domingo, 28 de fevereiro de 2010

Maurício Chamarelli (Os Últimos Anos de Sibila)

Pintura de Salvador Dali
Segundo me foi dado coletar de uma fonte
infimamente confiável, Sibila,
sacerdotisa de Apolo, a quem o deus concedera
o poder da profecia, pedira-lhe,
a certa altura da vida, o dom da longevidade.
O deus concedeu-lhe o número de anos igual ao
de grãos de areia que pudesse segurar, o que
não impediu que seu corpo não acompanhasse
esta longevidade e perecesse mesmo antes dela.
E mais: antes de sua voz.


I

Extremidades frias do meu corpo: a velhice. Não sei se me vem primeiro a perda de consciência dos movimentos, ou sua incessante repetição. Quando jovem, em cada curva, um dilema vital, em cada questão, uma resposta absoluta. Mas a maturidade antecipa a leveza de todas as coisas. Nada de veraz muda ou a atinge. Pisco os olhos e não sei se encontro o mesmo mundo à minha frente, ou se escorrego cada vez mais rápido colina abaixo. Não sei sequer se lamento.

II

O peso dos anos, a solidão. Porém, mais do que tudo o silêncio. Eras ela silenciou solitária. A princípio falava consigo. Depois, resguardava ao pensamento a honra dos ainda-não-vocábulos. Até que, afásica, arrastava-se pelo mundo aonde as palavras não chegam. A mesma casa, mas já não mais casa. O mesmo tempo, mas já sem a interpelação ininterrupta de t-e-m-p-o: palavra tempo. O mundo não – mundo – .

III

Cabelos rarefazem-se. Costas se curvam. Quase como se, finalmente, entendesse a vida e agradecesse a ela. Como se caísse o pano e soassem os aplausos. Como se, curvada em reverência, me fosse dado aceitar a fatalidade. Pois bem: a vida nos dobra, nada mais. Pouco a pouco desfaz-nos de armas e palavras de injúria. E cala-nos. Calei-me. E comigo o mundo.

IV

A velhice: o valor dos rituais. A repetição incessante: comida ao gato, água às plantas, sabão às roupas. A total automatização de cada ato: a inconsciência. A mesma vassoura, todo o dia, no mesmo azulejo até que se removesse toda a distância entre azulejo e vassoura. Até que já não mais se fizesse necessária a ótica peculiar de – vassoura – e de – azulejo – . Até que não mais se impusesse, entre a mão e o cabo de madeira, a palavra vassoura. Ou mesmo a palavra mão, ou mesmo madeira.

V

Olho pela janela. A cidade, profusão incessante de nomes. Que verbos me fazem? Me diluem? Viadutos, carros: nomes. Silêncio. Ninguém está em silêncio ou no escuro na cidade. Há! Mesmo na casa, o gato, no campo, batidas de coração. A vida exalta a si mesma com a música e exala seu silêncio em luzes. Sua escuridão em vozes. E sua afasia em nomes.

VI

Até que um dia voltou. Pouco a pouco, as palavras retornaram. Mas não todas. Algumas levaram anos. Para voltar a serem ditas. E ainda certas palavras não voltaram. Não voltaram nunca – inomináveis? Mas mesmo as que retornaram, ressurgidas de abismo quem-sabe-quão-profundo, traziam consigo qualquer coisa de diferente. Um certo frescor de novas.

VII

Me observava. Cada movimento. Como se pronto a reagir. Mas ainda assim mantinha a autonomia e aparentava calma. Levou umas duas linhas no livro da vida para que se tornasse um gato. Sim, algo a que se pudesse chamar gato. Primeiro tinha de decidir-se por patas. Dianteiras. Traseiras. Um tronco, um rosto, orelhas. Entranhas etc. E cor. Pois bem: um gato. Eu mesma o experienciara momentos antes. Não. Não há nada mesmo de engraçado. O braço ainda não braço a transpirar as sílabas bra. Ço. A mão a lembrar-se de que já foi um dia mão. E eu, entre soluços, engasgos. Suando. Tremendo. Eu podendo soar eu outra vez. Imaginar eu, dizer – eu – .

VIII

Algumas palavras não voltaram. Algumas coisas ficaram sem nome. Mas outras que talvez precisassem destes. Como por exemplo o ato de alimentar o gato. Ou virar a água da tina no tanque ao tirar do molho as roupas. O espaço que a pele enrugada, sobrepondo-se, sufoca e obscurece. A marca dos óculos nas laterais do nariz ou a envergadura da alma para suportar o peso dos anos. Ou o ato de voltar. De soar eu outra vez, de transpirar sílabas: sibilar.

IX

O mundo fluir o mundo em palavras. Dar nome a rostos que nunca nascerão. À minha volta dançam palavras sem qualquer significado. Nomes irreferenciáveis, verbos impossíveis. – O que virá e o que passou se encontram no compasso oracular da minha música: no raso verbo da voz só há tempo para dizer o que passa. Coisas mortas. Vivas. Desbravar sem trilhas ou bandeiras: marcar talvez o caminho com pontos parágrafos. E recomeçar.

X

O entorno transpira – parede – . O embaixo soa – chão – . O mundo reivindica de novo seus nomes, como o gato. Mas é pouco. Sibilavam, por exemplo, coisas impossíveis. Não mais o gato, mas – gato – . Não mais a porta, mas – porta – . As palavras tomavam vida própria. É mais: o mundo não voltaria jamais a ter nomes. As coisas não voltam mais a ter nomes. Os nomes voltam.

XI

Sinto-me a boca transbordar mistérios. Desfoquei o mundo, desci às profundezas do pensamento e encontro-me irremediavelmente viva. Sinto em mim pulsar qualquer coisa. E na garganta – garganta qualquer – a vontade de cantar! Não, não virão mais injúrias! A vida também chora quando soa a morte! O derradeiro golpe da foice não é a fatal negação aos mortais, é a vida a dobrar-se aos seus próprios desígnios. É ela que a si mesma impõe limites, que consigo mesmo se concilia. E mesmo assim em nenhum momento o mundo se entristece.

XII

Seu corpo deteriorou. Os anos soaram seus gongos e levaram o gato. As plantas. E tudo mais se esvaía. Algumas coisas já haviam morrido e seus nomes ainda pairavam irreferenciados; enquanto outras viviam, solitários corpos sem nomes. E todas as coisas se faziam ouvir por Sibila. E sua voz viveu para além de seu corpo. Em seus últimos anos ela foi somente voz. E quando o proprietário adentrou o apartamento com a moção de despejo, ainda soava um leve sussurro no ar. Como se as paredes, e o chão, e o tapete, e os quartos, sibilassem. Como se uma voz, uma voz somente, se quisesse fazer ouvir.


À minha bisavó Angelina
e seu silêncio que tanto me custa ouvir.

Fontes:
Confraria do Vento. http://www.confrariadovento.com/revista/numero6/conto02.htm

Maurício Chamarelli (1984)


Maurício Chamarelli Gutierrez é carioca, nascido em 1984, estudante de literatura na UFRJ e de música na Escola de Música Villa-Lobos. Toca saxofone nas horas vagas. Participou do projeto Arranjos para Assobio, da UFRJ, até 2004.

Uma girafa por entre outros animais, Maurício Chamarelli é daqueles cuja presença se ergue por sobre a grande maioria das outras. Entre os pés ágeis batendo firmes no chão enquanto recebem a força da terra e a cabeça que acolhe o mais tênue das alturas, o pensamento, neste livro, é do corpo, articulado pela intensidade destes dois vetores. Seja no ensaísmo, inédito, seja, como agora, na poesia, que se edita, este jovem de 21 anos começa traçando sua trajetória para que a vida fale publicamente em passos de gigante. Como se isto, com folga, não bastasse, ainda surpreendente é a intensidade tão precocemente aliada a uma rara maturidade; ou talvez seja justamente por tal aliança que, aqui, vida, de fato, fale em passos de gigante. Pela grandeza do que aqui se mostra, e do que, fora daqui, também conheço, a poesia e o pensamento brasileiros recebem um reforço de peso, daqueles que já chegam para vestir a camisa 9 ou 10 da seleção. Fosse a poesia futebol, não tenho dúvidas de que, com esta estréia, Maurício Chamarelli seria logo cobiçado pelos gramados europeus... mas, felizmente, não é este o caso.

Se, no princípio, era o corpo, e se todo corpo é tênue (não apenas o do poeta, mas o do leitor e de qualquer um ou outro que nunca teve um livro nas mãos), e se trata-se de uma voz – como é, explicitamente, o caso –, qual a voz, corporal, que concilia o corpo, que sempre principia, com o verbo que lhe é decorrente? Aqui, a voz poética é grito, sopro, rugido, tudo o que, imerso no sentido, sem denegá-lo, criando-o, o antecipa em puras exclamações, em sons de palavras rubras, rudes ou, mesmo, cansadas. A poesia de Maurício Chamarelli é da voz que antecipa o verbo, da voz que, no sentido, pronuncia o berro de nascimento de todo e qualquer sentido. De peito aberto e pés descalços, este corpo tênue mora em farpas da voz. E esta voz, tênue e corporal, esta voz encorpada da vida em passos de gigante, é uma farpa entre o nome e a morte, entre a morte e o nome. Ser esta farpa, eis a excelência do desafio poético proposto por Maurício Chamarelli. No princípio corporal e vocal, ser, portanto, tênue, só uma tonalidade, apenas uma veia, um mínimo vibrátil que alimente a interminável procura de um nome melhor para isto. Para isto que é vida (em passos de gigante), para isto que é poesia (também em passos de gigante).

A imagem, sim, a imagem incontornável, mas, em Corpo Tênue, sobretudo a música, que, mesmo na visão, é anterior à própria visão, a música do pensamento, da poesia, a música da voz. A música do grito, do sopro, do rugido. A música do corpo e, no corpo, a música do tênue. A música, como o mais tênue corpóreo, para quando a aflição do incorpóreo me estiver afogando. A música da celebração da poesia, afirmadora de todo um complexo de forças que, não se tornando perceptível, deixaria o mundo muito pior. A música... Diz o livro: É tudo música. Desde a abertura deste livro, a música se faz presente tanto como modo de realização quanto como tema. Assim, bem de acordo com o John Coltrane homenageado, o que se mostra ao longo do livro, entremeados ou não por títulos, são acontecimentos poemáticos espiralados feito o rodamoinho de um furacão, cujas células, menores (um verso qualquer que temos pela frente) ou maiores (todo o conjunto do livro), nos trazem – sempre – o poético em sua melhor maneira, o poético que mostra a vida em passos de gigante. Pegue este livro, portanto, como uma primavera nos dentes, porque, mesmo que escrito na primeira floração, ele se anuncia como outubro: Mas outubro,/ Outubro se anuncia entre esses dentes.// Não sei se de dentro/ - como vômito/ Ou se de fora/ - como soco// Mas outubro, outubro se anuncia. Maurício Chamarelli assim se anuncia: com passos de gigante.

(Prefácio do Livro Corpo Tênue, por Alberto Pucheu)

Fontes:
Confraria do Vento.
As Escolhas Afectivas.
http://www.oficinaraquel.com/mauricio.html

Everardo Norões (Mais Poemas)

Pintura de Dulce Maria Assunção
LAVADOR DE PRATOS

Sussurram,
na superfície da louça,
os duendes da faiança
e o piano de Satie.
Enxáguo
desejos inconfessos
e, entre talheres,
me despeço
da Gymnopédie.
Há sempre um ar de água
nas frases que me dizem
quando a manhã acaba.
E, no brilho dos pratos,
a mesma cor
da mágoa.
G G G G G G G G G

SERTÃO

As nuvens são baixas,
mas alto é o céu.
O que parece passar,
permanece.

O verde, no cinza
se descobre.
A luz,
da escuridão se tece.

O verbo afia,
a faca desafia:
no oculto de mim,
tudo é Sertão.
G G G G G G G G G
DOMINGO DE RAMOS

Vejo teu corpo
e penso num Domingo de Ramos:
um aceno de palmeiras
um halo de estrelas:
frestas de luz em que se somem
um cristal de lembranças,
um jumentinho,
a cruz das tuas ancas.
Penso num Domingo de Ramos
como aquele, sempre festa:
do vinho, da água, da poeira,
do rebrilhar de peixes sobre pedras.
Vejo teu corpo
e soam litanias:
há espadas de folhas e um abrigo
sob o branco marfim do teu vestido.
Penso num Domingo de Ramos,
no teu horto, no vermelho da boca,
na Paixão,
no mistério que desce das colinas,
olivas espalhadas pelo chão.
Cálice despejando em minha língua
um fel de histórias esquecidas:
a hóstia consagrada do perdão.

Vejo teu corpo e penso
num Domingo de Ramos.
Como aquele,
em que me acenas
o sangue de um cordeiro degolado,
brilhando sobre a luz das açucenas.
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Aprendendo sobre Poesia (Parte III – final)

Pintura Studying, de Iman Maleki


GÊNEROS LITERÁRIOS

A conceituação dos gêneros literários tem levantado problemas até o momento insolúveis, tendo também dado azo a que aparecessem várias teorias, havendo inclusive aqueles que negam sua existência.

Dá-se o nome de gênero literário a "famílias de obras dotadas de atributos iguais ou semelhantes" (Massaud Moisés). Note-se que a palavra "gênero" vem do latim generu -, e significa família, raça, ou seja, agrupamento de indivíduos ou seres que têm características comuns.

O primeiro autor a se preocupar com os gêneros literários foi Platão que, em sua República, classifica as obras literárias em três gêneros, a saber:

- a tragédia e a comédia, ou seja, o teatro;
- o ditirambo, ou poesia lírica;
- a poesia épica

Na antigüidade clássica greco-romana e no Renascimento - época em que se revalorizou a produção de Grécia e Roma antigas - adotava-se o pensamento de Platão, e acreditava-se que os gêneros preexistiam aos autores, tendo cada um deles regras fixas que deviam ser obedecidas rigorosamente, sendo ainda cada gênero considerado como um compartimento estanque, absolutamente impermeável às influências dos outros, não podendo haver, por isso, mistura entre eles nem entre as espécies.

Muitas das normas que regiam a criação literária só deixarão de ser aceitas com o Romantismo, no século XIX, que adotou a idéia dos gêneros comunicantes, o que deu origem inclusive a gêneros novos, como o drama, desaparecendo também a idéia clássica de que o número de gêneros literários seria limitado e imutável.

Tradicionalmente, e segundo o pensamento de Platão, consideram-se três gêneros literários fundamentais: o lírico, o épico e o dramático.

A cada gênero correspondem, geralmente, determinadas espécies materiais de forma, determinadas "formas" literárias, em prosa ou em verso, adequadas àquilo que se deseja exprimir. Assim, o gênero épico, narrativo e grandioso, requer forma adequada, ou seja, um poema mais longo, com versos maiores e mais solenes. Do mesmo modo, o lírico, às vezes tranqüilo, às vezes intempestivo, procura a forma (ou "forma" ) adequada ao que se deseja exprimir, aparecendo ora sob a forma de poemas maiores e mais densos, como a ode, ora sob a forma de poemas pequenos e graciosos, como o madrigal. A essas "formas" literárias costuma-se dar o nome de espécies.

Esquematizando, são os seguintes os gêneros literários:

Gênero
Espécie
Lírico (geralmente em verso)
soneto, ode, elegia, madrigal, etc.

Épico
(em verso)
epopéia
poema
poemeto

(em prosa)

Dramático (em prosa ou em verso)
tragédia
comédia
drama

1. Gênero Lírico

A palavra lírico vem do latim lira, instrumento musical. Na antigüidade grega, os poetas cantavam suas composições ao som de liras. Na Idade Média, durante o período provençal a poesia voltou a ser contada, depois de ter sido declamada na Roma antiga.

Pode-se dizer que o gênero lírico é aquele que expressa um sentimento pessoal. Seu conteúdo "é a maneira como a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago deste conteúdo" (Hegel). De fato, ao poeta lírico interassam apenas suas sensações, seus estados de alma, seus sentimentos, É, a bem dizer, um ser isolado, um indivíduo voltado para dentro de si mesmo, embebido em eterna autocontemplação. A paisagem exterior, a Natureza ou os homens só lhe interessam na medida em que se projetam nele, ou na medida em que o exterior é passível de ser interiorizado. Veja-se, como excelente exemplo, o poema de Fernando Pessoa, Contemplo o Lago Mudo, já focalizado no capítulo referente à distinção entre poesia e prosa.

Normalmente o gênero lírico se apresenta sob a forma de verso, o que não impede que apareça também em prosa, muito embora alguns autores prefiram chamar "lirismo" ao transbordamento da alma do autor em obras em prosa, como, por exemplo, os dois primeiros parágrafos de texto de Jorge Amado, também focalizado no capítulo referente à distinção entre poesia e prosa.

Poesia lírica seria, por exemplo, o trecho abaixo. de Gonçalves Dias:

"Enfim te vejo! - enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei. Cruas âncias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!

Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!

Louco, aflito, a saciar-me
D'agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da espr'ança,
Tu me vieste à lembrança,
Quis viver mais e vivi!
(Gonçalves Dias, Ainda uma vez - Adeus! In "Poesias", Agir, pág. 61)

2.Gênero Épico

A palavra épico vem do grego épos, narrativa, recitação. A poesia épica nasceu, no Ocidente, com Homero, poeta grego que viveu entre os séculos IX e VIII a.C. e escreveu dois poemas que constituíram os primeiros modelos épicos: a Ilíada e a Odisséia.

Depois de Homero, a poesia épica, seguindo certas normas tradicionais que se baseavam na obra do poeta grego, foi cultivada até o Romantismo.

Na antiguidade romana, a epopéia mais conhecida é a Eneida, de Virgílio. Na Idade Média, aparecem vários poemas narrativos, especialmente nos séculos XII, XIII e XIV, que se afastam dos padrões clássicos (Homero e Virgílio) pelos assuntos abordados e pela técnica narrativa. São inspirados, geralmente, em façanhas guerreiras da época da cavalaria andante. São mais conhecidos: a Canção de Rolando, o Romance de Alexandre, os romances da Távola Redonda, o Cantar de Mio Cid.

No Renascimento, com a revalorização da antiguidade greco-romana e a conseqüente imitação de sua literatura, aparecem novos poemas épicos que tomam como modelo as grandes epopéias dos gregos e romanos, especialmente a dos dois poetas já citados. Datam desse período o Orlando Furioso, de Ariosto, Jerusalém Libertada, de Tasso, ambos na Itália; em Portugal, Camões escreve Os Lusíadas, o maior poema da língua.

Ainda no Romantismo - século XIX - cultivou-se a poesia épica, embora dentro de nova visão, diferente da dos clássicos e renascentistas.

Na antiguidade clássica e no Renascimento, o gênero épico deveria obedecer a certas regras, a certas normas que o caracterizavam:

1. O poema épico deveria ser dividido em cinco partes, a saber:

a- Preposição: em que o autor resumiria o assunto da obra.
b- Invocação: na qual o autor pedia a uma divindade que o inspirasse em sua criação.
c- Oferecimento: parte em que o autor dedicava seu poema a alguém. (O oferecimento não era obrigatório.)
d- Narrativa: o corpo do poema propriamente dito.
e- Epílogo: fecho do poema. (Também não obrigatório.)

2. A narrativa não deveria obedecer à ordem cronológica dos fatos. Ao contrário, deveria iniciar-se o mais próximo possível do fim do acontecimento que deu origem ao poema, retornando aos fatos anteriores através de narrações dos personagens, de sonhos e visões fantásticas.

3. A poesia épica deveria conter o chamado "maravilhoso", isto é, a intervenção direta de seres sobrenaturais, quase sempre deuses da mitologia greco-romana, na vida humana. Ao lado desse maravilhoso pagão, no cristianismo surge também o maravilhoso cristão, ou seja, a intervenção de personagens bíblicos (do Antigo ao Novo Testamento).

O gênero épico em verso apresenta três espécies:

1. Epopéia: obra épica de largo fôlego, envolvendo a história de um povo ou de uma nação, ou ainda passagens históricas de importância universal. Por exemplo, Os Lusíadas, de Camões.

2. Poema Épico: trata, também de episódio histórico, mas menos importante e que não ultrapassa os limites do nacional ou mesmo do regional, embora o poema épico seja tão extenso quanto a epopéia. Exemplo: Caramuru, de Santa Rita Durão.

3. Poemeto: mais curto que as duas espécies anteriores, trata de assunto de importância ainda menor que o do poema épico. Exemplo: O Uruguai, de Basílio da Gama.

Note-se bem que as diferenças apontadas entre as três espécies da épica clássica tradicional subordinam-se à importância do assunto tratado e às dimensões da obra, e não à valoração ou valor literário dela. Se, normalmente, a epopéia é superior em qualidade ao poema e ao poemeto, pode haver exemplos destas duas últimas espécies com valor literário superior à primeira. Entre os exemplos dados, cumpre observar que o poemeto de Basílio da Gama, O Uruguai, é muito superior, literalmente, ao poema épico de Santa Rita Durão, Caramuru.

Foi dito que desapareceram, com o Romantismo, as espécies épicas conhecidas como epopéia, poema e poemeto. É claro, entretanto, que o espírito épico não desapareceu, nem desaparecerá, podendo ser identificado, nos nossos dias, naqueles poemas em que a preocupação do autor não se volta exclusivamente para si mesmo, como na poesia lírica, nos poemas em que o autor não aparece apenas como indivíduo, como um ser isolado, preocupado apenas consigo mesmo, mas como um representante do gênero humano integrado no todo da humanidade. Nesse caso, conta para o autor não mais o "eu" - ou apenas o "eu" - mas o "nós", já que ele se identifica com todos o homens, identifica-se com sua angústia, com sua dor, com seu sofrimento, situando-se entre os que sofrem e se angustiam, integrado que está ao conjunto, à humanidade.

Da primitiva epopéia clássica, o poema épico moderno conserva não apenas o que foi dito acima, ou seja, a identificação do autor com a humanidade, mas também a mesma grandiosidade do verso, o mesmo tom solene, mas próprio à importância e solenidade do assunto.

Massaud Moisés (A Criação Literária) aponta-nos como exemplo de poema épico moderno a Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, de que transcrevemos o trecho abaixo:

" E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregoso,
e no fecho da tarde um sino rouco.

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

pausadamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensando se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

palas pupilas gastas na inspecção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em clama pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas

assim me disse, embora em voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo".

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimentos da morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.


Fonte:
Colégio Terra Nova.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Trova 119 - Jorge Murad (Rio de Janeiro/RJ)


Belmiro Braga (1872 – 1937)



por J. G. de Araujo Jorge, abril de 1959, in prefácio do livro 100 Trovas de Belmiro Braga.

Estranha essa velha e sempre novíssima Minas Gerais. Dá Belmiro Braga e Carlos Drumond de Andrade. Montanhas de ferro, vermelhas, enferrujando-se no ar, pastagens e campos verdes, de águas claras e brancos leites.

Escrevi certa vez: "Inglaterra do Brasil' ao mesmo tempo liberal e conservadora, desconfiada e expansiva, na alta clausura de suas montanhas, fabrica tudo: místicos, satíricos, ironistas, tímidos, aventureiros. Fechada em seus limites, se abre para o alto, voltando-se para o céu, - a sua imensa janela; para baixo olhando de cima e de longe, como de camarote.

De extremos: revolucionária e tradicional. Na política, na poesia, na arquitetura, em tudo. Tiradentes e Bernardo de Vasconcelos, Ouro Preto e Pampulha, Belmiro e Carlos Drummond. Nela os extremos se tocam, se combinam. Vai vivendo assim com sua dupla face, sua alma bifronte.

Terra de poetas, de grandes é a "grande ilha da poesia" brasileira. Não sobrevive só: faz parte de um arquipélago. Mas é a ilha maior, a principal; ontem, hoje. Ilha montanhosa, de altos cumes.

Aqui vamos falar de um de seus filhos, de um de seus poetas: Belmiro Braga.

Aparentemente, pouco mineiro: expansivo, jovial, exuberante, transbordando-se em versos pela vida. Voltado pra fora; ao contrário da maioria: de costas pro mar.

Belmiro era um temperamento simples, sem complicações. Por isto sua poesia escorreu das montanhas como um curso dágua transparente, córrego alegre, tirando música de cada obstáculo, de cada acontecimento.

Nasceu o poeta na Fazenda da Reserva, antigo Distrito de Vargem Grande (hoje Município com o seu nome), perto de Juiz de Fora, a 7 de janeiro de 1872, e morreu em Juiz de Fora, a 31 de março de 1937. Herdou possivelmente a veia poética do avô materno, Francisco Lourenço de Barros, "versejador mordaz" no dizer de Alves Cerqueira.

Filho de José Ferreira Braga, comerciante português, e de Da. Francisca de Paula Braga, brasileira, Belmiro estudou as primeiras letras no "Ateneu Mineiro", em Juiz de Fora, de onde voltou a Vargem Grande com a morte da mãe, ajudando o pai nos negócios.

Esteve depois em Muriaé, em Carangola, e em 1901 era comerciante na Estação de Cotegipe, onde o foi encontrar o poeta nortista Antônio Sales, que passava tempos numa fazenda próxima.

Foi Antônio Sales quem o apresentou depois, em artigo na imprensa carioca, como o "João de Deus Mineiro". Na mesma ocasião conhece Belmiro Braga a Fernandes Figueira, médico, que colaborava em revistas da capital do país, com o pseudônimo de Alcides Flávio. Tornando-se seu companheiro de tertúlias literárias, Fernandes Figueira o orientou, de certa forma, em sua formação intelectual e conseguiu que os primeiros versos de Belmiro fossem publicados no Rio.

Com a divulgação de seus trabalhos Belmiro Braga granjeou em pouco tempo popularidade. E de seu conhecimento em Minas com Antônio Figueirinhas, editor português que andava em viagem de negócios pelo Brasil, surgiu o lançamento do seu primeiro livro. "Montesinas" saiu prefaciado por Batista Martins, um amigo de Carangola, quando ele era comerciante, e Martins, estudante de Direito e jornalista.

Lançado o primeiro livro em 1902, Belmiro publicou depois: "Cantos e Contos", em 1906; "Rosas", em 1911; "Contas do Meu Rosário", em 1918; "Tarde Florida", em 1925, e finalmente, "Redondilhas", em 1934. Escreveu também para o Teatro.

Hoje há em Minas dezenas e dezenas de academias e grêmios literários com o nome do poeta. E Juiz de Fora, muito particularmente, reverencia e cultua a memória de Belmiro Braga que dedicou à "sua cidade", e ao lar paterno, um amor extremoso. Antônio Sales, seu grande amigo, no livro "Retratos e Lembranças" traça, num dos capítulos, um perfil completo do poeta, seu temperamento, caráter e formação. Diz ele:

"O lar paterno era uma obsessão sentimental de Belmiro. O sitio Reserva, onde nasceu e passou a primeira fase da infância, depois tão dolorosa, tão brutalízada pelos maus tratos da vida, esse sítio era a Meca para onde seu espírito se voltava num culto perene".
Um de seus mais tocantes poemas, redigido em forma impessoal, foi este que ele escreveu, depois de uma visita à casa paterna:

"Foi aqui, neste plácido retiro
ouvindo a voz amiga dos teus pais,
que a infância alegre te correu, Belmiro,
a alegre infância que não volta mais.. . "

Num outro poema, dirigindo-se a amigos, exalta a alegria de rever o torrão natal:

"Meus amigos da cidade,
morrei de inveja!
Eis-me aqui na ridente
soledade onde nasci.

"Belmiro era fundamentalmente um homem simples, um homem bom. Tinha direito de se reconhecer como tal no Prólogo que escreveu para o livro "Contas do Meu Rosário":

"Sendo minha alma simples, compreendida por outras almas simples, que prazer! Tudo que a gente faz melhor na vida é aquilo que se faz sem aprender."

E, modesto:

"Que este livro não é uma obra de arte,
mostram suas estrofes sem lavor:
- do triste coração meu verso parte
como o aroma do cálice da flor."

Enganava-se entretanto. Seu livro era uma beleza. Uma verdadeira obra de arte. Sem artificialismos estéticos, fazendo sua poesia como andava, como respirava, ele dava-se todo, de alma e coração, às palavras em que se traduzia. E por isto, as palavras ganhavam essa música simples de cantigas, traduzindo em versos e rimas sentimentos e pensamentos de toda gente. Ele tinha razão, a poesia estava nele, como o perfume na flor, como o pássaro no céu, como a água na terra.

De Belmiro se poderia dizer que ele quase falava em versos. E se não falava, escrevia. Eis o testemunho de seu amigo Alves Cerqueira:

"Comerciante em Cotegipe, Belmiro costumava dirigir-se aos fregueses em versos", porque sentia mais facilidade em se expressar desta forma do que em prosa.

Os amigos de Juiz de Fora, de tanto vê-lo versejar com a facilidade que lhe era característica, acabaram por lhe solicitar versos em todas as oportunidades. O caso de Irineu Rocha é por demais conhecido. Chefe de Oficinas do "Jornal do Comércio" de Juiz de Fora, Irineu lhe pedia quadrinhas a propósito de qualquer acontecimento, do mais alegre ao mais triste, de um batizado a um falecimento.

Um dia, passando pelo jornal, Belmiro soube da morte do Irineu. E como se atendesse a uma solicitação póstuma, homenageou o velho gráfico com estas três quadrinhas:

"Se um seu amigo morria,
êle vinha ter comigo
e umas quadras me pedia
para a morte dêsse amigo.

Hoje, lembrando esse fato,
eu pensei, em mágoa imerso,
que talvez lhe seja grato
ser também chorado em verso.

E assim nestas quatro linhas
venho aqui dizer-lhe, triste:
- Irineu, toma as quadrinhas
que tu nunca me pediste."

Trovador, no velho e no novo sentido da palavra, estava em permanente dueto lírico com a vida. Tudo lhe era assunto para uma quadra, um soneto, uma redondilha. A gente vai lendo e se admirando de que as palavras casem tão bem no fim dos versos, como se tudo já estivesse feito, e o poeta fosse apenas o "Instrumento" que as cantava e divulgava. Foi um grande, um extraordinário versejador.

Com a subversão dos modernos conceitos de poesia, como definir esta poesia discursiva, descritiva, profundamente extrovertida, sem mistérios, limpa e transparente, de Belmiro Braga? E quando falo em Belmiro, me refiro a um sem número de outros grandes poetas que continuam versejando, com tônicas bem postas, métrica, rima, todos os chamados artifícios formais da poesia tradicional.

Que há beleza, emoção, comunicabilidade no que escrevem, não há dúvida. Que realizam autênticas obras de arte, só sectários podem negar. E então teremos que rebatizar o gênero literário de que se servem, já que as correntes modernas se apoderaram da palavra poesia - e erígiram novos tabus de conceituação.

Para os estetas das novas correntes, os cristais teriam de subverter as leis da cristalografia se quisessem permanecer como símbolos de beleza, nos tempos atuais.
Belmiro é um autor que está, de corpo inteiro, em sua obra. Lírico e satírico, mas de uma sátira jocosa, sem maldade, era fundamentalmente um grande emotivo, um sentimental incorrigível. Amigo dos amigos, tomando a própria família como tema permanente de seus versos, êle viveu em versos. Era uma espécie de "ópera" viva, ambulante! Sua vida, sua infância, a vida dos seus, seus negócios, suas pretensões políticas, tudo para ele era verso, era poesia. Até seu próprio testamento, antecipadamente redigiu, numa auto-sátira bem humorada. Nomeado tabelião em Juiz de Fora, em 1903, aproveitou-se logo da sugestão do cargo:

Morto não quero o belengar dos sinos
enchendo de tristeza o espaço imenso,
nem esses tristes, merencórios hinos
da charanga do bairro a que pertenço.

Cante-me o padre alguns textos latinos
por entre nuvens de cheiroso incenso,
mas desde já previno-o: pequeninos,
que os longos textos com prazer dispenso.

No cemitério, nada de discursos!
Acautelem-me ali dessa estopada
os bons amigos dos amigos ursos,

pois, em casa, o orador, à sobremesa,
dirá pensando em mim: "Não somos nada!
Lá se foi o Belmiro... Que limpeza!"

É muito citado o soneto que dirigiu como carta, ao pai da moça, quando seu filho queria se casar:

Artur Fernandes de Oliveira - abraços.
Tens, amigo, uma filha e eu tenho um filho
que desejam da vida o mesmo trilho
palmilhar, a sorrir, contando os passos.

Se o amor os tem prendido nos seus laços,
se entre os dois não existe um empecilho,
tu te envaideces, eu me maravilho,
por vê-los, um ao outro abrindo os braços.

Se dela o coração é manso e puro,
tem ele garantido hoje o futuro
servindo à Pátria com amor e fé.

Mas vamos nestas linhas por um ponto;
o que eu quero de ti, aqui te conto:
- é de Cordélia a mão para o José.

E não satisfeito, na véspera do casamento, mandou ao filho a sua bênção e as congratulações pelo acontecimento:

"Meus parabéns, José, porque suponho
que a vida que a Cordélia te assegura
há de ser de carinho e de ventura
sob a tranqüila paz de um céu risonho.

Dos teus sonhos de moço o melhor sonho
foi, meu filho, essa jovem de alma pura
em cujos dons de afeto e de ternura
todas as minhas esperanças ponho.

Abençoado seja, pois, o laço
que prende para sempre num abraço
os vossos corações de ouro de lei.

Em nossa vida a mesma estrela brilha,
que a mulher que amanhã me dás por filha
é igual àquela que por mãe te dei..."

Depois foram os netos. Abrindo o volume "Tarde Florida" está o poemeto "Versos do Coração", que começa assim:

"Cláudio e Jorge... A minha vida
de amor, carinhos, afetos,
tenho-a toa resumida
nestes dois netos!"

Candidato a deputado estadual, contando com o apoio político de seu amigo, o Coronel Martins Ferreira, de Leopoldina, este lhe escreveu, querendo mexer com Belmiro, que só ia lhe dar a metade da votação, porque a resposta à sua carta lhe chegara em prosa. Belmiro não se fez de rogado. E conquistou a votação inteira com este soneto:

"Meu caro Coronel Martins Ferreira,
candidato extra-chapa a deputado
ao congresso da Câmara Mineira,
desejo ser aí o mais votado.

A minha fé de ofício é de primeira,
vale por um programa o meu passado,
e no congresso não direi asneira
todas as vezes.. . que ficar calado...

Fui caixeiro, depois fui negociante,
e do torrão natal representante
agora aspiro ser como escrivão:

e eleito, espero, mas que maravilha!
- ser pai da Pátria e receber da filha
todo o subsídio, quer trabalhe ou não!

Um outro amigo seu, Abílio Barreto, reclamou de certa feita contra o silêncio do poeta. Já escrevera três cartas e nada de resposta. Belmiro, apanhado em esquecimento, apressou-se em penitenciar-se. E compõe às pressas uma resposta ao amigo Abílio, na própria Agência do Correio:

"Prezado Abílio, perdoa
a resposta demorada:
tu sabes, quem vive à toa
não tem tempo para nada."

Filósofo do povo, ele, com graça e inteligência, ia fixando a alma de sua gente. Estava nele, - ele próprio não sabia que encarnava e simbolizava, em sua poesia, ao fixar a vida, - a alma do nosso homem do interior.

As duas faces da poesia de Belmiro foram sempre estas. Um profundo amor pelos amigos, pelos parentes, aos quais dedicava um sentimento de grande ternura; e o tom chistoso, alegre, com que brindava àqueles a quem não podia dedicar apenas carinho. No fundo, um humor sadio, às vezes irreverente, mas nunca agressivo ou ferino. Era terna e alegre a sua Musa. E acima de tudo, humana.

De certa feita um jornalzinho da terra, chamado "Justiça" pediu-lhe uns versos para um número de aniversário. O trabalho foi feito, pequena obra-prima, mas não foi publicado. Leiam-no e compreenderão:

"Quanto é bela a Justiça! Aplaina escolhos e os interesses vela
do grande e do pequeno.. . E ela, depois,
fechando os olhos e abrindo a goela,
engole os dois...

Reta, ao dirimir uma contenda
ajusta as artes, e, num gesto nobre,
em vez de pôr a venda, põe à venda
os bens do pobre..."

Este espírito crítico de Belmiro, que nascia da bondade de seu coração, se manifestou até em relação aos próprios problemas estéticos. Belmiro, sem mais delongas, não aceitava o modernismo na poesia. Intimamente havia de achar que estes poetas modernos faziam complexa uma coisa que nêle nascia sem nenhuma dificuldade. Mas se o negócio era esse, ele também era capaz de fazer "modernismo". No prefácio de seu livro "Redondilhas", chamando aos futuristas de "um aluvião de turcos que invadiram a praça obrigando-o a cerrar as portas e a recolher, como alcaides e refugos, os seus pobres sonetos, quadras e sextilhas", ele, incoerentemente, publica seu livro, e ainda perpetra poemas desalinhavados, para provar que pode fazer versos iguais.

Floriano de Lemos, em belo artigo que lhe dedicou no "Correio da Manhã", do dia 18 de abril de 1954, cita este outro fato; e comenta:

"A obra de Belmiro Braga é um monumento de naturalidade, graça e delicadeza. Não há em toda ela um verso forçado ou uma idéia nascida sem inspiração. Sabendo fazer poesias rigorosamente parnasianas, não desculpava, entretanto, a mania das rimas difíceis que certos autores tinham. O estilo afetado foi por ele duramente criticado em uma série de quadrinhas que começa por estas duas:

"Recebi de um jovem bardo
uns versos nefelíbatas
de quatro pés, que não tardo
chamá-los... de quatro patas!

Ao lê-los a gente fica
pensando, e afinal descobre
que é sempre uma rima rica
que veste uma idéia pobre."

Realmente, da poesia de Belmiro Braga se pode dizer que, se há rimas e versos pobres, estes são ricos de emoção, de ternura, de beleza.

Em gênero nenhum Belmiro Parece tão à vontade como na trova. Poeta popular por excelência, espontâneo, ele usava a trova com uma facilidade espantosa. E assim como os críticos têm lembrado que Bilac já trazia um perfeito verso alexandrino no nome (Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac), Belmiro Braga trazia uma redondilha menor, um verso de 7 sílabas: Belmiro (Ferreira) Braga. Dele, eu poderia dizer:

"Fez trovas como quem ri
chora, canta, ou roga praga.
Troveiro igual nunca vi:
- Belmiro Ferreira Braga."

Foi ela o seu Universo
cantou-a, sem querer paga,
e ao nascer, trazia um verso:
- Belmiro Ferreira Braga.

Trovador, troveiro ou trovista nato, a trova era uma medida ideal para a sua inspiração, quer desabafando mágoas e alegrias, quer "desopilando" suas inofensivas maldades satíricas. Humorista de fina sensibilidade, servia-se dos versos para fixar coisas, pessoas e fatos, em rápidas caricaturas poéticas.

Neste volume que apresentamos iniciando a "Coleção Trovadores Brasileiros", Belmiro Braga aparece com 100 trovas, líricas e humorísticas. Numa e noutra realizações, foi perfeito. Vamos citar um exemplo de cada face de seu trabalho. De certa feita, Belmiro Braga satirizou um advogado juiz-de-forano, que falava, como diz o povo, "Pelas tripas do judas", mas cacete que nem êle só:

"Um certo orador maçante,
das margens do Paraibuna
ao falar, de instante a instante
vai esmurrando a tribuna.

E quem o conhece, sente
por mais ingênuo ou simplório,
que os murros são simplesmente
para acordar o auditório."

E agora, o Belmiro sentimental, lírico, autor de verdadeiras obras-primas, cujo coração era uma misteriosa e insondável concha univalva a fabricar e expelir pérolas e mais pérolas. Aqui está uma destas "pérolas", dedicada justamente àquela que o deixou órfão, tão cedo:

"Acima de tudo, acima
do céu te devemos pôr,
pois teu nome não tem rima
nem limite o teu amor."

Mas suas trovas não são apenas sentimento. Eram também pensamento.

Despreocupadamente, - com beleza e sinceridade - Belmiro aconselha a dois noivos, no dia das bodas:

"À notícia bato palmas
e mando um conselho aos dois:
- primeiro, casem as almas,
casem os corpos depois."

"Que eu tenho os olhos cansados
de ver (umas mil talvez),
dentro de corpos casados,
almas em plena viuvez."

A verdade em relação a Belmiro Braga é uma só. Um poeta, com tal força de expressão e com tão profundo sentimento de humanidade, não precisa de escolas. É um Poeta.

Sobreviverá a qualquer tempo. Será sempre ouvido. E isto basta. Está cumprida a sua missão.
–––––––––––––––-
Continua – As 100 Trovas de Belmiro Braga
___________________
Fonte:
JORGE, J. G. de Araujo e OTÁVIO, Luiz (organizadores). Belmiro Braga. 100 Trovas. 1959.

Instituto Memória de Curitiba (Eventos)


* 27/02/2010 - 19h - CASA CECY- PARANAGUÁ - PARANÁ:
Lançamento do livro sobre a vida de OSWALDO LOPES da profa. Marilu Cordeiro

* 01/03/2010 - 19h - LIVRARIA CULTURA CONJUNTO NACIONAL - SÃO PAULO:
Lançamento da 2a. Edição do livro NINGUÉM SOFRE PORQUE QUER de Adauto Suannes

* 12/03/2010 - 19h - PORTO ALEGRE - RIO GRANDE DO SUL:
Lançamento do livro DOMINGOS JOSÉ DE ALMEIDA - O ESTADISTA E O HOMEM DE LETRAS DA REPÚBLICA RIOGRANDENSE de Carla Menegat

* 15/03/2010 - 19h - PALACETE DOS LEÕES - CURITIBA - PARANÁ:
Lançamento do livro de Ficção A VERDADE ORIGINAL REVELADA de Luiz Afonso Erbano
& Lançamento do livro MEMÓRIAS DE UM CAIXA DA CAIXA de Neyd Maria Montingelli

* 31/03/2010 - 19h
INAUGURAÇÃO DA NOVA SEDE DO INSTITUTO MEMÓRIA Curitiba - Paraná:

Lançamento do livro CURITIBA 317 ANOS em homenagem ao aniversário de Curitiba e em memória de Túlio Vargas, com a participação de membros do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e da Academia Paranaense de Letras.

Lançamento do livro DICIONÁRIO DE CURITIBANÊS,com direito a Leite Quente - Trubisko - Cetra - Inhapa - Jococa - Bidê - Foco - etc. Afinal, sejamos universais por cantar a nossa aldeia.

Lançamento da Terceira Edição da REVISTA RAÍZES REGIONAIS, que tem distribuição nacional gratuita e dirigida às Academias de Letras, Institutos Históricos, Instituições Culturais e Universidades.

Eliza Augusta Gouveia Gregio (Lançamento do Livro Sentimentos da Alma)

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Fabio M. Said (Lançamento de “O clã Almeida de Caravelas e Alcobaça”)


Toda família tem uma história para contar. Este livro é a história não de uma família, mas de muitas, todas ligadas entre si por laços genéticos indissolúveis. São as famílias que compõem o clã dos Almeida de Caravelas e Alcobaça, com origem em Lisboa (Portugal) e ramificações sobretudo na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.

Pertenceram ao clã Almeida diversos prefeitos de Caravelas (BA), como Ernesto Caetano de Almeida e Achiles de Jesus Siquara, o prefeito de Prado (BA) Orlando Sulz de Almeida, o prefeito de Itabuna (BA) José de Alcântara Almeida, o prefeito de Curitiba (PR) Cyro Persiano de Almeida Vellozo e o prefeito de Santos (SP), deputado e senador João Galeão Carvalhal.

Este livro, fruto de dez anos de pesquisas, contém centenas de minibiografias de doze gerações do clã, álbuns de família, árvores genealógicas, crônicas e testamentos. Contém ainda um estudo sobre a genealogia da família do jurista Ruy Barbosa, que tinha provável parentesco com o clã Almeida. Com rigor documental e entretenimento, é uma obra voltada não só para membros do clã, como também para estudiosos de genealogia e história e para qualquer pessoa em busca de uma saga familiar recheada de elementos políticos e pitorescos, que revelam um pouco sobre o desenvolvimento da família brasileira.

Fonte:
Colaboração do autor.
http://clubedeautores.com.br/book/13482--O_cla_Almeida_de_Caravelas_e_Alcobaca

Ronald Augusto (1961)



Ronald Augusto da Costa nasceu no Rio Grande-RS, 1961.

Poeta, músico, letrista e crítico de poesia.

Ronald Augusto tem publicações e trabalhos culturais de diferentes espécies: além da produção como poeta e músico, possui artigos publicados sobre a obra de Cruz e Sousa, sobre a poesia concreta e sobre a poesia negra brasileira.

É autor, entre outros, de Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No assoalho duro (2007).

Traduções de seus poemas apareceram em Callaloo African Brazilian Literature: a special issue, vol. 18, n. 4, Baltimore: The Johns Hopkins University Press (1995); Dichtungsring — Zeitschrift für Literatur, Bonn (de 1992 a 2002, colaborações em diversos números).

Artigos e/ou ensaios sobre poesia estão publicados em revistas do Brasil e sites de literatura: Babel (SC/SP), Porto & Vírgula (RS), Morcego Cego (SC), Suplemento Cultural do Jornal A Tarde (BA), Caderno de Cultura do Diário Catarinense (SC), Todapalavra, Slope, entre outros.

É co-editor, ao lado de Ronaldo Machado, da Editora Éblis.

Ministra oficinas de poesia.

É integrante do grupo os poETs.

Assina os blogues Poesia-Pau Poesia Coisa Nenhuma.

A produção poética de Ronald Augusto se caracteriza pela coragem e pela experimentação sutil e corrosiva do mundo da linguagem, como indica este depoimento do autor: “A poesia é um objeto estranho, uma contradição que se processa na raiz da função meramente comunicativa da linguagem. [...] O real que ela escrutina e ao mesmo tempo finge nos desvelar, comparece aos nossos olhos vertido em imagem indecisa e, no mais das vezes, conflitante com aquele real que até há pouco julgávamos conhecer como a palma da mão”.(AUGUSTO, 1998:39).

A poesia de Ronald Augusto causa estranhamento no leitor precisamente pela provocação radical que opera no interior da linguagem, no ritmo sincopado e responsável por uma estética que não se conforma com a palavra mimética ou (apenas) escrutinadora do real. O real retratado é o muito próximo, porém irreconhecível, deslocado, ressignificado. Esse real é transformado pela palavra, assim como acontece na oralidade, que tem a capacidade de reinventar significações cristalizadas pela escrita, deslocando-os, readaptando-os. E é precisamente graças a esse legado da oralidade – uma oralidade transfigurada pelos cortes herméticos da poesia – que Ronald Augusto realiza a alquimia entre o que soa familiar e o que soa estranho, entre o que é reconhecível como legado cultural afro-brasileiro (“minha capoeira”) e a maneira como esse elemento atua na interação com o sujeito. Desse encontro, entre universal e individual, entre o evento e o que acontece além do evento, nasce o improviso, a quebra (rítmica, sintática,semântica), como sugere o poeta nestes versos: “assopro [a capoeira] para além de duas /quadras /com imediateza e // antepassadas lâminas // um linguajar / de músculos paisanos//” (1983).

Ronald Augusto trabalha constantemente no limiar desse paradoxo, entre a construção de uma oralidade e de determinados referentes culturais (onde são reconhecíveis o samba, o lundu, a senzala, o pagode, mas também uma maneira diferente de olhar “as resoluções ocidentais”) e a deconstrução dessa que o autor chama de “oralidade atravessada”. Nesse sentido, conforme escreve o prefaciador de Puya, Van Hingo (1987: 9), “a palavra é uma ilha [...] o verso é um arquipélago. Para conhecê-lo deve-se ir estrategicamente ilha a ilha”. E é assim, de palavra em palavra, que Ronald Augusto constrói o seu “canto de provocação”, na medida em que faz dialogar não só o universo afro-brasileiro com outros elementos da diáspora negra nas Américas (o próprio título do livro Puya é uma expressão afro-cubana que significa, precisamente, canto de provocação), mas também – entre si – outros universos sígnicos e estéticos. Isso ocorre, por exemplo, quando o poeta trabalha com a poesia experimental ou, através da epígrafe do livro Puya, retirada do Paraíso de Dante, quando aponta para uma junção na qual o signo é encarado na sua dupla consistência, abstrata e material, conceitual e visual. Decorre disso um cuidado com a sonoridade dos poemas, nem tanto no desejo de prende-los em rimas ou esquemas tradicionais, mas na tentativa de reproduzir aberturas à maneira das jam session, sem cair em virtuosismos afetados e deixando fluir os improvisos ao gosto tenso da fala.

Fontes:
http://algaravaria.blogspot.com/
http://www.msmidia.com/

Ronald Augusto em Xeque



Miscelânea de entrevistas realizadas pelo Jornalista Douglas Resende do diário O Tempo, de Belo Horizonte e entrevista para a Revista Algaravaria

Porque poeta?

Lá pelos meus 12 ou 13 anos, minha mãe me escolheu como o ouvinte primeiro de seus poemas. Aquilo para mim foi uma tortura. Ela lia entusiasmada os seus versos. Meu jeito quieto e reflexivo ou minha condição de filho mais velho, talvez tenham lhe sugerido a idéia de que eu seria o leitor adequado. Fiquei sem palavras. Era tudo muito chato. Uns três anos depois, escrevi meus primeiros versos. Que lição tiro disso? Nenhuma.

Qual sua trajetória literária até o primeiro livro? E do primeiro para o último?

Duas perguntas que suscitam respostas intermináveis. Mas, não vou dar essa alegria ao divino internauta. Escrevi muito e li, durante algum tempo, só Manuel Bandeira. Depois dos poemas motivados pelas paixões da adolescência, resolvi sondar a real qualidade do que eu vinha escrevendo. Entrei em concursos literários. Em 1979, um poema meu mereceu menção de "destaque" num certame que envolvia várias etapas ao longo de um ano. Fiquei feliz porque o júri era composto, aos meus olhos, pelos melhores poetas da época: Mário Quintana, Heitor Saldanha e Carlos Nejar. Ao final do concurso uma antologia foi publicada e lá estava o meu poema. Minha estréia em livro. Meu primeiro livro não foi o primeiro, é que antes dele (1980, 1981), "pirado" com a poesia marginal, editei livrinhos em xerox bem vagabundos e participei de intervenções-bomba de autores independentes na Feira do Livro. O leão de chácara da Feira aparecia para expulsar a patota. Numa dessas, o Heitor Saldanha foi visitar os poetas marginais para prestar sua solidariedade, e folheando os precários livretos, abriu o meu e elogiou com entusiasmo as imagens e metáforas que encontrara. Isto para mim serviu como o empurrão definitivo: pronto, eu era um poeta, meio hippie, mas poeta. Mas, Homem ao Rubro, de 1983, é que foi, de fato, o meu livro inaugural. Eu tinha 22 anos. De lá até agora, é como diz Borges, a cada novo livro, acho que tento reescrevê-lo.

Quais livros fizeram parte de sua formação? Há uma obra com a qual tenha descoberto a poesia de um modo mais contundente?

A obra capital para a minha formação é a de Manuel Bandeira. Sua poesia é tanto mallarmeana, quanto antropofágica, isto é, Bandeira consegue dosar anti-poesia e poesia pura em seu percurso textual; suas traduções, que vão desde o barroco da poeta mexicana Sor Juana Ines de la Cruz (séc. 17), passando pelo poeta e ativista negro Langston Hughes (1902-1967) e chegando até os "poemas à maneira de...", que gosto de interpretar como exemplos de traduções heterodoxas, onde o velho Manu (como o chamava Mário de Andrade) inventa, por exemplo, um poema afivelando a máscara de E. E. cummings. Também adoro sua prosa voltada às questões da poesia, isto é, sua metalinguagem. Itinerário de Pasárgada é um livro incomparável. Outros livros: A Commedia de Dante, Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, Museu de Tudo de João Cabral de Melo Neto, etc. Nada de especial.

Teve algum incentivador?

Que eu saiba, não. Sempre associei a imagem do chato à do incentivador. Hoje em dia há a figura do motivador, pior ainda. O incentivador esconde um moralista. Prefiro os opostos e complementares: o admirador e o crítico.

Recebeu ou recebe conselhos importantes de escritores? Como foi e é o diálogo com outros escritores?

Escritor que dá conselhos não merece crédito. O diálogo com os outros escritores não difere muito daquilo que acontece com qualquer pessoa que vive em sociedade, é preciso que haja afinidades eletivas. A expressão parece pernóstica, mas é isso. E é comum acontecer que o seu melhor amigo seja um torcedor obtuso do time adversário. E tem aquele para quem a gente dá "bom dia" não se sabe porquê, o sujeito não fede nem cheira. Vá de retro.

Tentou vários gêneros literários? Ainda os pratica em segredo?

Quando fiz curso de interpretação teatral (fiz e, por enquanto, não nego), escrevi textos dramáticos. Passou. Na mesma época, década de 80, também escrevi alguns contos. Passou também.

Com que se inspira para escrever? O que é matéria para a poesia? Com quantas metáforas se faz um poema? Quando escreve, qual o efeito estético visado?

Geralmente aquilo que me "inspira" é alguma solução de linguagem que hesita, como diz Valéry, entre som e sentido, uma paronomásia, para usar um conceito de Roman Jakobson. Qualquer coisa pode se tornar matéria para um poema. Do contrário, eu estaria jogando as minhas fichas no anacronismo da "poesia pura". Um poema se faz com metáforas boas. Dependendo da situação, nenhuma metáfora é a melhor saída. Aliás, na minha opinião, a metáfora representa o kitsch da função poética. Qualquer resposta criativa no trato com a linguagem que ponha em cheque a sua naturalização (da metáfora) e os medianeiros da metaforização indecorosa, seráválida. Eu viso um poema que suscite muitas e contraditórias leituras.

Tem obsessão em reescrever o mesmo texto? Ou a emenda é pior do que o soneto? E mais: guarda tudo o que escreve? Ou elimina sumariamente?

Homem ao Rubro foi um livro escrito a partir desta perspectiva, da reescritura em abismo. Hoje em dia, sou mais atraído pelos poemas "errados e estropiados", como diz o poeta Mauro Faccioni, da Ilha do Desterro. Não guardo, não. Também não tenho livros engavetados. Minha produção é mirrada. Atualmente, considero que tenho dois livros in progress, só. Livro pronto, na gaveta, nenhum.

Para escrever, precisa conhecer muitas cidades e ler todos os livros?

Algumas cidades e alguns livros. Passei minha infância no Rio de Janeiro, mais exatamente em Niterói. Depois, durante a crise dos meus 30 anos, morei em Salvador/BA. Ambas são cidades fundamentais para mim. Mas, éclaro que tudo depende da leitura, do nosso ponto de vista de forasteiro. E as cidades estão na base das mitologias da modernidade. Baudelaire, T. S. Eliot, Oswald de Andrade, etc., todos os grandes poetas do cânone ocidental leram o livro das cidades.

Há idéias ou imagens que lhe perseguem no fio dos anos e das obras?

Não, acho que não. Talvez porque me assuste um pouco a questão da repetição ou da auto-imitação, estou sempre tentando experimentar lances novos. Não chega a ser uma idéia, mas a minha divisa é: experimentação.

Como define a sua poesia? Como caracterizaria suas ambições estéticas principais?

Isso é trabalho para os críticos interessados. Mas, para não deixar o divino internauta sem resposta, indico o texto do poeta Cândido Rolim a respeito da minha poesia, que apareceu recentemente em www.cronópios.com.br . Este mesmo texto foi re-trabalhado e ampliado e será publicado oportunamente por Edimilson de Almeida Pereira (MG), que organiza um livro de ensaios onde diversos autores escrevem sobre questões poéticas.

Qual a relação entre seu trabalho e sua escrita?

Nenhuma.

Qual a relação entre sua poesia e as artes plásticas?

Quanto a esta questão, ainda sou poundiano, "a poesia está mais perto da música e das artes plásticas ou visuais do que da literatura", cito de memória. Hoje em dia poderíamos ampliar o parentesco incluindo o cinema. Muita gente se opõe a esta proposição de Pound. Com efeito, ela causa algum desconforto, principalmente para quem vê na literatura este arco generoso a abrigar todas as manifestações verbais marcadas por uma desenvoltura de imaginação. Mas, para Ezra Pound, literatura não é senão a forma refinada desta instituição pernóstica conhecida como sistema literário. Acho que esta proximidade, intuída por ele, entre a poesia e tudo o que não fosse "lixeratura", só confirma a sua devoção a esta arte que é, toda, apenas "cernes e medulas". E há um esforço violento por detrás deste apenasque, agora sim, a literatura é incapaz de experimentar.

Qual a relação entre sua poesia e a música?

Pode parecer estranho, já que também sou músico, mas acho que não há nenhuma relação notável. Gosto muito de música, de fazer e de ouvir. Assim como gosto de cinema. A música na minha poesia representa um estímulo como qualquer outro. Quando faço um poema, deixo o músico no banco de reservas.

Em que geração literária você se concebe? Ela tem um projeto definido?

Minha formação se deu durante a década de 80 e meus primeiros livros também foram publicados neste momento. Os teóricos de estética acomodam este trecho histórico dentro do período pós-moderno. Um traço desta geração parece ser o de uma construção poética que se espoja num pastiche tanto do passado como de um futuro algo cínico.

Como vê a pontuação na (sua) poesia?

Não vejo, porque não a utilizo. Exceto quando busco algum efeito icônico, por exemplo: um parêntese aberto sugerindo um "crescente", uma "vírgulágrima", etc.

Como percebe suas principais qualidades como escritor? Há algum defeito de que não abra mão?

Não sei se é uma qualidade, mas só começo a escrever quando acho que esbarrei em alguma coisa que escapa à convenção. Um defeito de que não abro mão: os parênteses.

Muitos poetas hoje apresentam uma versatilidade acadêmica. Eles falam várias línguas, traduzem, fazem ensaios, críticas, resenhas, estudam várias disciplinas. O poeta precisa ser um erudito? Poesia só se faz com muito estudo?

Os poetas contemporâneos não se envergonham de um certo virtuosismo técnico a que se submetem ludicamente. Transitam com leveza pelo círculo vicioso da competência. Sua erudição é um banquete após uma expedição de conquista. O refinamento é tudo. Numa espécie de réplica soft ao politicamente correto, re-instauram o poeticamente correto.

O que mais lhe agrada em um poema, dado o variegado múltiplo da poesia atual?

A beleza do difícil que ele possa conter. E a coragem da anti-poesia, que pode ser uma tradução para a beleza já referida.

A poesia tem prestígio no âmbito da nossa cultura?

Não, acho inclusive que a condição marginal da poesia, relativamente ao prestígio gozado por outras formas de linguagem no âmbito do embate cultural e malgrado o risco de desaparição que tal marginalidade pressupõe , é interessante porque obriga o poeta a assumir uma postura de maior autonomia crítica. E jáque nada se espera dele, talvez desde aí possa surgir alguma coisa.

Qual a função social da poesia?

Propor formas estéticas ao indecidível e ao equívoco que marcam o privado e o individual, de modo que eles disponham de forças para a deglutição meditativa/corrosiva dos signos do espaço público.

A poesia se esgotou como gênero literário? Se não, que caminhos podem evitar um futuro esgotamento?

Se eu soubesse como identificar os sinais de um tal esgotamento a rondar a arte da poesia, eu não os revelaria. Injetaria o contraveneno só na minha poesia. Você pensa que é mole ser um novo Homero?

Há obras meramente comerciais de poesia? O que pensa delas?

Alguém já disse que a expressão "poesia formalista" é uma redundância, pois poesia é forma, mesmo. Então, "poesia comercial" para mim, é uma contradição entre termos. Tem poesia ruim, isto é uma coisa. Mas, se é comercial, não é poesia. Portanto, a indignação de Augusto de Campos dizendo, num seu poema, que não se vende, tem algo de moralismo teatral. Faltou aprender a lição de Pessoa/Ricardo Reis: "Cala e finge./ Mas finge sem fingimento".

Quanto tempo dedica à leitura de crítica literária? Concorda com a idéia de que, nos jornais e revistas, ela está mais digestivo-introdutória do que analítico-crítica?

O tempo que dedico à leitura de textos críticos é mesmo que dedico à leitura de poesia, isto é, o tempo que dura o prazer textual. Meu desejo de linguagem dita as regras. O jornalismo literário tende cada vez mais a tornar-se um mero relações-públicas do mercado editorial.

Políticas literárias: faz qualquer negócio para sua obra ser editada? é justa a percentagem que fica para o editor e para as livrarias? É justo que o escritor seja a causa produtora de um sistema literário que não o beneficia corretamente? O que se pode fazer?

Não. Não. Não. Aproximar a poesia da música e das artes não-verbais. Afastá-la da literatura do sistema literário.

Quais são os vícios e as virtudes da poesia brasileira moderna e contemporânea?

Só um: o verso livre. Embora seja um exagero insistir em dizer que o "ciclo histórico do verso está encerrado", parece ficar cada vez mais claro que o verso livre modernista que, diga-se de passagem, a maioria pratica ainda imperitamente, sem fazer vacilar suas contradições e possibilidades constitutivas experimenta um momento de estagnação. Nem mesmo as vanguardas, que inventaram a "música sem-versista": o poema como uma constelação suspensa na página; nem mesmo elas conseguiram mudar o quadro. Talvez isso se deva, em parte, a precoce canonização do versolibrismo. Aliás, sua defesa, em alguns casos, foi tão dogmática quanto a dos que o repudiavam. O verso livre ainda tem alguma coisa a ver com o verso metrificado que pretendeu substituir.

"Escrever sobre escrever é o futuro do escrever"? (Haroldo de Campos)

Escrever sobre escrever sempre fez parte do nosso repertório, desde Homero, passando pelos griots africanos, pelos cantores provençais, pelos simbolistas, etc., e chegando até aqui. A metalinguagem está no passado da tradição e no presente que põe em cheque ou em movimento este passado. Escrever sobre escrever é um dos quesitos do escrever. Se isso tem futuro? É cedo para saber.

Alguma epígrafe que o acompanha sempre? Algum epitáfio lhe contém?

Invejo o poeta peruano Mirko Lauer que colocou como epígrafe ao seu livro Os poetas en la republica del poder, esta maravilha de José Lezama Lima : "...el encapotado odio de siempre de los poetas tejedores de la gran resistencia en contra de los asquerosos y progéricos, porcinos y tarados protectores de las letras". Como epitáfio, um poema-verso do Ricardio Silvestrin: "quero ser cromado".

Como você se vê frente ao recebimento de originais? Comenta tudo o que recebe?

Hoje em dia considero um trabalho. Quando me pedem para ler, eu cobro pela leitura e escrevo um comentário crítico. É claro que leio, "na faixa", os originais dos poetas de minha predileção e geração. Neste caso, não estou na posição de orientador, volto a minha condição de fruidor. Ultimamente ando lendo, entre outros, os originais do Ademir Demarchi e do Paulo de Toledo, estou adorando. Ambos grandes poetas que conheci de uns anos para cá. Outro poeta de quem espero e recebo sempre poemas perturbadores, é o Cândido Rolim, autor do livro Pedra Habitada.

Que livro prepara? Qual seu eixo principal?

Os editores da Ameopoema, Alexandre Brito e Ricardo Silvestrin, querem lançar um livro reunindo todos os meus livros anteriores ao Confissões Aplicadas, editado pela mesma editora em 2004. Acho uma bela idéia, jáque estes livros remotos tiveram edições bastante reduzidas. O Homem ao Rubro, por exemplo, foi o de maior tiragem, teve 300 exemplares.

Além de poeta que tem seus versos publicados no papel, você é músico e letrista. Uma coisa influencia a outra? Ou são produções separadas?

Tenho uma vida dupla. Mas a vivo sem grandes traumas. Não misturo as duas formas de arte. Entretanto, não obstante a conjunção entre poesia e música seja uma realidade estética possível, decidi não enveredar por esse caminho. Para mim, o poema tem uma música toda peculiar que pode eventualmente prescindir de sua presença digamos assim audível no mundo; o poema pode ser fruído no silêncio do pensamento do leitor. Não se trata de recusar sua performance oral, isto é, a enunciação à viva voz do verbal para além da sua visualidade na página impressa. Já a canção é "palavra voando" (como escreve James Joyce), um lance de linguagem cujas regras se ligam à respiração vital do corpo. Em resumo: minha poesia está nos livros e minha música (compósito inextrincável de letra e melodia) nos CDs que lancei individualmente ou com a minha banda Os poETs.

Você acaba de participar do "ECO: Performances poéticas", na cidade de Juiz de Fora. Como você vê a performance como meio de expressão da poesia? Você escreve poemas para serem lidos em voz alta ou em algum tipo específico de performance?

Escrevo poemas para serem fruídos, não importa a maneira encontrada pelo leitor-executante-intérprete para alcançar esse ponto de re-invenção. Sempre gostei de simplesmente ler o poema, sem quase nada de intensidade teatral que, não raro, resulta em retórica altissonante típica de um gosto retrô, que ratifica a imagem da poesia como essa coisa caipira, esse vociferar maneirista do coração. A performance é um meio de expressão possível da palavra poética. Cada poema, potencialmente, inaugura e exaure uma chance de linguagem. Assim, cada performance deve se lançar desde a específica solução estética constitutiva do poema.

Quais são suas principais referências na poesia? Numa resenha do seu Confissões Aplicadas (Ameopoema), Ricardo Aleixo fala de um "mixer" que inclui a poesia concreta, que inclusive tem a ver com a idéia contemporânea da "materialidade" do poema.

Manuel Bandeira é o maior, a vida inteira. Para mim, dentro da tradição brasileira, o poema "Organismo", de Décio Pignatari, é o mais importante do século XX: a conquista para a poesia de uma visualidade cuja precisão opera sobre a imprecisão do icônico transformado em simbólico, ou do verbal em trânsito para o não-verbal. Uma poesia (a visual) que nunca resta no lugar onde há pouco a deixamos.

Qual o último livro de poesia que você leu? E qual o último que você releu?

Estou finalizando a leitura de A Lógica do Erro, de Affonso Ávila (é verdade, não faço média com a tradição poética mineira, não!). Sou um admirador do Affonso, o sábio da poesia do escárnio. O poeta sabe dar ao erro, ao defectivo da linguagem, o assentamento de um quatro que se contenta de seu pé quebrado, porque foi arduamente conquistado, cito um pequeno trecho: "o infenso à inferência do lobby/ de palavras astutas artísticas...". Estou relendo os contos de Kafka enfeixados no livro Um Médico Rural (tradução de Modesto Carone). Mais do que com a lógica do sonho, o autor de O Processo lida com a lógica do pesadelo. Kafka reinventa o humor numa perspectiva exasperante.

Além das questões formais, é possível falar de um universo representado por seus poemas? Quero dizer, se o lírico seria a manifestação de um "eu interior", que eu é esse nos seus poemas? E no caso de No Assoalho Duro (Éblis), seu último livro? Ronaldo Machado menciona suas leituras de Nietzsche como fator relevante em seus poemas...

Mas além das questões formais não há mais nada. Poesia é forma, mesmo. Forma: estrutura significante de controle do acaso, plasticidade do pensamento-arte. Gostaria de lembrar uma máxima mallarmeana, diz assim: quem fala no poema não é o poeta, mas a linguagem, ela mesma. A poesia contida nesse livro é a que me foi possível conquistar durante os três anos em que vivi em Salvador, Bahia. Em Nietzsche, vontade de poder se resolve criticamente em vontade de engano. A alegria do engano e a poesia como essa viagem empreendida pelo leitor ao (seu) desconhecido.

Qual a história de No Assoalho Duro? São poemas escritos entre 1988 e 2006, o que é um longo intervalo de tempo. Trata-se de uma reunião de poemas aleatórios ou existia uma consciência de um livro sendo gerado ou nada disso?

É um livro-resto, livro-refugo. Um álbum de formulações de linguagem expurgadas, colocadas de lado, deslocadas, postas à prova da margem, do derrisório. Quando comecei a organizar o livro, resolvi partir do seguinte ponto: configurar um livro não-virtuoso, isto é, que não ratificasse essa "costumização" que o poeticamente correto impõe ao discurso de muitos dos meus pares.

Você trabalha também na veiculação de poemas, como editor (além de exercer a crítica literária). É uma coisa cada vez mais comum essa pulverização dos mercados, conteúdos veiculados pela internet, selos independentes de pequenas turmas de escritores, em locais específicos, talvez atingindo públicos também mais localizados, ao contrário da lógica globalizante da indústria de massa. Como você percebe e vive isso?

Sinto-me confortável, por enquanto, dentro da figura do poeta-crítico, ou seja, acho importante pensar sobre os limites, as singularidades e as imposturas do gênero, tentando escrever, inclusive, poemas que inventem outros problemas. O poema não tem que resolver nada. De resto, um bom poema não admite solução. A veiculação a que você se refere é mais ao trabalho da editora Éblis que conduzo em parceria com Ronaldo Machado. Mantemos diálogo com muitos poetas e realizações estéticas. Vivemos um nutrimento mútuo. Hoje, o atrito vertiginoso entre diversas ações relacionadas à poesia é uma experiência valiosa. Relações transversais abertas no espaço-tempo virtual.

A internet se tornou um lugar de encontros, disseminação, uma espécie de mercado independente e paralelo. Você possui o blog Poesia-pau. Como você atua na internet, no blog e de outras formas? Você acha que o potencial da internet está sendo bem usado no caso da crítica e difusão da poesia? Do lado da crítica, às vezes não é tão fácil encontrar fontes e escritos consistentes...

A internet permanece em movimento, para o bem e para o mal. Ainda está por ser feita uma análise mais abrangente acerca de suas simulações, desdobramentos e invenção de uma nova ordem sócio-cultural que esse meio, quem sabe, estaria apto a nos oferecer. O que é interessante de observar na dinâmica sígnica da rede mundial é que é possível fazer conviver de forma mais rente o pensamento refinado com a intervenção cultural prática. Há uma agilidade saudável na tensão entre esses dois pólos tradicionalmente cindidos. Do lado de cá do não-internético também há muito texto crítico de segunda categoria. É apenas uma questão de intensidades.

Fontes:
http://www.artistasgauchos.com.br/
http://algaravaria.blogspot.com/

Sarah Goulart (A Relação do Artista com a Mídia e a Arte da Boa Comunicação)


No último final de semana (9/maio/2009) participei do evento Papo de Artista, promovido pelo Portal Artistas Gaúchos, na Farol, em Porto Alegre, com o tema “A relação do artista com a mídia”. A grande quantidade de artistas presentes, para uma tarde de sábado, comprovou que este tema chama a atenção da classe artística. Ficou clara a dificuldade sentida por eles em conseguir um mínimo espaço junto aos veículos de comunicação para divulgarem seus projetos, seus trabalhos, sua arte. São artistas visuais, músicos, escritores, poetas, entre outros, que batalham e acreditam na sua arte e desejam vê-la reconhecida. Querem que sua mensagem chegue aos seus públicos e precisam da mídia para isso.

A questão é essa, uma boa comunicação com a imprensa também pode ser considerada uma arte. Não uma arte do artista e sim do assessor de imprensa cultural. Um jornalista formado, preparado para ajudar o artista a disseminar o conteúdo de seu trabalho. Todo o artista deveria ter o direito de exercer com plenitude e tranqüilidade o seu talento, assim como todo o artista tem o direito de ter seu talento divulgado com profissionalismo.

Junto com a jornalista Luciana Thomé, também assessora de imprensa cultural, conversamos sobre isso, abrindo espaço para que os artistas presentes expusessem suas dúvidas. Como produzir um bom release? Qual o melhor horário para fazer uma ligação para a imprensa? O que rende uma nota exclusiva em alguma coluna? Como agendar uma entrevista? Quanto tempo antes do lançamento a pauta deve ser encaminhada? O que é um press kit?

A relação do assessor com os jornalistas (seus colegas de profissão) facilita esse trabalho e garante melhores resultados. O profissionalismo evita erros comuns que podem ser cometidos quando a divulgação do trabalho do artista fica a cargo de alguém não especializado no assunto (em geral um parente ou um amigo).

Sabemos que nem sempre o artista tem orçamento disponível para poder custear uma assessoria de imprensa. Não há uma tabela de valores para isso. Tudo dependerá das demandas de trabalho. O Um lançamento de livro, por exemplo, é muito mais em conta do que um lançamento de filme, que geralmente tem financiamento. Essa é outra questão importante e deve ser abordada. Muitas vezes o artista esquece de acrescentar ao seu projeto o orçamento para divulgação. Chegada a hora do lançamento, precisa tirar do próprio bolso, ou fazê-lo de forma precária.

Uma artista presente afirmou durante o bate-papo ter gasto mais na impressão de panfletos, do que investiria em um profissional de assessoria de comunicação. É preciso medir o custo benefício. Um bom relatório de imprensa, com análises qualitativas e quantitativas da clipagem publicada, pode ser muito útil, para obter apoios e patrocínios - afinal quando apóia ou financia um projeto, a empresa e/ou entidade quer dar visibilidade a sua marca.

Para melhores resultados, o ideal é o assessor acompanhar o projeto desde o princípio. Ele poderá auxiliar o artista desde as definições de datas, o que é fundamental em alguns casos, através de um planejamento estratégico de comunicação, até a elaboração do relatório final. O assessor redigirá e aprovará com o artista os releases, notas exclusivas e sugestões de pauta, de acordo com a linguagem necessária, unificando o discurso. Ele sabe como devem ser encaminhadas as imagens para ilustrar a pauta – digo e repito, uma boa foto vende uma nota. Ele tem um mailing completo, com praticamente todos os contatos dos jornalistas que escrevem sobre arte e cultura em jornal, revista, rádio, TV, sites e blogs. Mas principalmente, ele tem essa relação, tão almejada pelos artistas e que fará com que seu projeto se dissemine.
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Sarah Goulart

Jornalista, atuante na área de assessoria de imprensa cultural.
Entre os trabalhos já realizados, destacam-se a divulgação local e nacional de importantes projetos culturais de Porto Alegre, como lançamentos de filmes, espetáculos teatrais, livros, exposições e festivais.
Na área de cinema é responsável pela CineEsquemaNovo – Festival de Cinema de Porto Alegre, desde sua primeira edição.
Fez os lançamentos dos filmes “Cão Sem Dono”, de Beto Brant e Renato Ciasca (em Porto Alegre); “3 Efes”, de Carlos Gerbase (nacional); “Nome Próprio”, de Murilo Salles (na última edição do Festival de Gramado e seu lançamento no RS e SC); “Ainda Orangotangos”, de Gustavo Spolidoro (filmagens e lançamento).
Atualmente atende o núcleo de cultura do Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano. Em abril fez assessoria de imprensa para a segunda edição da FestiPoa Literária.
É a responsável pela implantação da área de Assessoria de Imprensa na Maria Cultura, empresa gaúcha que trabalha com comunicação cultural.


Fonte:
Artistas Gaúchos

Celso Sisto (Circo Mágico)



Hoje tem marmelada? Hoje tem goiabada?!

Provavelmente os mais antigos conhecem o verso: hoje tem marmelada? Tem sim senhor! Hoje tem goiabada? Tem sim senhor! E o palhaço o que é? É ladrão de mulher! Com esse bordão se anunciava a chegada do circo! E atrás, vinha o desfile das atrações. E algumas atrações dos grandes circos atravessaram o tempo, como os palhaços Piolin e Carequinha ou o mágico Houdini. E assim como a acrobacia circense extrapolou os domínios da China, o circo ainda vive, nos quatro cantos do mundo!

E circo sempre desperta a imaginação. Pode ser o circo de antigamente ou os novos circos, com bichos ou sem bichos, de variedades ou temáticos (como costumam ser os circos modernos!), daqui ou de longe, brasileiro ou estrangeiro. Não importa! A imaginação se arma para a festa, para a surpresa e para o riso, tudo na base da emoção. E de repente todo mundo parece ter a mesma idade, mesmo que tenham variados tamanhos e diferentes anos de vida.

Mas se circo atiça a imaginação, também provoca poesia.

No livro “Circo mágico” vamos encontrar 20 poemas sobre os personagens clássicos de um circo; desde o bilheteiro ao apresentador; do tratador ao adestrador de animais; do equilibrista ao domador; do palhaço ao malabarista. O livro é quase uma fotografia da família circense, dessas charmosamente amareladas feitas por um lambe-lambe. Digo “fotografia” porque os poemas “focalizam” justamente o elenco que compõem um circo. Mas são mais do que mero registro de luz e sombra, mais que papel e líquidos reveladores e fixadores! São poemas revestidos pela química do tempo e do olhar perscrutador do poeta.

Mas não é assim tão simples. Falar de cada tipo desses na forma de poema é a proposta do livro. E não é poema desses rimadinhos pra ficar bonitinho. Não! São poemas bem construídos com versos grandes ou pequenos, com estrofes (“divisórias”) maiores ou menores; com palavras conhecidas ou desconhecidas. O que importa é que os poemas não são simples jogos de palavras (a poesia infantil, por vezes, esquece o jogo dos sentidos para ficar apenas no vazio dos jogos de palavras!). Eles apontam para a brincadeira sim, para a delícia das palavras sonoras, para o ritmo da fala (poema sempre é melhor quando lido em voz alta!), mas também para umas idéias engraçadas e brincalhonas, como no poema “a mulher borracha”:

a mulher-borracha
é que tem jogo de cintura

parece de látex
retorce pra lá, retorce pra cá
vira do avesso
se estica toda
que nem cobra, lombriga, minhoca
até encostar o umbigo nas costas
então se desenrosca

depois
coça a cabeça com o pé
as pernas põe atrás da orelha
e sai caminhando com as duas mãos
sobre os dedos
na maior

mas o namorado largou dela
diz que era muito enrolada.

O poeta vai jogando com o sentido duplo das coisas, em vários poemas, como faz acima, com o verso “diz que era muito enrolada” ou, como faz no verso “para o homem-bala/ a vida é um tiro no escuro”, do poema “o homem-bala”. E com isso, instaura o riso. Ou faz cessar o riso e instaura a reflexão, como no poema “o palhaço”:

o palhaço
tem cinco filhos
riso, sorriso, risada e gargalhada.

o mais velho
fica em casa
veste preto
gosta de rock pesado
vara noite e madrugada

se chama lágrima

Como num circo de verdade, os poemas do livro conseguem despertar no leitor uma gama de emoções muito grandes, que vão do riso ao suspense, da melancolia ao medo, por exemplo. E num circo de sentimentos, a emoção, por vezes, é um corte, como neste poema:

a mulher do atirador de facas
confia no marido de olhos fechados

errar é humano
mas ela nem desconfia

Se no circo é o “número, a cena” quem traz a marca do sentimento (por exemplo, um número de palhaço traz sempre a marca do riso, a platéia sabe que vai rir com aquele número), no livro, o personagem descrito no poema além de trazer uma marca prévia, conhecida, é acrescido por um discurso que reforça ou desconstrói tudo isso, de uma forma inusitada. O sentimento impresso no tipo que ele representa é reforçado pelo discurso, é somado ao discurso, mas com um toque a mais (do contrário seria a repetição do que já se sabe ou se conhece!). Vejamos, por exemplo, o poema “o mágico”, em que o sentimento de surpresa emerge de várias formas, seja pelas mágicas executadas pelo mágico, seja pela falha do mágico em suas próprias mágicas, como se o poema construísse e desconstruísse o “natural” dos personagens, dos tipos que cria, indo além de uma mera descrição:

o mágico
gosta de enganar os olhos da gente

fazer sumir e aparecer coisas
é com ele mesmo
nessa hora ninguém pisca
todo mundo quer ver se decifra
e num passe de mágica
o que se escafedeu se desescafede
e reaparece

quer ver o menino rir
a mocinha sorrir, o velhinho feliz
nem que seja por um instante só.

mas a sua maior mágica
é fazer gente grande virar gente pequena

quando não funciona, ele pensa:
ó, que pena

Ainda poderíamos pensar que em “circo mágico”, os poemas mostram o lado espetacular e o lado humano de cada tipo desses. Como se fosse um espelho. Ou como se fosse o “de dentro e o de fora”:

a mulher que engole fogo
é cuca fresca
não se queima com nada

era fogo quando criança
quase incendiava a casa
mas de noite
nada de xixi na cama

não gosta de pilotar fogão
prefere uma churrasqueira
uma fogueira, um fogo de chão

certas piadinhas ela não aceita
quando se irrita solta fogo pelas ventas

sabe que não é bonita
mas também não é nenhum dragão


Há, contudo, no livro, umas frases sob medida, construídas para ficarem rodando na cabeça do leitor, como esta do poema “o apresentador”:

(...)
tem que entrar no picadeiro de peito aberto
pra fazer o céu chegar mais perto Ou uns toques-revelação contidos em alguns poemas, como este do “tratador de animais”:

o tratador de animais
é um cara intratável
prefere viver com os bichos
... são mais verdadeiros
(...)

Mas, no final das contas não é isso o que a poesia quer? Ficar morando nos olhos, na memória, no coração do leitor? O mais legal é isso, esse jogo de dubiedades, de ritmos, de graças, de sentimentos, que fazem dos poemas desse livro, um festival de brincadeiras sonoras e imaginárias, em que a palavra corporifica o seu significado real, ampliado, renovado, atualizado pelo simbólico. Precisa mais?

Em última instância, o livro fica a nos lembrar que para sentir e se espantar com o que os olhos vêem e com o que os outros fazem de espetacular, não há idade. O circo das palavras de Alexandre e Eduardo liberta bichos, feras, homens e meninos. Fazendo tudo e todos conviverem magicamente no mesmo tempo e lugar:

o circo
tem cheiro de pipoca
e algodão doce

é o paraíso
hoje, ontem, amanhã
vira sempre

é um lugar exato no espaço
fora do tempo
dentro do coração

onde o velho e a criança
dão as mãos.

Essa idéia, de paraíso, de lugar idílico, de território que abole fronteiras perpassa o livro em muitos momentos, e certamente ecoará depois que o leitor fechar o livro, principalmente porque a solenidade do significado de tudo isso está magnetizada e aromatizada pelo riso, pela leveza, pelo inesperado.

As ilustrações parecem feitas em tela e deixam o leitor ver os risquinhos do tecido, essa textura que é tão própria dos quadros. E as cores são abundantes. E o colorido é uma alegria só. Desenhos com cara de antigos pôsteres de propagandas.

Alexandre Brito estréia em livro solo para criança, e estréia muito bem. Traz consigo a experiência da banda “os poETs”, da qual faz parte. Eduardo Vieira Cunha entrou com as ilustrações amplas e enxutas. Na medida. A dupla faz samba, quero dizer, poesia pura, em vários sentidos!

Fonte:
Artistas Gaúchos

Celso Sisto (1961)


CELSO SISTO nasceu no Rio de Janeiro em 16/06/1961 e vive atualmente em Cidreira (RS).

É escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, especialista em Literatura Infantil e Juvenil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Doutorando em Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Estreou na literatura em 1994, com o livro Ver-de-ver-meu-pai (Nova Fronteira) e tem hoje 36 livros publicados para crianças e jovens, tendo, inclusive, recebido alguns prêmios pela qualidade de sua obra (FNLIJ, Altamente Recomendável, Catálogo da Feira de Bolonha, Cantinho da Leitura, PNBE, etc).

É responsável pela formação de inúmeros contadores e grupos de contadores de histórias espalhados pelo país.

Tem viajado pelo Brasil e outros países, fazendo palestras e ministrando oficinas de produção de texto, narração oral e literatura.

Atualmente assina as colunas de crítica literária, Lugar na prateleira (revista Rainha dos Apóstolos), Com a boca cheia de livros (portal Cultura Infância) e no site Artistas Gaúchos.

Fontes:
http://www.celsosisto.com/
http://www.camaradolivro.com.br/