domingo, 2 de setembro de 2012

Afonso Duarte (1884 – 1958)

1884 -Nasce Afonso Duarte, a 1 de Janeiro, na aldeia da Ereira, freguesia de Verride, concelho de Montemor-o-Velho. Filho de Henrique Fernandes Duarte e D. Maria Pereira Cantante.
1896- Faz exame de instrução primária na escola de Alfarelos.
1898 - Entra para o Colégio Mondego, de Coimbra, onde permanece como aluno interno durante 3 anos.
1902- Assenta praça em Lanceiros de EI-Rei e matricula-se no Liceu de José Falcão.
1904 - Sabe-se que tinha já concluído nesta altura o seu primeiro livro de versos, Composições verdes, que não chegou a ser publicado.
1908 - Matricula-se na Universidade de Coimbra (prepararatórios para a Escola do Exército)
1909- Desiste da carreira das armas, passando a frequentar o curso de Ciências Físico-Naturais da Faculdade de Filosofia, hoje extinta.
1912 -Publica o Cancíoneíro das Pedras na Livraria Ferreira, de Lisboa, livro que reúne as poesias escritas de 1906 a 1910. Funda, com Nuno Simões, a revista Rajada.
1913- Bacharela-se em Ciências Físico- Naturais.
1914 - Publica a Tragédia do Sol-posto, Franca Amado, editor, Coimbra. É colocado como professor provisório no Liceu de Vila Real de Trás-os-Montes.
1915- Abandona Vila Real para frequentar a Escola Normal Superior de Lisboa.
1916 - Publica a Rapsódia do Sol-nado seguida do Ritual do Amor, Renascença Portuguesa, Porto.
1917 - É nomeado professor do Liceu de Gil Vicente, de Lisboa. Mobilizado pouco depois, dá entrada na Escola de Oficiais Milicianos de Artilharia de Costa.
1918- É licenciado a seguir ao Armistício, sobrevindo-lhe então a grave doença que esteve quase a inutilizá-lo (paraplegia) e de que nunca mais se curou completamente.
1919 - Volta a exercer funções públicas como chefe de secretaria do Liceu Infanta D. Maria e professor da Escola Normal Primária de Coimbra.
1924 - Lança com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca a revista Triptico.
1925 -Abandona o cargo de chefe de secretaria do Liceu de José Falcão, para onde transitara do Liceu Infanta D. Maria, entregando-se a partir de então, na Escola Normal, a uma experiência pedagógica absorvente, que alcançou verdadeira repercussão europeia. Publica Barros de Coimbra, edições Lumen, Coimbra.
1929 - Dá a lume Os sete poemas líricos, edições Presença, Coimbra, compilação da sua obra poética, inédita e publicada.
1932 - É colocado na situação de adido fora do serviço e compelido à aposentação.
1933 - Publica Desenhos animistas de uma criança de 7 anos, Imprensa da Universidade, Coimbra.
1936 - Publica o ciclo do Natal na literatura oral portuguesa, Biblioteca Etnográfica e Histórica Portuguesa, Barcelos.
1947 - Publica Ossadas, edição da Seara Nova, Lisboa. Poesias escritas, provavelmente, entre 1922 e 1946.
1948 - Publica Um esquema do cancioneiro popular português, também edição da Seara Nova.
1949 - Publica o Post-scriptum de um combatente, Colecção Galo, Coimbra. Escrito em Janeiro e Fevereiro de 1948, excepto as poesias «Post-scriptum de um combatente» (1917), «Coimbra» (1918), «4 de Junho de 1944», «Terra Natal (1947), «Eugénio de Castro» (1947) e a «Saudação a Pascoaes» (1949).
1950-Publica Sibila, edição do autor, Coimbra. Tanto as «trinta e cinco redondilhas fingidas» como o «Soneto verdadeiro» datam de Abril de 1950.
1952 - Publica Canto de Babilónia e Canto de morte e amor ambos edições do autor, o primeiro escrito em 1951, o segundo de Janeiro a Março de 1952.
1956 - Sai a 1.a edição da sua Obra Poética, Iniciativas Editoríais, Lisboa. É uma recolha de todos os livros de poesia já publicados e inclui o livro inédito 0 Anjo da Morte e outros poemas, coligido e completado de 1952 a 1956, embora no plano geral da obra o autor o insira antes do tríptico de redondilhas formado por Sibila, Canto de Babílónia e Canto de Morte e Amor. Acompanha a Obra Poética um apêndice biobibliográfico organizado por Carlos de Oliveira e João José Cochofel.
1956 - A 24 de Junho é-lhe prestada pública homenagem na Ereira, sua terra natal, e descerrada no Castelo de Montemor-o-Velho uma lápide com estes versos seus: Onde nasceu o Fernão Mendes Pinto? Jorge de Montemor onde nasceu? A mesma terra, o mesmo céu que eu pinto, Castelo velho, o que foi deles é meu.
1957 - 2.a edição da Obra Poética, Guimarães Editores, Lisboa, aumentada de novas poesias.
1958 - Morre em Coimbra, a 5 de Março. É sepultado no cemitério da Ereira.
1960 - Sai o volume póstumo Lápides e outros poemas (Iniciativas Editoriais, Lisboa), organizado por Carlos de Oliveira e João José Cochofel.
1974 - Publica-se esta 3.a edição, definitiva, da Obra Poética. A inclusão (não cronológica) de Lápides e outros poemas entre os livros o anjo da morte e Sibila faz-se por determinação de Afonso Duarte, que insistentemente indicou os cicios das redondilhas como fecho de toda a sua obra.
Fonte:

Monteiro Lobato (Uma História de Mil Anos)

–Hu... hu...
É como nos ínvios da mata soluça a juriti.
Doishus – um que sobe, outro que desce.

O destino dou!. .. Veludo verde-negro transmutado em som – voz das tristezas sombrias. Os aborígenes, maravilhosos denominadores das coisas, possuíam o senso impressionista da onomatopéia. Urutau, uru, urutu, inambu – que sons definirão melhor essas criaturinhas solitárias, amigas da penumbra e dos recessos?
A juriti, pombinha eternamente magoada, é todaus. Não canta, geme emu – geme um gemido aveludado, lilás, sonorização dolente da saudade.
O caçador passarinheiro sabe como ela morre sem luta ao mínimo ferimento. Morre em u...
Já o sanhaço é todoas. Ferido, debate-se, desfere bicadas, pia lancinante.

A juriti apaga-se como chama de algodão. Frágil torrão de vida, extingue-se como se extingue a vida do torrão de açúcar ao simples contato com a água. Umu que se funde. Como vivem e morrem juritis, assim viveu e morreu Vidinha, a linda criança afinada emu. E como não seria assim, se era Vidinha uma juriti humana – meiguice feita menina-e-moça, begônia sensível dos grotões?
Que amiga dos contrastes é a natureza!

Ali naquele barraco crescem no árido as samambaias. Rijas, ásperas, corajosas, resistem aos ventos, aos enxurros, ao cargueiro que as esbarra, ao viandante distraído que as chicoteia. Batidas, reerguem-se. Cortadas, rebrotam. Esmagadas, reviçam. Cínicas!
Mais adiante, na grota fria onde tudo é sombra e cerração, ergue-se a espaços, em meio dos caetés valentes e dos fetos rendados, a solitária begônia.
Tímida e frágil, o menor contato a magoa. Toda ela – caule, folhas, flores – é a mesma carne tenra de criança.
Sempre os contrastes.
Os eleitos de sensibilidade, os mártires da dor – e os fortes. A juriti e o sanhaço. A begônia e a samambaia.
Vidinha, a inocente criança, era juriti e begônia.
O Destino, como os sábios, também faz suas experiências. Permite vidas a título de experiência, na tentativa de aclimar na terra seres que não são da terra.
Vingará Vidinha, solta no mundo em meio da alcatéia humana?
Janeiro. Dia de mormaço a envolver o mundo sob a curva do céu imensamente azul.
A casa onde mora Vidinha é a única das cercanias – garça pousada no oceano verde-sujo das samambaias e sapezeiros.

Que terra! Ondula em mamelões verdolengos até encontrar o céu, longe, no horizonte. Hispidez, aridez – terra outrora bendita, que o homem, senhor do fogo, transfez em deserto maldito.
Os olhos pervagam: cá e lá, ’té aos confins, sempre o chamalote verde-oliva da samambaia áspera – esse musgo da esterilidade.
Entristece, aquilo. Cansa a vista o sem-fim da morraria nua de árvores – e o consolo é pousar os olhos na pombinha branca da casinhola.

Como a cal das paredes cintila ao sol! E como nos enleva a alma sua pequenina moldura de árvores domésticas! Aquele pá de espirradeira todo florido, o cercado de taquara; a horta, o canteirinho de flores, o poleiro das aves nos fundos sob a fronde da guabirobeira...

Vidinha é a manhã da casa. Vive entre duas estações: a mãe – um outono, e o pai – inverno em começos. Ali nasceu e cresceu. Ali morrerá. Inocente e ingênua, do mundo só conhece o centímetro quadrado de mundo que é o pequeno sítio paterno. Imagina as coisas – não as sabe. O homem: seu pai. Quantos homens haja, todos serão assim: bons e pais.
A mulher: sua mãe – um tudo.

Bichos?
O gato, o cão, o galo índio que canta pela alvorada, as galinhas suras. Sabe por ouvir dizer de outros muitos: da onça, – gatão feroz; da anta – bicho enorme ; da capivara – porco dos rios; da sucuri – cobra "desta" grossura! Veados e pacas já viu diversos mortos nas caçadas.

Longe do ermo onde está o sítio, é o mundo. Há nele cidades – casas e mais casas, pequenas e grandes em linha, com estradas pelo meio a que chamam de rua. Nunca as viu, sonha-as. Sabe que nelas moram os ricos, seres de outra raça, poderosos que compram fazendas, plantam cafezais e mandam em tudo.
As ideias que povoam sua cabecinha bebeu-as ali na conversa caseira dos pais.
Um Deus no céu, bom, imenso, tudo vê e ouve, até o que a boca não diz. Ao lado dele, Nossa senhora, tão boa, resplandecente, rodeada de anjos...
Os anjos! Crianças de asas e longas túnicas esvoaçantes. No oratório da casa há o retrato de um.
Seus prazeres: a vida da casa, os incidentes do terreiro.
– Venha ver, mamãe, depressa!
– Alguma bobagem...
– ... o pintinho sura trepado nas costas do capão peva, tenteando-se nas asinhas!

Venha ver que galanteza. Ei... ei, caiu!
Ou:
Brinquinho quer por força pegar a cauda. Está que parece um pião, corropiando.

É bonita? Vidinha o ignora. Não se conhece, não faz de si nenhuma idéia. Se nem espelho possui... É, no entanto, linda, dessa lindeza das telas raras que jazem fora de moldoura nos desvãos ignorados.
Vestida à maneira dos pobrezinhos, vale o que não está vestido: o corado das faces, a expressão de inocência, o olhar de criança, as mãos irrequietas. Tem a beleza das begônias silvestres. Dêem-lhe um vaso de porcelana e cintilará.
Cinderela, a eterna história...

O pai vive na luta silenciosa contra a aridez do solo, disputando às formigas, às geadas, à esterilidade, uma colheitinhas curtas. Não importa. Vive contente. A mãe moureja o dia inteiro nos trabalhos da casa. Cose, arruma, remenda, varre.

E Vidinha, entre eles, orquídea que floriu em trnco rude, brinca e sorri. Brinca e sorri com seus amigos: o cão, o gato, os pintos, as rolas que descem ao terreiro. Em noites escuras vêm visitá-la, cirandando em torno à casa, seus amiguinhos luminosos – os vagalumes.
Os anos passam. Os botões se fazem flor.
Um dia Vidinha entrou em sentir vagas perturbações de alma. Fugia aos brinquedos e cismava. A mãe notou a mudança.
– Em que está pensando, menina?
– Não sei. Em nada... e suspirou.
A mãe observou-a ainda uns tempos e disse ao marido:
– É lado de casar Vidinha. Está moça. Já não sabe o que quer.

Mas, casá-la, como? Com quem? Não havia ali vizinho naquele deserto, e a criança corria o risco de estiolar-se como flor estéril sem que olhos de homem casadouro pusessem reparo em seus encantos.
Não será assim, todavia. O destino levará por diante mais uma cruel experiência.
O lobo fareja de longe a menina da capinha vermelha.
A begônia daquele deserto, filha das selvas, será caça. Será caçada por um caçador...
Está na idade do sacrifício.
O caçador não tardará.
Vem perto, piando em inambu, com a espingarda nas mãos. Trocará de bom grado, vão ver, os inambus perseguidos pela inocente juriti incauta.
– Ó de casa!
–??
– Venho de longe. Perdi-me nestes carrascais, coisa de dois dias, e não posso comigo de canseira e fome. Venho pedir pousada.
Os ermitões do samambaial acolhem de braços abertos o transviado gentil.
Bonito moço da cidade. Bem-falante, maneiroso – uma sedução!
Como são belos os gaviões caçadores de inocências...
Deixou-se ficar a semana inteira. Contava coisas maravilhosas. O pai esquecia a roça para ouvi-lo, e a mãe desleixava a casa. Que sereia!
No pomar, sob o dossel das laranjeiras abotoadas:
– Nunca pensou em sair daqui, Vidinha?
– Sair? Aqui tenho casa, pai, mãe – tudo...
– Acha muito isso? Oh, lá fora é que é lindo! Que maravilha é lá fora! O mundo! As cidades! Aqui é o deserto, prisão horrível, aridez, melancolia...
E ia cantando contos das Mil e Uma Noites sobre a vida das cidades. Dizia do luxo, da magnificência, das festas, das pedrarias que cintilam, das sedas que acariciam o corpo, dos teatros, da música inebriante.
– Mas isso é um sonho...
O príncipe confirmava.
– A vida lá fora é um sonho.
E desfiava rosários inteiros de sonhos.
Vidinha, num deslumbramento, murmurava:
– É lindo! Mas tudo só para ricos.
– Para os ricos e para a beleza. Beleza vale mais que riqueza – e Vidinha é bela!
–Eu?
O espanto da criança...
– Bela, sim – e riquíssima, se o quiser. Vidinha é diamante a lapidar. É Cinderela, hoje no borralho, amanhã, princesa. Seus olhos são estrelas de veludo.
– Que ideia...
– Sua boca, ninho de colibri feito para o beijo...
– !...

A iniciação começa. E tudo na alma de Vidinha se aclara. As idéias vagas se definem. Os hieróglifos do coração se decifram.
Compreende a vida enfim. Sua inquietação era amor, em casulo ainda, a agitar-se nas trevas. Amor sem objeto, perfume sem destino.
O amor é febre da idade, e Vidinha chegara à idade da febre sem o saber. Sentia-lhe o queimar no coração, mas ignorava. E sonhava.
Tinha agora a chave de tudo. O príncipe encantado viera afinal. Estava ali ele, o grande mago de palavras maravilhosas, senhor do Abre-te Sésamo da Felicidade.
E o casulo do amor rompeu-se – e a crisálida do amor, ébria de luz, fez-se ardente borboleta de amor...
O gavião da cidade, fino de faro, havia descido no momento oportuno. Dizia-se doente e ia ficando. Sua doença chamava-se – desejo. Desejo de caçador. Ânsia de caçador por mais uma perdiz.
E a perdiz veio-lhe para as garras, fascinada pela estonteante miragem do amor.
O primeiro beijo...
A florada maravilhosa dos beijos...
O último beijo, à noite...
Pela manhã do décimo dia:
– Que é do caçador?
Fugira...
Já não recendem os manacás. São negras as flores do jardim. Não brilham as estrelas do céu. Não cantam os passarinhos. Não luzem os vagalumes. O sol não alumia. A noite só traz pesadelos.
Uma coisa só não mudou: ohu, hu magoado da juriti, lá no recesso das grotas.
Os dias de Vidinha são agora vagueios agitados pelo campo. Detém-se às vezes ante uma flor, de olhos parados, como recrescidos no rosto. E monologa mentalmente:
– Vermelha? Mentira. Cheirosa? Mentira. Tudo mentira, mentira, mentira...
Mas Vidinha é juriti, corpo e alma afinados emu. Não desespera, não luta, não explode. Chora por dentro e definha. Begônia silvestre que o passante brutal chicoteou, dobra no hastil quebrado, pende para a terra e murcha. Chama de algodão... Torrão de açúcar...
Estava concluída a experiência do Destino. Mais uma vez provava-se que não vive na terra o que não é da terra.
Uma cruz...
E dali por diante, se alguém falava em Vidinha, o velho pai murmurava:
– Era a nossa luz de alegria. Apagou-se...
E a mãe, lacrimejante:
– Não me sai da memória a última palavra dela: "Agora um beijo, mamãe, um beijo seu..."
Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 656)


Uma Trova de Ademar 

Nessa ausência tão sofrida
que a separação impôs;
vejo o grande mal que a vida
fez na vida de nós dois.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Potiguar 


Morre a flor na flor da idade,
padece a planta de dor;
a ausência deixa saudade,
até na morte da flor!
–Prof. Garcia/RN–

Uma Trova Premiada 


2000 > Pouso Alegre/MG
Tema > PASSADO > M/E


A saudade, na insistência
em devolver-me o passado,
faz a dor de tua ausência
tomar forma... do meu lado!
–Ivone Taglialegna Prado/MG–

...E Suas Trovas Ficaram 


Aérea, fluída, de gase,
corpo volátil de essência...
sua presença era quase
como se fosse uma ausência...
–João Rangel Coelho/RJ–

U m a   P o e s i a 


Com certeza, lá no céu
a vida é somente amor;
necessidades, não há;
dinheiro não tem valor,
e a felicidade eterna
supõe ausência de dor.
–José Lucas de Barros/RN–

Soneto do Dia 

ROGATIVA.
–Thalma Tavares/SP–


Senhor, que olhas os antros, as vielas,
os homens sem trabalho, o lar sem pão,
que a minha fé não morra como as velas
que ao mais leve soprar se apagarão.

Ante a ganância atroz, cujas mazelas
nos põem em sobressalto o coração,
eu venho Te pedir pelas favelas
que ora clamam por paz e proteção.

O pobre, da miséria anda cansado
e pensa, em sofrimentos mergulhado,
que Tu, ó meu Senhor, lhe deste as costas.

E é tanta, neste mundo, a violência
que não querendo crer na Tua ausência
eu ando pela vida de mãos postas.

Francisco Miguel de Moura (A Mulher que não Ri)

Francisco Miguel de Moura
Encontrei-a na rua.

É bonita mas não chega a ser nenhuma miss. Nem ex-miss. Pelos olhos, pelo rosto, pelos cabelos, acredito que não freqüenta salões de beleza.

Ia andando de pé, pela cidade, e encontrei-a. É que ainda sinto prazer em andar e andar, sem propósito, sem preocupação, pelas ruas da cidade onde habito, apesar de todos os pesares. E nas minhas andanças, poucas vezes em busca de resolver meus quefazeres e tantas outras nas minhas caminhadas matinais e vespertinas, tenho observado hábitos e comportamentos. As diferenças me aprazem.

Como as criaturas são estranhas!

Há pessoas que, mesmo em se lhe dando bom dia, ou boa tarde, conforme a hora não se abrem, não dizem nada em resposta, às vezes nem olham, ou viram a cara. Raras são aquelas que, sem serem conhecidas, respondem à saudação dos passantes ou lhes dirigem a palavra junto com um sorriso prazenteiro.

Verdade que existe o medo dos estranhos, da perversidade dos ladrões, dos seqüestradores, dos assassinos, dos que só buscam fazer o mal. Mas também é certo que pessoas outras não se parecem nada com gente daquele naipe, no físico, nas feições. São comuns, nem precisam ter letreiro na testa. Ainda mais se entraram já na casa dos sessenta, com os cabelos pintados do branco permanente da velhice.

E foi por causa da idade que me vem chegando, talvez, que observei aquela moça especial, desde muito tempo na minha presença - quando a vejo e quando a deixo de vê-la, a que tomo agora por minha “persona”. Não é caminhante como eu e sim empregada de uma loja cujo nome não vai dito aqui porque seria uma propaganda gratuita, e mais, por resguardo da identidade daquela de quem falo ao meu leitor.

Ela, minha personagem, nunca ri. Fala pouco, só o necessário, embora seja expedita no atendimento dos que procuram comprar alguma mercadoria ou pedir informações, esclarecimentos. Mas não ri, não ri nunca. Está sempre ocupada, trabalhando. Seria por causa disto? Já a encontrei na rua outras vezes, além da primeira de que me lembro. É o mesmo comportar-se: o rosto não contraído, mas não ri; e tem poucas palavras para com as pessoas que a cercam, por exemplo uma companheira de trabalho com quem chega na loja. Daquela vez dei-lhe o meu bom dia e não ouvi resposta, ou então era muito baixa sua voz. Conheço-a de três anos a mais. Sabe, leitor, o que ela me falou até agora na loja? Apenas isto:

- Já foi atendido, senhor?

Outras colegas suas já me atenderam e soltaram seus meio-sorrisos, ou falaram alguma coisa mais que o referente ao simples ato comercial.

Minto. No ano passado, quando publiquei minha crônica costumeira de dezembro, ela me dirigiu duas palavras, em meio a seu serviço de vendedora. A provocação partiu de mim.

- Já leu meu conto de Natal deste ano? Eu sou escritor – apresentei-me.

- Como é seu nome? – ela perguntou.

Eu balbuciei meu nome, depois criei coragem e o disse completo.

- Meu nome literário!

E ainda acrescentei onde havia saído - o nome do jornal.

- Ah, sim! Li e gostei. É por ali mesmo.

Agradeci por ter a simpatia de tão agradável leitora e fiquei esperando seu sorriso.

Qual nada!

Por isto fico me perguntando como acontecem tais coisas, como as pessoas são assim, cada uma diferente. E todas iguais no comer, no dormir, no trabalhar, na pratica da vida diária.

Por que, meu Deus?

No ano seguinte, nova crônica de Natal no mesmo jornal, e fico na escuta dos leitores que se manifestam. Uns o fazem agradando, outros não. Pior os que esquecem. Ou não leram.

Continuei a passar por onde minha “persona” atende profissionalmente. E continuo freguês do estabelecimento. Esperando sua reação, lógico. Mas até hoje não me falou nada.

Esse é um dos enigmas que tento desvendar, talvez o mais difícil. Não me parece pessoa infeliz Nem doente. Ao contrario tem uma aparência agradável. Também não pode ser considerada feia de feição, muito menos de corpo. Não faz muito que a vi fora do balcão, mostrava toda a sua estatura, suas formas dentro de uma veste comum, de trabalho. Mulher atraente. Mas como milhares de outras por aí. Convenci-me de que não eram suas formas que me atraíam, nem seu olhar, nem seus cabelos. Era o enigma. Que faz de sua vida a moça que não tem o prazer do riso? Todos os seres humanos se enfeitam com o sorriso, a mulher então!...

Já pensava em quebrar mais um pouco de minha timidez, na próxima passagem por ali, coisa que não seria difícil porque minha andança em redor se tornara mais constante. Era só perguntar-lhe o nome. Depois emendava com outras perguntinhas à-toas. O nome é coisa importante para todo o mundo. É a partir dele que nascem outras palavras. E das palavras, uma história, o comentário de um fato, uma confissão mesmo diminuta. De seqüência em seqüência estaria lhe declarando amor nem que fosse para quebrar a cara. Quebrar a cara seria conhecê-la mais, até então o meu obsessivo propósito.

Qual não foi a minha surpresa quando, no dia seguinte, ela não voltou. Nem no outro, nem no outro. Uma semana inteira. E nenhuma de suas colegas quis dar-me seu endereço.

Pode ser que eu tenha sido o seu constrangimento e onde esteja agora sorria como qualquer criatura.

Fonte:
www.quemtemsedevenha.com.br/20contos/mulher_que_nao_ri.htm (site desativado)

Alberto Caeiro (Poemas Avulsos)

Alberto Caeiro da Silva foi uma personagem ficcional (heterónimo) criada por Fernando Pessoa, sendo considerado o Mestre Ingénuo dos restantes heterónimos (Álvaro de Campos e Ricardo Reis) e do seu próprio autor, apesar da apenas ter tido instrução primária.

“A ESPANTOSA…”
A espantosa realidade das coisas
 É a minha descoberta de todos os dias.
 Cada coisa é o que é,
 E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
 E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
 Hei de escrever muitos mais, naturalmente.
 Cada poema meu diz isto,
 E todos os meus poemas são diferentes,
 Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
 Não me ponho a pensar se ela sente.
 Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
 Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
 Gosto dela porque ela não sente nada.
 Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
 E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
 Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
 Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
 Porque o penso sem pensamentos
 Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
 E eu admirei-me, porque não julgava
 Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
 Eu nem sequer sou poeta: vejo.
 Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
 O valor está ali, nos meus versos.
 Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

“BOLAS DE SABÃO”

As bolas de sabão que esta criança
 Se entretém a largar de uma palhinha
 São translucidamente uma filosofia toda.
 Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
 Amigas dos olhos como as coisas,
 São aquilo que são
 Com uma precisão redondinha e aérea,
 E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
 Pretende aue elas são mais do que parecem ser.

Algumas mal se vêem no ar lúcido.
 São como a brisa que passa e mal toca nas flores
 E que só sabemos que passa
 Porque qualquer coisa se aligeira em nós
 E aceita tudo mais nitidamente.

“MENINO JESUS”

Num meio-dia de fim de Primavera
 Tive um sonho como uma fotografia.
 Vi Jesus Cristo descer à terra.
 Veio pela encosta de um monte
 Tornado outra vez menino,
 A correr e a rolar-se pela erva
 E a arrancar flores para as deitar fora
 E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
 Era nosso demais para fingir
 De segunda pessoa da Trindade.
 No céu tudo era falso, tudo em desacordo
 Com flores e árvores e pedras.
 No céu tinha que estar sempre sério
 E de vez em quando de se tornar outra vez homem
 E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
 Com uma coroa toda à roda de espinhos
 E os pés espetados por um prego com cabeça,
 E até com um trapo à roda da cintura
 Como os pretos nas ilustrações.
 Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
 Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas -
 Um velho chamado José, que era carpinteiro,
 E que não era pai dele;
 E o outro pai era uma pomba estúpida,
 A única pomba feia do mundo
 Porque nem era do mundo nem era pomba.
 E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
 Não era mulher: era uma mala
 Em que ele tinha vindo do céu.
 E queriam que ele, que só nascera da mãe,
 E que nunca tivera pai para amar com respeito,
 Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
 E o Espírito Santo andava a voar,
 Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
 Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
 Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
 Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
 E deixou-o pregado na cruz que há no céu
 E serve de modelo às outras.
 Depois fugiu para o Sol
 E desceu no primeiro raio que apanhou.
 Hoje vive na minha aldeia comigo.
 É uma criança bonita de riso e natural.
 Limpa o nariz ao braço direito,
 Chapinha nas poças de água,
 Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
 Atira pedras aos burros,
 Rouba a fruta dos pomares
 E foge a chorar e a gritar dos cães.
 E, porque sabe que elas não gostam
 E que toda a gente acha graça,
 Corre atrás das raparigas
 Que vão em ranchos pelas estradas
 Com as bilhas às cabeças
 E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
 Ensinou-me a olhar para as coisas.
 Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
 Mostra-me como as pedras são engraçadas
 Quando a gente as tem na mão
 E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
 Diz que ele é um velho estúpido e doente,
 Sempre a escarrar para o chão
 E a dizer indecências.
 A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
 E o Espírito Santo coça-se com o bico
 E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
 Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada
 Das coisas que criou -
 “Se é que ele as criou, do que duvido.” -
 “Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
 Mas os seres não cantam nada.
 Se cantassem seriam cantores.
 Os seres existem e mais nada,
 E por isso se chamam seres.”
 E depois, cansado de dizer mal de Deus,
 O Menino Jesus adormece nos meus braços
 E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
 Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
 Ele é o humano que é natural.
 Ele é o divino que sorri e que brinca.
 E por isso é que eu sei com toda a certeza
 Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
 É esta minha quotidiana vida de poeta,
 E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
 E que o meu mínimo olhar
 Me enche de sensação,
 E o mais pequeno som, seja do que for,
 Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
 Dá-me uma mão a mim
 E outra a tudo que existe
 E assim vamos os três pelo caminho que houver,
 Saltando e cantando e rindo
 E gozando o nosso segredo comum
 Que é saber por toda a parte
 Que não há mistério no mundo
 E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
 A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
 O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
 São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
 Na companhia de tudo
 Que nunca pensamos um no outro,
 Mas vivemos juntos e dois
 Com um acordo íntimo
 Como a mão direita e a esquerda.

QUANDO VIER A PRIMAVERA

Quando vier a Primavera,
 Se eu já estiver morto,
 As flores florirão da mesma maneira
 E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
 A realidade não precisa de mim.
 Sinto uma alegria enorme
 Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
 Se soubesse que amanhã morria
 E a Primavera era depois de amanhã,
 Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
 Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
 Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
 E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
 Por isso, se morrer agora, morro contente,
 Porque tudo é real e tudo está certo.
 Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
 Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
 Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. 
 O que for, quando for, é que será o que é.

“ASSIM COMO FALHAM AS PALAVRAS”
Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento,
 Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer
 realidade.
 Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada,
 Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
 Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
 O resto é uma espécie de sono que temos,
 Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.

“GUARDADOR DE REBANHOS”

Eu nunca guardei rebanhos,
 Mas é como se os guardasse.
 Minha alma é como um pastor,
 Conhece o vento e o sol
 E anda pela mão das Estações
 A seguir e a olhar.
 Toda a paz da Natureza sem gente
 Vem sentar-se a meu lado.
 Mas eu fico triste como um pôr de sol
 Para a nossa imaginação,
 Quando esfria no fundo da planície
 E se sente a noite entrada
 Como uma borboleta pela janela.
 Mas a minha tristeza é sossego
 Porque é natural e justa
 E é o que deve estar na alma
 Quando já pensa que existe
 E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
 Como um ruído de chocalhos
 Para além da curva da estrada,
 Os meus pensamentos são contentes.
 Só tenho pena de saber que eles são contentes,
 Porque, se o não soubesse,
 Em vez de serem contentes e tristes,
 Seriam alegres e contentes.
 Pensar incomoda como andar à chuva
 Quando o vento cresce e parece que chove mais.
 Não tenho ambições nem desejos.
 Ser poeta não é uma ambição minha,
 É a minha maneira de estar sozinho.
 E se desejo às vezes
 Por imaginar, ser cordeirinho
 (Ou ser o rebanho todo
 Para andar espalhado por toda a encosta
 A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
 É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
 Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
 E corre um silêncio pela erva fora.
 Quando me sento a escrever versos
 Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
 Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
 Sinto um cajado nas mãos
 E vejo um recorte de mim
 No cimo dum outeiro,
 Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
 Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
 E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se
 diz E quer fingir que compreende.
 Saúdo todos os que me lerem,
 Tirando-lhes o chapéu largo
 Quando me vêem à minha porta
 Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
 Saúdo-os e desejo-lhes sol,
 E chuva, quando a chuva é precisa,
 E que as suas casas tenham
 Ao pé duma janela aberta
 Uma cadeira predileta
 Onde se sentem, lendo os meus versos.
 E ao lerem os meus versos pensem
 Que sou qualquer coisa natural -
 Por exemplo, a árvore antiga
 A sombra da qual quando crianças
 Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
 E limpavam o suor da testa quente
 Com a manga do bibe riscado.

“É NOITE”
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
 Brilha a luz duma janela.
 Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
 É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
 Atrai-me só por essa luz vista de longe.
 Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
 Mas agora só me importa a luz da janela dele.
 Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
 A luz é a realidade imediata para mim.
 Eu nunca passo para além da realidade imediata.
 Para além da realidade imediata não há nada.
 Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
 Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
 O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
 Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
 A luz apagou-se.
 Que me importa que o homem continue a existir?

Fonte:
Alberto Caeiro in Poemas Inconjuntos, Vol. I , Obras Completas, de Fernando Pessoa.