria sido produto dos dons de ficcionista do pensador francês.

Para reforçar sua tese, o escritor noticia a existência de um romance deixado por Descartes. Inacabado embora, teria a mesma importância do Dom Quixote. Um exagero, certamente.

O livro de Moravia tem causado muita discussão. Chamam-no até de embusteiro, apesar da grandeza de Sonhos Ilustres.

Na verdade, é crença generalizada que o polêmico italiano inventou o tal sonho de Descartes. Se não, subtraiu a “história” das mãos de outro.

Porém a história da “criação” do sonho deixa de ter qualquer importância diante dele mesmo.

Resumidamente, é ele assim:

Descartes e outra pessoa conversavam. Ele falava, ela ouvia. Um aposento cheio de luzes e brilhos. Parecia um salão de palácio.

Quando a outra pessoa falou, o filósofo compreendeu finalmente tudo: conversava com a jovem rainha Cristina. A filha de Gustavo Adolfo, o falecido rei da Suécia.

Além deles, não havia mais ninguém no salão. A não ser as quase vivas figuras dos quadros colados às paredes. Maravilhas de Botticelli, Rembrandt, Rubens e outros.

Recordava Descartes episódios de sua infância. A casa onde nascera, os pais, Touraine. Sim, apesar de conhecer quase toda Europa, não conseguia esquecer Touraine.

A rainha ria. Seu riso, porém, era de deboche. Ora, Descartes só podia estar fantasiando. Deixasse daquilo. Mentir não ficava bem para um filósofo. Ela sabia perfeitamente nunca ter ele deixado a França. Nem Touraine.

Nesse ponto da narração, Domenico Moravia discorre sobre a Suécia dos séculos passados, esboça um retrato político e intelectual de Cristina e se refere à amizade dela com Descartes.

 No sonho, o francês, aborrecido, punha-se a passear pelo salão. As palavras reais o feriam e contrariavam. Devia ou não devia reafirmar que conhecia quase toda Europa? Talvez fosse mais cauteloso mudar de assunto. Sim, a rainha merecia seu respeito, sua amizade.

Acalmado, voltava ao sofá. Aquelas luzes o enfadavam. E a outra pessoa por que se calara? Buscava-a com os olhos. A pessoa continuava no mesmo lugar. Olhava com atenção para ela. Tratava-se, então, de Richelieu.

Explica Moravia não ter havido a transformação de uma personagem em outra. Igualmente não teria ocorrido a substituição física da rainha pelo cardeal. Na verdade, é como se Descartes estivesse sempre a conversar com Richelieu.

De fato, a conversa continuava a mesma de antes. Reatava-se. O outro reafirmava nunca ter Descartes saído de Touraine. E ia mais além: vivera até aquele dia preso na casa de seus pais.

Para não dizer grosserias, o filósofo se punha a andar pelo salão. Talvez Botticelli o acalmasse. Ora, lembrava-se muito bem das longas viagens pela Europa. Não podia esquecer os anos de estudos no colégio de La Flèche.

Como se ouvisse seus pensamentos, Richelieu o chamava de mentiroso. Jamais estudara com os jesuítas. Tudo invencionice. Além do mais, não sabia nada. Um falso pensador.

Disposto a mudar a opinião de seu interlocutor, René Descartes voltava ao sofá. E dava com a presença de Galileu. E era como se estivesse desde o início do sonho a conversar com este. No entanto, nem parecia o amigo de antes. Como ousava duvidar de sua sabedoria? Toda Europa já conhecia suas obras. Ou não lera ainda nada de sua autoria? Buscaria os livros.

Galileu ria, debochava de René. Não acreditava numa só palavra dele. Nunca escrevera nada. Nem sequer cartinhas familiares.

Enfurecido, Descartes corria a uma estante, arrebatava alguns livros e os jogava aos pés do outro. Eram tratados de sua autoria, escritos e publicados em latim.

Ria novamente Galileu. Aqueles livros não traziam nenhuma letra. Tudo em branco. Simples papéis.

Do meio do salão, Descartes fitava Francis Bacon, e não mais Galileu Galilei.

Como das outras vezes, não percebera qualquer transformação dos personagens. Nem também a substituição de um por outro. Como se estivesse durante todo o sonho a dialogar com Bacon.

Olhos fitos no inglês, René Descartes batia no peito e dizia ser um grande filósofo. Além das obras monumentais já escritas, pretendia escrever outras. Uma delas sobre a alma.

Discursava, a passear pelo salão. De vez em quando olhava, ufano, para o outro. O mundo inteiro ainda dependeria de suas ideias.

Falava, quase aos gritos.

Em dado momento, porém, o outro também gritou. Descartes assustou-se, parou no meio do salão. Olhou. O rei Gustavo Adolfo parecia enfurecido.

Segundo Domenico Moravia, também neste momento Descartes não percebeu qualquer transformação ou substituição de personagem. Como se, desde a rainha Cristina, estivesse a falar com Gustavo Adolfo.

Ordenava o rei silêncio. Nenhum homem, por mais filósofo que fosse, poderia jactar-se de sabedoria.

René Descartes talvez nem homem fosse. Ou não passasse de uma figura, como as de Botticelli.

Calado e parado diante do rei, o filósofo ouvia insultos. Talvez Descartes nem existisse.

Enquanto Gustavo falava, ele tentava olhar para as luzes, os quadros colados às paredes. Porém não conseguia mover-se, sequer dar um passo.

Tentava falar, mas sua língua parecia presa aos dentes.

E pensar?

Nem isso conseguia mais.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Athos Fernandes (Caderno de Poemas) 3


A SÍNTESE DA VIDA


Nascer, sofrer, morrer, - eis a vida em resumo!
O mais é sonho vão e esperança falida,
ilusão que se esvai, como se esvai o fumo,
como as juras de amor de uma mulher perdida!

O que importa é viver, mantendo a alma a prumo,
nos dias de ascensão, na fase de descida.
Nascer, sofrer, morrer, - eis da existência o rumo,
e a síntese fatal da misérias da vida!

Feliz é quem, no afã de galgar o Infinito,
liberto Prometeu do Cáucaso maldito,
busca apoio na fé e abrigo na Esperança.

E feliz também é quem nada mais espera,
mas que, no apego ao Bem, insiste e persevera
em sempre desejar o que nunca se alcança!
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A VIDA

A vida é qual deserto imensurável,
onde o Simum* veloz dos desenganos
faz da ilusão mais forte e mais durável
imensas dunas de infernais enganos.

É um cálido areal indecifrável
onde sofremos dias, meses, anos...
Lustros de dor por dia desfrutável,
horas de fé por séculos profanos.

Vida! Extertor de lágrima a sorrir!
Recordação de alguém reverberando
na alma do sonho que não quer partir.

Ânsia enorme de amor no amor surgindo.
Terna saudade que nasceu chorando
de uma esperança que morreu sorrindo!
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Simum = vento muito quente que sopra do centro da África em direção ao norte.
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O MUNDO E EU

Fui sempre triste assim! Mas não por mim, por tudo
qe de triste e de mau no mundo tenho visto.
Nos meus dramas pessoais quase sempre sou mudo,
mas vendo a alheia dor, calado não resisto!

Tal como um cavaleiro andante, sem o escudo,
de Quixote e de Sancho eu sou talvez um misto.
Da humana incompreensão suporto o golpe agudo,
e por amor ao Bem sou soldado de Cristo!

Detesto a prepotência e abomino a injustiça!
E embora crente em deus, mas faltoso na missa,
meu pobre coração, a fé defende...

Entre as mágoas que sofro e o alheio sacrifício,
se calo a minha dor, aumento o meu suplício,
se falo do que sinto, o mundo não me entende!
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SER OU NÃO SER

(To be or not to be. That is the question! - Hamlet - Shakespeare)

Talvez que além da Vida e além da Morte,
lá nos confins remotos do Infinito,
se encontre solução para o conflito
entre o Ser ou não Ser da humana sorte!

Deuses de barro, esfinges de granito,
pirâmides e torres de alto porte,
preces de Paz, rugidos de Mavorte*,
templos pagãos e túmulos do Egito,

Do Ser e do não Ser eis o dilema!
O controverso e milenar problema
que desafia os crentes e os ateus...

O insondável mistério da existência,
e a mesquinhez da humana inteligência,
em gemidos de dor - clamam por Deus!
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* Mavorte = Marte, deus romano da Guerra.
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 SHANGRI-LÁ

Eu tentei construir meu castelo de sonhos
na eterna Shangri-Lá que remoça e conforte,
num reino de esplendor,
onde jamais a dor,
como o corvo de Poe batesse à minha porta!

Eu tentei construir meu castelo dourado
junto de um lago azul, de ondas ternas e mansas,
com cisnes de alvas plumas,
brancos como as espumas,
e a imaculada cor da alma das crianças!

Eu tentei construir o meu lar de poeta
num recanto feliz de uma terra florida,
num país de delícias,
de sonhos e carícias,
onde não morre o amor, eterno como a vida!

Eu tentei construir o meu ninho de artista,
lá bem perto do Céu, na Shangri-Lá bendita,
onde somente há sonhos,
alegres e risonhos
como o rosto feliz de uma mulher bonita!

Eu tentei construir meu palácio encantado,
numa encosta ideal do País das Quimeras,
onde jamais se morre,
e a vida corre
no mágico esplendor de vinte primaveras!

Tudo, porém, foi em vão! Um sonho, querida,
que a alma me fez sangrar, cheia de desenganos.
Sonho louco de quem,
por muito querer bem
ousa sonhar além dos limites humanos!

Foi um sonho fugaz de errante beduíno,
que a contemplar no Céu a luz da lua cheia,
triste como um dervixe,
entre o fumo do haxixe
vai erguendo no ar seus castelos de areia.

Fontes:
Athos Fernandes. Ofir. 1977.
Athos Fernandes. Shangri-La Poesias. 1979.

Solon Saldanha (Zé Carioca é octogenário)


Ele apareceu pela primeira vez em 1942, no filme Alô, Amigos. Mas na realidade fora gestado um ano antes, em 1941, durante viagem que Walt Disney e um grupo de desenhistas e animadores do seu estúdio fizeram ao Brasil. Eles ficaram no Rio de Janeiro, entre os meses de agosto e setembro, primeiro com o objetivo de divulgar o até então maior sucesso do grupo, que foi o filme Fantasia (1940), como também para conhecer melhor nosso país, uma vez que existia um projeto de alcançar maior penetração nos países latinos. Tanto que depois a turnê seguiu para a capital da Argentina, logo na sequência.

No retorno para os EUA foi criado o personagem brasileiro, para integrar a "Turma do Mickey". Inicialmente os desenhistas Norman Ferguson e Franklin Thomas, que foram encarregados da missão, apresentaram a sugestão de que ele fosse um tatu-bola. Depois terminaram optando pelo papagaio, acreditando que ele, sendo mais extrovertido e alegre, seria a personificação mais próxima do povo brasileiro. Isso porque concluíram que os adjetivos que identificavam melhor os cariocas que conheceram seriam simpático, feliz e festeiro, além de preguiçoso e malandro. Foram apenas esses dois últimos um tanto pejorativos, talvez porque a viagem se deu em época na qual o Rio de Janeiro era mais provinciano e não nos tempos atuais. Mesmo assim, os roteiristas da atualidade estão operando mudanças, reduzindo a malandragem e substituindo o seu caráter duvidoso por uma personalidade otimista, mesmo sendo ele um "ferrado na vida". Cativante a figura continua sendo.

Precisa ser destacado que aquele interesse manifestado pelos Estúdios Disney não foi fundamentado apenas na busca de consolidar mercados. Havia grande incentivo do governo do seu país, em termos de política externa, que o levava a subsidiar generosamente iniciativas dentro da "Política de Boa Vizinhança", que fora idealizada pelo presidente Franklin Delano Roosevelt, ele viria a falecer em 1945. Ela tinha como objetivo "fidelizar" o apoio dos países latino-americanos aos Estados Unidos, durante os conflitos da Segunda Guerra Mundial. Tanto que o filme produzido conta ainda com a participação de Gauchinho Voador (que representa a Argentina) e Panchito (personagem mexicano). Os três países de maior importância da região foram os contemplados.

No Brasil, Walt Disney manteve contato com Heitor Villa-Lobos e outras das nossas "celebridades intelectuais" daquela época. Mas se encantou mesmo com Paulo da Portela, um sambista que se destacou por muito tempo na cena carioca, tendo ele ajudado muito na construção do Zé Carioca. Assim, nos primeiros desenhos o papagaio apareceu de paletó, gravata e chapéu, como era característica de muitos sambistas, que com isso tentavam se livrar do estereótipo de marginal, que os acompanhava. O samba era criminalizado, assim como a capoeira e toda manifestação que descia do morro com os negros.

Depois de Alô Amigos, Zé Carioca voltou às telas ao lado de Carmem Miranda, em 1944, com Você já foi à Bahia?, que trouxe a música de Ary Barroso e João de Barro. E participou de alguns episódios de uma série de televisão apresentada nos EUA. Mas a verdadeira explosão mundial de sua popularidade ocorreu quando chegou aos quadrinhos. No início isso veio em tiras semanais, desenhadas por Bob Grant e Paul Murry, a partir de roteiros de Bill Walsh. Em todas as histórias Zé era aquele sujeito que escapa dos problemas cotidianos usando um "jeitinho", que ainda nos identifica pelo mundo afora. Foi nesse período que também apareceram seus companheiros de aventuras: a namorada Rosinha, o melhor amigo Nestor e o antagonista Zé Galo.

Aqui entre nós a valorização maior do personagem aconteceu durante a década de 1970, quando a Editora Abril passou a publicar histórias que eram produzidas por brasileiros. Apenas nessa época ele superou a "contaminação" que carregava devido à visão externa do nosso modo de ser. Isso se deve muito ao trabalho de Moacir Rodrigues Soares, que o assumiu ainda em 1973. Até 1990 o Zé era um fenômeno, estando ele presente em cerca de um terço da produção editorial: sozinho, vendia 70 mil revistinhas por semana. Hoje, afetadas principalmente pelo advento dos celulares e a mudança no foco de interesse do antigo público que consumia HQ, a queda foi brutal. O que não nos impede de continuar reverenciando esse agora senhor de 80 anos de idade, mas que permanece tão jovem quanto nossas memórias.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

José Fabiano (Muros de Trovas) 01

 

1º Concurso de Trovas da Retomada da UBT-Seção São Paulo (Prazo: 31 de março de 2023)


A finalidade deste Concurso é a produção e divulgação da Trova. Para participar do mesmo, tenha em mente que só será considerada trova, um poema de quatro versos, todos heptassílabos (sete sílabas poéticas), contadas até a última sílaba tônica de cada verso, com sentido completo, rimando o terceiro com o primeiro verso e o quarto com o segundo (ABAB).

Permite-se até 02 (duas) Trovas inéditas por tema para todos os âmbitos e modalidades.

As Trovas devem ser enviadas no idioma português.

A palavra-tema do Concurso não precisa constar no corpo da Trova, mas a ideia deverá ficar
evidenciada.

MODALIDADES:

Lírica ou filosófica (L/F)

TEMAS (L/F):

Nacional / Internacional (Veteranos) = RESILIÊNCIA

Nacional / Internacional (Novos Trovadores) – RENASCER

Estadual – (Veteranos) = PERSISTIR

Estadual - (Novos Trovadores) = RESGATAR

Municipal – (Estudantil) – JOVEM/JUVENTUDE


NOVO TROVADOR – Entende-se por Novo trovador - aquele que até a data da divulgação do presente regulamento, não classificou em 03 (Três) concursos oficiais da UBT, em âmbito Nacional entre os 5 (cinco) primeiros colocados.

Envio por email:

CONCURSO NACIONAL

- Fiel Depositária – Regina Rinaldi

E-mail – reginarinalditrovadora@gmail.com

Assunto do e-mail - Colocar "1º Concurso de Trovas da UBT São Paulo"

CONCURSO ESTADUAL

- Fiel Depositário – Jerson Brito

E-mail - jersonbrito.pvh@gmail.com

Assunto do e-mail - Colocar "1º Concurso de Trovas da UBT São Paulo"

CONCURSO MUNICIPAL (Estudantil)

- Fiel Depositário – Alberto Valença Lima

E-mail - concursoubtestudantil2022@gmail.com

Assunto do e-mail - Colocar "1º Concurso de Trovas da UBT São Paulo"

LEMBRETES:

1 - O tema, a trova, categoria, âmbito, nome, endereço completo, e-mail e telefone, deverão constar no corpo do email. NÃO ANEXAR ARQUIVO.

2 – Acima das trovas colocar o âmbito, o tema e a categoria

3 - Abaixo das trovas colocar NOME, ENDEREÇO COMPLETO, E-MAIL e TELEFONE COM O
DDD.

4 – Para o Concurso Municipal (só para estudantes do Município de São Paulo – SP), deverá ser
acrescentado aos dados acima, o nome do colégio e o do(a) professor(a) de português da(o)
participante.

Prazo = só valerão as trovas que chegarem até às 23h 59 do dia 31.03.2023.
******************
OBSERVAÇÕES:

1. As trovas recebidas por e-mail serão copiadas para o coordenador da Comissão Julgadora, sem o nome nem o endereço do concorrente.

a) O simples envio dos trabalhos autoriza a publicação das trovas que tenham sido classificadas pela Comissão Julgadora, e a aceitação tácita de todo este regulamento.

b) Trabalhos com palavras de baixo calão, pejorativas, preconceituosas, ofensivas, em qualquer contexto, serão automaticamente desclassificadas.

c) Não serão aceitas trovas escritas em caixa alta nem iniciando os versos com letra maiúscula, exceto o verso inicial ou em algum caso que justifique a maiúscula.

d) Só se aceitam rimas perfeitas*.

e) O não cumprimento de quaisquer dos itens acima descritos implicará na desclassificação automática da trova.
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* Rima perfeita: Em que há correspondência total de sons a partir da última vogal tônica, havendo repetição tanto dos sons vocálicos como dos sons consonantais.

Exs: falado/cantado; presente/ausente; particularidade/dificuldade; pior/major; diz/nariz; amanhã/afã

Pedro Aparecido de Paulo (Pétalas de Versos) 1


ANFITRIÃ SEM TETO


Que fazes tu, menina moça
na esquina da amargura,
belo corpo cinturado
uma elegante postura,
em todos lanças um olhar
de entusiasmo e ternura.

Gente que passa depressa,
nem nota a sua presença,
porém nem todos tem pressa,
percebem a sua existência.
Seu pensamento intercala
dividindo a consciência.

Deslumbra a sua magia,
tem no olhar a conquista,
malabarista da vida,
meio vulgar, meio artista,
um sonho um tanto estranho
de ser capa de revista.

A ignorância de uns,
de outros o mau olhado,
aqueles que a criticam
com olhares renegados,
ao fim de sua jornada
rende graças ao conquistado.
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MEU PAI, NA MEMÓRIA

Meu pai, que fatalidade!
É com imensa saudade
que me lembro de você,
há hora em que imagino
se existe o tal destino
tão difícil de entender!

Pai! Um dia do mês de julho,
você, com alegria e orgulho,
viu-me chegar a este mundo.
Bem sei que fui bem vindo,
foi um momento tão lindo
de um sentimento profundo.

Pai! Iniciei a vida...
Com sua mão estendida
guiou-me no bom caminho.
Caí, você me levantou,
os meus erros você perdoou,
nunca me deixou sozinho!

Pai! Sabe aquele dia
que, com imensa alegria
você via-me nascer?
Justamente, neste dia
com imensa tristeza e agonia,
eu via você morrer.
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O HOJE DO MEU AMANHÃ

Vendo você do outro lado,
num quadro imenso pintado
pelas mãos do Criador,
vejo o céu todo estrelado,
fico pasmo deslumbrado,
contemplo com muito amor...

Divagando pela vida
vejo a pessoa querida,
na nuvem branca que passa,
vejo você… pai querido,
que por você fui nascido,
quem tem você não fracassa..

Vejo a luz do seu olhar,
que parece se orvalhar
no sereno matinal.
Hoje eu vi você partindo,
mas com o semblante sorrindo,
a um passeio triunfal...
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SORTE OU DESTINO

Não sei se existe o destino,
mas há coisas engraçadas,
é muito bom ser honesto,
não fazer coisas erradas...

Faço juízo da vida,
tentando entendê-la a fundo,
mas parecem brincadeiras
o que acontece no mundo...

Quando meu pai se casou,
foi uma festa bonita
e recebeu como a esposa
a minha mãe Benedita...

Hoje meu pai está velho,
parece que a vida é escrita,
três mulheres cuidam dele
por sorte três Beneditas...
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TEMPO DE CRIANÇA

Pai! Esta cadeira será sempre sua,
e a vida continua,
e o barco vai rodando,
nem veleiro pouco vento
nem motor roncando lento
mas você vai continuando...

Pai! O tempo nos ensina,
nesta vida de rotina
a seguir a vida afora,
estanca como riacho,
por cima ou as vezes por baixo,
estoura e vai-se embora...

Pai! De forma até engraçada
a lembrança eternizada
fica gravada na mente,
o tempo lindo da infância
vai ficando na distância
corroendo dentro da gente.

Pai! Lembro-me da capelinha,
pequena bem simplesinha
e um sininho a tocar.
A fé era tão imensa
Deus Pai quanta recompensa
íamos todos rezar...

Pai! Você com sua vontade
nos ensinou a verdade
neste mundo turbulento.
Quando criança esta vida
é tranquila e colorida
mas é só neste momento...

Pai! Eu ia a escolinha,
modesta, bem pequenina,
aprender o be-a-bá,
pensando um dia quem sabe
irmos morar na cidade
e a faculdade cursar...

Pai! Pensava eu ser um doutor
a curar a imensa dor
de alguém que estivesse sofrendo,
mas nem você eu curei,
sua dor não aliviei,
e eu vi você morrendo...

Pai! Desculpe meu fracasso,
pois tudo fiz, nada faço,
que se perco a esperança
não posso retroceder
tenho que tentar viver
como nos bons tempos de criança…

Fonte:
Pedro Aparecido de Paulo. Pedras e pétalas. Maringá/PR: Ed. do Autor, 1995
Livro enviado pelo poeta.

Mia Couto (As cartas)


Marcelo foi transferido para Mutarara, cidade que ficava para além de todo outro lugar. A mulher, Nurima, ficou sozinha, tomando conta das coisas e da restante vida. A espera é uma tecedura, a gente cria presenças com materiais de ausência. Os dedos de Nurima desinventavam dias, em desconto de saudades. A esposa: habituada, não habitada.

Até que, uma certa tarde, chegou de Mutarara a inesperada visita. Era Florlinda, familiar sem parentesco certo. Entrou, sentou, espraiou aqueles silêncios que antecedem as grandes falas. Depois, disse:

— Quero lhe avisar: há cartas.

Nurima não entendeu mas aparentou impavidez. Não é de bom tom reclamar faltas de entendimento. Mandam as boas normas que se aguarde, pondo silêncios em fila indiana. Nurima esperou que a visitante se explicasse. Florlinda, de fato, prosseguiu: que havia cartas circulando entre as mulheres de Mutarara. Essas cartas relatavam sobre Marcelo, o solitário marido.

— Marcelo? E o que dizem essas cartas?

— Nem deseje saber, Nurima. Essas cartas são uma ameaça para a senhora e sua pessoa.

Então, ela versou sobre o conteúdo das missivas: pedia-se nesses escritos que as mulheres, as mais belas de Mutarara, amassem o dito Marcelo. Pedia que o tratassem nas palmas e nas mãos, que lhe adocicassem a vida e lhe entornassem as mais melosas ternuras. Nurima enxugou a garganta mas não exibiu gesto nem desgosto. No fim de uma pausa, inquiriu:

— E Marcelo, ele sabe dessas cartas?

— Do que posso testemunhar, a vida dele é serviço e casa, tudo a horas pontuais.

E as duas, tu-aqui, tu-ali, se colocaram a par. O tempo se antecipou e a noite encerrou a conversa. Nurima, na despedida, deixou sussurrar uma ansiedade:

— Me avise, se encontrar caso disso.

— Vou pensar numa maneira de travar essas cartas. Fique tranquila.

Nurima lhe segurou o pulso querendo, quiçá, confessar alguma intimidade. Mas ela ficou às portas do corpo, sem chegar a dizer nada. E a visitante se adentrou na noite.

Passaram-se semanas e Florlinda revisitou a amiga. Beberam chá, pilaram assuntos de nenhuma importância. Fingiam não haver um tema, ignoraram o nó em suas gargantas. Até que Florlinda, resoluta, lhe expôs o seu plano para eliminar a pouca vergonha de tais cartas. Ela relatou suas maquinações, divertindo-se com detalhes.

Nurima não acompanha o entusiasmo da amiga, estranhamente ausente. Até que interrompeu Florlinda:

— Não faça nada disso.

— Mas, então, e Marcelo, seu marido?

— Não faça nada, lhe peço... Deixe as cartas sossegadas.

— Mas como posso deixar?

— Eu lhe explico. Fui eu que escrevi essas cartas.

— Você, Nurima?

— Sim, fui eu que as envelopei e as enviei, por mão de um qualquer miúdo, a todas essas mulheres.

— Você? E porquê fez isso?

— Porque o meu Marcelo é um homem bom. Tão bom, tão doce que não merece castigo de ausência.

— E se ele escorregar com alguma dessas inavergonhadas?

— Se isso acontecer ele irá descobrir, no final, que nenhuma mulher lhe ama tanto como eu.

Florlinda está indeferida para juízo. Ela despondera, sacode a cabeça, encolhe os ombros. À despedida, confessa:

— Nurima: quero dizer uma coisa. Mas prometa que não se zanga.

— Zangar? E porquê?

— Porque eu fui essa mulher, a primeira a receber a carta fui eu. E eu, Nurima... nessa noite mesmo, eu dormi com seu marido.

— Eu já sabia, Florlinda. Soube isso desde sua primeira visita.

— Eu vim porque.. .

Nurima, maternamente, lhe cola o dedo sobre os lábios. Um mando de silêncio, para que a outra não prossiga. Mas tudo desempenhado com carinho como se não restasse senão oculta gratidão.

— Eu sei por que você veio...

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

domingo, 16 de outubro de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 29

Livro enviado pelo autor
 

Rubem Braga (As luvas)


Só ontem o descobri, atirado atrás de uns livros, o pequeno par de luvas pretas. Fiquei um instante a imaginar de quem poderia ser, e logo concluí que sua dona é aquela mulher miúda, de risada clara e brusca e lágrimas fáceis, que veio duas vezes, nunca me quis dar o telefone nem o endereço, e sumiu há mais de uma semana. Sim, suas mãos são assim pequenas, e na última noite ela estava vestida de escuro, os cabelos enrolados no alto da cabeça. Revejo-a se penteando, com três grampos na boca; lembro-me de seu riso e também de suas palavras de melancolia no fim da aventura banal. Eu quis ser cavalheiro, sair, levá-la em casa. Ela aceitou apenas que eu chamasse um táxi pelo telefone, e que a ajudasse a vestir o capote; disse que voltaria...

Talvez telefone outro dia, e volte; talvez, como aconteceu uma vez, entre suas duas visitas, fique aborrecida por me telefonar em uma tarde em que tenho algum compromisso para a noite. “A verdade” — me lembro dessas palavras de uma tristeza banal — “é que a gente procura uma aventura assim para ter uma coisa bem fugaz, sem compromisso, quase sem sentimento; mas ou acaba decepcionada ou sentimental...” Lembrei-lhe a letra de uma velha música americana: “I am getting sentimental over you.

Ela riu, conhecia a canção, cantarolou-a um instante, e como eu a olhasse com um grande carinho meio de brincadeira, meio a sério, me declarou que eu não era obrigado a fazer essas caras para ela, e dispensava perfeitamente qualquer gentileza e me detestaria se eu quisesse ser falso e gentil. Juntou, quase nervosa, que também não lhe importava o que eu pudesse pensar a seu respeito; e que mesmo que pensasse o pior, eu teria razão; que eu tinha todo o direito de achá-la fácil e leviana, mas só não tinha o direito de tentar fazê-la de tola. Que mania que os homens têm...

Interrompi-a. Que ela, pelo amor de Deus, não me falasse mal dos homens; que isso era muito feio; e que a seu respeito eu achava apenas que era uma flor, um anjo “y muy buena moza”.

Meu bom humor fê-la sorrir. Na hora de sair disse que ia me dizer uma coisa, depois resolveu não dizer. Não insisti. “Telefono.” E não a vi mais. Com certeza não a verei mais, e não ficaremos os dois nem decepcionados nem sentimentais, apenas com uma vaga e suave lembrança um do outro, lembrança que um dia se perderá.

Pego as pequenas luvas pretas. Têm um ar abandonado e infeliz, como toda luva esquecida pelas mãos. Os dedos assumem gestos sem alma e todavia tristes. É extraordinário como parecem coisas mortas e ao mesmo tempo ainda carregadas de toda a tristeza da vida. A parte do dorso é lisa; mas pelo lado de dentro ficaram marcadas todas as dobras das falanges, ficaram impressas, como em Verônica, as fisionomias dos dedos. É um objeto inerte e lamentável, mas tem as rugas da vida, e também um vago perfume.

O telefone chama. Vou atender, levo maquinalmente na mão o par de luvas. A voz é de mulher e hesito um instante, comovido. Mas é apenas a senhora de um amigo que me lembra o convite para o jantar. Visto-me devagar, e quando vou saindo vejo sobre a mesa o par de luvas. Seguro-o um instante como se tivesse na mão um problema; e o atiro outra vez para trás dos livros, onde estavam antes.

Santiago, outubro de 1955.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 5

ANO NOVO

Os sinos sacodem a noite silente.
Apitos, sirenes, febris a anunciar
que parte o Ano Velho, tristonho, doente,
e Nova Esperança começa a brilhar!

Em meio à alegria que explode em espuma,
transborda de taças e rola no chão,
rasteja a tristeza, fiapos de bruma,
estranha entre risos, confete e rojão!

É a mesma tristeza que rima com prece,
e aquele que a sente é incapaz de a entender!
Tristeza que, às vezes, receio parece,
receio de tudo que é inútil prever!
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AOS QUE COMEÇAM...

Se escreves, nesse humilde e obscuro anonimato,
a enfrentar, com denodo, os lances audaciosos,
para a glória de um texto ou graça de um relato,
que não te anule o brilho, astral, dos mais famosos!

Sabes bem que o trabalho é teu fiel retrato.
Se és capaz de conter delírios ambiciosos,
no labor hás de ter o perfil mais exato
do ideal que conduz à frente os vitoriosos!

Quem folheia um jornal, pela manhã bem cedo,
desconhece, por certo, a nobre e intensa lida
que envolve o jornalista em seu diurno enredo.

Mas, quanto o valoriza aquele que, enfim, pensa:
- como seria o mundo apático e sem vida,
sem o bravo clamor... das máquinas da imprensa!
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ARREPENDIMENTOS

Erraste... e quem não erra neste mundo,
repleto de sofismas e ciladas?!
Basta-nos, para errar, um vil segundo,
que o demônio nos tece, às gargalhadas!

A vida abismos cava... explora a fundo,
as faltas pequeninas, simples nadas;
absolve, purifica um charco imundo,
de linhas retas, faz encruzilhadas!

Vês? A vida é também contraditória!
Não te anule a opressão de um desatino!
Ponto final! E enceta nova história,

repetindo, a evitar outros tormentos;
- Assento os alicerces do destino,
"nos meus fecundos arrependimentos" (*]
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(*) Chave de Ouro de Guilherme de Almeida
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ESPERANÇA

Que falta faz a mão do Poverello,
mão chagada, que lembra o Salvador!
Mão que outras mãos unia, como um elo...
elo de luz fraterna, elo de Amor!

Que falta faz o ardor do seu anelo,
quando tentava unir a um só Pastor
as ovelhas dispersas - sonho belo,
que a vida se compraz em decompor!

E a vida o quanto vale?! - Um quase nada!
Por todo lado, há só gente empenhada
em fazer gente ser mais infeliz!

...Quem sabe ainda houvesse uma esperança,
se o mundo ouvisse a voz, humilde e mansa,
do bom Francisco... nosso Irmão de Assis!...
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O SABER

O saber, que arrebata e que mantém ativo
o lampejo do gênio e a fluência da história,
abre portas e as fecha, em rigor decisivo,
soberano senhor das chaves da memória.

Esse mesmo saber pode tornar cativo
o incauto que se ilude às promessas de glória
e, a erguer-se em pedestal, não mais que tolo altivo,
permite que a soberba o enleie compulsória!

Ao ver tombar ao chão seus castelos e aprumos,
na busca ao próprio eu, o homem se desengana
a revelar-se anão de limitados rumos!

Sem saber de onde vem, sequer sabe quem é!...
- Toda arrogância vã, toda a vaidade humana,
desmoronam aos pés, humílimos, da Fé!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

sábado, 15 de outubro de 2022

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 5

 

Lima Barreto (A polícia suburbana)


Noticiam os jornais que um delegado inspecionando, durante uma noite destas, algumas delegacias suburbanas, encontrou-as às moscas, comissários a dormir e soldados a sonhar.

Dizem mesmo que o delegado-inspetor surrupiou objetos para por mais à mostra o descaso dos seus subordinados.

Os jornais, com aquele seu louvável bom senso de sempre, aproveitaram a oportunidade para reforçar as suas reclamações contra a falta de policiamento nos subúrbios.

Leio sempre essas reclamações e pasmo. Moro nos subúrbios há muitos anos e tenho o hábito de ir para a casa alta noite.

Uma vez ou outra encontro um vigilante noturno, um policial e muito poucas vezes é-me dado ler notícias de crimes nas ruas que atravesso. A impressão que tenho é de que a vida e a propriedade daquelas paragens estão entregues aos bons sentimentos dos outros e que os pequenos furtos de galinhas e coradouros não exigem um aparelho custoso de patrulhas e apitos.

Aquilo lá vai muito bem, todos se entendem livremente e o Estado não precisa intervir corretivamente para fazer respeitar a propriedade alheia. Penso mesmo que, se as coisas não se passassem assim, os vigilantes, obrigados a mostrar serviço, procurariam meios e modos de efetuar detenções e os notívagos, como eu, ou os pobres-diabos que lá procuram dormida, seriam incomodados, com pouco proveito para a lei e para o Estado.

Os policiais suburbanos têm toda a razão. Devem continuar a dormir. Eles, aos poucos, graças ao calejamento do ofício, se convenceram de que a polícia é inútil.

Ainda bem.

Fonte:
Lima Barreto. Vida urbana. Publicado no Correio da Noite, RJ, 28-12-1914.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) VII


BILAC


Ganhei de Deus este divino dom,
Assim, por Ele, venturoso escrevo
A melodia do mais belo tom;
A joia fina do almejado enlevo.

Não mais respiro se me falta o som
Da sinfonia a que ilustrar eu devo.
Minha alma aplaude por achá-lo bom
Na pauta ativa que anotar me atrevo.

Perder as notas deste raro encanto
Seria o mesmo que negar o santo
Do livro nobre que o Senhor me deu.

Hei de coroá-lo no "panteão" da história
Em honra ao mestre de soberba glória
Mostrando ao mundo que jamais morreu.
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O CANTO DA MORTE

Ao ler meu verso sentirá o raro
Desvelo às letras que feliz componho;
Sua estrutura me concede amparo
Na plenitude da canção do sonho.

E com amor o musical preparo
Ao novo encontro que em florais proponho.
E a melodia, com fervor declaro,
Na pauta livre que ao verbal exponho.

Igual cigarra de tristeza canto
E morrerei só de escrever, garanto!
Traçando a rima de um soneto triste.

O sofrimento - este pendor me traz -
A sensação que, com certeza, faz
Nascer o canto que na morte existe.
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MISTERIOSA FLOR

Na tenda minha a flor mais triste nasce,
Não murcha nunca e nunca perde a cor.
Não sei seu nome, mas se alguém contasse
Teria, com certeza, o meu louvor.

Que bom se um dia a própria flor falasse
Seu nome, assim por certo teria autor.
Nobre sigilo da orgulhosa classe
E tal segredo ela me quer impor.

Tanto mistério é de corar a face...
Mas sem desdém eu lhe propus enlace
Que recusou sem transmitir maldade.

Hoje senil na solidão, compondo,
Ouvi do céu - todo estelar clamando -
Seu nome dói, poeta, é a flor saudade.
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RESGATE

Fui sempre amigo do soneto exato
E, além de tudo, persistente fã.
As suas regras com denodo acato
Sem os favores da plateia vã.

Gravado na alma eu tenho o seu retrato
Com a pureza de uma doce irmã.
Ninguém, por isto, se me diz ingrato,
Quanto à aparência do sagrado afã.

Bilac poeta me ensinou o ofício
E a perfeição deste bendito vício
Que me consagra burilando graça.

Não ganha espaço nos jornais do povo,
Por isso agora vou tentar de novo
Gravar seu nome nos murais da praça.
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SUA MAJESTADE «O SONETO»

Oh! Deus, lhe peço me conceda o senso
De estilo grato e lucidez constante.
Pois eu preciso construir e penso
Na venturosa formação pujante.

Este querer não ficará suspenso
Nem me permito ser vulgar jactante.
Labuto e vivo do prazer intenso
De proteger o galardão brilhante.

Com elegância a sua letra afino,
Pois vou levá-lo ao seu real destino:
À glória casta do eternal melódio.

Foi sempre rei, jamais pediu asilo,
Belo e altaneiro, no seu nobre estilo,
Não cederá o seu lugar no pódio.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.

Filemon Martins (Cecim Calixto, o poeta do amor)


CECIM CALIXTO nasceu em Pinhalão, Paraná, a 28 de julho de 1926, onde fez seus primeiros estudos, transferindo-se aos treze anos para Curitiba, a cidade sorriso. Trabalhando e estudando, diplomou-se em Ciências Contábeis na Faculdade de Ciências Econômicas De Plácido e Silva. Já formado, adotou a cidade de Tomazina, PR, onde começou a exercer sua profissão. Tornou-se bancário e passou boa parte de sua vida às voltas com orçamentos, balanços, planilhas de custos, planos de aplicação financeira desbravando várias regiões do Norte Novo do Paraná, trabalhando no banco Bamerindus.

Fora da vida prosaica sua alma de poeta nunca deixou de escrever poesia, especialmente nas horas de folga, exercitando com maestria a poesia clássica. Tornou-se um magnífico sonetista, premiado em vários concursos literários de São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná, entre outros.  Publicou em 1951 seu primeiro livro com o título de “NINFAS”, cuja segunda edição saiu em 1967.

Em 1997 com 99 sonetos publicou “EMOÇÕES” pela editora Editek & Cia Ltda ME, no qual demonstra toda inspiração que um poeta precisa ter para compor, criar e arrebatar corações sensíveis que amam o belo.  No soneto OBSESSÃO, diz: “A fé perfeita que a meu ser importa/ dá-me mais força para abrir a porta/ e entrar no reino que o amor produz. //Desprezo os pomos do pomar alheio/ pois, na verdade, o meu maior anseio/ é pelos frutos divinais da luz”. Ou ainda nestes dois tercetos do soneto ORATÓRIO: “A liberdade que me inspira tanto/ dá-me o conforto que jamais me falta/ enquanto a sós e a caminhar medito. // Na solidão em que sozinho canto/ minha oração que dispensou voz alta/ possui mais força que estrondoso grito”.

Assim, Cecim Calixto foi-se consagrando como um dos melhores e maiores poetas de nosso tempo no Paraná e no Brasil, ao lado de nomes como Apolo Taborda França, Emílio Sounis, Harley Clóvis Stocchero, José Wanderlei Resende, Leonardo Henke, Moacir Antonio Bordignon, Oldemar Justus, Orlando Woczikosky, Paulo Leminski e Vasco José Taborda.

Os versos do poeta paranaense agradam aos ouvidos do mais exigente leitor, porque são escritos com musicalidade, espontaneidade, inspiração e em português escorreito. O livro “A VOZ DO AMOR” veio à luz da publicidade em 2000 pela Juruá Editora, de Curitiba, onde o poeta mais uma vez esbanja o seu perfeccionismo, com outro conjunto de 99 sonetos impecáveis.  Estudioso, aprimorou sua técnica e após sua aposentadoria, pôde então dedicar-se à Literatura, como sempre desejou.

Com razão o poeta quando escreve em seu soneto A VOZ DO AMOR, que abre o livro com este mesmo título: “Esfrio a guerra congelando mágoas/ aqueço as almas como esfrio as águas/ em mutações que a própria mente enseja. // Abro caminho aos vegetais floridos/ e encho de vida os corações feridos/ porque sou tudo que o mortal deseja”.

Conquistou o 2º lugar no 14º Concurso Nacional de Poesia, Categoria Especial Paraná, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura, Governo do Paraná, em 2003, com o soneto O Rival:

“Você de novo colibri teimoso,
roubando a seiva da singela rosa!
Morro de inveja do rival airoso
que suga o mel da minha flor mimosa.

A minha rosa tem o olor gostoso
que até perturba a vizinhança prosa.
E sem modéstia o menestrel brioso,
todo orgulhoso, sempre a fez ditosa.

Cedo levanto e para a rosa eu canto
e com carinho vou secar o pranto
da noite fria, que seu bojo aninha.

Mas... meu rival, de novo mais ligeiro,
logrou a mim e a bajulou primeiro,
sugando a gota que era toda minha”.

Opiniões sobre o trabalho excepcional do intelectual Cecim Calixto:

“Quem tiver oportunidade de ler seus sonetos verificará, desde logo, o poeta rico de emoções e sentimentos, que sabe cantar a dor, a paixão e a nostalgia, com rara elegância e distinção”. (Paschoal A. Pítsica – Presidente da Academia Catarinense de Letras).

“Emoções são, de fato, uma constante na vida do poeta e sua sensibilidade o induz a criar e viver um mundo onírico de Beleza e Paz”. (Horácio Ferreira Portella – Centro de Letras do Paraná).

Pertenceu ao Centro de Letras do Paraná, Academia Paranaense de Poesia, UBT-PR, Academia de Letras “José de Alencar” e Círculo de Estudos Bandeirantes. Além dos livros já publicados, como “NINFAS”, 1951 e 1967 – 2ª edição, “EMOÇÕES”, 1997 e “A VOZ DO AMOR”, 2000, o vate de Pinhalão, Paraná, teve pronto para publicação novo livro de sonetos, sem título ainda e o seu primeiro livro de trovas, “TROVAS & SONHOS”. Participou também da Antologia SETE POETAS, ao lado de grandes nomes da poesia paranaense.            

Verbete da ENCICLOPÉDIA DE LITERATURA BRASILEIRA, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, edição do MEC, 1990, com revisão de Graça Coutinho e Rita Moutinho Botelho, edição revista e atualizada, em 2001.

O poeta silenciou em 29 de maio de 2008, em Tomazina, aos 81 anos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 15

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 64


O "bosco", os verdes, a natura. Canarinhos na quirera. As folhas do inverno. Silêncio no mosteiro. O torpor da tardinha invade almas e corações. Tempo de sorver. Croniquinha de sábado ? Gostosuras fazem uma delas.

Entre as divagações da boca-noitinha é doce evocar Pablo Neruda: " Ao cair sobre a terra, as tardes se quebram em pedaços, se estilhaçam contra o solo. A tarde cai num silêncio letal, como o desabar duma escura entretela sobre a água. E a noite nos tapa os olhos de surpresa, sem que possamos ouvir seus passos, querendo saber se foi reconhecida, ela, a infinita e inconfundível ".

SACRA NATUREZA !
Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Raul Pompéia (Fora de horas)


O último amor de Emílio foi uma viúva, antes um capricho feito viúva, ou melhor ainda um demônio feito capricho.

Mme. Lamour, Mme. Lamort, ninguém lhe sabia exatamente o nome. Inscreviam-na dos dois modos, na comédia do mundo alegre, e ela não se dava ao trabalho de expedir uma errata, deixando que vacilasse o apelido de amor ou morte, como o mistério da vida, que tão bem resumia: o incêndio do ditirambo onde as almas ardem e acabam.

Não cuidem, porém, que estragava a meditar simbolismos o ensejo de descanso poupado na agitação da vida impetuosa. Pertenciam-lhe ao egoísmo inerte, como um tesouro de indolência, as horas da sesta, as horas nuas da sesta, no ambiente resguardado do dormitório, quando estirava-se ao divã de veludo preto, fresca da reação do banho, vaidosamente deslumbrada da brancura da própria carne, gostando na epiderme a viagem leve, saltitada, de uma mosca atraída pelas migalhas da última ceia.

A imaginação sonolenta ia e vinha passivamente, na comparação da alvura absoluta das formas, onde se concentrava a luz toda das vidraças entreabertas - com o negrume intenso do forro do divã, das peles do tapete crescidas e retintas, da seda preta do para-vento atravessado obliquamente pelo voo pálido de cegonhas de prata, da estranha decoração negra das paredes, da madeira dos móveis, dos encostos de cupidinhos negros esculpidos em luta, enrolando-se, mordendo-se como filhotes de tigre.

Nada perturbava o repouso. Nem um pensamento, nem um ruído. As vidraças detinham fora o ramalhar múrmuro do jardim. Além do biombo, o relógio não batia, parado num longo minuto de felicidade material. Até que chegava o sono, lentamente, respirado na noite fictícia da decoração. junto dela, sobre uma cadeira, dormia a taça de ouro, objeto querido, que mandara fazer, moldada sobre o seio de uma rival defunta.

Estava ausente para todos; mesmo para o amante. Qualquer dos dois, que ela tinha dois, sempre e fielmente: por um exercício duplo de fidelidade, que lhe parecia dobrada virtude.

Às quatro horas, Emílio acordava-a aos beijos. Tinha dois amantes, disse, como tinha dois nomes. Amantes que não se viam, que não se conheciam, que não se encontravam. Manejava habilmente os dois corações, como bolas alternadas de um jogo malabar.

Prezava-os impessoalmente por predicados opostos e incompatíveis, que buscaria em outros amores, se os atuais faltassem. isolá-los reciprocamente era porém o meio de conservar a ilusão do prazer completo de duas existências.

Queria um amante que fosse dela, e outro de quem ela fosse.

Um devia ser delicado, adolescência franzina, temperamento febril e fraco, que se lhe entregasse como a uma tortura. Ela estenderia os braços como tentáculos de polvo e sugar-lhe-ia a vida com os lábios, devorá-lo-ia deleitando-se de o ver extinguir-se dia a dia, ele buscando-a sempre, ardente, trêmulo, sorrindo e sucumbindo. Queria também o amor forte de um largo peito, o desejo de grande fôlego, a carícia constringente da saúde, da força, que enlaça, que macera e afoga um amor brutal, que a punisse da perversa delícia do outro.

Emílio era o forte.

- Ciúmes de um cadáver! dizia ela, enigmaticamente, rindo, quando Emílio insinuava a queixa de uma suspeita.

Esta frase repetida, da excêntrica mulher, distraía-o do ciúme, aduzindo um traço mais de extravagância à sedução macabra daquela aliança.

Sonhou, então, que a viúva o traía com efeito; que ressurgia para trai-lo com ela, o falecido esposo, a letra morta do contrato conjugal. Ele a via nos braços do finado, dando-se-lhe toda com o prazer novo de uma lascívia de horror cingida contra a carne malhada de roxo, olhada amorosamente pela meiguice branca dos olhos extintos, sentindo o cheiro úmido da terra nos cabelos, vendo a língua negra através dos dentes fixos, ouvindo passar nos lábios um hálito empestado de sepultura, estremecendo de gozo a criatura incrível que ele amava - abraçada pelo pesadelo!

Entretanto, o outro vinha, nas ocasiões combinadas, pobre criança extenuada e exangue, sôfrego, ofegante, obedecendo à fatalidade, trazendo o sacrifício dos seus dias, trazendo dos desesperos do trabalho, da miséria, talvez dos recursos culpados, mimos de preço, pérolas, rubis, rubis principalmente, prediletos dela porque são como cristais de sangue...

Uma noite, que estavam juntos, Mme. Lamour e Emílio, muito tarde, no salão negro, ouviram bater à porta lateral do jardim. Os amantes cruzaram um olhar.

- Ciúmes? perguntou a viúva sorrindo.

Bateram de novo. Emílio quis abrir.

- Não abras! Deixa que batam!

Bateram ainda.

- Não abras!

Um abalo violento, como de uma ombrada, sacudiu os ferrolhos e o ar da sala. Depois não bateram mais.

Fazia um frio agudo. Adivinhava-se, lá fora, a chuvinha glacial, peneirada da noite. Os dois amantes esqueceram-se no aconchego das efusões, mais estreito e mais vivo naquele inverno, em meio do pavor ornamental do aposento.

No dia seguinte, atravessado à porta, sobre o mármore do limiar, achou-se o corpo inerte de um rapaz, muito moço, imberbe ainda, belo, apesar da morte e da magreza extrema. Tinha sangue nos lábios e pousava em sangue a face lívida.

Ao redor, as roseiras, as begônias, na manhã clara, choravam as últimas gotas da chuva da véspera.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.