sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Nelson Rodrigues (Quem Morre Descansa)


Ela batia à máquina quando Norberto apareceu. Fez a pergunta:

— Pode-se bater um papinho contigo?

— Quando?

— Depois do serviço?

— OK. E onde?

Ele vacilou: “Olha, eu te espero naquele bar da esquina”. Julinha, com o coração disparado, balbuciou: “Eu estarei lá. Batata”. E não trabalhou mais direito. Findo o expediente, correu no reservado das moças, e espiou-se no espelho; retocou a pintura dos lábios e passou pó no nariz; muito lustroso. Norberto a esperava, num canto do bar, com uma garrafa na frente. Deu-lhe a cadeira e requisitou o garçom. Perguntou à pequena:

— Você toma o quê?

Julinha, que não estava passando bem do estômago, pediu: — “Água tônica”. Enquanto o garçom ia e vinha, Norberto foi direto ao assunto: — “Você sabe, não sabe, que eu sou casado?”. Suspirou:

— Sei.

E ele:

— Muito bem. Sabe, também, que eu gosto muito de você?

Disse que não tinha certeza, mas desconfiava. Ele insistiu: — “Pois gosto e muito, mais do que você pensa”. E, súbito, fez-lhe a pergunta que a surpreendeu e deixou sem fala: — “Quer casar comigo?”.

A ESPOSA

Durante alguns momentos, ela não soube o que dizer, não soube o que pensar. Balbuciou:

— Quer dizer, queria. Mas como? E sua mulher?

Mas Norberto estava preparado para a pergunta: — “O negócio é o seguinte, meu anjo: minha mulher está muito mal”. E era verdade. A mulher de Norberto era muito franzina, um peito cavado, asmática, tinha uma vida de sacrifício. No inverno, pagava todos os pecados, qualquer resfriado bobo a deixava sem ar e tinha sufocações tremendas. Vivia em casa, estiolando-se, cada dia pior. Há coisa de oito meses, fizera uma radiografia do estômago. Constatara-se a úlcera; e, depois, uma do pulmão que revelara a tuberculose. Chocada com essas variedades de doenças, de provações, Julinha deixou escapar a exclamação: — “Que horror!”. Norberto prosseguiu:

— Queres ver uma coisa? Hoje eu a deixei pondo sangue pela boca. E não se sabe se a hemorragia é da úlcera do estômago ou do pulmão.

— Coitada!

— O médico já avisou que ela não dura muito. Uns três ou quatro meses. E talvez morra antes, de um colapso. Uma calamidade. Mas o que eu queria te dizer era o seguinte: tu gostas de mim e eu de ti; e te dou minha palavra que, logo que possa, me casarei contigo. Tu esperas?

Julinha ergueu o rosto e disse, com muita doçura:

— Espero.

O OUTRO

A partir de então, sua vida foi uma espera de todos os dias, horas e minutos. Havia no escritório um outro companheiro interessado em conquistá-la. Era o Queiroz. Tomara-se de amores pela menina e, muito obstinado, não a deixava em paz. Não fosse a súbita declaração de Norberto, que ela preferia, e talvez tivesse admitido um namoro, a título experimental, com o Queiroz. Mas Norberto, vendo o assédio do outro, se antecipara. E, no dia seguinte, quando o Queiroz reiterou um antigo convite para um “cineminha”, a garota pôs as cartas na mesa:

— Tem santíssima paciência, mas não pode ser. Eu gosto de outro.

— Não acredito!

E ela: “Te juro”. Como o rapaz teimasse na incredulidade, fez o juramento extremo: “Quero ver minha mãe morta, se não é verdade”.

Atônito, ele balbuciou a pergunta: “Mas quem é o cara?”.

— Segredo.

— Ué!

Julinha acabou se irritando: “Além disso, eu não tenho que dar satisfação de minha vida”. O rapaz saiu dali amargo, depois de rosnar: “Esse negócio está me cheirando a homem casado”. E o fato é que, desde então, ele passou a vigiar ferozmente a pequena. Soube que Norberto e Julinha tinham sido vistos, depois do serviço, no bar da esquina.

Esbravejou:

— Cachorro!

O MARTÍRIO

Sempre que chegava ao emprego, Julinha olhava para a mesa de Norberto. Quando ele não vinha, perguntava a si mesma: “Será que ele não veio porque a mulher dele morreu?”. Corria ao contínuo:

— Quedê seu Norberto?

— Foi tomar café.

Ela sabia então que a outra estava viva. Por causa do controle do Queiroz, os dois procuravam disfarçar tanto quanto possível. Com sua lógica de mulher, Julinha ponderava: “Afinal de contas, você é um homem casado e eu sou uma moça de família”. Por outro lado, o sigilo que era obrigada a manter constituía um elemento de mistério, interesse, excitação. E assim, dias após dias, Julinha acompanhava à distância o martírio da outra. Às vezes, Norberto ia à rua telefonar para ela e dramatizava: “Minha mulher está que é só pele e osso. Não sei como ainda vive”. A princípio, Julinha tinha escrúpulos de esperar e mesmo desejar a morte da infeliz. Mas, com o correr dos dias, o hábito de falar no assunto a sensibilizou. E, um dia, surpreendeu-se a si mesma: “No duro, no duro, me responde. Ela vai até quando, mais ou menos?”. Norberto fez os cálculos:

— Uns quinze dias.

Em casa, no quarto, Julinha pôs-se a imaginar: ”Quinze dias. Mais uns seis meses etc. Daqui a um ano posso estar casada”. Mas os quinze dias se passaram. E nada. No telefone, ela perguntou, com uma irritação que procurava dissimular: “Como é, fulano? Você disse quinze dias e quando acaba...”. Do outro lado do fio ele desabafava:

— Pois é. Que espeto! Sabe que eu estou besta com a resistência? O médico disse hoje que, assim, nunca viu.

Julinha suspirou: “Paciência. Paciência”. Mas já começava a admitir mesmo que o estado da outra não fosse tão grave assim. E, por fim, interpelou Norberto: “Quem sabe se você não está me tapeando?”. Ele jurou que não, deu a palavra de honra. Julinha, deprimida, fez a revelação:

— Olha que eu já estou fazendo despesas com o enxoval. Comprei muita coisa. Veja lá!

Ele, seguro de si e do destino, foi categórico: “Ótimo, ótimo. Pode ir comprando tudo. É bom, sim. E o vestido de noiva eu faço questão de te dar. Quero um bacana”.

AGONIA


Mais quinze dias e a esposa de Norberto, apesar da úlcera, da tuberculose e da asma, resistia. Ele, desesperado e sentindo que a pequena duvidava, propôs-lhe: “Vamos fazer o seguinte: vou arranjar um pretexto do serviço e te levo lá em casa. Queres?”. Julinha, que já se julgava vítima de uma mistificação, disse: “Pois quero”. No dia seguinte, entrava na casa da rival. E seu estômago se contraiu quando viu a outra no fundo da cama. Era, de fato, um esqueleto. Um esqueleto com um leve, muito leve, revestimento de pele. Parecia incrível que aquela criatura ainda estivesse respirando, ainda vivesse. Na primeira oportunidade, Norberto soprou-lhe:

— Não te disse? Batata, meu anjo. É um fenômeno de resistência. Qualquer dia, morre.

Coincidiu que o médico aparecesse e, falando com Norberto e Julinha, foi terminante: “É um milagre, sua mulher já devia estar morta”. Julinha, impressionada, sugeriu: “Deve ser um sacrifício a vida dessa criatura. Um martírio”. O médico admitiu com a voz cava:

— Natural.

E continuou a espera. Então, pouco a pouco, Julinha se desesperou. Começava a admitir na sua meditação que a outra não morresse nunca, que se tornasse definitivamente uma múmia. O Queiroz, teimoso, não cessava o assédio. E, sem querer, ela já o tratava de outra maneira, quase com afeto. Ele era positivo: “Eu me caso contigo em dois meses”. Julinha adotou uma atitude que não deixava de ser um estímulo. Disse: “Deixa o barco correr”. Dias depois, foi mais longe:

— Te dou a resposta dentro de um mês.

A MORTE

Esperava que, dentro desse prazo, a outra morresse. Pois bem. Passou-se o mês e nada. Perdeu a paciência: “Não interessa. Estou bancando a palhaça”. O Queiroz, que contava os dias na folhinha, esperou-a sôfrego: “Como é? Já decidiste?”. Julinha teve um fundo suspiro:

— Já.

— E então?

— Sim.

Combinaram ali mesmo, em voz baixa, tudo. Ele, agitado, queria o máximo de rapidez, e batia sobretudo numa tecla: “Dois meses, no máximo”. Esfregou a mão, feliz, quando soube que Julinha já preparara muita coisa do enxoval. Acabou soprando: “Vem cá um instantinho”.

Levou-a ao corredor e deu-lhe um beijo na boca. Voltando ao escritório, saiu de mesa em mesa, anunciando: “Estamos noivos”. Foi uma farra entre os colegas. De repente, bate o telefone: Julinha atende e... Teve um choque, quando reconheceu a voz de Norberto. Falando baixo, com a boca encostada no telefone, Norberto anunciava:

— Minha mulher entrou em agonia. Agora é batata. Questão de minutos. Um beijo pra ti. — E desligou.

Por alguns instantes ela não soube o que fazer. Numa alegria lancinante, tinha os olhos marejados, já esquecida do compromisso com o Queiroz. E, quando este veio lhe falar, ela não teve o mínimo tato. Disse-lhe à queima-roupa: — “Olha, nada feito. Você me desculpa” etc. etc.

Ele, branco, ainda insistiu: — “Você não pode fazer isso comigo. Eu não sou nenhum moleque”. Mas quando se convenceu que a tinha perdido, não teve dúvidas. Era nortista, afundou-lhe o punhal num dos seios. Julinha expirou, ali mesmo, antes que a assistência chegasse.

Pouco depois, batia o telefone. Era de novo Norberto, que vinha avisar que a esposa morrera, afinal. Mas ninguém, ali, teve cabeça para atender. Norberto acabou desistindo. Voltou para junto da esposa morta, com a natural compostura de um viúvo. E fez, para os presentes, o seguinte comentário:

— Quem morre descansa.

Fonte:
Nelson Rodrigues. A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é...; seleção de Ruy Castro. SP: Cia das Letras, 1993.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 360

 


Luís da Câmara Cascudo (Barba Ruiva)



Aqui está a lagoa de Paranaguá, limpa como um espelho e bonita como noiva enfeitada.
 

Espraia-se em quinze quilômetros por cinco de largura, mas não era, tempo antigo, assim grande, poderosa como um braço de mar. Cresceu por encanto, cobrindo mato e caminho, por causa do pecado dos homens.

Nas Salinas, ponta leste do povoado de Paranaguá, vivia uma viúva com três filhas. O rio Fundo caía numa lagoa pequena no meio da várzea.

Um dia, não se sabe como, a mais moça das filhas da viúva adoeceu e ninguém atinava com a moléstia. Ficou triste e pensativa. Estava esperando menino e o namorado morrera sem ter ocasião de levar a moça ao altar.

Chegando o tempo, descansou a moça nos matos e, querendo esconder a vergonha, deitou o filhinho num tacho de cobre e sacudiu-o dentro da lagoa.

O tacho desceu e subiu logo, trazido por uma Mãe-d'Água, tremendo de raiva na sua beleza feiticeira. Amaldiçoou a moça que chorava, e mergulhou.

As águas foram crescendo, subindo e correndo, numa enchente sem fim, dia e noite, alagando, encharcando, atolando, aumentando sem cessar, cumprindo uma ordem misteriosa. Tomou toda a várzea, passando por cima das carnaubeiras e buritis, dando onda como maré de enchente na lua.

Ficou a lagoa encantada, cheia de luzes e de vozes. Ninguém podia morar na beira porque, a noite inteira, subia do fundo d'água um choro de criança, como se chamasse a mãe para amamentar.

Ano vai e ano vem, o choro parou e, vez por outra, aparecia um homem moço, airoso, muito claro, menino de manhã, com barbas ruivas ao meio-dia e barbado de branco ao anoitecer.

Muita gente o viu e tem visto. Foge dos homens e procura as mulheres que vão bater roupa. Agarra-as só para abraçar e beijar. Depois, corre e pula na lagoa, desaparecendo.

Nenhuma mulher bate roupa e toma banho sozinha, com medo do Barba Ruiva. Homem de respeito, doutor formado, tem encontrado o Filho da-Mãe-d'Água, e perde o uso de razão, horas e horas.

Mas o Barba Ruiva não ofende a ninguém.

Corre sua sina nas águas da lagoa de Paranaguá, perseguindo mulheres e fugindo dos homens. Um dia desencantará, se uma mulher atirar na cabeça dele água benta e um rosário indulgenciado. Barba Ruiva é pagão, e deixa de ser encantado sendo cristão.

Mas não nasceu ainda essa mulher valente para desencantar o Barba Ruiva. Por isso ele cumpre sua sina nas águas claras da lagoa de Paranaguá.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto LpT (Livro para Todos).

SPINA – Nova Forma Poética (Antologia Poética) 2


Ana Cláudia Gonçalves

DO BRILHO QUE TRAGO NOS OLHOS

Menina tecendo sonhos
Em cada giro
De um cata-vento...

Ainda tenho brilho nos olhos.
Ainda acredito em minha magia.
Sigo projetando fantasias no firmamento.
Tenho poeira de estrelas, guardadas
Impregnadas em cada bom sentimento.

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Ana Meireles

SENSAÇÕES!

Transbordo, a vida
Me faz transbordar.
Sou tristezas, alegrias!

A conta dos dias pesa
Subtraído desejos, subtraído os sonhos
Tudo passa envolto em melancolias
Sem cores , dores pulsam, acinzentam
Entornam sensações, disparam emoções, agonias.
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Antonio Queiroz

ABNEGADO CALOR


Ensope meu mundo
com seu abnegado
calor, fazendo-me inflamar.

Alague minha alma com ondas
quentes, espumosas suas, regando com
salgadas chuvas meu desmedido mar.
Detenha sol abrasador, repondo-me lua
cintilante, noites a lhe amar.
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Carla Bueno Oliveira

UM NOVO AMANHECER

Contemplo novo dia
Observando sol radiante
com muito esmero!

Converto minha tristeza em alegria,
sentindo nova esperança no amanhã!
De repente, chega sorriso sincero,
um ânimo dizendo para lutar
repetindo: terei futuro que espero.
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Edith Vargas

ABUSO INFANTIL


Criança abusada, triste
A pensar. Segredos
Doloridos, para guardar.

Sua infância despirá a fantasia,
Soturno, nebuloso, será seu viver.
Momentos servís, sempre a lembrar,
Sobras de infância então  viverá.
Abuso infantil, ciranda a  castigar.
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Ronnaldo de Andrade

SÓ A MORTE SILENCIA MEU GRITO

Renego o poder
se exclui aquilo
que tenho direito;

se anula minhas condignas conquistas
alcançadas com muitas lutas, sangue;
fere-me, ignora o secular preconceito.
Eu esconjuro firmemente o retrocesso,
toda, qualquer, violência – Não aceito!
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Symone Elyas

SOBREVIVI


Armada... Sem pistolas
Nem munições. Encaro
A emboscada revestida.

Enjeito seu amor lancinante. Recuso
Migalhas do que intitula sentimento.
Alto lá... Insignificância não intimida!
Blindei mente, corpo, coração contra
Seu contempto. Pronta, bem resolvida.
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Valéria Gurgel

ESPERANÇA


Aurora Boreal cintila,
Verde no firmamento,
Cor da esperança.

Doce expectativa, o céu espelha.
Sentimento último que se morre,
Porque quem espera tudo alcança.
Quem bem semeia, planta, colhe.
Acredite nos frutos da bonança.

Fonte:
Facebook – Spina, Nova forma poética

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Onze


FETO DE ÚTERO RESSENTIDO

O AVÔ DE JULINHO, SEU LISBÓRIO, é um homem na casa dos sessenta anos. Possui os cabelos grisalhos e o rosto bastante enrugado. Viaja de ônibus leito, do Rio de Janeiro para São Paulo, acompanhado de seu inseparável neto, um guri de  seis anos, esperto e tremendamente traquinas.

Em face do pequeno ser muito levado e extremamente desobediente, ninguém aguenta ficar com ele. Em razão disso, para onde seu Lisbório precise se locomover, leva a tira colo, o alegre ganapo (garoto).

Órfão da mãe, que morreu com seu nascimento, desde então o cacafelho (pirralho) passou a ser criado e cuidado por esse avô. O pai da criança, com o óbito repentino da mulher (filha de seu Lisbório), se mandou, tomando lugar incerto e não sabido. Nunca mais deu as caras, sequer para saber se o pirralho precisava de alguma coisa.

Dona Geringonçinha, a esposa de seu Lisbório, mais nova que ele três anos, ajuda no que pode. A mulher ama o menino como se filho de seu sangue fosse. Todavia, como o moleque se mostra levado da breca e apronta todas, ela não lhe dá muita trela.

Seu Lisbório, maquinista aposentado da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, em face de possuir algumas propriedades de aluguel em Santíssimo, bairro situado na Zona Oeste do Rio de Janeiro, todo mês carece estar presente na cidade maravilhosa e, claro, com ele vem o infante sapeca de contrapeso.

Na verdade, apesar do avanço e da disparidade dos anos, igualmente o espevitado ama o avô, gosta dele de coração e, dentro das suas limitações de criança, ajuda o velho quando o mesmo necessita de ajuda.

Ocupando as poltronas um e dois, tardão da noite, enquanto o Tribus segue seu destino, o párvulo (criança) passa o tempo sem pregar os olhos, se entretendo com seus joguinhos preferidos no celular do avô. O longevo dorme a sono solto, roncando e babando.  

No meio da estrada, seu Lisbório acorda com sede. Espia pela janela e percebe, estar o ônibus relativamente um pouco distanciado da parada Graal Alemão, em Queluz. Para variar, aquela noite, em face de um acidente envolvendo duas carretas, a Via Dutra se faz morosa e lenta, com ambas as vias bastante congestionadas.

—  Julinho, acha aqui na bolsa a caneca do seu avô e vai pegar água. Estou com uma sede danada.

Obediente, o petiz sobe na poltrona, alcança o bagageiro e dele retira a caneca acondicionada numa sacola de plástico e corre até os fundos, buscar o líquido precioso para o avô.

Dois ou três minutos depois, retorna com o recipiente cheio, até a boca:

— Toma, vô.

Seu Lisbório passa a mão na caneca e toma tudo de uma só golada:

— Meu lindo, volta lá e enche de novo...

O pequerrucho não espera segunda ordem. Sai tropeçando corredor adentro, se segurando entre as poltronas, sumindo em direção ao banheiro. Não imprime delongas em retornar. Da mesma forma que a primeira, o pequerrucho vira tudo de uma só vez:

— Chega, vô?

— Ainda não, meu gatinho lindo. Sem fazer muito barulho, me arranja mais um pouquinho. Cuidado para não perturbar os demais passageiros, ou cair e se machucar, ou pior, dar um banho em alguém:

— Tá bom, vô.

Julinho reaparece, e novamente entrega a caneca ao senhorzinho que bebe com gosto e sofregamente:

— Se eu falar pra você que ainda sou capaz de beber umas dez... Você faria a gentileza de ir lá, de novo, e atender seu velho avô chato?

O miúdo ralha com o abrandecido fazendo um gesto de contrariedade a estas palavras:

— O senhor não é chato, vovô. Eu vou buscar quantas canecas o senhor quiser...

Julinho volta a desaparecer por mais alguns minutos, todavia, desta vez, retorna ao ponto de partida com a caneca vazia. O avô indaga o que aconteceu:

— O que houve, meu piá?  Não me diga que a água acabou?

O rapazinho vacila antes de responder.

— Fale, Julinho, a fonte secou?

Julinho, então, faz a revelação surpreendente e imprecisa, o que deixa o avô literalmente furioso e descontroladamente fora de si:

— Acabou não, vô!

— Então, por que não me trouxe a água?

— Quando eu abri a porta do banheiro, topei com uma moça sentada no poço!

Fonte:
Texto enviado pelo autor, do livro
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 4

 


A ESTRELA

Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Porque da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Porque tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.
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A MORTE ABSOLUTA

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento.
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
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BELO BELO (1)

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
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BELO BELO (2)

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.
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CHAMA E FUMO

Amor - chama, e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...

Gozo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Tanto ele queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...

Antes, todo ele é gosto e graça.
Amor, fogueira linda a arder
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Porquanto, mal se satisfaça,
(Como te poderei dizer?...)
O fumo vem, a chama passa...

A chama queima... O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas... tem de ser...
Amor?... - chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...

Teresópolis, 1911.

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa". 1967.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 359

 


Carlos Drummond de Andrade (Diálogo de Todo Dia)


— Alô, quem fala?

— Ninguém. Quem fala é você que está perguntando quem fala.

— Mas eu preciso saber com quem estou falando.

— E eu preciso saber antes a quem estou respondendo.

— Assim não dá. Me faz o obséquio de dizer quem fala?

— Todo mundo fala, meu amigo, desde que não seja mudo.

— Isso eu sei, não precisava me dizer como novidade. Eu queria saber é quem está no aparelho.

— Ah, sim. No aparelho não está ninguém.

— Como não está, se você está me respondendo?

— Eu estou fora do aparelho. Dentro do aparelho não cabe ninguém.

— Engraçadinho. Então, quem está fora do aparelho?

— Agora melhorou. Estou eu, para servi-lo.

— Não parece. Se fosse para me servir, já teria dito quem está falando.

— Bem, nós dois estamos falando. Eu de cá, você de lá. E um não conhece o outro.

— Se eu conhecesse não estava perguntando.

— Você é muito perguntador. Note que eu não lhe perguntei nada.

— Nem tinha que perguntar. Pois se fui eu que telefonei.

— Não perguntei nem vou perguntar. Não estou interessado em conhecer outras pessoas.

— Mas podia estar interessado pelo menos em responder a quem telefonou.

— Estou respondendo.

— Pela última vez, cavalheiro, e em nome de Deus: quem fala?

— Pela última vez, e em nome da segurança, por que eu sou obrigado a dar esta informação a um desconhecido?

— Bolas!

— Bolas digo eu. Bolas e carambolas. Por acaso você não pode dizer com quem deseja falar, para eu lhe responder se essa pessoa está ou não aqui, mora ou não mora neste endereço? Vamos, diga de uma vez por todas: com quem deseja falar?

Silêncio.

— Vamos, diga: com quem deseja falar?

— Desculpe, a confusão é tanta que eu nem sei mais. Esqueci. Chau.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis.

Machado de Assis (Evolução)


Chamo-me Inácio; ele, Benedito. Não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento de compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta. Contentem-se com Benedito. Não é muito, mas é alguma coisa, e está com a filosofia de Julieta: “Que valem nomes? perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmo cheiro.” Vamos ao cheiro do Benedito.

E desde logo assentemos que ele era o menos Romeu deste mundo. Tinha quarenta e cinco anos, quando o conheci; não declaro em que tempo, porque tudo neste conto há de ser misterioso e truncado. Quarenta e cinco anos, e muitos cabelos pretos; para os que o não eram usava um processo químico, tão eficaz que não se lhe distinguiam os pretos dos outros — salvo ao levantar da cama; mas ao levantar da cama não aparecia a ninguém. Tudo mais era natural, pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e bengala. O próprio alfinete de diamante, que trazia na gravata, um dos mais lindos que tenho visto, era natural e legítimo, custou-lhe bom dinheiro; eu mesmo o vi comprar na casa do... lá me ia escapando o nome do joalheiro; — fiquemos na Rua do Ouvidor.

Moralmente, era ele mesmo. Ninguém muda de caráter, e o do Benedito era bom, — ou para melhor dizer, pacato. Mas, intelectualmente, é que ele era menos original. Podemos compará-lo a uma hospedaria bem afreguesada, aonde iam ter ideias de toda parte e de toda sorte, que se sentavam à mesa com a família da casa. Às vezes, acontecia acharem-se ali duas pessoas inimigas, ou simplesmente antipáticas; ninguém brigava, o dono da casa impunha aos hóspedes a indulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar uma espécie de ateísmo vago com duas irmandades que fundou, não sei se na Gávea, na Tijuca ou no Engenho Velho. Usava assim, promiscuamente, a devoção, a irreligião e as meias de seda. Nunca lhe vi as meias, note-se; mas ele não tinha segredos para os amigos.

Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos deixado o trem e entrado na diligência que nos ia levar da estação à cidade. Trocamos algumas palavras, e não tardou conversarmos francamente, ao sabor das circunstâncias que nos impunham a convivência, antes mesmo de saber quem éramos.

Naturalmente, o primeiro objeto foi o progresso que nos traziam as estradas de ferro. Benedito lembrava-se do tempo em que toda a jornada era feita às costas de burro. Contamos então algumas anedotas, falamos de alguns nomes, e ficamos de acordo em que as estradas de ferro eram uma condição de progresso do país. Quem nunca viajou não sabe o valor que tem uma dessas banalidades graves e sólidas para dissipar os tédios do caminho. O espírito areja-se, os próprios músculos recebem uma comunicação agradável, o sangue não salta, fica-se em paz com Deus e os homens.

— Não serão os nossos filhos que verão todo este país cortado de estradas, disse ele.

— Não, decerto. O senhor tem filhos?

— Nenhum.

— Nem eu. Não será ainda em cinquenta anos; e, entretanto, é a nossa primeira necessidade. Eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.

— Bonita ideia! exclamou Benedito faiscando-lhe os olhos.

— Importa-me pouco que seja bonita, contanto que seja justa.

— Bonita e justa, redarguiu ele com amabilidade. Sim, senhor, tem razão: — o Brasil está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.

Chegamos a Vassouras; eu fui para a casa do juiz municipal, camarada antigo; ele demorou-se um dia e seguiu para o interior. Oito dias depois voltei ao Rio de Janeiro, mas sozinho. Uma semana mais tarde, voltou ele; encontramo-nos no teatro, conversamos muito e trocamos notícias; Benedito acabou convidando-me a ir almoçar com ele no dia seguinte. Fui; deu-me um almoço de príncipe, bons charutos e palestra animada. Notei que a conversa dele fazia mais efeito no meio da viagem — arejando o espírito e deixando a gente em paz com Deus e os homens; mas devo dizer que o almoço pode ter prejudicado o resto. Realmente era magnífico; e seria impertinência histórica pôr a mesa de Luculo na casa de Platão. Entre o café e o conhaque, disse-me ele, apoiando o cotovelo na borda da mesa, e olhando para o charuto que ardia:

— Na minha viagem agora, achei ocasião de ver como o senhor tem razão com aquela ideia do Brasil engatinhando.

— Ah!

— Sim, senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligência de Vassouras. Só começaremos a andar quando tivermos muitas estradas de ferro. Não imagina como isso é verdade.

E referiu muita coisa, observações relativas aos costumes do interior, dificuldades da vida, atraso, concordando, porém, nos bons sentimentos da população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o governo não correspondia às necessidades da pátria; parecia até interessado em mantê-la atrás das outras nações americanas. Mas era indispensável que nos persuadíssemos de que os princípios são tudo e os homens nada. Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos; e abyssus abyssum invocat. Depois foi mostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas com apuro. Mostrou-me as coleções de quadros, de moedas, de livros antigos, de selos, de armas; tinha espadas e floretes, mas confessou que não sabia esgrimir. Entre os quadros vi um lindo retrato de mulher; perguntei-lhe quem era. Benedito sorriu.

— Não irei adiante, disse eu sorrindo também.

— Não, não há que negar, acudiu ele; foi uma moça de quem gostei muito. Bonita, não? Não imagina a beleza que era. Os lábios eram mesmo de carmim e as faces de rosa; tinha os olhos negros, cor da noite. E que dentes! verdadeiras pérolas. Um mimo da natureza.

Em seguida, passamos ao gabinete. Era vasto, elegante, um pouco trivial, mas não lhe faltava nada. Tinha duas estantes, cheias de livros muito bem encadernados, um mapa-múndi, dois mapas do Brasil. A secretária era de ébano, obra fina; sobre ela, casualmente aberto, um almanaque de Laemmert. O tinteiro era de cristal, — “cristal de rocha”, disse-me ele, explicando o tinteiro, como explicava as outras coisas. Na sala contígua havia um órgão. Tocava órgão, e gostava muito de música, falou dela com entusiasmo, citando as óperas, os trechos melhores, e noticiou-me que, em pequeno, começara a aprender flauta; abandonou-a logo, — o que foi pena, concluiu, porque é, na verdade, um instrumento muito saudoso. Mostrou-me ainda outras salas, fomos ao jardim, que era esplêndido, tanto ajudava a arte à natureza, e tanto a natureza coroava a arte. Em rosas, por exemplo, (não há negar, disse-me ele, que é a rainha das flores) em rosas, tinha-as de toda casta e de todas as regiões.

Saí encantado. Encontramo-nos algumas vezes, na rua, no teatro, em casa de amigos comuns, tive ocasião de apreciá-lo. Quatro meses depois fui à Europa, negócio que me obrigava a ausência de um ano; ele ficou cuidando da eleição; queria ser deputado. Fui eu mesmo que o induzi a isso, sem a menor intenção política, mas com o único fim de lhe ser agradável; mal comparando, era como se lhe elogiasse o corte do colete. Ele pegou da ideia, e apresentou-se. Um dia, atravessando uma rua de Paris, dei subitamente com o Benedito.

— Que é isto? exclamei.

— Perdi a eleição, disse ele, e vim passear à Europa.

Não me deixou mais; viajamos juntos o resto do tempo. Confessou-me que a perda da eleição não lhe tirara a ideia de entrar no parlamento. Ao contrário, incitara-o mais. Falou-me de um grande plano.

— Quero vê-lo ministro, disse-lhe.

Benedito não contava com esta palavra, o rosto iluminou-se-lhe; mas disfarçou depressa.

— Não digo isso, respondeu. Quando, porém, seja ministro, creia que serei tão somente ministro industrial. Estamos fartos de partidos: precisamos desenvolver as forças vivas do país, os seus grandes recursos. Lembra-se do que nós dizíamos na diligência de Vassouras? O Brasil está engatinhando; só andará com estradas de ferro...

— Tem razão, concordei um pouco espantado. E por que é que eu mesmo vim à Europa? Vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo as coisas arranjadas em Londres.

— Sim?

— Perfeitamente.

Mostrei-lhe os papéis, ele viu-os deslumbrado. Como eu tivesse então recolhido alguns apontamentos, dados estatísticos, folhetos, relatórios, cópias de contratos, tudo referente a matérias industriais, e lhos mostrasse, Benedito declarou-me que ia também coligir algumas coisas daquelas. E, na verdade, vi-o andar por ministérios, bancos, associações, pedindo muitas notas e opúsculos, que amontoava nas malas; mas o ardor com que o fez, se foi intenso, foi curto; era de empréstimo. Benedito recolheu com muito mais gosto os anexins políticos e fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um vasto arsenal deles. Nas conversas comigo repetia-os muita vez, à laia de experiência; achava neles grande prestígio e valor inestimável. Muitos eram de tradição inglesa, e ele os preferia aos outros, como trazendo em si um pouco da Câmara dos Comuns.

Saboreava-os tanto que eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem aquele aparelho verbal; creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas formas curtas, tão cômodas, algumas lindas, outras sonoras, todas axiomáticas, que não forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz com Deus e os homens.

Regressamos juntos; mas eu fiquei em Pernambuco, e tornei mais tarde a Londres, donde vim ao Rio de Janeiro, um ano depois. Já então Benedito era deputado. Fui visitá-lo; achei-o preparando o discurso de estreia. Mostrou-me alguns apontamentos, trechos de relatórios, livros de economia política, alguns com páginas marcadas, por meio de tiras de papel rubricadas assim: — Câmbio, Taxa das terras, Questão dos cereais em Inglaterra, Opinião de Stuart Mill, Erro de Thiers sobre caminhos de ferro, etc. Era sincero, minucioso e cálido. Falavame daquelas coisas, como se acabasse de as descobrir, expondo-me tudo, ab ovo; tinha a peito mostrar aos homens práticos da Câmara que também ele era prático. Em seguida, perguntou-me pela empresa; disse-lhe o que havia.

— Dentro de dois anos conto inaugurar o primeiro trecho da estrada.

— E os capitalistas ingleses?

— Que tem?

— Estão contentes, esperançados?

— Muito; não imagina.

Contei-lhe algumas particularidades técnicas, que ele ouviu distraidamente, — ou porque a minha narração fosse em extremo complicada, ou por outro motivo. Quando acabei, disse-me que estimava ver-me entregue ao movimento industrial; era dele que precisávamos, e a este propósito fez-me o favor de ler o exórdio do discurso que devia proferir dali a dias.

— Está ainda em borrão, explicou-me; mas as ideias capitais ficam. E começou: No meio da agitação crescente dos espíritos, do alarido partidário que encobre as vozes dos legítimos interesses, permiti que alguém faça ouvir uma súplica da nação. Senhores, é tempo de cuidar exclusivamente, — notai que digo exclusivamente, — dos melhoramentos materiais do país. Não desconheço o que se me pode replicar; dir-me-eis que uma nação não se compõe só de estômago para digerir, mas de cabeça para pensar e de coração para sentir. Respondo-vos que tudo isso não valerá nada ou pouco, se ela não tiver pernas para caminhar; e aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo, em viagem pelo interior: o Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro...

Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo. Mais que pensativo, fiquei assombrado, desvairado diante do abismo que a psicologia rasgava aos meus pés. Este homem é sincero, pensei comigo, está persuadido do que escreveu. E fui por aí abaixo até ver se achava a explicação dos trâmites por que passou aquela recordação da diligência de Vassouras. Achei (perdoem-me se há nisto enfatuação), achei ali mais um efeito da lei da evolução, tal como a definiu Spencer, — Spencer ou Benedito, um deles.

Fonte:
Machado de Assis. Relíquias da Casa Velha. Publicado originalmente pela Editora Garnier (RJ) em 1906.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 358

 

Carla Rejane Silva (Sonhos Desfeitos)


Você me fez sentir bela,  viçosa, formosa, amorosa,  gostosa, uma rosa em botão. Transformou, de maneira eloquente, em realidade plena, pequenos sonhos  meus, imutando  em amor abundante, quase às raias do torrencial, meu coração completamente despedaçado.

Me deu seus beijos, me ofertou seus carinhos e abraços. Aqueceu  meu corpo inerte e adormecido  pelo tempo... Pelo tempo  esquecido, desfeito em voragem. Você criou, em mim, sentimentos novos, afetos e entusiasmos que fazia muito  igualmente se perderam  num redemoinho inexplicável.

Num outro momento inesquecível, você enxugou minhas lágrimas sentidas, lágrimas amargas, oriundas  de uma dor consternada e suspeitosa.

Eu não me sentia feliz. O meu âmago estava preso e algemado, acorrentado dentro de uma vida vazia, acabrunhada e literalmente ferida.

Você trouxe, como se fosse um toque de magia, um brilho terno de uma estrela  distante, e a sua luminosidade, embora intocável, foi tão imensa. Se fez tão intensa para meus olhos, que o meu viver tristonho e acabrunhado criou uma nova esperança e forma.

E não parou ai. Você foi mais além. Aquém. Me devolveu sorrisos  aos  lábios, ternura à alma, felicidade e calma aos meus sentidos, notadamente aqueles  em que a vida  fez questão de escurecer e mergulhar num negrume quase sem saída.

Por fim, você me enviou para um mundo novo. Um mundo até então inimaginável. Com ele, me fiz completa, repleta, cheia, contente, alegre... Saltitante... Certamente outra mulher...

Uma nova mulher. Sim, uma nova mulher. Cheguei a ficar fora de mim, absolvida em meio a devaneios bucólicos.  Me peguei flutuando em espaços abissais... Até que um dia, de repente, num repente, você  se faz ausente. Fugiu, sumiu, se esvaiu num indiferentemente sem tamanho.  

Então tudo voltou ao ontem esquecido. Eu caí feia, tropecei de corpo e fragilidade na real e o pior de tudo, eu entendi: sim, eu entendi. Pra você... Meu Deus, pra você,  pra você jamais cheguei a ser realmente importante.

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza.

Antonio Cabral Filho (21º Colar de Trovas) Tema: Servidão voluntária


01
Liberta-te das prisões,
de toda força contrária,
que a pior das servidões
é a servidão voluntária.
Elizabeth de Souza Cruz - RJ

02
É a servidão voluntária...
a pior escravidão,
muito mais que milenária,
a perfeita submissão.
Antonio Cabral Filho - RJ

03
A perfeita submissão
é para os alienados.
Os governantes não são,
pelos mesmos, questionados.
Oliveira Caruso - RJ

04
Pelos mesmos questionados,
numa submissão constante,
felizes escravizados,
presos por frágil barbante.
Antonio Cabral Filho - RJ

05
Presos por frágil barbante,
com força extraordinária,
conforma-se o elefante
em servidão voluntária.
Gilberto Cardoso dos Santos - RN

06
Em servidão voluntária
vou viver sempre contigo:
serás minha luz diária,
eu serei o teu abrigo.
Antonio Francisco Pereira - MG

07
Eu serrei o teu abrigo
e também teu protetor,
terás o meu ombro amigo
e, quem sabe, o meu amor?
Ester Figueiredo - RJ

08
E quem sabe o meu amor,
se esconda n'algum disfarce,
para espalhar seu calor:
liberdade é entregar-se!
Antonio Cabral Filho - RJ

09
Liberdade é entregar-se
à servidão voluntária
e não impor-se o disfarce
de uma norma autoritária.
Talita Batista - RJ

10
De uma norma autoritária
os escravistas se fartam
sobre a alma solitária
e, após sugá-la, descartam.
Antonio Cabral Filho - RJ

11
E, após sugá-la, descartam,
sem a mínima vergonha.
Tomara que não repartam
sem-vergonhice medonha.
Prof. Roque – RS

12
Sem-vergonhice medonha
é viver em servidão,
imitando até quem ponha
a dignidade em leilão.
Antonio Cabral Filho - RJ

13
A dignidade em leilão
é cisa que me apavora.
Mas se for seu coração
eu arremato na hora.
Antonio Francisco Pereira - MG

14
Eu arremato na hora,
porque meu coração diz,
e desbanco quem ignora,
tal qual Machado de Assis.
Antonio Cabral Filho - RJ

15
Tal qual Machado de Assis
eu escrevo a toda hora,
analisando os brasis
e tudo que me apavora.
Midhi Paixão - BA

16
Tudo quanto me apavora
é viver igual escravo
no tacão de quem explora
sem valer sequer centavo.
Antonio Cabral Filho - RJ

17
Sem valer sequer centavo,
me entreguei por nenhum preço.
Hoje canela sem cravo,
da escravidão eu padeço.
Fernando Tanajura - BA

18
Da escravidão eu padeço
na servidão voluntária,
pois ainda não conheço
uma arma libertária.
Antonio Cabral Filho - RJ

19
Uma arma libertária
cura a sede de irmãos.
E quando tudo escurece,
busco a fonte mansidão.
Major Wagner Trindade - MS

20
Busco a fonte mansidão
e lanço o meu forte verso,
contra qualquer servidão
seja qual for o universo.
Luiz Claudio - RN

21
Seja qual for o universo,
que tu tens por ligações,
não sinta o mundo perverso,
liberta-te das prisões.
Talita Batista - RJ

***

Trovas Fechamento

A
Seja qual for o universo,
que tu tens por ligações,
não sinta o mundo perverso,
liberta-te das prisões!
Talita Batista - RJ

B
Seja qual for o universo,
no mundo das ilusões,
quem tem amor faz o inverso
liberta-te das prisões!
Aurineide Alencar - MS

Fonte:
Trovadores do Brasil

Amadeu Amaral (O Super-Homem e o "Trouxa")

Júlio de Sá passou e repassou distraidamente o guardanapo sobre os beiços carnudos, distendidos num vago sorriso tranquilo. O companheiro de mesa, que ouvira calado a abundante narrativa, aconchegou a gola erguida do sobretudo, e, com uma voz cujo timbre e cuja toada diziam, antes e melhor que as palavras, a índole de uma filosofia, de resignação e de comodismo:

— Mas isso cansa, ó Júlio, não cansa? De todas essas aventuras, de todas essas idas e vindas, viagens, festas, pândegas e idílios, o que tens tirado, decerto, é a conclusão de que não há como a gente viver na sua terra, com os seus...

Júlio de Sá cravou os olhos nos do comensal, carregando o cenho.

— Estás doido. Eu quero lá saber de sossego! Eu quero lá saber de calma, de paz, de vida metódica! Não nasci para isso, meu velho.

E o outro, apertando com as mãos a gola do sobretudo, o guarda-chuva entre os joelhos:

— Gostas então de uma vida desordenada e áspera?

— Quanto mais, melhor. A vida de carneiro não me tenta. A agitação é uma necessidade do meu temperamento. E mais: é uma maneira por que eu entendo, cá por umas ideias, que devo viver a minha vida. Se eu não fosse um exuberante por natureza, seria um agitado por convicção. Para mim a vida que merece ser vivida é a vida ultra-movimentada: movimento incessante, em todos os sentidos; expansão física, expansão afetiva, expansão dos instintos, expansão do espírito; viagens e lutas, paixões e negócios, prazeres, jogo, carraspanas, arte, mulheres, esporte, tudo, e tudo de pressa, sem parar em coisa alguma nem em parte alguma.

— Então, é convicção tua...

— Convicção, sim, senhor.

— Convicção, não, senhor. Dize que tu gostas, que o teu temperamento te leva por aí, que o teu feitio dá para essa vida dispersiva e doida. Convicção, é que não. Que diabo de convicção pode ser essa, ó Júlio! Tu confundes os termos...

— Não confundo nada. O que estou é com a boca seca. Este diabo de vinho... "Garçom", mais meia garrafa de cerveja aqui para este senhor, e vê se me arranjas aí um "Bourgogne" gelado, mais decente do que essa coisa que me deste há pouco. Digo-te que não confundo nada. Repito que, se assim não vivesse por temperamento, viveria assim por efeito de uma maneira minha de encarar as coisas. Não sou um simples praticante, sou um teorista da vida superativa. A existência repousada, assente, dentro de um quadro prefixado, com princípios gerais imutáveis e com um programa particular miudamente estabelecido, é apenas um atentado contra a natureza. A vida do homem não pode ser uma construção arquitetônica, com terreno escolhido a dedo, com plantas matematicamente organizadas, com materiais conhecidos, com destinação certa. Toma nota deste teorema negativo: a nossa vida não é uma construção. A nossa vida é apenas isto: vida — uma coisa cuja essência e cujo sentido nos escapam, que nos é superior, que nunca conseguiríamos abarcar nos limites da nossa consciência, porque esta não lhe apreende senão umas pálidas faúlhas, nem subjugar à nossa vontade, que só é forte quando se lhe submete a ela...

Todos os princípios morais com que nós pensamos dominar a matéria e o instinto se repartem em duas classes: ou são inerentes à própria índole das coisas, e nesse caso não valia a pena gastar tanto tempo e tanto esforço em compendiá-los, ou são puro artifício humano, inútil e ridículo como a pretensão de um sujeito que fosse pregar normas de movimento e de orientação ás ondas do mar. De resto, nem podemos saber quais são os princípios que existem na própria natureza e quais os que ela desconhece e rejeita. Não ha normas de vida! Nenhuma norma. Ninguém sabe se o santo que passou pelo mundo empanturrado de virtudes, dizendo palavras de concórdia e de piedade, distribuindo benefícios aos homens, não terá feito maior mal ao homem do que o bandido de alma opaca e de mãos mortíferas... Aquele que espalha esmolas e consolações pode garantir e suavizar a existência a alguns que consideraria menos dignos dela; o que cria exaltações e represálias em torno de si coopera para a formação de corações fortes, de almas altivas, de energias indômitas.

E, de pé, batendo no ombro do amigo estarrecido:

— A vida é para ser vivida. Viva cada qual a sua vida. A maior virtude que um homem pode ambicionar é a de viver — amplamente, desassombradamente, sem restrições, sem liames, sem dobras, sem receios, deixando livre ao próprio ser o máximo de expansão a que ele possa atingir. Aí tens a minha moral, e aí tens o que eu faço: vivo, num esforço contínuo, numa contínua agitação, sempre fremente, inquieto e anelante, sempre envolto na maravilhosa nuvem das sensações que me mandam os sentidos hiperestesiados, tudo vendo, tudo palpando, tudo experimentando. Vivo, numa palavra, durante o meu fugitivo minuto de existência, a própria vida eterna, magnífica e indecifrável do universo. — E sabes que mais? Vamos embora.

Júlio de Sá tomou o chapéu, e, acendendo um charuto:

— Vais para casa? Pois vamos juntos. Eu não vou a parte nenhuma. Talvez recolha também. E os dois, braço dado, saíram da claridade e da tepidez do bar, mergulhando na cerração da rua, ponteada de pequenos borrões de luz. Júlio de Sá, as mãos enfiadas nos bolsos, a bengala a emergir de um deles, encostada ao ombro, apoiava-se rudemente ao braço do companheiro pachorrento, e falava sempre, numa voz cada vez mais pastosa:

— Tu não vives, meu caro Lucas, tu não conheces a vida...

O outro tentou uma réplica. Não conhecia a vida que ele, Júlio, levava e exaltava, mas conhecia-a por uma outra face, menos fascinante talvez, mas com certeza mais nobre. Era a vida apagada, subterrânea e sofredora do maior número, a vida feita de sacrifícios quotidianos, de desejos contidos, de aspirações imoladas, de sonhos recalcados, de trabalho tenaz, absorvente, esmagador, opiniático, heroico...

E sublinhava com o gesto o ultimo qualificativo. Tinha a sua poesia, pois não tinha? Mas o Júlio, feroz:

— Poesia! A poesia do Dever, hein? Que raio de poesia tu achas numa vida artificial, toda de restrições duras, que te foi imposta sem discussão nem consulta, e que assim aceitas e praticas? A poesia da canga... a poesia da polé...

Gaguejando estas coisas, Júlio sacudia pesadamente o braço do amigo. E, num repelão forte, que o levou de brusco à parede:

— É isso que tu achas belo, meu pedaço de asno? O amigo pachorrento olhou-o na cara, insultado, e fez o gesto de quem queria desvencilhar-se e ir embora. Mas Júlio de Sá reteve-o. Ora essa! Já não se podia brincar! Deixasse de tolices. Amigos sempre....

Agora Júlio de Sá, com o chapéu atirado para a nuca, pendurava-se ao braço do camarada, resmungando desculpas entremeadas de elogios e de indiretas. Estava maçador, carinhoso e irritante. Sucumbido sob a dura prova, Lucas ia e vinha, aos boléus, jungido ao braço pesado do boêmio, ao longo da interminável rua deserta. Passou um carro. Lucas meteu-se nele com o importuno, resignado a sofrê-lo até que o largasse em casa. Abandoná-lo não podia, não seria decente. Tinha de ser naquela hora o seu arrimo; era o seu protetor forçado. O super-homem dependia, naquele momento, do seu sacrifício; sem este, talvez tivesse de dormir na rua, como um beberrão vulgar, ou num posto de polícia.

Aos solavancos do carro, sob o ar frio que zunia na coberta, Júlio espalhou-se molemente nas almofadas, as pálpebras descidas sobre os olhos mortiços. E quando chegaram à casa, saltou sozinho, quase firme, e bateu. Uma luz amarela veio de dentro, por baixo da porta, sobre a soleira. Em seguida silenciosamente, a porta abriu-se, e apareceu o vulto de uma velhinha, vagamente lambido pelo clarão, alongando de sob o xale traçado o braço que sustentava o lampião caseiro. Sorria, curvada e trêmula, na longa resignação de um velho sacrifício. Era a mãe do notívago.

Mas havia no seu semblante e na sua voz um vago e suave ressentimento. Júlio, como quem está acostumado, não lho percebeu. Percebeu-o e compreendeu-o vivamente o Lucas, que com enfado se atirou para o fundo do carro, depois de uma despedida apressada.

— Adeus, ó, super-homem!

— Adeus, ó trouxa! Medita no que eu te disse, mastigou Júlio de Sá, cuspindo grosso.

De dentro do carro, numa volta, Lucas ainda viu o filósofo, com um pé na soleira, a acender pachorrentamente um cigarro sobre a chaminé do lampião, que a velhinha lhe baixara à altura do nariz.

Fonte:  O Poeteiro

Letícia de Castro (Assassinando as Lendas Brasileiras?)

Mitos e lendas são estórias contadas oralmente através dos tempos. Permutando acontecimentos reais e históricos com acontecimentos alegóricos. As lendas e mitos procuram explicar muitas vezes acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Os mitos sempre possuem um forte artefato simbólico.

Os povos antigos não conseguiam explicar os fenômenos da natureza, através de explicações científicas, principalmente pelo fato da ciência que não era tão avançada quanto é hoje, não havia tecnologia para novos descobrimentos e criavam-se mitos com o propósito de dar sentido os acontecimentos do mundo.

Assassinando as lendas Brasileiras?

Os mitos também serviam como uma forma de passar conhecimentos e alertar  as pessoas sobre perigos ou defeitos e qualidades do ser humano. Deuses, heróis e personagens sobrenaturais se misturam com fatos da realidade para dar sentido a vida e ao mundo. Muitas lendas se perderam com o tempo, a magia dos contos e mitos que embalaram antigas gerações e tradições poéticas em nosso país.

Nosso folclore está morrendo, as fábulas e contos que nos levavam para o mundo imaginário através da literatura ou de estórias contadas no intuito de um universo de aprendizado interior.

A magia dos contos foi se consumindo ao longo dos tempos e em casa os pais já não contam lendas como, por exemplo, a do saci Pererê, Iara, Corpo-seco, Boitatá entre outras inúmeras lendas folclóricas. Em muitas cidades ainda persistem tais contos como um fator cultural e importantíssimo na riqueza de nosso país, hoje devastado por culturas tecnológicas, entre tantas que se reduzem à modernidade de um mundo consumista e não mais com o brilho da leitura ou de estórias contadas pelos pais ou avós.

Essa cultura do folclore Brasileiro faz a mente do ouvinte ou leitor despertar, tirando lições para o cotidiano. Estão assassinando coisas tão belas que fazem o ser humano ser auto-analítico, contemplar seu meio e viajar sobre forçar límpidas da imaginação necessária para se emocionar ou sorrir diante das dificuldades cotidianas.

No conjunto de tudo que podemos chamar de folclore de uma terra; a comida, parlendas, danças, vestuário e muito mais, pergunto: Quantas crianças da atual geração conhecem algum cântico do nosso rico e vasto histórico de lendas brasileiras. O tempo resiste aos antigos que ainda lembram dos contos e ainda fazem-se enfeitiçado por eles. Mas nossas crianças, futuras gerações de um país inundado de costumes e culturas diversas.

A verdadeira cultura morre aos poucos perdidas nas amarras do tempo sobre as grandes cidades. O mito resiste ao tempo, caso contrário não seria um mito. Mas como resgatar essa beleza? Passando oralmente essa ampla cultura como era feita outrora, como é feito em alguns lugares distantes do Brasil.

O folclore é a cultura de um povo, de um país, de uma civilização. Essas fábulas são a essência histórica e o engrandecimento cultural, o desenvolvimento do intelecto dos futuros cidadãos do país. Se o país continuar vivendo na marginalidade cultural talvez aconteça o que nunca ninguém jamais imaginou; O assassinato do mito, o assassinato da interior de toda uma civilização e sua tradição, o assassinato da fantasia e dos contos que um dia fizeram questionar o medo ou espalharam estórias de amor.

As lendas soam de fato um aprendizado fantasioso, mas que além de sua magia faz o leitor navegar por mares questionáveis da imaginação e derrotar toda a deficiência de anticultural ainda eminente em nosso país nos dias atuais, deflagrada pela falta de oportunidade e desinteresse através das asas mórbidas das dificuldades do cotidiano.

Fontes:
Mitos e Lendas
Imagem = Fala! Universidades

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 357

 

Olivaldo Júnior (Felizes para Sempre)


(Conto classificado em 1º Lugar no I Concurso Literário Virtual da ACL – Academia Virtual Contemporânea de Letras – Isolamento Social - Coronavírus)
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Estava tudo pronto para o casamento de Isabel e Cristiano. Ela, moreninha, desposava um moreninho também. O melhor bufê, a melhor música, a melhor igreja. Tudo havia sido exaustivamente pensado, planejado e executado. Nada fugia ao script do chamado conto de fadas moderno, ou seja, o casamento. Sabe o “Fábrica de Casamentos“? Pois a Isabel não perdia nenhum. Era fã desse reality. Havia decorado as falas, o choro, a voz de cada noiva.

O caso é que próximo à data do tão esperado dia, Isabel e Cristiano tiveram uma ingrata surpresa. Um novo tipo de vírus vinha fazendo vítimas desde a China e, com espantosa velocidade, chegando a todas as partes do mundo. Até nisso os vírus de hoje são contemporâneos e se comunicam com uma rapidez impressionante. Enfim, como forma de conter o temido Covid-19, decretou-se como medida protetiva o isolamento social no País.

− E agora?! A gente tem que se casar de qualquer jeito!, falou Isabel apertando os braços de Cristiano ante William Bonner e Renata Vasconcellos, do Jornal Nacional.

− Não sei, meu amor, mas vamos dar um jeito, respondeu Cristiano tentando acalmar os ânimos de sua noiva, a quem por exatos nove anos vinha “enrolando”, isto é, cozinhando em banho-maria, dizendo que, quando as coisas melhorassem, iriam finalmente se casar.

Os pais de Isabel, Seu João e Dona Ana, a um canto da sala, de rabo de olho, assistiam à cena, pensativos. Tinham lá para eles que iria dar zebra.
*****
    
O casório estava marcado para 28 de março, sendo que a quarentena no Estado de São Paulo, onde moravam, havia começado na terça, dia 24. Isabel, coitada, olhava para os presentes já recebidos, para o vestido já engomado e pensava que, fatalmente, não haveria festa e, muito menos, cerimônia. Cristiano, mais consciente, começou a ficar preocupado com a situação, principalmente com os pais de Isabel, já com mais de sessenta anos. Que coisa!

O noticiário mal dava conta de noticiar a quantidade diária de mortos, principalmente na Europa, mais precisamente, na Itália. O bisavô de Isabel era italiano. “Porca miséria!”, diria o danado se ainda estivesse vivo. Esse, o Covid-19 não pegava mais. E a dengue, então? Os casos não diminuíam, só faziam aumentar. Seria o fim dos tempos? Uma vela votiva não parava de queimar no altarzinho recém-armado com muito amor e carinho por Dona Ana.

− Tanto doce, tanta flor, tudo jogado fora!, suspirava sem entender muita coisa a pobre Dona Ana. Seu João, que tanto esperou para entrar com sua filha na igreja, também sentia uma dorzinha no peito quando via que a filha chorava escondida no quarto, sem entender.

− Espere, Ana, eu tenho a solução, falou Seu João para a mulher. Filha! Filha!
*****

− Vai, mãe, a live vai começar!, falou Catarina, uma das primas de Isabel, que, em seu lar, doce lar, esperava mais uma live do Facebook começar, uma das febres da quarentena.

Todos a postos, os familiares de Isabel e Cristiano, cada um em sua casa, com a tela do smartphone ligada, com o 4G meio falho devido a tantos utilizadores confinados em casa, todos que gostavam daquele casal estavam lá, “online”.

− Estamos aqui reunidos para celebrarmos o casamento, o enlace de dois filhos de Deus, Isabel e Cristiano. Estejam vocês, caros amigos e familiares onde estiverem, podem se assentar. Você também, Ana, o casamento vai começar...

Não, não era um padre que estava realizando o sonho de Isabel e Cristiano, não. Era o Seu João, com sua “roupa de ir à missa”, que, de frente para a filha e o futuro genro, tratava de “oficializar” o casório. Tempos de crise, improviso!

No fundo, sabiam que o mundo andava às voltas com uma grande ameaça e se compadeciam por isso. Porém, mesmo aquela união sendo assim, tão simples, nos fundos de casa, com noivo e noiva, um pai e uma mãe zelosos, numa live da net, estavam mesmo felizes. Não tão só por uma live... Felizes para sempre.

(Publicado no Facebook em 01/05/2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Flávio Aquino Chagas (Poemas Diversos)


APOTEOSE

Que céu azul, e belo e esplendoroso,
o céu do meu Brasil forte e querido!
Que sol aquecedor, maravilhoso,
o sol do meu País estremecido!

Que rios, que florestas colossais
enfeitam nossa Terra hospitaleira!
Que pampas, que robustos seringais
a exaltar a gente brasileira!

Que praias fascinantes, tentadoras
existem neste solo varonil!
São praias das morenas e das louras,
das ruivas, das mulatas do Brasil!

Que lindos panoramas suburbanos!
Que belas capitais dos nossos dias!
E os lagos e cascatas, e o oceano,
e as noites de luar, de poesias!...

Que belo é o meu País, de língua forte,
de gente culta, alegre, valorosa!
Hei de querer-te, sempre, até à morte,
Ó Pátria minha, livre e grandiosa!
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ARACAJÚ

Bom-dia, Aracajú, terra querida
dos sonhos meus, constantes e felizes!
Bom-dia, meu rincão de toda a vida,
pois te venero em todos os matizes!

Ausente, há cinco lustros, não deixei
de te querer, querida, um só momento!
E só a ti, ó Musa, que beijei,
eu sempre amei, com todo o encantamento!

Agora, que te abraço, com saudade,
quero dizer-te, calmo e bem baixinho:
"Não dei meu coração a outra cidade,

nem dei o meu amor a outro alguém;
foi sempre teu, só teu, o meu carinho,
pois tu bem sabes que te quero bem!"
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BODAS DE PRATA

Cinco lustros completamos,
nesta data, de carinho!
Abençoa, Santo Antônio,
nossa casa, nosso ninho!

Neste dia, festejamos
nosso lindo matrimônio.
Não sabemos viver juntos,
sem o nosso Santo Antônio!...

Santo Antônio, nosso Amigo,
escuta o que te pedimos:
Faze nossa a Terra inteira,
pelo amor que construímos!

Finalmente, Santo Antônio,
nosso caro Padroeiro
santifica o nosso lar
e os lares do Mundo inteiro!
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BRASIL

Bendita Pátria, que acolheu Vieira,
de Portugal, estrela esplendorosa;
querida Terra, linda e hospitaleira,
que deu à luz o ilustre Ruy Barbosa:

"Eu te venero, sim, do Norte ao Sul,
Rincão querido, que estudou Camões!
E mais te quero, com teu céu azul
para Euclides da Cunha e o seu "Os Sertões"!

Tu leste, sempre, o perenal Camilo,
que os lusitanos imortalizaram.
Mas tens, à frente, um Castro Alves, filho
do Chão que, outrora, os lusos dominaram!

És, de todas, a Pátria que mais quero,
Brasil amado, céu de santa lida!
E filho teu eu sou e te venero,
eternamente, sim, por toda a vida!"
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QUADRAS

Quem vive trabalhando alcança Deus,
e não sente vontade de pecar.
For que te não ocupas, filho meu,
se a vida só tem graça no lutar!
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O sol nasce pra todos, nós sabemos,
mas todos os que querem trabalhar.
Os homens preguiçosos, nós só vemos
à toa, mundo afora, a reclamar.
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Seguir as leis de Deus é um dever,
que nasce com o autêntico cristão.
Quebrar seus mandamentos é não ter
direito de alcançar a salvação.
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As cartas são espelhos d'alma pura
e eu sempre te escrevi, sentidamente!
Por que me não escreves, "criatura",
se sempre me amaste, loucamente?
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RECIFE

Apoteótica cidade, alvissareira,
Recife deslumbrante, bela, encantadora!
Se já te chamam de "Veneza Brasileira",
aceita o título! Tu és merecedora!

Casa Amarela, Caxangá e o Longo Pina
são bairros lindos, que enobrecem teu conceito.
Boa Viagem, reluzente, é a menina
que nos seduz e nos conquista, por direito!...

Jamais olvidarei os coqueirais de Olinda,
que te projetam, ó Recife, mundo afora!
E as pontes que se alongam, a distância infinda,
eu nunca esquecerei, "Morena Sedutora"!

Tens tudo o que se faz mister e necessário:
tens alma, coração, calor, dignidade!
Belezas mil tu tens, em todo o teu rosário
de festas, de canções, de lendas, de saudade...

Se eu fosse filho teu, em versos te diria:
Ufana-te, Recife, robusta e viril!
Não vês que o Mundo é teu e não te contraria?
És linda, és um amor, és noiva do Brasil!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.