terça-feira, 21 de abril de 2009

Hilda Hilst (Aniversário de Nascimento)

Fonte:
Fotomontagem = José Feldman

Hilda Hilst (Tô Só)

Guto Maia (Mulher Só)
Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, que o HIV foi bombardeado com beagacês, e que tá todo mundo de novo namorando? Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais e tamo sentindo saudade até de adoecê? E há escola e comida pra todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais, até nos pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões lambendo os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma terceira matéria, uma quântica quimera, e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro beleléu? E que não há mais carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e grassa como grama (como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo brincá

de teta
de azul
de berimbau
de doutora em letras?

E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar...
Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?
Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?

nave
ave
moinho
e tudo mais serei
para que seja leve
meu passo
em vosso caminho.*

Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão de gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha.

Fontes:
* Trovas de muito amor para um amado senhor - SP: Anhambi, 1959
http://www.angelfire.com/ri/casadosol/toso.html
Pintura = http://www.overmundo.com.br/

Hilda Hilst (Poesias Avulsas)



CANTARES DOS SEM NOME E DAS PARTIDAS

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
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POEMAS AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.

***********

Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.
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ÁRIAS PEQUENAS. PARA BANDOLIM

Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores

Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.
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TROVAS DE MUITO AMOR PARA UM AMADO SENHOR

Nave
Ave
Moinho
E tudo mais serei
Para que seja leve
Meu passo
Em vosso caminho.
(I)
* * *
Dizeis que tenho vaidades.
E que no vosso entender
Mulheres de pouca idade
Que não se queiram perder

É preciso que não tenham
Tantas e tais veleidades.

Senhor, se a mim me acrescento
Flores e renda, cetins,
Se solto o cabelo ao vento
É bem por vós, não por mim.

Tenho dois olhos contentes
E a boca fresca e rosada.
E a vaidade só consente
Vaidades, se desejada.

E além de vós
Não desejo nada.
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Anatol Rosenfeld (Hilda Hilst: Poeta, Narradora, Dramaturga)



É raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste tempo de especializações, que experimentam cultivar os três gêneros fundamentais de literatura — a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa — alcançando resultados notáveis nos três campos. A este grupo pequeno pertence Hilda Hilst que, de início exclusivamente dedicada à poesia e mais conhecida como poeta — convém evitar o termo poetisa carregado de associações patriarcais — invadiu mais recentemente o terreno da dramaturgia e apresenta agora o primeiro volume de ficção narrativa. Ao lado de necessidades subjetivas, são sem dúvida também problemas de ordem objetiva que a levaram a estender a sua arte, de forma significativa, a domínios literários além daqueles da poesia. É preciso somente mencionar o fato de que uma visão antinômica da realidade se exprime de modo mais radical e aguçado no diálogo da obra dramática, no dia-logos, isto é, no espírito dividido de um gênero que surge depois de rompida a unidade espiritual da origem; unidade todavia que ainda assim subjaz à divisão já que de outro modo o próprio diálogo se tornaria impossível. Não será difícil mostrar que também as pesquisas na esfera da prosa ficcional, tal como praticadas nas obras deste volume, quase todas distantes dos padrões do conto, obedecem a imposições objetivas.

Hilda Hilst nasceu a 21 de abril de 1930 em Jaú, Estado de São Paulo. O pai, Apolônio de Almeida Prado Hilst, fazendeiro e poeta, era filho de Eduardo Hilst, imigrante que veio da Alsácia-Lorena ao Brasil, e de Maria do Carmo Ferraz de Almeida Prado. A mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, era filha de portugueses. Hilda estudou durante oito anos como interna no Colégio de Freiras Santa Marcelina, em São Paulo, ambiente evocado na sua dramaturgia (A Possessa, Rato no Muro), na narrativa O Unicórnio, deste volume, e também na poesia:

Os amantes no quarto
Os ratos no muro
A menina
Nos longos corredores do colégio.

O tema multívoco dos ratos, aliás, ressurge numa das peças (Aves da Noite) e também na ficção narrativa, fato digno de nota por revelar a persistência dos motivos que se mantêm através da obra poética, dramática e narrativa de Hilda Hilst.

Depois de terminar o curso clássico na Escola Mackenzie, a poeta estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Formada, a jovem bacharel exerceu durante alguns meses a advocacia, profissão que, segundo confessa, a deixou "apavorada". Esse pavor se manifesta ainda na peça Auto da barca de Camiri, na qual se lê, a respeito do amor, que "essa asa na lei / não está prevista".

Hilda Hilst publicou seu primeiro livro de poesias aos vinte anos (Presságio, 1950), seguindo-se em rápida seqüência obras como Balada de Alzira (1951), Balada do Festival (1955) e outras, entre elas Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor (1960). Uma seleção da sua obra poética madura encontra-se reunida em Poesia 1959/1967. O seu teatro, constituído de oito peças, permanece lamentavelmente inédito, embora O Verdugo tenha conquistado o Prêmio Anchieta de 1969. Algumas das peças foram encenadas pela Escola de Arte Dramática de São Paulo e por vários grupos amadores, devendo-se esperar que também o teatro profissional, mais cedo ou mais tarde, descubra o valor desta obra cênica, marcante pela qualidade literária e por introduzir uma voz inteiramente nova e original na dramaturgia brasileira moderna, raramente beneficiada pela colaboração criativa dos poetas.

Em 1957 e 1961 Hilda Hilst fez viagens maiores pela Europa, demorando-se na França, Itália e Grécia. Casou-se em 1968 com o escultor Dante Casarini.

Desde cedo seu interesse quase exclusivo se dirigiu para a criação poética. Nesta paixão foi estimulada pelo poeta e jornalista João Ricardo Barros Penteado, ao passo que deve a Alfredo Mesquita, fundador e durante longos anos diretor da Escola de arte Dramática de São Paulo, o incentivo para invadir o campo da literatura teatral. Entre os amigos a quem, por razões afetivas ou intelectuais, se sente ou sentia ligada, salientam-se Sergio Milliet, o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles, Bráulio Pedroso, José L. Mora Fuentes, Joy Kostakis e o poeta português Carlos Maria Araújo a quem dedicou, por ocasião da sua morte precoce, as sete estanças dos Pequenos Funerais Cantantes.

Dorme o amigo no seu corpo de terra.
E dentro dele a crisálida amanhece:
Ouro primeiro, larva, depois asa
Hás de romper a pedra, pastor e companheiro.

O tema da crisálida, do estado intermediário, latente, do vir-a-ser e da "irrupção" e transcendência é fundamental na obra de Hilda Hilst, tanto na poesia e dramaturgia como também na prosa narrativa do presente volume.

Com Gilberto Amado e Carlos Drummond de Andrade manteve, durante certo tempo, correspondência amiga; mas foi sobretudo Jorge de Lima, ao lado de Fernando Pessoa e Cecília Meireles, quem, entre os poetas de língua portuguesa, mais de perto a tocou. A epígrafe que escolheu para os Sete Cantos do Poeta para o Anjo (1962) é de Jorge de Lima:

Nunca fui senão uma coisa híbrida
Metade céu, metade terra...

O tema, reiterado nos Sete Cantos — "desde sempre caminho entre dois mundos" — e em outros poemas:

Tão grande ambivalência
Concedida aos homens
Terá sido dos deuses
Complacência?

—esse tema, intimamente ligado aos acima mencionados, irá ser a verdadeira substância das cinco narrativas de Fluxo-Floema.

A experiência poética de Hilda Hilst é ampla. Ao lado dos poetas lembrados, ama, ou pelo menos amava durante certa fase, a poesia de Höelderlin, Rilke, John Donne, Eliot, René Char, Saint-John Perse. alguns deles afinam, em maior ou menor grau, com as tendências místicas e metafísicas de Hilda Hilst, tendências que se situam, aproximadamente, na linha da tradição platônica e gnóstico-teosófica e que se manifestam também — e particularmente — nas elocubrações físico-geométricas da sua poesia e dramaturgia. Matemática e mística, por paradoxal que possa parecer, são terrenos que facilmente se avizinham, sobretudo na literatura contemporânea. Não surpreende que Hilda Hilst mostre, no campo da dramaturgia, pouco interesse por Bertold Brecht — embora goste de sua Mãe Coragem — e que prefira uma obra mística como O Dibuk, de An-Ski. Isso explica também sua inclinação por Ionesco e, sobretudo, por Beckett que, ao lado de Kafka e Camus, veio a ser, mormente como o narrador de Molloy, uma influência fundamental na sua ficção narrativa.

Experiência decisiva, não só de ordem literária e sim "existencial" (se é possível separar o que é inseparável para quem, como Hilda Hilst, a criação literária é uma atividade absolutamente vital) foi a leitura de Nikos Kazantzakis. Certamente a impressionaram profundamente, talvez em demasia para quem não afina tanto com o autor grego, a busca esotérica e por vezes excêntrica de verdade última, de unidade cósmica, ao lado da exaltação romântica da vitalidade e do vigor primevos. Hilda Hilst confessa que a leitura da Carta a El Greco chegou a "mudar a minha vida". É, com efeito, depois desta experiência — fundamentalmente mística — que se retirou de São Paulo, fugindo das "invasões cotidianas" e da multiplicidade de "contatos agressivos", para viver com o marido na sua fazenda perto de Campinas.

A poeta chegou à dramaturgia porque queria "falar com os outros"; a obra poética "não batia no outro". Era um desejo de comunicação (é difícil evitar o termo que, desde que deu o nome a uma teoria, faz de imediato pensar em canais) e a obra poética não lhe parecia satisfazer esse desejo, pelo menos não na medida almejada. Há, em Hilda Hilst, uma recusa do outro e, ao mesmo tempo, a vontade de se "despejar" nele, de nele encontrar algo de si mesma, já que sem esta identidade "nuclear" nào existiria o diálogo na sua acepção verdadeira. Pelo mesmo motivo chegou à ficção narrativa, depois do desengano — certamente provisório — que lhe causou a atitude cautelosa do teatro profissional.

É apenas por conveniência que os textos do presente volume (Fluxo-Floema — SP: Perspectiva, 1970) foram chamados de "ficção" ou "prosa narrativa". Para Hegel o gênero épico-narrativo é o mais objetivo. A ele se contrapõe, dialeticamente, a antítese subjetiva do gênero lírico, sendo o dramático a síntese, visto reunir, segundo Hegel, a objetividade épica e a subjetividade lírica. Semelhante diferenciação perde o sentido em face dos textos em prosa de Hilda Hilst, já que neles todos os g6eneros se fundem. Eles são épicos no seu fluxo narrativo que às vezes parece ter a objetividade de um protocolo, de um registro de fala jorrando, associativa, e transcrita do gravador; mas são, ao mesmo tempo, nas cinco partes — Fluxo, Osmo, O Unicórnio, Lázaro e Floema — a manifestação subjetiva, expressiva, torturada, amorosa, venenosa, ácida, humorística e licenciosa de um Eu lírico que extravasa avassaladoramente os seus "adentros", clamando com "garganta agônica", do "limbo do lamento", tateando e sangrando, em busca de transcendência e transfiguração. Entretanto, este Eu ao mesmo tempo se desdobra e triplica, assumindo máscaras várias, de modo que o monólogo lírico se transforma em diálogo dramático, em pergunta, resposta, dúvida, afirmação, réplica, comunhào e oposição dos fragmentos de um Eu dividido e tripartido, múltiplo, em conflito consigo mesmo. Contudo, as vozes (que não se manifestam no pretérito da narrativa, mas amalgamando as formas do presente lírico e dramático) submergem na corrente de uma linguagem de espantosa invenção, de barroca criatividade, vozes quase indistintas, visto a autora cuidar de não diferenciá-las pelos símbolos tipográficos corriqueiros. Deste modo se fundem de novo, quase irreconhecíveis, no Eu lírico, portador do rasante turbilhão verbal que, lançado contra pedras e obstáculos, forma redemoinhos de "floema" engasgado, detendo-se, gago, a língua se tornando objeto de si mesma, se autocomentando, se autocriticando e autoflagelando, chegando até à autodestruição, para depois recompor-se e prosseguir, levada pelo impulso da maré verbal.

Os textos, em conjunto, visam a enunciar a totalidade do homem através da sua multiplicidade — e essa visão prismática ou caleidoscópica forçosamente teria que recorrer a todos os gêneros para exprimir-se na sua plenitude. "Porque vê a mim como adãoeva, dúplice sim, tríplice sim, multifário, multífido, multífluo, multisciente, multívio, multíssono..."

Em cada um dos textos há três "personagens", melhor três máscaras que se destacam: Ruiska, Ruisis, Rukah (desdobrado em anão), cada qual se fragmentando e todos UM, Ruiska, que vive entre o poço e a clarabóia, lunar e solar ("Fluxo"); Osmo, Mirtza e Kaysa: Osmo telúrico-lunar, sem que na sua escuridão lhe falte lucidez e aspiração à luz ("Osmo"); os dois irmãos, a lésbica e o pederasta, cada qual com a sua parte feminina e masculina, e o Eu que vira unicórnio, não sem que haja referência meio envergonhada à Metamorfose de Kafka e aos rinocerontes de Ionesco ("O Unicórnio"); Marta, Maria e Lázaro — esse "solarizado", vontade de ressurreição, de transmutação, rompendo o casulo ("Lázaro"). ". . .como explicar (lê-se em "Fluxo") à crisálida que ela é casulo agora e depois alvorada. . . como explicar o vir-a-ser de um ser que só se sabe no Agora, ai como explicar o Depois de um ser que só se sabe no instante?" E ao fim, em "Floema", Koyo, Haydum e Kanah: Koyo na sua luta com Haydum — relação religiosa selvagem como o amor; Haydum, o "outro", que, como diz Hilda Hilst, não sabe o que procura, que busca sem cessar e a este os homens dão, talvez impropriamente, o nome de Deus. Estranho Deus teosófico que faz do homem cobaia, que o trata a porretadas como se fosse cão sarnento, enquanto ao homem cabe salvar este Deus, que, como consta de uma das peças, é o lobo do homem como o homem é o lobo de Deus.

Na linguagem nobre e austera de sua poesia Hilda Hilst não poderia dizer toda a gama do ente humano, tal como o concebe, nem seria capaz de, no palco, "despejar-se" com a fúria e a glória do verbo, com a "merdafestança" da linguagem, sobretudo também com a esplêndida liberdade, com a inocência despudorada com que invade o poço e as vísceras do homem, purificando-os com "dedos lunares" para elevar o escatológico ao escatológico, visto nesta obra mesmo as trevas e o "porco" — "sou porco com vontade de ter asas", diz Ruiska — se carregarem de sentido religioso. Nos poemas se lê:

Ser terra
E cantar livremente
O que é finitude
E o que perdura.
Unir numa só fonte
O que soube ser vale
Sendo altura.

Ou então:

Sou tantas
Tantos vivem em mim e pródiga descerro-me
Pródiga me faço larva e asa.

Mas só agora consegue cantar livremente. Larvas e asas, porcos, aves, serpentes e unicórnios — tudo se funde na multiplicidade do homem: semelhante visão forçosamente resulta num universo em que ressalta o grotesco-fantástico, o grotesco-burlesco, o grotesco-terrorífico e o grotesco-obsceno, unidos nesta obra única na literatura brasileira.

Rouah, o demônio, o maldito de "Lázaro", é irmão gêmeo de Jesus e, sendo nosso irmão, merece, também ele, respeito. O anão de "Fluxo", que vem do "intestino, da cloaca do universo, do cone sombrio da lua", diz a Ruiska, o porco com "vontade enorme de limpar o mundo": "Mas se eu ainda nào sei das minhas vísceras, se ainda não sei dos mistérios do meu próprio tubo, como é que vou falar dos ares de lá? . . . é justo falar do de cima se o de baixo nem sabe onde colocar os pés?"

Os textos, no seu todo, com a audácia da sua linguagem em que o sagrado se reveste de atributos diabólicos e o monstruoso, de cores celestes, são uma celebração ritual levada ao desvario e ao paroxismo; ritual destinado a convocar a plenitude múltipla do homem em toda a sua imanência para, ao mesmo tempo, transcendê-la e fazer vislumbrar "os ares de lá". No próprio elemento verbal, levando a língua, no fluxo e refluxo da maré e da ressaca, tanto a tropeçar, com passos ébrios e pesados, como a dançar, com "graça nos pés" e "leveza nos andares", Hilda Hilst encarna e ao mesmo tempo supera "o limite da carne" que "pesa sobre nós". "O pensamento discursivo e lento" (de que se queixa num poema) naufraga na corrente vertiginosa de uma linguagem conotativa de cujo ventre fecundo nasce, lembrando quadros de Bosch e Brueghel, o mundo casto e impudico, real e supra-real, profundamente natural e terreno e, ao mesmo tempo, alucinatório e fantasmagórico, das narrativas de Hilda Hilst.

Entre a verdade e os infernos
Dez passos de claridade
Dez passos de escuridão
.
São Paulo, 1970.

Fonte:
http://www.angelfire.com/ri/casadosol/criticaar.html

Hilda Hilst (1930 – 2004)



Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu na cidade de Jaú, interior do Estado de São Paulo, no dia 21 de abril de 1930, filha única do fazendeiro, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst e de Bedecilda Vaz Cardoso. Com pouco tempo de vida, seus pais se separaram, o que motivou sua mudança, com a mãe, para a cidade de Santos (SP). Seu pai, que sofria de esquizofrenia, foi internado num sanatório em Campinas (SP), tendo nessa época 35 anos de idade. Até sua morte passou longos períodos em sanatórios para doentes mentais.

Foi para o colégio interno, Santa Marcelina, na cidade de São Paulo, em 1937, onde estudou por oito anos. No ano de 1945 matricula-se no curso clássico da Escola Mackenzie, também naquela cidade. Morava, nessa época, num apartamento na Alameda Santos, com uma governanta de nome Marta.

Em 1946, pela primeira vez, visitou o pai em sua fazenda em sua cidade natal, Jaú. Em apenas três dias, no pouco tempo que passou com ele, perturbou-se com sua loucura. Em "Carta ao Pai" diz a biografada:

"Só três noites de amor, só três noites de amor", implorava o pai, sim, o pai, ele nunca fizera uma coisa como essa, sim, era Jaú, interior de São Paulo, um dia qualquer de 1946, sim, a filha deslumbrante, tremendo em seus 16 anos, sim, o pai a confundia com a mãe, a mão dele fechada sobre a dela, sim, o pai a confundia com a mãe, a confundia, sim?..."

Aconselhada pela mãe, em 1948 inicia seus estudos de Direito na Faculdade do Largo do São Francisco. A partir de então levaria uma vida boêmia que se prolongou até 1963. Moça de rara beleza, Hilda comportava-se de maneira muito avançada, escandalizando a alta sociedade paulista. Despertou paixões em empresários, poetas (inclusive Vinicius de Moraes) e artistas em geral.

Em 1949 é escolhida para saudar, entre os alunos de Direito, a escritora Lygia Fagundes Telles, por ocasião do lançamento de seu livro de contos "O Cacto Vermelho".

Hilda lança, nos dois anos seguintes, seus primeiros livros: "Presságio" (1950), e "Balada de Alzira" (1951).

Conclui o curso de Direito em 1952. Três anos depois publica "Balada do Festival".

No ano de 1957 viaja pela Europa por sete meses (junho a dezembro). Namora com o ator americano Dean Martin e, fazendo-se passar por jornalista, assedia, sem sucesso, Marlon Brando, outro galã de Hollywood.

Em 1959 publica o livro de poesia "Roteiro do silêncio" e "Trovas de muito amor para um amado senhor". José Antônio de Almeida Prado, primo da escritora, inspira-se em poemas desse último livro e compõe a "Canção para soprano e piano". Em outras oportunidades voltou a basear-se em textos de Hilda para compor alguns de seus trabalhos mais significativos. Os compositores Adoniran Barbosa ("Quando te achei") e Gilberto Mendes ("Trovas"), entre outros, também se inspiraram em textos da autora.

"Ode fragmentária" é lançado em 1961. Seu livro "Trovas de muito amor para um amado senhor" é reeditado por Massao Ohno.

É agraciada com o Prêmio Pen Club de São Paulo pelo livro "Sete cantos do poeta para o anjo", em 1962. Passa a morar na Fazenda São José, a 11 quilômetros de Campinas (SP), de propriedade de sua mãe. Abre mão da intensa vida de convívio social para se dedicar exclusivamente à literatura. Tal mudança foi influenciada pela leitura de "Carta a El Greco", do escritor grego Nikos Kazantzakis. Entre outras teses, defende o escritor a necessidade do isolamento do mundo para tornar possível o conhecimento do ser humano.

Muda-se para a Casa do Sol, construída na fazenda, onde passa a viver com o escultor Dante Casarini, em 1966. Morre seu pai.

Em 1967 redige "A possessa" e "O rato no muro", iniciando uma série de oito peças teatrais que escreveria até 1969. Lança "Poesia (1959 / 1967)".

Por imposição da mãe, internada no mesmo sanatório em Campinas onde estivera seu pai, casa-se com Dante Casarini, em 1968. Escreve as peças "O visitante", "Auto da barca de Camiri", "O novo sistema" e "As aves da noite". "O visitante" e "O rato no muro" são encenadas no Teatro Anchieta, em São Paulo, para exame dos alunos da Escola de Arte Dramática, sob direção de Terezinha Aguiar.

Em 1969 escreve "O verdugo" e "A morte do patriarca". A primeira recebe o Prêmio Anchieta. A montagem de "O rato no muro", sob a direção de Terezinha Aguiar, é apresentada no Festival de Teatro de Manizales, na Colômbia.

"Fluxo-Floema", sua primeira obra em prosa, é lançada em 1970. A peça "O novo sistema" é encenada em São Paulo, no Teatro Veredas, pelos Grupo Experimental Mauá (Gema), sob a direção de Terezinha Aguiar. Baseando-se nos experimentos do pesquisador sueco Friedrich Juergenson relatados no livro "Telefone para o além", Hilda Hilst iria se dedicar, ao longo desta década que se iniciava, à gravação, através de ondas radiofônicas, de vozes que, assegurava, seriam de pessoas mortas. No mesmo período anunciou a visita de discos voadores à sua fazenda. "O verdugo" é editado em livro, e é, até hoje, a única que não é inédita. Morre sua mãe, Bedecilda.

Em 1972 o Grupo de Teatro Núcleo, da Universidade Estadual de Londrina, sobre a direção de Nitis Jacon A. Moreira, encena a peça "O verdugo". Essa mesma peça é encenada no Teatro Oficina, em São Paulo, sob a direção de Rofran Fernandes, no ano seguinte, época em que foi lançado seu novo livro "Qadós".

"Júbilo, memória, noviciado da paixão" é lançado em 1974.

No ano de 1977 é publicado o livro "Ficções", que recebe o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), como "Melhor Livro do Ano".

Três anos depois, 1980, saem os livros "Poesia (1959/1979)", "Da morte. Odes mínimas", e "Tu não te moves de ti". Recebe da APCA o prêmio pelo conjunto da obra. Estréia a montagem de "As aves da noite" no Teatro Ruth Escobar, com direção de Antônio do Valle. Divorcia-se de Dante Casarini, mas o ex-marido continua morando na Casa do Sol.

Passa a fazer parte do Programa do Artista Residente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 1982. Lança "A obscena senhora D". No ano seguinte publica "Cantares de perda e predileção", que recebe os prêmios Jabuti (da Câmara Brasileira do Livro) e Cassiano Ricardo (do Clube de Poesia de São Paulo).

Em 1984 saem os "Poemas malditos, gozosos e devotos". Dois anos depois, em 1986, publica os livros "Sobre a tua grande face" e "Com meus olhos de cão e outras novelas". 1989 marca o lançamento de "Amavisse".

Com "O caderno rosa de Lori Lamby", livro que consagra a nova fase iniciada em "A obscena senhora D", a escritora anuncia o "adeus à literatura séria" (1990). Justifica essa medida radical como uma tentativa de vender mais e assim conquistar o reconhecimento do público. A obra provoca "espanto e indignação" em seus amigos e na crítica. O editor Caio Graco Prado se recusa a publicá-la e o artista plástico Wesley Duke Lee a considera "um lixo". Lança "Contos d'escárnio/Textos grotescos e Alcoólicos".

O quarto livro dessa fase que, para muito, como dissemos, causou "espanto e indignação", "Cartas de um sedutor" é lançado em 1991. O livro "O caderno rosa de Lori Lamby" é traduzido para o italiano. Estréia, em São Paulo, a peça "Maria matamoros", adaptação do texto "Matamoros" que se encontra no livro "Tu não te moves de ti".

Em 1992 lança a antologia poética "Do desejo" e "Bufólicas", na verdade uma brincadeira quase infantil da autora, por muitos visto como uma paródia. Passa a colaborar com o Correio Popular, jornal diário de Campinas (SP), escrevendo crônicas semanais; o trabalho se estenderia até 1995.

No ano seguinte publica "Rútilo nada", num livro que também continha "A obscena senhora D" e "Qadós". "Rútilo nada" recebe o Prêmio Jabuti na categoria "Contos".

Em 1994, "Contos d'escárnio & Textos Grotescos" é traduzido para o francês.

No ano seguinte sai o volume "Cantares do sem nome e de partidas". O Centro de Documentação Alexandre Eulálio, da UNICAMP, adquire seu arquivo pessoal. A escritora sofre isquemia cerebral.

Em 1997, lança "Estar sendo. Ter sido". Seus poemas são lidos em Quebec, Canadá, juntamente com textos de Safo, Gabriela Mistral e Marguerite Yourcenar, entre outras autoras, no recital Le féminin du feu, durante as comemorações do Dia Internacional da Mulher.

A edição bilíngüe (português-francês) do livro "Da morte. Odes mínimas" é publicada em 1998. Publica também "Cascos & Carícias: crônicas reunidas (1992-1995)", volume de textos que saíram no jornal "Correio Popular". Volta a se dedicar a questões sobrenaturais: afirma acreditar no contato dos mortos com a Terra através de mensagens enviadas via fax. Reafirma o desejo de construir em suas terras um centro de estudos da imortalidade.

Em 1999, lança a antologia poética "Do amor". Sob a coordenação do escritor Yuri V. Santos entra no ar seu site oficial: http://www.angelfire.com/ri/casadosol/hhilst.html.

"O caderno rosa de Lori Lamby" é levado ao palco sob direção de Bete Coelho e tendo no papel principal a atriz Iara Jamra.

Em 2000, lança "Teatro reunido" (volume 1)". Estréia, em Brasília, a adaptação teatral de "Cartas de um sedutor". Estréia, na Casa de Cultura Laura Alvin, no Rio de Janeiro, o espetáculo "HH informe-se", reunião e adaptação teatral de textos da autora. Inauguração, em dezembro, da "Exposição Hilda Hilst - 70 anos", evento criado pela arquiteta Gisela Magalhães no SESC Pompéia, em São Paulo.

Em 2001, estréia, no Rio de Janeiro, a adaptação teatral de "Cartas de um sedutor". A Editora Globo passa a ser responsável por toda sua obra publicada.

Agraciada, em 2002, com o Prêmio Moinho Santista - 47ª edição, categoria poesia.

Agraciada, em 2003, pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), na área de literatura, com o Grande Prêmio da Crítica pela reedição de suas "Obras completas".

Hilda Hilst faleceu no dia 04 de fevereiro de 2004, na cidade de Campinas (SP).

Obras da Autora:
Poesia:

- Presságio - SP: Revista dos Tribunais, 1950.
- Balada de Alzira - SP: Edições Alarico, 1951.
- Balada do festival - RJ: Jornal de Letras, 1955.
- Roteiro do Silêncio - SP: Anhambi, 1959.
- Trovas de muito amor para um amado senhor - SP: Anhambi, 1959 SP: Massao Ohno, 1961.
- Ode fragmentária - SP: Anhambi, 1961.
- Sete cantos do poeta para o anjo - SP: Massao Ohno, 1962. (Prêmio PEN Clube - S. Paulo)
- Poesia (1959/1967) - SP: Livraria Sal, 1967.
- Júbilo, memória, noviciado da paixão - SP: Massao Ohno, 1974.
- Poesia (1959/1979) - SP: Quíron/INL, 1980.
- Da Morte. Odes mínimas - SP: Massao Ohno, Roswitha Kempf, 1980.
- Cantares de perda e predileção - SP: Massao Ohno/M. Lídia Pires e Albuquerque Editores,1980 (Prêmio Jabuti/Câmara Brasileira do Livro. Prêmio Cassiano Ricardo/Clube de Poesia de São Paulo.)
- Poemas malditos, gozosos e devotos - SP: Massao Ohno/Ismael Guarnelli Editores, 1984.
- Sobre a tua grande face - SP: Massao Ohno, 1986.
- Amavisse - SP: Massao Ohno, 1989.
- Alcoólicas - SP: Maison de vins, 1990.
- Do desejo - SP: Pontes, 1992
- Bufólicas - SP: Massao Ohno, 1992.
- Cantares do sem nome e de partidas - SP: Massao Ohno, 1995.
- Do amor - SP: Edith Arnhold/Massao Ohno, 1999.

Ficção:

- Fluxo-Floema - SP: Perspectiva, 1970. Qadós - SP: Edart, 1973.
- Ficções - SP: Quíron, 1977. (Prêmio APCA. Melhor livro do ano.)
- Tu não te moves de ti - SP: Cultura, 1980.
- A obscena senhora D - SP: Massao Ohno, 1982.
- Com meus olhos de cão e outras novelas - SP: Brasiliense, 1986.
- O caderno rosa de Lori Lamby - SP: Massao Ohno, 1990.
- Contos d'escárnio/Textos grotescos - SP: Siciliano, 1990.
- Cartas de um sedutor - SP: Paulicéia, 1991.
- Rútilo nada - Campinas: Pontes 1993. (Prêmio Jabuti/Câmara Brasileira do Livro.)
- Estar sendo. Ter sido - SP: Nankin, 1997.
- Cascos e carícias: crônicas reunidas (1992 / 1995) - SP: Nankin, 2000 Antologias Poéticas:
- Do desejo - Campinas, Pontes, 1992.
- Do amor - SP: Massao Ohno, 1999.

Teatro :

- A Possessa - 1967.
- O rato no muro - 1967.
- O visitante - 1968.
- Auto da barca de Camiri - 1968.
- O novo sistema - 1968.
- As aves da noite - 1968.
- O verdugo - 1969 (Prêmio Anchieta - Conselho Estadual de Cultura, 1970)
- A morte do patriarca - 1969.
- Teatro reunido (volume I) - 2000. (com exceção da peça "O verdugo", todas as obras são inéditas).

Prêmios:

1962, o Prêmio PEN Clube de São Paulo, por Sete cantos do poeta para o anjo (Massao Ohno Editor, 1962).
1969, a peça O Verdugo arrebata o prêmio Anchieta, um dos mais importantes do país na época. A Associação Paulista dos Críticos de Arte (Prêmio APCA) considera Ficções (Edições Quíron, 1977) o melhor livro do ano.
1981, Hilda Hilst recebe o Grande Prêmio da Crítica para o Conjunto da Obra, pela mesma APCA.
1984, a Câmara Brasileira do Livro concede o Prêmio Jabuti a Cantares de perda e predileção (Massao Ohno - M. Lídia Pires e Albuquerque editores, 1983), e, no ano seguinte, a mesma obra recebe o Prêmio Cassiano Ricardo (Clube de Poesia de São Paulo).
1993, Rútilo Nada. A obscena senhora D. Qadós, (Pontes - 1993) recebe o Prêmio Jabuti como melhor conto.
2002, com o Prêmio Moinho Santista - 47ª edição, categoria poesia.
2003, pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), na área de literatura, com o Grande Prêmio da Crítica pela reedição de suas "Obras completas".

Fontes:
http://www.releituras.com/
http://pt.wikipedia.org/
Cadernos de Literatura Brasileira . São Paulo: Instituto Moreira Salles. n. 8, out de 1999.
Foto = http://flap2007.zip.net/

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Adail Maduro Filho (Aonde Vais?...)



Aonde vais,
Gigante pela própria natureza?
Hospedeiro do desatino
Retrato da incerteza?

Roubam-te as vestes,
Sugam-te o sangue verde e amarelo...
Até quando?
Até quando será permitido
Que emudeçam teus cantos e encantos?
Pois se é pálido susurro
A voz desse teu povo
Triste é o langor
Do Uapixana, macuxi, atroari
E tantas outras raças
Que vieram a sucumbir.

Aonde vais,
Impávido colosso?
Transportado há tantas décadas
Às plagas de Norte América.
Rico solo, densa floresta
Vai morrendo pouco a pouco
E bem pouco é o que nos resta.

Teu sorriso que espalhava tua grandeza,
Hoje só lágrima do medo,
Da vergonha e da incerteza.
Calvário penoso
Fruto da ignorância,
Do descaso, do desmando e da ganância
Aberração patente de quem ergue
Outra bandeira.

Triste sina do que fomos,
Do que somos.
Sub Mundo, Terceiro Mundo...
Aceitas sinonímias as mais pejorativas
E estás sempre parindo
Parindo filhos pros outros
Como se fosses filho da outra.

E assim serás,
Até que morras pequenino
Pois do teu povo heróico
O brado é retardante
Não ressoa e morre na garganta
Como pássaro engaiolado
De tão triste já não canta.

Aonde vais,
Gentil Pátria amada?
Sepultar teus heróis
Que morrem antes de nascer?
Pois no ventre desnutrido
Da mãe solteira
É inglória a luta para sobreviver
E é selado o destino do embrião:
Se acaso nasceres
Vai ganhar teu pão
Roubando e matando de armas na mão.

Aonde vais,
Pátria amada, idolatrada?
Se são bastardos
Os filhos deste solo
Do qual és mãe.

Aonde vais,
Se o sol da liberdade
Já nem raios tem?
Se é isso,
Que para os grupos dominantes
E de elite
É o que convém,
Aonde vais?
Com este triste e vergonhoso perfil
Ó gentil, Pátria amada
Brasil?
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Sobre o Autor
Adail Maduro Filho - Membro da Academia de Letras do Brasil. Poeta "crítico existencial contemporâneo". Suas poesias sob temas sociais e humanos enfocam sobretudo distorsões e aberrações entre o real e o simbólico que se quer apregoar como verdadeiro. Na atualidade, em nosso juízo, um dos maiores poetas "crítico existencialista" em nosso País. A poesia supra tem sido adotada por diversos segmentos supra-partidários e mesmo por correntes crítico partidárias, não só no Brasil, como em outros países da América do Sul. Adail Maduro Filho é formado em Educação Física, contando com especialização em Psicopedagogia.

Fonte:
Academia de Letras do Brasil
Imagem = montagem: José Feldman

Augusto dos Anjos (Aniversário de Nascimento)

Augusto dos Anjos (Poesias & Poesias)


A árvore da serra


— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pos almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
«Não mate a árvore, pai, para que eu viva!»
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!
=====================

À mesa

Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensangüentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
Eis-me sentado à mesa!

Como porções de carne morta ... Ai! Como
Os que, como eu, têm carne, com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem! ...
Como! E pois que a Razão me não reprime,
Possa a terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também.
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A minha estrela

A meu irmão Aprígio A.

E eu disse - Vai-te, estrela do Passado!
Esconde-te no Azul da Imensidade,
Lá onde nunca chegue esta saudade,
- A sombra deste afeto estiolado.

Disse, e a estrela foi p’ra o Céu subindo,
Minh’alma que de longe a acompanhava,
Viu o adeus que do Céu ela enviava,
E quando ela no Azul foi-se sumindo

Surgia a Aurora - a mágica princesa!
E eu vi o Sol do Céu iluminando
A Catedral da Grande Natureza.

Mas a noute chegou, triste, com ela
Negras sombras também foram chegando,
E nunca mais eu vi a minha estrela!
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A nau

A Heitor Lima

Sôfrega, alçando o hirto esporão guerreiro,
Zarpa. A íngreme cordoalha úmida fica. ...
Lambe-lhe a quilha a espúmea onda impudica
E ébrios tritões, babando, haurem-lhe o cheiro


Na glauca artéria equórea ou no estaleiro
Ergue a alta mastreação, que o éter indica,
E estende os braços de madeira rica
Para as populações do mundo inteiro!


Aguarda-a ampla reentrância de angra horrenda
Pára e, a amarra agarrada à âncora, sonha!
Mágoas, se as tem, subjugue-as ou disfarce-as...


E não haver uma alma que lhe entenda
A angústia transoceânica medonha
No rangido de todas as enxárcias!
=====================

A noite

A nebulosidade ameaçadora
Tolda o éter, mancha a gleba, agride os rios
E urde amplas teias de carvões sombrios
No ar que álacre e radiante, há instantes, fora.

A água transubstancia-se. A onda estoura
Na negridão do oceano e entre os navios
Troa bárbara zoada de ais bravios,
Extraordinariamente atordoadora.

A custódia do anímico registro
A planetária escuridão se anexa...
Somente, iguais a espiões que acordam cedo,

Ficam brilhando com fulgor sinistro
Dentro da treva omnímoda e complexa
Os olhos fundos dos que estão com medo!
===========================

A um mascarado


Rasga esta máscara ótima de seda
E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos...
É noite, e, à noite, a escândalos e incestos
É natural que o instinto humano aceda!


Sem que te arranquem da garganta queda
A interjeição danada dos protestos,
Hás de engolir, igual a um porco, os restos
Duma comida horrivelmente azeda!

A sucessão de hebdômadas medonhas
Reduzirá os mundos que tu sonhas
Ao microcosmos do ovo primitivo...

E tu mesmo, após a árdua e atra refrega,
Terá somente uma vontade cega
E uma tendência obscura de ser vivo!
===========================

Agonia de um filósofo

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nêle tolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!

No hierático areopago heterogêneo
Das idéas, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
====================

Anseio

Que sou eu, neste ergástulo das vidas
Danadamente, a soluçar de dor?!
— Trinta triliões de células vencidas,
Nutrindo uma efeméride inferior.

Branda, entanto, a afagar tantas feridas,
A áurea mão taumitúrgica do Amor
Traça, nas minhas formas carcomidas,
A estrutura de um mundo superior!

Alta noite, esse mundo incoerente
Essa elementaríssima semente
Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal...

Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto,
E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto
Não poder dar-lhe vida material!
===========================

Ao luar

Quando, à noite, o Infinito se levanta
A luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tactil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!
===================================

As cismas do destino

I

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!

Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.

Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Biliões de centrosomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!

Mostravam-rne o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade egualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!

A corrente atmosférica mais forte Zunia.
E, na ígnea crostra do Cruzeiro,
julgava eu ver o fúnebre candieiro
Que há de me alumiar na hora da morte.

Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.

A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.

Ali! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!

Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignís sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.

É bem possível que eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!

Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma creança
E um pedaço de víscera escarlate.

Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.

Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh'alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.

Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma taça
Que, violou as leis da Natureza!

Era antes uma tosse úbiqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!

E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptisis!

Na alta alucinação de minhas cismas
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de tinia artéria rota,
Arrebentada pelos aneurismas.

Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!

Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!

II

Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!

Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!

Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.

Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os acoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.

Perpetravam-se os actos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia,
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.

Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampeão, lembrava ante o meu rosto,
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!

Em tudo, então, meus olhos distinguiram
Da miniatura singular de uma aspa,
A anatomia mínima da caspa,
Embriões de mundos que não progrediram!

Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista do cachorro
A alma embrionária que não continua?!

Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se no laringe,
Escapando-se apenas em latidos!

Despir a putrescível forma tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!

A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!

Surpreendo-a em quatriliões de corpos vivos,
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos
A contracção dos gritos instintivos!

Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes
Como bolhas febris de água, fervendo!

Nessa época que os sábios não ensinam,
A pedra dura, os montes argilosos
Creariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!

Almas pigméas! Deus subjuga-as, cinge-as
A imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O,
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopéas carolíngias!

Era a revolta trágica dos tipos
Ontogênicos mais elementares,
Desde os foraminíferos dos mares
À grei liliputiana dos polipos.

Todos os personagens da tragédia,
Cansados de viver na paz de Buda,
Pareciam pedir com a boca muda
A ganglionária célula intermédia.

A planta que a canícula ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!

Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!

E apesar de já ser assim tão tarde,
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita,
No meu temperamento de covarde!

Mas, reflectindo, a sós, sobre o meu caso,
Vi que, igual a um amneota subterrâneo,
jazia atravessada no meu crânio
A intercessão fatídica do atraso!

A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!

Nas agonias do delíríum-tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!

Enterram as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.

Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.

Fabricavam destarte os blastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espectáculo
De uma progênie idiota de palermas.

Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!

Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no "Engenho" também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!

Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos esponjando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!

Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!

Deante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!

E eu desejava ter, numa ânsia rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!

Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal, e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstracta do Universo,
Minha morada equilibrada e firme!

Nisto, pior que o remorso do assassino,
Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora voz interna,
O eco particular do meu Destino:

III

"Homem! por mais que a Idéa desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!

Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada ôca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.

Negro e sem fim é esse em que te mergulhas
Lugar do Cosmos, onde a dor infrene
É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!

Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a reflectir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!

A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!

Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!
Das papilas nervosas que há nos tactos
Veio e vai desde os tempos mais transactos
Para outros tempos que hão de vir ainda!

Como o machucamento das insônias
Te estraga, quando toda a estuada Idéa
Dás ao sôfrego estudo da ninféa
E de outras plantas dicotiledôneas!

A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;

As rebeladas cóleras que rugem
No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem,

O orbe feraz que bastos tojos acres
Produz; a rebelião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha.
Na sangueira concreta dos massacres;

Os sanguinolentíssimos chicotes
Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;

O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo
Entra, à espera que a mansa vítima o entre,
— Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;

As pálpebras inchadas na vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;

O trem particular que um corpo arrasta
Sinistramente pela via-férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;

A água arbitrária que hiulcos caules grossos
Carrega e come; as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopéias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;

As projecções flamívomas que ofuscam,
Como uma pincelada rembrandtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;

O antagonismo de Tifon e Osíris,
O homem grande oprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira mateórica do arco-íris;

Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;

O instinto de procrear, a ânsia legitima
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;

As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos 10 minutos de um acesso de asma;

E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
A morte desgraçada dos açougues...

Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!

Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!

Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;

Última das criaturas inferiores
Governada por átomos mesquinhos,
Teu pé mata a uberdade dos caminhos
E esteriliza os ventres geradores!

O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno,
Ao sangue dos mamíferos vorazes!

Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!

O Espaço — esta abstração spencereana
Que abrange as relações de coexistência
E só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!

As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham
São verdades de luz que os homens olham
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.

Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes
Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges,
Também prova o princípio de Arquimedes!

A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,
Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!

Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!

Quando chegar depois a hora tranqüila,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!

Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
E a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!

Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!. .. És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!

IV

Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o rei Lear, no meio da floresta!

Maldizia, com apóstrofes veementes,
No stentor de mil línguas insurrectas,
O convencionalismo das Pandectas
E os textos maus dos códigos recentes!

Minha imaginação atormentada
Paria absurdos... Como diabos juntos,
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada.

Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sostenidos de uma endeixa,
Vinha me às cordas glóticas a queixa
Das coletividades sofredoras.

O mundo resignava-se invertido
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido!

O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.

Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psiquê no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!

Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!
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Maurício Tuffani (A volta da ‘Literatura Ocidental’ de Carpeaux)


Uma das melhores notícias do ano que há pouco terminou foi a terceira edição da monumental História da Literatura Ocidental, de Otto Maria Carpeaux (1900-1978), lançada em quatro volumes pelas Edições do Senado Federal. Publicada originalmente em 1959, a obra foi elogiada e usada como referência por grandes críticos literários brasileiros, como Antonio Cândido, Álvaro Lins e Wilson Martins. O lançamento deve pôr fim às peregrinações, que se tornavam cada vez mais infrutíferas, de amantes da literatura pelos sebos em busca dessa obra. E o preço de R$ 200 deve também torná-la mais acessível, pois coleções completas de suas edições anteriores custam de R$ 500 a R$ 1.500.

Os quatro tomos da nova versão totalizam 2.879 páginas, além de outras 148 introdutórias, com a apresentação do poeta e escritor Ronaldo Costa Fernandes, um artigo do próprio Carpeaux sobre prefácios, fotografias, fac-símiles de laudas datilografadas com correções à mão e dois textos da primeira edição (Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1959, nove volumes), ambos suprimidos pelo autor na segunda (Rio de Janeiro, Alhambra, oito volumes).

Questões de método

Além do mérito intrínseco por ser a única obra do gênero em língua portuguesa — e uma das poucas no mundo —, História da Literatura Ocidental é fruto de um rigoroso trabalho metodológico cujo primeiro problema foi a delimitação de seu foco temático em sua multiplicidade. Como disse o próprio Carpeaux,

Para resolver o problema dessa multiplicidade, as obras de síntese coletivas justapõem simplesmente uma história separada da literatura italiana, uma da literatura francesa, uma da literatura inglesa, etc., etc.; evidentemente, isto não é síntese, e sim coleção incoerente. Daí não pode resultar jamais uma “história universal” da literatura universal. É necessário abolir as fronteiras nacionais para realizar a história da literatura européia (e americana).
[Vol. I, p. 38]

Nessa parte da introdução, cuja redação teve pequenas alterações na segunda edição, Carpeaux ressalta que a história da literatura universal se divide em grandes períodos, cujos nomes são consagrados pelo uso — Idade Média, Renascença, Barroco, Ilustração, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Simbolismo etc. — e que já na primeira metade do século XX, graças à evolução da análise estilística e ideológica, não eram mais clichês sem significação precisa.

O segundo problema de método da obra diz respeito à cronologia. A esse respeito, naquilo que consegui constatar, parece-me que Carpeaux esteve à altura dos desafios de seu empreendimento no plano histórico. Nada melhor que suas próprias palavras para esclarecê-lo:

A literatura não existe no ar, e sim no Tempo, no Tempo histórico, que obedece ao seu próprio ritmo dialético. A literatura não deixará de refletir esse ritmo — refletir, mas não acompanhar. Cumpre fazer essa distinção algo sutil para evitar aquele erro de transformar a literatura em mero documento das situações e transições sociais.
[Vol. I, p. 39]

A terceira questão metodológica se refere á relação entre literatura e sociedade, que, como disse Carpeaux, não é de mera dependência, mas de dependência recíproca entre fatores espirituais (ideológicos e estilísticos) e materiais (estrutura social e econômica). Por traduzir ao longo de sua obra essa compreensão, o autor, em plena Guerra Fria, transcende a acirrada polarização entre direita e esquerda que já existia naquele período.

A literatura é, pois, estudada nas páginas seguintes como expressão estilística do Espírito objetivo, autônomo, e ao mesmo tempo como reflexo das situações sociais.
[Vol. I, p. 40]

Incorreções e generalizações

Por mais rigorosos que tenham sido os critérios metodológicos acima apontados, são de se esperar algumas generalizações que podem tender à incorreção e à superficialidade. No entanto, chegam a ser decepcionantes, principalmente por partirem de quem teria se formado em filosofia, afirmações equivocadas como:

Tampouco os mitos platônicos são axiomas filosóficos; por isso, Platão os expôs em diálogos de índole literária, dramática, com a pretensão de criar uma Cidade e talvez uma religião, mas sem a pretensão de defender um sistema filosófico. Nunca, na Antigüidade, os diálogos de Platão foram citados como obras de filosofia racional. O grande criador de fórmulas filosóficas entre os gregos foi Aristóteles, do qual não pode tratar a história da literatura (…).
[Vol. I, p. 78]

Ora, basta consultar as obras do próprio Aristóteles (384-322 a.C.) para constatar, logo entre os primeiros capítulos, que em várias delas esse discípulo Platão (427-347 a.C.) se posicionou em relação ao pensamento de seu antigo mestre, entre elas Ethica Nicomachea, Metafísica, Poética e Sobre a Alma. Nesta última, no capítulo II, dedicado ao exame de teorias anteriores sobre o mesmo tema, a passagem 404b16-17 registra sua afirmação de que “no Timeu, Platão construiu a alma fora dos elementos”. O mesmo Timeu — que contém uma teoria da natureza e do conhecimento sobre ela —, ao qual Carpeaux se refere como uma alusão ao “mito historiografico do cotinente da Atlântida, que se perdeu como está se perdendo a Grécia”, com o mesmo simplismo que comenta outras obras como República, Parmênides, Sofista (Vol I, pp. 79-80).

Não bastasse o equívoco dessa interpretação, Carpeaux entra em contradição com ela ao se referir a aspectos filosóficos de outros autores, como Lourenço de Médici, o Magnífico (1449-1492), no qual aponta uma “luta íntima” entre o “supranaturalismo platônico e outro platonismo, nostálgico do idílio homérico” [Vol. I, p. 335].

Ainda a respeito de Lourenço, o autor corrigiu o erro, na primeira edição, de mencioná-lo como “o único príncipe que foi um grande poeta”, esquecendo-se de Charles d’Orléans (1394-1645), como bem observou Wilson Martins em sua resenha “A literatura ocidental”, no jornal O Estado de S. Paulo, em 3 de outubro de 1959, na qual foram apontados diversos deslizes. Carpeaux, diligentemente, procedeu na edição de 1978 a várias correções. Ainda que permaneçam alguns erros, não há como discordar do que afirmou Martins nessa mesma resenha:

Mas, incorreções e generalizações dessa natureza são inevitáveis em livros que cobrem matéria tão vasta e nem de longe chegam a afetar-lhes o valor de conjunto. O que importa é que Otto Maria Carpeaux haja “dominado” espiritualmente o assunto e tenha conseguido transmitir ao leitor uma “idéia” da literatura ocidental em sua especificidade e riqueza.
[Wilson Martins, Pontos de Vista (Crítica Literária). São Paulo: T.A. Queiroz, 1992, volume 3, p. 511.]

Seleção de autores

Justamente por cobrir matéria tão vasta, uma obra como História da Literatura Ocidental não tem como ser completa a ponto de contentar a todos. Estranhei, por exemplo, a ausência de nomes de autores cujas obras tiveram repercussão em outras culturas, como o de Flávio Josefo (c. 37-100 d.C.), judeu assimilado ao mundo romano e escritor em língua grega, que escreveu A Guerra Judaica, Antiguidades Judaicas, Contra Ápion e outras obras.

Eventuais omissões, no entanto, são muito menos problemáticas que inclusões questionáveis do ponto de vista da universalidade dos autores, seja no que se refere à sua abordagem, seja em relação à repercussão de suas obras. Martins, por exemplo, ressaltou que, ao selecionar oito mil autores, Carpeaux “deixou-se dominar mais pelo espírito de erudição do que pelo espírito crítico. (…) há páginas e páginas desta História que lembram as velhas histórias da literatura brasileira com sua fastidiosa, inútil e injustificada enumeração de oradores sacros e poetas menores.” [Pontos de Vista, p. 509].

Independentemente de estas e outras observações, como ressaltou o próprio Wilson Martins,

É motivo de orgulho, para nós, que uma das mais completas, das mais sérias, das mais eruditas e das mais agudas dessas “histórias da Literatura Ocidental” tenha sido escrita no Brasil e por um brasileiro (…) Um brasileiro “ocidental”, para quem nada do que é humano e, notadamente, nada do que é literário, será estranho; o único brasileiro em condições de realizar esse trabalho, pois, sendo brasileiro, não deixou de ser europeu, vive conscientemente a condição de “cidadão da Europa”, que se torna cada vez mais rara desde a Renascença.

Filho de pai judeu e mãe católica, Otto Maria Karpfen nasceu e foi criado em meio à efervescência cultural de Viena, na Áustria, onde começou a estudar direito, mas redirecionou sua formação para a filosofia, física, sociologia e literatura comparada. Foi jornalista e trabalhou para o governo ditatorial do primeiro-ministro Engelbert Dolfuss (1892-1934) — assassinado numa tentativa de golpe nazista — e de seu sucessor Kurt Schuschnigg (1897-1977), deposto em 11 de março de 1938 na Anschluss (anexação) da Áustria ao III Reich.

Opositor aos nazistas, Karpfen fugiu para a Bélgica, onde ficou por cerca de um ano, e de lá partiu em 1939 em uma viagem de navio, durante a qual estourou a II Guerra Mundial. Naturalizou-se brasileiro e afrancesou seu sobrenome.

Sobre Mauricio Tuffani

Jornalista especializado em ciência e meio ambiente, é editor do blog "Laudas Críticas" e assessor-chefe da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Reitoria da Unesp Universidade Estadual Paulista). Foi editor-executivo dos sites "PNUD Brasil" (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e "Nações Unidas no Brasil", editor-chefe e redator-chefe da revista "Galileu", editor de ciência e repórter da "Folha de S. Paulo". Foi professor convidado do Labjor (Laboratório de Estudos Avançados de Jornalismo Científico da Unicamp), atuou em diversos veículos de comunicação, editou revistas científicas da área médica e trabalhou também como assessor no Institutop Florestal da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, na Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembléia Nacional Constituinte e na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados. Comnçou a trabalhar como jornalista em 1978 como revisor do "Jornal da Tarde" e de "O Estado de S. Paulo". Iniciou estudos de matemática e filosofia na Universidade de São Paulo e foi professor de Matemática e Física no ensino médio.

Fontes:
http://laudascriticas.wordpress.com/2009/01/17/carpeaux/
Foto de Mauricio = http://criacionista.blogspot.com

domingo, 19 de abril de 2009

Aniversário de Lygia Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles (Natal na Barca)



Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.

— Mas de manhã é quente.

Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.

— Quente?

— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

— Mas a senhora mora aqui perto?

— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

— Seu filho?

— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.

— É o caçula?

Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.

— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.

Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

— E esse? Que idade tem?

— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.

— Seu marido está à sua espera?

— Meu marido me abandonou.

Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.

— Há muito tempo? Que seu marido...

— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.

— A senhora é conformada.

— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

— Deus — repeti vagamente.

— A senhora não acredita em Deus?

— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim

— Estamos chegando — anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

- Chegamos!... Ei! chegamos!

Aproximei-me evitando encará-la.

— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

— Acordou?!

Ela sorriu:

— Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

Fontes:
Lygia Fagundes Telles. Antes do Baile Verde. Ed. Nova Fronteira, 1995.
Imagem = http://blog.seashepherd.org.br/

Lygia Fagundes Telles (1923)

1923
Nasce em 19 de abril, em São Paulo, Lygia de Azevedo Fagundes, quarta filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura.
Acompanhando o pai, advogado que exercia as funções de promotor público e delegado, Lygia passa a infância em cidades do interior paulista: Sertãozinho, Apiaí, Descalvado, Areias e Itatinga.
1931
Influenciada pelas histórias que ouvia das empregadas de sua família, a menina recheia de imagens aterrorizantes as suas primeiras narrativas, escritas em cadernos escolares e contadas em casa.
1936
Seus pais se separam, mas não se desquitam.
1938
Numa edição financiada por seu pai e assinando Lygia Fagundes, lança seu primeiro livro, “Porão e sobrado”, com 12 contos. A escritora nunca mais autorizaria a republicação deste livro.
1939
Conclui o curso fundamental no Instituto de Educação Caetano de Campos, em São Paulo.
1940
Começa a cursar a Escola Superior de Educação Física e o preparatório para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).
1941
Inicia o curso de Direito no Largo de São Francisco e conclui o de Educação Física. Participa de rodas literárias da faculdade em lugares como a Leiteria Itamarati, a Confeitaria Vienense e a Livraria Jaraguá. É apresentada a escritores como Oswald de Andrade e Mário de Andrade e conhece o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, com quem viria a se casar mais de 20 anos depois. Fazendo parte da Academia de Letras da faculdade, colabora nos jornais acadêmicos “Arcádia” e “O Libertador”. Consegue emprego como funcionária da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo.
1944
Ainda estudante de direito, publica pela editora Martins “Praia viva”, seu segundo livro de contos.
1945
Seu pai morre num hotel na cidade de Jacareí, interior paulista.
1946
Forma-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais.
1949
Publica outro volume de contos, “O cacto vermelho”, pela editora Mérito. O livro conquista o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, mas também não voltaria a ser reeditado, embora alguns desses contos estejam incluídos em “Antes do baile verde”, de 1970.
1950
Primeiro casamento.
1952
Volta a viver em São Paulo, onde começa a escrever seu primeiro romance, “Ciranda de pedra”.
1953
Sua mãe, Maria do Rosário, apelido Zazita, pianista, morre na capital paulista.
1954
Nasce em São Paulo Goffredo da Silva Telles Neto, seu filho. Sai pelas Edições O Cruzeiro “Ciranda de pedra”, que seria o marco de sua maturidade intelectual na opinião do crítico Antonio Candido.
1958
“Histórias do desencontro” é lançado pela editora José Olympio e premiado pelo Instituto Nacional do Livro.
1960
Separa-se do marido.
1961
É nomeada procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo.
1963
Publica seu segundo romance, “Verão no aquário”, pela editora Martins. Começa a viver com Paulo Emílio Salles Gomes num apartamento da Rua Sabará, em São Paulo.
1964
Lança a coletânea de contos “Histórias escolhidas”, pela Martins, com prefácio de Paulo Rónai.
1965
Ainda pela editora Martins publica o livro de contos “O jardim selvagem”.
1967
Escreve de parceria com Paulo Emílio Salles Gomes um roteiro de cinema inspirado no romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, a pedido do diretor Paulo Cezar Saraceni. O roteiro acabaria publicado apenas em 1993, sob o título “Capitu”, pela editora Siciliano.
1970
É publicado pela Bloch “Antes do baile verde”, seleção de contos escritos e publicados entre 1949 e 1969. O conto-título conquista na França o Grande Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros.
1973
“As meninas”, seu terceiro romance, cujas primeiras linhas tinham sido escritas dez anos antes, é publicado pela editora José Olympio e recebe três prêmios:
Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro; Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras; e o de Ficção, da Associação Paulista de Críticos de Arte. A apresentação do livro é de autoria de Paulo Emílio Salles Gomes.
1977
“Seminário dos ratos”, livro de contos, é lançado pela José Olympio. Em setembro morre Paulo Emílio. Lygia recebe como herança a causa do marido na luta pelo cinema nacional. Assume a presidência da Cinemateca Brasileira.
1978
Sai pela editora Cultura o volume de contos “Filhos pródigos”, que a partir de 1991 passaria a se chamar “A estrutura da bolha de sabão”. Uma adaptação de seu conto “O jardim selvagem” é exibida no programa “Caso especial”, da Rede Globo.
1980
Lança “A disciplina do amor”, reunião do que classifica de “fragmentos” e que marca o início de um relacionamento de 17 anos com a editora Nova Fronteira.
1981
“Mistérios”, coletânea de contos fantásticos, é publicada. Entre maio e novembro, a Rede Globo exibe “Ciranda de pedra”, novela baseada em sua obra homônima.
1982
É eleita para a cadeira 28 da Academia Paulista de Letras.
1985
É eleita para a cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras no dia 24 de outubro, por 32 votos a 7, na vaga de Pedro Calmon.
1987
Toma posse na ABL em 12 de maio.
1989
Lança seu quarto romance, “As horas nuas”.
1990
É tema do documentário “Narrarte”, dirigido por seu filho Goffredo e Paloma Rocha. O filme é premiado no Festival de Cinema de Gramado.
1991
Aposenta-se como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo.
1993
Adapta seu conto “O moço do saxofone” (do livro “Antes do baile verde”) para a série “Retratos de mulher”, da Rede Globo, num episódio chamado “Era uma vez Valdete”.
1994
Participa da Feira de Frankfurt.
1996
Lança o livro de contos “A noite escura e mais eu”. “As meninas” chega ao cinema num filme de Emiliano Ribeiro, que assume o projeto de David Neves depois da morte do cineasta.
1997
A editora Rocco adquire os direitos de publicação de toda a sua obra, que chega em novas edições às livrarias.
1998
Integra a delegação brasileira que vai ao Salão do Livro de Paris.
2000
É publicado pela Rocco o volume de contos “Invenção e memória”.
2001
Recebe o Golfinho de Ouro, o Grande Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte e o prêmio Jabuti por “Invenção e memória”.
2002
Lança "Durante aquele estranho chá - Perdidos e achados", com textos organizados pelo jornalista Suênio Campos de Lucena que relembram encontros, acontecimentos e emoções que viveu, ressaltando-se sua paixão pela literatura.
2003
Seu mais conhecido romance, “As meninas”, completa 30 anos e é tema de artigos e celebrações. Torna-se nome de prêmio literário criado pelo governo do Estado de São Paulo, que a homenageia, pelo conjunto de sua obra, com uma grande festa em 29 de setembro.
2004
Lança a antologia Meus contos preferidos, reunindo 31 textos que mesclam épocas, estilos e temas.
2005
Recebe o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa, no valor de € 100 mil. Entre os brasileiros laureados, estão João Cabral do Melo Neto, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Antonio Candido, Autran Dourado e Rubem Fonseca. Lança Meus contos esquecidos, depois que leitores se quixam da ausência de textos importantes na antologia publicada no ano anterior.
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Biografia mais detalhada = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/02/lygia-fagundes-telles-1923.html
Contos:
O Moço do Saxofone http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/01/o-escritor-com-palavra-lygia-fagundes.html
Venha ver o pôr do sol http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/03/lygia-fagundes-telles-venha-ver-o-pr-do.html