quarta-feira, 29 de julho de 2020

Monteiro Lobato (Bucólica)


Tanta chuva ontem!... O cedrão do posto fendido pelo raio — e hoje, que manhã!

A natureza orvalhada tem a frescura de uma criancinha ao deixar o banho. Inda há rolos de cerração vadia nas grotas. O sol já nado e ela com tanta preguiça de recolher os véus de neblina... A vegetação toda a pingar orvalho, bisbilhante de gotas que caem e tremelicam, sorri como em êxtase. Há em cada vergôntea* folhinhas de esmeralda tenra brotadas durante a noite. A mão de quem passa não resiste; colhe-as de alcance, porque é um gosto mordiscar-lhes a polpa macia.

Meu Deus! O que vai de aranhóis pela relva — nos galhinhos de joveva, nas flechas de capim, grandes e pequeninos, todos mimosos de desenho, tecidos a fio de seda... Compraz-se a noite em agrumar neles milhões de diamantezinhos que a luz da manhã irisa. Malmequeres por toda a parte — amarelos, brancos. E tanta flor sem nome...

— Flor à toa — diz a gente roceira.

São, coitadinhas, a plebe humílima. A nobreza floral mora nos jardins, esplendendo cores de dança serpentina sob formas luxuriosas de odaliscas. A duquesa Dália, sua majestade a Rosa, o samurai Crisântemo — que fidalguia!

Bem longe estão destas aqui, azuleguinhas, pouco maiores do que uma conta de rosário. Não obstante, vejo nestas mais alma. Leio mil coisas na sua modéstia. Lutaram sem tréguas contra o solo tramado de raízes concorrentes, contra as lagartas, contra os bichos que pastam. Que tenacidade, que prodígio de economia não representam estas iscas de pétalas, e o perfume agreste que as oloriza, e a cor — tentativa de azul — com que se enfeitam, as feiticeirinhas!

São belas, sim — da sua beleza, a beleza selvática das coisas que jamais sofreram a domesticação do homem.

As flores de jardim: escravas de harém... Adubo farto, terra livre, tutores para a haste, cuidados mil — cuidados do homem para com a rês na ceva*... As agrestes morrem livres no hastil materno; as fidalgas, na guilhotina da tesoura.

Fábula do lobo e do cão...

Que ar! A gente das cidades, afeita a sorver um indecoroso gás feito de pó em suspensão num misto de mau azoto e pior oxigênio, ignora o prazer sadio que é sentir os pulmões borbulhantes deste fluido vital em estado de virgindade. O oxigênio fresquinho foi elaborado naquele momento pela vegetação viçosa. Respirá-lo é sorver vida à nascente.

Ali, o rio. Ingazeiros desgalhados pendem sobre ele as franças, cujas pontas lhe arrepiam o espelho das águas. Caem na corrente flores mortas. O movediço esquife conduz-as com mimo até a barulhenta corredeira próxima; lá, irritado, amarfanha-as, faz-as pedaços — e as coitadinhas viram babugem. Margeia o rio a estrada, ora de ocre amarelo, ora roxo-terra; aqui, túnel sob a verdura picada no alto de nesgões de luz; além, escampa. Nos barrancos há tocos de raízes decepadas pelo enxadão, e covas de formigueiros mortos onde as corruílas armam ninho.

Surgem casebres de palha.

Lá na aguada bate roupa uma mulher.

Rumor no mato... Sai dele, de lenha ao ombro, uma cabocla.

— Sinh’Ana, bom dia! Que é de Luís?

— No eito, coitado.

— Sarou bem?

— Ché, que esperança! Melhorzinho. Panarício é uma festa!...

Baitacas em bando, bulhentas, a sumirem-se num capão de angico. Borboletas amarelas nos úmidos. Parece um debulho de flores de ipê. Uma preá que corta o caminho.

— Pega, Vinagre!

Outra casinha, lá longe. É a toca do Urunduva, caboclo maleiteiro. Este diabo tem no sítio a coisa mais bela da zona — a paineira grande. Dirijo-me para lá. Um carreirinho entre roças, a pinguela, um valo a saltar... Ei-la! Que maravilha!

Derreada de flores cor-de-rosa, parece uma só imensa rosa crespa. Beija-flores como ali ninguém jamais viu tantos. Milheiros não digo — mas centenas, uma centena pelo menos lá está zunindo. Chegam de longe todas as manhãs enquanto dura a festa floral da paineira mãe. Voejam rápidos como o pensamento, ora librados no ar, sugando uma corola, ora riscando curvas velocíssimas, em trabalhos de amor.

Que lindo amor — alado, rutilante de pedrarias!...

Respiro um ar cheiroso, adocicado, e fico-me em enlevo a ver as flores que caem regirantes. Se afla mais forte a brisa, despegam-se em bando e recamam o chão. Devem ser assim as árvores do país das fadas...

— Urunduva? É ele mesmo. Amarelo, inchado, a arrastar a perna...

— Então, meu velho, na mesma?

— Melhorzinho. A quina sempre é remédio.

— Isso mesmo, quina, quina.

— É... mas está cara, patrão! Um vidrinho assim, 3 cruzados. Estou vendo que tenho de vender a paineira.

— ??

— Não vê que Chico Bastião dá dezoito mil-réis por ela — e inda um capadinho de choro. Como este ano carregou demais, vem paina pra arrobas. Ele quer aproveitar; derruba e...

— Derruba!...

— Derruba e...

— Por que não colhe a paina com vara, homem de Deus?

— Não vê que é mais fácil derrubar...

— Derruba!...

Fujo dali com este horrível som a azoinar-me a cabeça. Aquela maleita ambulante é “dona” da árvore. Urunduva está classificado no gênero Homo. Goza de direitos. É rei da criação e dizem que feito à imagem e semelhança de Deus.

Roças de milho. A terra calcinada, com as cinzas escorridas pelo aguaceiro da véspera, enche-se de tocos carbonizados, e árvores enegrecidas até meia altura, e paulama* em carvão. Entremeio, covas de milho já espontando folhinhas tenras.

— Derruba!...

Adiante, feijão. O terreno varrido, cor de sépia, pontilhado pelo verde das plantas recém-vindas, lembra chita de velha: as velhas gostam de chitas escuras com pintas verdes.

É aqui o sítio de Maria Veva. Tem ruim fama esta mulher papuda. Má até ali, dizem. O marido — coitado — um bobo que anda pelo cabresto — Pedro Suã. Ganhou este apelido desde o célebre dia em que a mulher o surrou com um suã de porco. Lá vem ele, de espingardinha...

— Vai caçar?

— Antes fosse. Vou cuidar do enterro.

— Enterro?...

— Pois morreu lá a menina, a Anica.

— Pobrezinha! De quê?

— A gente sabe? Morreu de morte...

Estúpido!

Sem querer, dirijo-me para a casa dele. Não gosto de Veva. É horrenda, beiço rachado, olhar mau — e aquele papo!

— Então, nhá, morreu a menina? Soube-o inda agora pelo Suã...

— É.

Que resposta seca!

— E de que morreu?

— Deus é que sabe.

Peste! E como a atrevidaça me olha duro! Sinto-me mal em sua presença.

— Adeus, Sicorax!*

Para alguma coisa sirva a literatura...

Arrepio caminho, entristecido. A manhã vai alta, já crua de luz. O sol, estúpido; o azul, de irritar. Que é dos aranhóis? Sumiram-se com o orvalho que os visibiliza. Estão agora invisíveis, a apanhar insetinhos incautos que nhá Veva Aranha devora. A paisagem perdeu o encanto da frescura e da bruma. Está um lugar comum. Não vejo flores nem pássaros. O excesso de luz dilui as flores, o calor esconde as aves. Só um carcará resiste ao mormaço, empoleirado num tronco seco de peroba. Está de tocaia aos pintos do Urunduva, o rapinante.

Um vulto... É mulher... Será Inácia? Vem de trouxa à cabeça. É ela mesma, a preta agregada aos Suãs.

— Então, rapariga?

— Ai, seu moço, vou-me embora. Alguém há de ter dó da velha. Na casa da peste papuda, nem mais um dia! Antes morrer de fome...

— Que coisa houve?

— Não sabe que morreu a aleijadinha? Pois é, morreu. Morreu, a pobre, só porque ontem esta sua negra foi no bairro do Libório e a chuva me prendeu lá. Se eu pudesse adivinhar...

— Mas de que morreu a menina, criatura?

— Sabe do que morreu? Morreu... de sede! Morreu, sim, eu juro, um raio me parta pelo meio se a coitadinha não morreu...

Aqui soluços de choro cortaram-lhe a voz.

— ... de seeeede! Meu Deus do céu, o que a gente não vê neste mundo!

A menina era entrevada, e a mãe, má como a irara. Dizia sempre: “Pestinha, por que não morre? Boca à toa, a comer, a comer. Estica o cambito, diabo!”. Isto dizia a mãe — mãe, hein? Inácia, entretanto, morava lá só para zelar da aleijadinha. Era quem a vestia, e a lavava, e arrumava o pratinho daquele passarico enfermo. Sete anos assim. Excelente negra!

— Coisa de três dias garrou uma doencinha, dor de cabeça, febre. Dei chá de hortelã; nada. Dei cidreira; nada. Sempre a quentura da febre. Disse comigo: “Vou lá no bairro e trago uma dose”. Fui, é longinho, três quartos de légua. O curador me deu a dose, mas quem disse de poder voltar? Uma chuvarada... Pousei no Libório. Hoje, manhãzinha, vim.

“Entrei alegre, pensando: a coitadinha vai sarar. Eu que pisei na alcova, dou com a menina espichada na esteira, fria. ‘Anica! Anica!’ Quando vi bem que estava morta de verdade, ah, seu moço, berrei como nunca na minha vida.

“— Nhá Veva, de que jeito morreu Anica, conte, conte!

“Nhá Veva quieta, repuxando a boca. Uma pedra! Caí em cima da menina, beijei, chorei. Nisto, uma cutucada — era Zico, aquele negrinho, sabe? Olhei pra ele: fez jeito de me falar longe da taturana. Lá fora me contou tudo. A menina, desde que eu saí, piorou. Mas quietinha sempre. Noite alta, gemeu.

“— Cala a boca, peste! — gritou do outro quarto a mãe — mãe, veja!

“— Quero água, nhá mãe.

“— Cala a boca, peste!

“A menina calou. Mais tarde gemeu outra vez, baixinho.

“— Quero água! Quero água!

“Ninguém se mexeu.

“— E tu, negrinho safado, por que não acudiu a menina?

“— Não vê! Eu conheço nhá Veva!...

“Seu Pedro, aquele trapo, esse estava na pinga de todo dia. Ninguém na casa para chegar uma caneca d’água à boca da doentinha. Ela, um chorinho ainda; depois, mais nada. De manhã...”

Lágrimas escorriam a fio pela cara da preta e soluços de dor cortavam-lhe as palavras.

— De manhã foram encontrar a menina morta na cozinha, rente ao pote d’água. Arrastou-se até lá, o anjinho que nem se mexer na cama podia — e morreu de sede diante da água!...

— Quem sabe se...

— Não bebeu, não! O pote, em cima da caixa, ficava alto, e a caneca estava tal e qual no lugarzinho do costume. Não bebeu, não! Morreu de sede, o anjo!

Enxugou as lágrimas na manga.

— Agora vou no Libório. Se ele me quiser, fico. Se não, sou bem capaz de me pinchar nesse rio. Este mundo não paga a pena...

Sol a pino. Desânimo, lassidão infinita…
__________________________
Notas:
Ceva – alimentação, engorda.

Paulama – lenha ou madeira que entulha os roçados depois da queimada.

Sicorax –  feiticeira, é a mãe de Calibã em A tempestade, de Shakespeare.

Vergôntea – ramo fino de árvore ou arbusto; rebento, broto.


Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. Conto publicado em 1915.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 332


Lima Barreto (Um que vendeu a sua alma)




A anedota que lhe vou contar, tem alguma coisa de fantástica e pareceria que, como homem de meu tempo, eu não devia dar-lhe crédito algum. Entra nela o Diabo e toda a gente de certo desenvolvimento mental está quase sempre disposta a acreditar em Deus, mas raramente no Diabo.

Não sei se acredito em Deus, não sei se acredito no Diabo, porque não tenho as minhas crenças muito firmes.

Desde que perdi a fé no meu Lacroix; desde que me convenci da existência de muitas geometrias a se contradizerem nas suas definições e teoremas mais vulgares; desde então deixei que a certeza ficasse com os antropologistas, etnólogos, florianistas, sociólogos e outros tolos de igual jaez.

A horrível mania da certeza de que fala Renan, já a tive; hoje, porém, não. De modo que posso bem à vontade contar-lhes uma anedota em que entra o Diabo. Se os senhores quiserem acreditem; eu, cá por mim, se não acredito, não nego também.

Narrou-me o amigo:

— Certo dia, uma manhã, estava eu muito aborrecido a pensar na minha vida. O meu aborrecimento era mortal. Um tédio imenso invadia-me. Sentia-me vazio. Diante do espetáculo do mundo, eu não reagia. Sentia-me como um toco de pau, como qualquer coisa de inerte.

Os desgostos da minha vida, os meus excessos, as minhas decepções, me haviam levado a um estado de desespero, de aborrecimento, de tédio, para o qual, em vão, procurava remédio. A Morte não me servia. Se era verdade que a Vida não me agradava, a Morte não me atraía. Eu queria outra Vida. Você se lembra do Bossuet, quando falou por ocasião de M.lle de la Vallière tomar o véu?

Respondi:

— Lembro-me.

— Pois sentia aquilo que ele disse e censurou: queria outra vida.

E então só me daria muito dinheiro.

Queria andar, queria viajar, queria experimentar se as belezas que o tempo e o sofrimento dos homens acumularam sobre a terra, despertavam em mim a emoção necessária para a existência, o sabor de viver.

Mas dinheiro! — como arranjar? Pensei meios e modos: Furtos, assassinatos, estelionatos — sonhei-me Raskólnikoff ou coisa parecida. Jeito, porém, não havia e a energia não me sobrava.

Pensei então no Diabo. Se ele quisesse comprar-me a alma?

Havia tanta história popular que contava pactos com ele que eu, homem cético e ultramoderno apelei para o Diabo, e sinceramente!

Nisto bateram-me a porta. — Abri.

— Quem era?

— O Diabo.

— Como o conheceste?

— Espera. Era um cavalheiro como qualquer, sem barbichas, sem chavelhos, sem nenhum atributo diabólico. Entrou como um velho conhecimento e tive a impressão de que conhecia muito o visitante. Sem cerimônia sentou-se e foi perguntando: "Que diabo de spleen é esse?" Retorqui: "A palavra vai bem, mas falta-me o milhão." Disse-lhe isso sem reflexão e ele sem se espantar, deu umas voltas pela minha sala e olhou um retrato. Indagou: "É tua noiva?" Acudi: "Não. É um retrato que encontrei na rua. Simpatizei e..." "Queres vê-la já?" perguntou-me o homem. "Quero", respondi. E logo, entre nós dois sentou-se a mulher do retrato. Estivemos conversando e adquiri certeza de que estava falando com o Diabo. A mulher foi-se e logo o Diabo inquiriu: "Que querias de mim?" "Vender-te minha alma", disse-lhe eu.

E o diálogo continuou assim:

Diabo — Quanto queres por ela?

Eu — Quinhentos contos.

Diabo — Não queres pouco.

Eu — Achas caro?

Diabo — Certamente.

Eu — Aceito mesmo a coisa por trezentos.

Diabo — Ora! Ora!

Eu — Então, quanto dás?

Diabo — Filho, não te faço preço. Hoje, recebo tanta alma de graça que não me vale a pena comprá-las.

Eu — Então não dás nada?

Diabo — Homem! Para falar-te com franqueza simpatizo muito contigo, por isso vou dar-te alguma coisa.

Eu — Quanto?

Diabo — Queres vinte mil-réis?

E logo perguntei ao meu amigo:

— Aceitaste?

O meu amigo esteve um instante suspenso, afinal respondeu:

— Eu... Eu aceitei.

Fonte:
Lima Barreto. Um que vendeu a sua alma. Belém/PA: Universidade da Amazônia.
Conto publicado pelo autor em julho de 1913.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 7




Quedos ? Por que andais silenciosos?

A vida é feita de conversas, de risos, de alacridade, de força, e esperança, e fé.

Nestes tempos de pandemia (ou pandemônio?) vejo viventes tais quais viandeiros disfarçados, cabisbaixos, pelos caminhos onde antes andavam soltos, desenvoltos, no lazer, no trabalho, na vida . . . E não é assim esta vivência ! Sejamos sólidos, solidários, solícitos, sem esquecer do nosso nós. Agregar elementos essenciais para a vitalidade. Cuidados sanitários sempre presentes. Alimentação saudável - o quintal é a melhor farmácia, fonte perene de saúde.

O estado anímico - alegria, otimismo, risadas, entusiasmo - nos deixa de bem com a vida,
independente de males externos que rondam nossos dias. Parcas palavras permanecem
poderosas: MENS SANA IN CORPORE SANO.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Tributo a Cecim Calixto


Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) IV

 
AS FLORES TÊM CIÚMES

Escrevi tanto sobre as minhas rosas,
Mas fui ingrato e com certeza errado.
Sem atinar que outras também airosas
Mostram belezas, sem nenhum pecado.

Eu vi nascer as inclementes prosas,
Cujos enredos suportei calado.
Dobrei meu zelo sobre as mais dengosas
E fui de novo o Jardineiro amado,

Toda igualdade impera em meu jardim:
Ditosas são, de todo agrado sim,
Sem distinção de cor ou de perfume.

As tenho todas com igual carinho
E já não sinto o venenoso espinho
Que se alimenta do vilão ciúme.
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BARDO FELIZ

Não sei ainda se me valeu a pena
Viver assim na solidão cerrado.
Louvo a família que perdoa a cena
Sob os aplausos ao futuro fado.

A minha verve toda glória acena
E à perfeição e ao próprio engenho dado.
A forma honrada já ninguém condena
E reconhece o seu poder letrado.

Louvada seja a musa que me ordena
E me incentiva a pelejar na arena
Sob os tormentos do cruel cilício.

Eu sei agora: com o seu cajado
Ninguém consegue me manter calado
Nem mesmo a dor do pertinaz suplício.
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FAMÍLIA UNIDA

Bendito cão que a minha casa guarda
E me sossega ao conciliar do sono.
E sentinela que não usa farda
E faz, zeloso, me sentir no trono.

É sempre ativo, pois jamais retarda
Quanto aos deveres ao leal patrono.
E na vitória sua cauda alarda,
Pois antevê um carinhoso abono.

Neste final quero dizer: eu crio
Uma cadela que adentrou ao cio
E o cão soberbo já cuidou das cenas.

Assisto enfim, ao doloroso parto,
Numa emoção que eu nunca mais descarto,
Pela alegria de um filhote apenas.
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MEU PÉ DE MURTA

Doçura amável este arbusto exala,
Que invade a tenda onde, tranquilo, escrevo.
E de manhã, na mais ardente escala,
Se acopla a musa no maior enlevo.

E nesse afã, a própria musa fala
Sobre os favores que à natureza devo.
Por isso canto e a inspiração propala
Toda beleza que lhe dá relevo.

Murta querida de abundantes flores,
Que ativa e embala os meus fiéis fervores
Nesta estação que o seu cantor adora.

Criei você no meu jardim vistoso,
Por isto eu quero - o que será gostoso -
Tê-la ao meu lado quando eu for embora.
 - - - - - - - - - - - - –

PERSUASÃO

Sou todo escravo deste amor sagrado,
Que envolve a musa singular que eu canto.
Sou seu amante, sem haver pecado,
E respeitoso ante o sagrado manto.

Tudo que eu quis do meu Senhor louvado
Tive de pronto, num bondoso encanto.
E o espaço meu, por quatro mãos bordado,
Reflete a luz do meu divino santo.

A flor desponta pela minha estrada.,,
E ao som do enlevo e da sutil balada
Rumo incessante ao almejado ninho;

Ao doce lar onde a paixão habita
E lá chegando o coração se agita
Na convicção de nunca estar sozinho.
 - - - - - - - - - - - - –

PERVERSIDADE

Não sei dizer a quem se deve a guerra
Devastadora do moral humano.
Tem ódio insano que o bom senso enterra
Na glória vã de irracional tirano.

Vírus do mal a devastar a terra
Pelas cartilhas do perverso engano.
Logram a vida que a virtude encerra
E as esperanças do divino plano,

Claro, são tortas as visões do mal
Ante a razão e a decisão final
Na busca da paz, dos ideais fecundos.

Que os corações dos deuses, em consensos,
Agitem todos novos brancos lenços,
Pela eleição de um Deus igual aos mundos.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.
Livro enviado por Vânia Ennes.

Vitor Iorio (O Livro na TV)


A rua é a Dias Ferreira. A livraria é a Dom Casmurro, nome que lembra manhãs de leitura nos bancos do pátio do Colégio Pedro II. A novela, Laços de Família – nome que evoca o título de um livro de Clarice Lispector (certamente uma homenagem de Manoel Carlos). Aliás, o autor de novelas está sempre destacando a literatura em suas criações: diversas vezes confessou fazê-lo com a intenção de estimular o hábito da leitura entre o público cativo da ficção televisiva transmitida em horário nobre. Cenário recorrente de “Laços de Família- a novela”, a rua Dias Ferreira, outro dia, estava tomada pelos caminhões de externa da TV Globo. Embora acostumados com estas frequentes intervenções da ficção na realidade, os cariocas não disfarçavam a curiosidade: os carros passavam devagar pelo local, e os pedestres se agrupavam para testemunhar aquela realidade se transformar em fantasia para um país inteiro. Diante da fachada da Argumento travestida de Dom Casmurro, o bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, estava literalmente iluminado em plena tarde fria de inverno. Sem dúvida, são esses refletores que fazem o imaginário do povo brasileiro.

O dono da livraria é Miguel/Tony Ramos , personagem que herdou do pai a paixão por Machado de Assis. Seu fascínio pela literatura se impõe a cada contato com seus clientes e amigos, sempre a indicar os melhores títulos e a comentar os últimos lançamentos. Embora a escolha de uma livraria como cenário de novela possa sugerir uma estratégia para encobrir um simples merchandising de títulos e editoras que têm na figura de Miguel um convincente garoto-propaganda, a Dom Casmurro serve incontestavelmente para confirmar o compromisso do autor com a literatura: Manoel Carlos escala sempre o livro com titular em todos os seus elencos.

Há quem reclame que o livro na obra de Manoel Carlos seja um personagem virtual: ele povoa cenários, circula nas mãos de outros personagens, é o assunto incidental de diálogos despretensiosos, é trocado, esquecido, emprestado... mas raramente lido. Mesmo que um mero figurante sem chance de grandes “falas”, fruto talvez de uma estratégia mais comercial do que propriamente cultural, ao autor cabe o mérito de garantir-lhe a mais cobiçada vitrine: a novela das oito. E mais: de fazê-lo objeto de desejo de personagens que inspiram o imaginário de milhões de brasileiros. Se é sabido que as novelas lançam modas e estimulam o consumo...

Os iniciados não precisam de tanta luz para a leitura – não são os refletores da mídia que os colocam diante da companhia de um livro. Mas há sempre a esperança de, através da inconsistência fascinante da mídia, conquistar um telespectador incauto, ávido por exibir-se como um ser antenado com as últimas tendências. É “moda” frequentar cafés em livrarias? Circular com um livro debaixo do braço? Muitos hão de desfilar pela cidade carregando seu exemplar de modo a deixar bem à vista o título da obra. Para isso, no entanto, eles terão sido obrigados a descobrir que título convém exibir. Terão sido forçados a entrar numa livraria real. E, lá dentro, terão descoberto que, por força de sua vontade de estar na “moda”, puderam vencer o medo que tinham de parecer pouco inteligentes diante dos vendedores de livro. Desarmados e com baixa resistência, poderão vir a ser contaminados pelo vírus da leitura e deixar-se fascinar por contos, romances, poesias, histórias, sociologia, roteiro de telenovela.

Quem ama o livro não teme a possibilidade de a televisão vir a dessacralizá-lo e não se importa com os caminhos que levam alguém a buscar a companhia de um livro. Merchandising, sedução da imagem, efemeridade e superficialidade da moda, mais exibição de capa do que de leitura? Toda a iniciativa é válida: temos uma população fascinada pela telenovela e distante do livro. Por que não usar um para promover o outro? Popularizar o livro é possibilitar que novos brasileiros descortinem o mundo mágico da leitura. Manoel Carlos fixa na imagem da telenovela o livro como um ícone de um povo que se rende aos encantos de uma trama televisiva mas teme o livro que é fonte de inspiração para muitos desses romances da telinha.

O livro na obra do novelista fica no imaginário do povo como objeto de desejo, pretexto para encontros agradáveis, e até fonte de status. Como um entusiasta da literatura, Manoel Carlos evoca Clarice Lispector com o nome de sua novela, elege uma livraria como um de seus cenários preferidos, e rende homenagem a Machado de Assis, batizando-a de Dom Casmurro. E a referência a Machado de Assis ainda é reforçada pela presença na trama de uma polêmica Capitu. Exímio artífice da teledramaturgia e do poder de enredar o grande público em suas tramas, Manoel Carlos cria uma Dom Casmurro que é referência na vida dos personagens, dá-lhe um dono sensível e um café como ponto de encontro. Ao telespectador, deixa nas entrelinhas um recado: no meio de tanta fantasia, hipocrisia, desamor, quem lê se destaca no Leblon, na vida, na tela, no real e no virtual.
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Vitor Iorio é Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora, Mestre em Comunicação e Cultura, Doutorando em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio.

 Fonte:
IORIO, Vitor . O Livro na TV. Leia Brasil, 2000. 

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 331


Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Quatro: Desvio de conduta


 
 O PACIENTE TERMINAL da enfermaria 69  recebe, naquela manhã  bonita de sol radiante, a visita de um padre:

— Bom dia, meu filho. Desculpe estar aqui logo cedo. Infelizmente a minha visita não é das melhores.

O enfermo, todavia, não se dá  por vencido. Sorri e se abre em mesuras diante da figura negra do recém chegado:

— Bom dia, seu padre.  Esquece as noticias ruins. Ainda vou durar muito. Acho que aguento mais umas duas ou três diárias.

O sacerdote,  rosto fechado, insiste:

— Falei com seu médico. Aliás, foi a pedido dele que vim ter com a sua pessoa:

— Seu padre, se ele falou que estou prestes a virar defunto, perdeu seu tempo...

—Engano seu, meu filho. O doutor Aristeu sabe das coisas. Quando manda me chamar... É caixão, na certa.

— Desta vez ele deu com os burros n’ água.

O representante da igreja parece disposto a deixar o acamado com as suas poucas esperanças para baixo:

— Aposto com o senhor que seu quadro clínico está bastante precário. Suas horas estão contadas... A sua debilitação está às claras:

— Já que o senhor falou em aposta, seu padre, vamos apostar? Quanto?

— Meu amado filho, eu sou um sacerdote. Literalmente contra jogos e apostas. Fique sabendo que jogo, seja ele qual for a modalidade é pecado.

Seguro de si, o moribundo contra ataca:
— Agourar a morte de alguém,  o senhor não acha, que é um tremendo e grande  pecado, seu padre?

O religioso se benze e abre a sua Bíblia:

— Meu filho, toda a equipe médica que está cuidando do seu caso, sabe que o mal que lhe atormenta os fundilhos dos ossos o coloca na beira da sepultura.

—O senhor é um padre estranho. Acaso brigou com Deus?

—Por que diz isto, meu amado filho?

—Acho que a sua presença aqui deveria ser para me colocar para cima, me trazer alento, me revigorar, não me empurrar para os braços da desgranhenta. Olhe para meu estado. Careço de bons fluidos, de energia positiva...

O consagrado, apesar destas palavras segue disposto a desencorajar o infeliz:

 — Meu amado irmão,  não gosto de  mentir para meus paroquianos. Seria como se eu estivesse traindo aquele a quem represento.  Agora, por favor, eleve seus pensamentos ao Pai.

O debilitado tenta levar as palavras do jacobino para o lado da brincadeira:

 —Meu pai já era, seu padre.

— Faço referência ao Senhor Jesus, o nosso Cristo Salvador.

—Ah...!

O presbítero se prepara para  a liturgia:

 —Vamos, feche os olhos.

O valetudinário, embora esteja com a saúde depauperada, capenga das pernas e aleijado dos olhos, tenta levar aquele breve momento trágico, transformando-o numa espécie de piada:

 —De maneira alguma, seu moço. Tenho medo de escuro.

—Não se preocupe, não tema – Acorre o piedoso.  — Eu estarei aqui, a seu lado, para lhe ajudar na passagem.

O acamado emite um riso débil como se fizesse um esforço sobre-humano:

 — Seu padre, tenho quase 98 anos. Não pago mais passagem. Se o senhor olhar nas minhas coisas ai... Verá que tenho um cartãozinho de passe livre.

— Meu querido e amado -, insiste o compadecido da batina -, falo da sua passagem  para o Alto Ceu. Dentro em breve estará saindo daqui... Como diria,  voando...

O moribundo volta a tentar sorrir mas a sua ousadia inutilizada sai ainda mais desfalecida e deformada:

— Outro engano seu, padre. Tenho medo de avião. Sofro da síndrome de Belchior.

— Síndrome de quem?

— De Belchior, o autor daquela música “Medo de avião”, cuja letra diz assim: “foi com medo de avião... Que eu segurei pela primeira vez na sua mão...”.   

— Quem falou em avião?

— O senhor.

— Eu?

—Sim o senhor.

— Eu não falei em avião.

Apesar de quase não se aguentar, o amofinado não desiste:

— O senhor deixou claro que eu sairei daqui voando... Se não tenho asas, como haverei de voar? Acaso tenho parentesco com Ícaro?

— Eu disse voar no sentido de ir em direção às mansões celestiais.

— O senhor, por acaso, sabe como chegarei até Ele?

— Claro, meu filho. Assim que  fechar os olhos, dormirá na paz do Altíssimo.

—Impossível...

— Como assim? Para Deus, nada é impossível.

O deplorável  segue firme na sua determinação de não entregar os pontos:

— Seu padre, faço referência a fechar os olhos e dormir. Esta noite,  por azar, dormi como um nababo. Estou sem sono. Desista. Volte para a sua igreja.

O pontífice, mostra certa irritação:

— Como representante de Deus, aqui na Terra, jamais desisto das minhas missões. Você faz parte delas. Olha, assim que me der a mão, rezarmos, e  eu irei embora. 

— Temos um novo problema que acabou de surgir. Não sei rezar.

— Não seja por isso. Eu lhe ensino.

— Estou velho demais para aprender. Mal enxergo. O senhor mesmo, acredite, estou lhe vendo apenas como um ligeiro vulto esbranquiçado. E olha que o dia acabou de começar.

O pastor abaixa a cabeça, se benze e faz uma pequena oração:

— Não tema. Me dê a sua mão.

— Que isso, seu padre! -  Está me estranhando? - Depois de velho acha que pretendo sair do armário? Nem morta!

— O seu coração não está aberto. Abra seu coração. Se entregue à Deus. Não resista.

O pobre homem estratificado segue brincalhão:

— Coração... Coração. Seu padre, não seria melhor o senhor acionar  à enfermeira e ela mandar vir o meu cardiologista?

— Meu filho, não zombe. Seu caso é sério. Vamos, me dê a sua mão.

O mazelento sai, então, do sério. Não é para menos. Seu estado de depauperismo o coloca fora de controle: 

—  Seu padre idiota, quer saber de uma coisa? Vá plantar batatas...

O confessor mostra certa frieza ao tempo em que franze o cenho:

— Meu filho, só estou querendo ajudar...

— Me ajudar desta forma? Me encalistando? Quer saber? Pra mim chega. Vá de reto, vá de reto...

O abuna, convicto de seu encargo, do seu compromisso não deveria, jamais... Entretanto,  acaba perdendo as estribeiras. Não fala, berra:

 — Ora, seu mal educado. Quer saber digo eu. Vá para os quintos do inferno. Seu ateu do diabo. Nada mais me prende aqui. Passe bem. O capeta que o carregue.

O  fraco e inválido, igualmente fora de si, tenta se levantar. Não consegue. Chorando, a voz embargada não perde a pose:

— Agora o senhor acertou, seu padre. Na mosca. Daqui a pouco vou estar falando com ele.

— Com ele? Ele quem, seu monte de estrume?

— Com o Capiroto, seu burro. Com quem mais? Quer mandar algum recado?  Aproveita   que eu levo e entrego pessoalmente.

O franciscano vira as costas e sai da enfermaria bufando de raiva. 

Fonte:
texto enviado pelo autor.
do livro de Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

Cães em Versos 1


ANDERSON BRAGA HORTA
Os cães

 

A aurora flui do cântico dos galos,
aos poucos, salpicada de saliva.
No travesseiro sublunar da treva,
cobertos da orvalhada os cães dormitam.

Telúricos os cães, e quase humanos.
Inocentes infantes adormecidos
equipados de relva e de luar.
Dormem os cães. São belos no seu sono.

No ganirem dormidos obedecem
à voz rudimentar dos próprios sonhos.
Choram os cães na atávica lembrança
de remotas caçadas. Abandono.

Alguém ligou a máquina do dia.
Os cães despertam mastigando as luzes
que a pródiga manhã lhes põe nos olho
E ei-los felizes abanando as caudas,

sequer imaginando que fragrâncias,
que músicas pagãs deixam gravadas
na memória das frias madrugadas
de cães ladrando flores no silêncio.
****************************************

MAURÍCIO CARNEIRO
como os cães


pudera, sôfrego
perscrutar o chão
com as narinas
sentir o mundo
com o olfato
em ilações caninas

pudera, sábio,
perceber os odores
- de medo, raiva
cio e sina -
que vêm da brisa,
do suor, da urina

pudera, santo,
prescindir das palavras,
da verve e da voz
experimentar o cheiro do mundo
e na onisciência calar fundo
para nunca mais latirem vão
****************************************

CLÁUDIO FELDMAN
Au Au


"Cachorro que late não morde"
É um provérbio tão usado
Que não há ninguém que discorde:
Mas o cão conhece o ditado?
****************************************
 

DENIVALDO PIAIA
O cão


Na cena solitária de uma paisagem triste o cão se destaca.
Cabisbaixo, seguindo os passos de seu dono andarilho,
não se manifesta.
Simplesmente o acompanha, sem ser preciso obedecer.
O silêncio da natureza quebrado por carros e caminhões.
Todos passam e nada observam.
Os cães preferem companheiros de almas puras.
Por isso, as crianças, os mendigos, os simples...
Ainda bem.
Melhor que um cão que lhe segue
é um cão que lhe acompanha.
****************************************

CECY BARBOSA CAMPOS

barriga
para
cima
cachorro
pede
carinho
****************************************

ROBERTO MASSONI
Alegro


O cão reverencia o mar.
Ausculta a diária lição
da continuidade,
ondeia,
plena maré.
O cão é pura apreciação também,
como que celebrando
aquela porção intransponível
de sal - pois que ele não bebe,
nem compreende, mas delicia-se
do enigma, como se das ondas
ouvisse clara música,
o cão e o mar,
como se o mar compreendesse
sua dúvida, o mar e o cão,
inexistindo o mais.

O cão reverencia o mar.
Ao vê-los, pela tarde vazia,
em namoro e pactos, ambos,
indecifráveis;
sou tomado de súbita alegria,
e penso um poema
a cristalizar tal Elegia,
um poema silencioso como o cão.
****************************************

J. H. S. HENRIQUES
  O Velho e o Cão


O cão dormitava e o velho
coroava moscas nas brumas de riachos perdidos
O cão sob o velho
compondo pradarias para morrer
de velho.
O cão no silêncio de ter um
corpo de goma
o velho empertigado de ter um corpo
um corpo só osso.
O velho deitava olhos mortiços
no coroar das moscas e das vespas,
O cão era uma coluna
de olhos móveis e corpo fixado.

Fontes:
Cabeça Ativa: revista lítero temática. Cães. S. Vicente/SP: n. 39. ano IX. nov. dez. jan 2017.
Imagem =http://www.wakabara.com/blog/cachorros-jogando-pquer-mas-isso-arte

Bernardo Élis (Nhola dos Anjos e a Cheia do Corumbá)


- Fio, fais um zóio de boi lá fora pra nóis.

O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro, debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole – outra e mais outra. Três círculos entrelaçados, cujos centros formavam um triângulo equilátero.

Isto era simpatia para fazer estiar. E o menino voltou:

- Pronto, vó.

- O rio já encheu mais? - perguntou ela.

– Chi, tá um mar d'água! Qué vê, espia, - e apontou com o dedo para fora do rancho. A velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo lado havia água. Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois o braço do rio aí era pequeno. A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo chão, feito um cachorro, cadela, aliás: era entrevada. Havia vinte anos apanhara um "ar de estupor" e desde então nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se estorceram.

Começou a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha vagarosamente, irremediavelmente, como o progresso de uma doença fatal. O Quelemente, filho da velha, entrou. Estava ensopadinho da silva. Dependurou numa forquilha a caroça, - que é a maneira mais analfabeta de se esconder da chuva, - tirou a camisa molhada do corpo e se agachou na beira da fornalha.

- Mãe, o vau tá que tá sumino a gente. Este ano mesmo, se Deus ajudá, nóis se muda.

Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água escorrida da calça de algodão grosso.

A velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a tirar, com a colher de pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima, mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a mão, com que entrouxava a bocarra.

Agora a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo - ronco confuso, rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum subterrâneo. A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o calor da fornalha, como se pegasse fogo.

Já tinha pra mais de oitenta anos que os dos Anjos moravam ali na foz do Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo, de que dois lados eram formados por rios, e o terceiro, por uma vargem de buritis. Nos tempos de cheias os habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da várzea era rasa e podia-se vadear perfeitamente.

No tempo da guerra do Lopes, ou antes ainda, o avô de Quelemente veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação geográfica construíra um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu, já estava quase extinto pelas ervas daninhas. Daí para cá foi a decadência. No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas. A erva se incumbiu de arrasar o resto do gado e as febres as pessoas.

"- Este ano, se Deus ajudá, nóis se muda." Há quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo aquela conversa fiada. A princípio fora seu marido:

"- Nóis precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis". Ele morreu de maleita e os outros continuaram no lugar. Depois era o filho que falava assim, mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a mulher dele, nora de Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no mesmo lugar: a velha Nhola, o filho Quelemente e o neto, um biruzinho sempre perrengado.

A chuva caía meticulosamente, sem pressa de cessar. A palha do rancho porejava água, fedia a podre, derrubando dentro da casa uma infinidade de bichos que a sua podridão gerava. Ratos, sapos, baratas, grilos, aranhas, – o diabo refugiava-se ali dentro, fugindo à inundação, que aos poucos ia galgando a perambeira do morrote.

Quelemente saiu ao terreiro e olhou a noite. Não havia céu, não havia horizonte - era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia.

No canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e fuxicado.

- Ocê bota a gente hoje em riba do jirau, viu? - pediu ela ao filho. - Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é mundice entra pro rancho e eu num quero drumi no chão não.

Ela receava a baita cascavel que ainda agorinha atravessara a cozinha numa intimidade pachorrenta.

Quelemente sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a roupa ensopada, mas aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o baixeiro e nisto esbarrou com água. Pulou do jirau no chão e a água subiu-lhe ao umbigo. Sentiu um aperto no coração e uma tonteira enjoada. O rancho estava viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. Uma luz cansada e incômoda, que não permitia divisar os contornos das coisas. Dirigiu-se ao jirau da velha. Ela estava agachada sobre ele, com um brilho aziago no olhar.

Lá fora o barulhão confuso, subterrâneo, sublinhado pelo uivo de um cachorro.

- Adonde será que tá o chulinho?

Foi quando uma parede do rancho começou a desmoronar. Os torrões de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e caíam nágua com um barulhinho brincalhão - tchibungue - tibungue. De repente, foi-se todo o pano de parede. As águas agitadas vieram banhar as pernas inúteis de mãe Nhola:

- Nossa Senhora d'Abadia do Muquém!

- Meu Divino Padre Eterno!

O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da estuporada e alcançar o teto. Dentro da casa, boiavam pedaços de madeira, cujas, coités, trapos e a superfície do líquido tinha umas contorções diabólicas de espasmos epilépticos, entre as espumas alvas.

- Cá, nego, cá, nego - Nhola chamou o chulinho que vinha nadando pelo quarto, soprando a água. O animal subiu ao jirau e sacudiu o pelo molhado, trêmulo, e começou a lamber a cara do menino.

O teto agora começava a desabar, estralando, arriando as pathas no rio, com um vagar irritante, com uma calma perversa de suplício. Pelo vão da parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco, - que se diluía na cortina diáfana, leitosa do espaço repleto de chuva, - e que arrastava as palhas, as taquaras da parede, os detritos da habitação. Tudo isso descia em longa fila, aos mansos boléus das ondas, ora valsando em torvelinhos, ora parando nos remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo. Era feita de paus de buritis amarrados por embiras.

Quelemente nadou, apanhou-a, colocou em cima a mãe e o filho, tirou do teto uma ripa mais comprida para servir de varejão, e lá se foram derivando, nessa jangada improvisada.

- E o chulinho? - perguntou o menino, mas a única resposta foi mesmo o uivo do cachorro.

Quelemente tentava atirar a jangada para a vargem, a fim de alcançar as árvores. A embarcação mantinha-se a coisa de dois dedos acima da superfície das águas, mas sustinha satisfatoriamente a carga. O que era preciso era alcançar a vargem, agarrar-se aos galhos das árvores, sair por esse único ponto mais próximo e mais seguro. Daí em diante o rio pegava a estreitar-se entre barrancos atacados, até cair na cachoeira. Era preciso evitar essa passagem, fugir dela. Ainda se se tivesse certeza de que a enchente houvesse passado acima do barranco e extravasado pela campina adjacente a ele, podia-se salvar por ali. Do contrário, depois de cair no canal, o jeito era mesmo espatifar-se na cachoeira.

- É o mato? - perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos de pua furavam o breu da noite.

Sim. O mato se aproximava, discerniam-se sobre o líquido grandes manchas, sonambulicamente pesadas, emergindo do insondável - deviam ser as copas das árvores. De súbito, porém, a sirga não alcançou mais o fundo.

A correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear rapidamente e arrebatou-a no lombo espumarento. As três pessoas agarraram-se freneticamente aos buritis, mas um tronco de árvore que derivava chocou-se com a embarcação, que agora corria na garupa da correnteza.

Quelemente viu a velha cair n’água, com o choque, mas não pôde nem mover-se: procurava, por milhares de cálculos, escapar à cachoeira, cujo rugido se aproximava de uma maneira desesperadora. Investigava a treva, tentando enxergar os barrancos altos daquele ponto do curso. Esforçava-se para identificar o local e atinar com um meio capaz de os salvar daquele estrugir encapetado da cachoeira.

A velha debatia-se, presa ainda à jangada por uma mão, despendendo esforços impossíveis por subir novamente para os buritis. Nisso Quelemente notou que a jangada já não suportava três pessoas. O choque com o tronco de árvore havia arrebentado os atilhos e metade dos buritis havia-se desligado e rodado. A velha não podia subir, sob pena de irem todos para o fundo. Ali já não cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vítima. As águas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite escura que cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A nado, não havia força capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha tentava energicamente trepar novamente para os buritis, arrastando as pernas mortas que as águas metiam por baixo da jangada. Quelemente notou que aquele esforço da velha estava fazendo a embarcação perder a estabilidade. Ela já estava quase abaixo das águas. A velha não podia subir. Não podia. Era a morte que chegava, abraçando Quelemente com o manto líquido das águas sem fim. Tapando a sua respiração, tapando seus ouvidos, seus olhos, enchendo sua boca de água, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua garganta. Matando seu filho, que era perrengue e estava grudado nele.

Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer, presa ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão de incompreensão e terror espantado. Novo coice melhor aplicado e um tufo d'água espirrou no escuro. Aquele último coice, entretanto, desequilibrou a jangada, que fugiu das mãos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio.

Ao cair, porém, sem querer, ele sentiu sob seus pés o chão seguro. Ali era um lugar raso. Devia ser a campina adjacente ao barranco. Era raso. O diabo da correnteza, porém, o arrastava, de tão forte. A mãe, se tivesse pernas vivas, certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas, entretanto, eram uns molambos sem governo, um estorvo.

Ah! se ele soubesse que aquilo era raso, não teria dado dois coices na cara da velha, não teria matado uma entrevada que queria subir para a jangada num lugar raso, onde ninguém se afogaria se a jangada afundasse...

Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no chão, as pernas escorrendo ao longo do rio?

Quem sabe ela não tinha rodado? Não tinha caído na cachoeira, cujo ronco escurecia mais ainda a treva?

- Mãe, ô, mãe!
- Mãe, a senhora tá aí?

E as águas escachoantes, rugindo, espumejando, refletindo cinicamente a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado, estuporado.

- Mãe, ô, mãe! Eu num sabia que era raso.
- Espera aí, mãe!

O barulho do rio ora crescia, ora morria e Quelemente foi-se metendo por ele a dentro. A água barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo, resmungo de fantasmas, timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos ásperos de cães danados. Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos e as espumas de noivado ficavam boiando por cima, como flores sobre túmulos.

- Mãe! - lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não respondia, e foi deixá-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo da cachoeira.

Fonte:
Conto publicado 1944 em Bernardo Élis. Ermos e gerais.

domingo, 26 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 330


Carolina Ramos (Neblina)


Acordara triste. Permanecia triste, sem bem saber o porquê. Nem sempre a tristeza que se sente tem explicação. Algo assim como neblina teimosa, que desce sobre a paisagem, sem mesmo precisar de lógica. A condição de adolescente dava a Maria Augusta o direito de aceitar, sem questionamentos, as íntimas oscilações do ego em busca de afirmação. Direito esse negado a qualquer adulto, para quem alegria e tristeza têm sempre conotações explícitas e imediatistas.

Maria Augusta sentia-se triste porque sentia-se triste, assim como a planta enlanguesce pelo desconsolo de não ter alguém para matar-lhe a sede; assim como o salgueiro debruçado às margens de um rio cantante, não precisa de motivos para justificar a aparente melancolia, mesmo que a brisa marota venha brincar de arrepiar suas folhas.

A exemplo do salgueiro-chorão, a menina-moça, não mais menina e não ainda moça, estava triste, sem razões palpáveis nem preocupações de auto-análise. Faltava-lhe alguém que lhe ninasse a tristeza, que dela partilhasse ou então que a soprasse para longe, como névoa indesejável, dissipada pela brisa amiga, que tristeza é sempre mais triste, se curtida em solidão.

O aroma do café fresco estimulava-lhe os passos, naquela manhã que nascia. Ao passar pelo escritório do pai, há um ano falecido, estacou. Aquele cômodo, situado na parte mais nobre do velho casarão, era, por assim dizer, sagrado. Sempre que o pai nele adentrava, trancando a porta, era como se dependurasse, pelo lado de fora, um aviso: — "Não perturbem". Todos, sem exceção, respeitavam a ordem, como se deveras o letreiro existisse. Por isso mesmo, à moça sempre intrigara aquele pequeno santuário, onde as letras eram cultuadas através de divindades inspiradoras, cujos nomes, desde criança, aprendera a venerar. Era o templo das Musas. Os mortais ficavam-lhe à soleira.

A curiosidade impulsionava Maria Augusta. Torceu a maçaneta e devagarinho insinuou-se no aposento.

A penumbra casou bem com a névoa que trazia na alma. Após pausa emocionada, acendeu o abajur, disposto atrás da escrivaninha. Passeou o olhar pelas paredes forradas de livros. Apanhou alguns volumes abandonados sobre a mesa; soprando-lhes a poeira invasiva, recolocou-os nas vagas das estantes, com o desvelo de que se faziam credores. Tinham credenciais as mais ilustres — sábios, poetas e filósofos, amigos inseparáveis de seu finado pai, que com eles dividira a maior parte de suas horas. Amigos prontos a lhe fazer companhia, sempre que solicitados.

A jovem folheou algumas obras, tentando familiarizar-se com elas. Não conseguiu. Pesavam mais do que suportava sua mente pouco madura, não ainda preparada para leituras de maior consistência. Precisava de outros amigos. Aqueles, tão queridos de seu pai, não pertenciam à sua estirpe. Falavam com jeito passadista, conduzindo-a por vias que não a levavam a lugar algum. A maioria dos problemas que debatiam já estava devidamente suplantada pelo avanço do tempo. Até mesmo as questões passionais pareciam praticamente superadas: — para um amor impossível, havia o aceno promissor do divórcio, a abrir claros de esperança, meio aos trovões domésticos. As distâncias, encolhidas sucessivamente pelos jatos e supersônicos, não impunham mais angústias aos corações apaixonados. Notícias, cavalgando botões e teclas, tinham sabor de agora, na época movida a cibernética. O hoje, daí a um nada, virava ontem e o amanhã, se não navegado com urgência, sem mais aquela, ancorava no passado.

E os sonhos? Onde ficavam, afinal os sonhos?

Se — dentro dessa sensação angustiante de sentir a fuga acelerada dos próprios passos, sem coragem de arrastar-se atrás deles — viver era tão difícil, sonhar, então?! Por quê? Para quê?

A mente simplista, imatura e ao mesmo tempo romântica, da adolescente, mais e mais a separara do legar à filha o brilho da sua riqueza interior.

Maria Augusta deixou as derradeiras reflexões prensadas entre as páginas do último livro folheado. Concentrou a atenção na pequena estante que se destacava das demais — móvel antigo, esculpido com arte e requinte. Como viera aquela estante incorporar-se aos bens da família, não sabia. O sóbrio escritório do pai, há tantos anos, religiosamente o mesmo, sempre contara com a presença dessa peça de arte, estilosa, depositária de precioso acervo de filosofia, história, de qualquer amante da cultura,

Tinha bom gosto o pai!

Maria Augusta passou os dedos, carinhosamente, pela macia ondulação das lombadas. Algumas obras tinham encadernação primorosa, iluminadas artisticamente por douraduras.

Entre aquelas preciosidades, descobriu um pequeno livro, presença humilde, roída pelos dentes implacáveis do tempo. Destoava do todo, por isso mesmo fazia-se notar.

Manuseado por mãos pouco cuidadosas, o velho livro lembrava soldado cansado, remanescente de múltiplas batalhas, guardando no corpo as marcas dos entreveres.

Intrigada, a moça puxou-o da estante, constatando, surpresa, tratar-se de velha cartilha.

Logo à primeira página, o esclarecimento escrito por mão infantil, truncado por misteriosas reticências: "Este livro pertence a... 8 anos — 2° ano primário"

O nome do aluno mantido em segredo e acobertado pelas reticências, instigou mais a curiosidade de Maria Augusta, principalmente depois de ler no rodapé:

— Quer saber o meu nome? Então, vá até a página 28.

Folheou a cartilha rapidamente e, na página indicada, encontrou mais um recado: — Não é aqui... meu nome está quatro páginas adiante.

Já divertida, a moça prosseguiu, pacientemente, ao sabor das pistas, tendo embora a certeza de que não alcançaria, tão cedo, o objetivo.

Uma após outra, as sugestões levavam a leitora a virar e revirar o livro, detrás para diante, de cima para baixo, de acordo com os caprichos do misterioso proprietário da cartilha:

— Você quase me achou... volte três páginas.

— Agora, procure na última.

— Seu bobo, meu nome está na página do meio.

— Nessa? não... na que vem depois.

— Vire o livro de cabeça para baixo. Conte três páginas,

— Calma... é só virar mais uma!

— Juro que se contar dez páginas, vai saber o meu nome.


Já impaciente, Maria Augusta contou, religiosamente, as dez páginas exigidas e, com agradável emoção, pôde ler, afinal, grafado com letra irregular, um nome muito querido — o nome de seu pai!

Vibrou emocionada! Impenetrável, aparentemente frio, austero como o próprio escritório onde passava a maior parte de sua vida, aquele pai sisudo e distante, tinha sido criança, travessa e alegre, como qualquer outra, capaz de uma brincadeira inocente!

Brincadeira que, tantos anos depois, sopraria brumas que enevoavam as fantasias da filha, emocionalmente carente. Entendia, agora, o porquê daquele livro, singelo, em precário estado, ter conquistado o direito de figurar entre obras de tão significativa importância. Era o primeiro degrau de uma escalada brilhante. Sem passar por ele, o pai não teria atingido o estágio privilegiado que lhe dera tanto renome.

Pai e filha reencontravam-se nesse primeiro patamar, com muitos anos de atraso. Não tarde demais, porém, para reconhecer que ali estava o elo de ternura que faltava entre eles!

E havia ainda uma outra surpresa reservada à moça:

Um pequeno envelope, perdido entre as folhas da cartilha, deslizou para o chão. Apanhou-o. Continha uma carta. Maria Augusta arregalou os olhos maravilhados: — uma carta para Papai Noel, assinada por seu pai! Exultou! A data — dezembro de 1924. Oito anos, portanto, tinha o remetente. O texto deliciou-a:

Querido Papai Noel —

       Hoje briguei na escola por sua causa. Meu amigo riu de mim e disse que você não existia. Fiquei fulo da vida! Como é que você. Papai Noel, pode ser meu pai, se meu pai já morreu quando eu tinha três anos?!
      Às vezes, fico triste... será que você não existe mesmo?
      Não sei nem se vou ter coragem de mandar esta carta, E se mandar, não sei se ela vai chegar até aí. Mas, puxa! eu queria tanto que você existisse!
     Pai Noel, se você for mesmo de verdade, por favor, veja se me traz uma caneta bem bonita, dessas que já vêm cheias de tinta azul e também um caderno bem grosso, bem grosso mesmo, para eu escrever uma porção de histórias!
     Boa noite. Papai Noel. Prometo que não vou brigar nunca mais com ninguém. Bênção.


Luiz

Maria Augusta enxugou as lágrimas e dobrou a carta, carinhosamente, com um suspiro.

O envelope foi recolocado dentro da cartilha, e esta voltou a ocupar, como venerada relíquia, o lugar onde a deixara o sentimentalismo paterno. Rompera–se a cortina de gelo. Passava a entender o pai como pessoa simples, humana, comum. Gente, enfim! Acima de tudo, gente de grande sensibilidade e, sem dúvida alguma, muito privilegiada. Seu pai ascendera por esforço próprio e méritos incontestáveis, méritos dos quais Maria Augusta, agora, profundamente se orgulhava. Sentia que o amava como nunca pensara amar!

A moça deixou o escritório com o coração mais leve. Crescera um pouco mais,

Fechou, cuidadosamente, a porta e escancarou as janelas da alma!

Aspirou o ar fresco da manhã, tal se fora uma dádiva do céu!

O beijo do sol acariciou-lhe, mornamente, a pele. Notou, então, que a neblina teimosa deixara de toldar a paisagem da sua vida. O Natal avizinhava-se. Feliz, agradeceu a Pai Noel o presente antecipado.

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.