sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Antonio Cândido (Literatura e Sociedade: A Literatura na Evolução de uma Comunidade) Parte 4


3 — O grupo se justapõe à comunidade

A partir dessa etapa preliminar, em que os estudantes se articulam e adquirem consciência do seu estado, forma-se o que se poderia chamar a sua sociabilidade específica. Mesmo antes de 1840 eles já aparecem como grupo diferenciado na pequena cidade de então (doze a quinze mil habitantes); a partir mais ou menos daquele ano, firma-se nitidamente o processo de elaboração de uma expressão própria desse grupo. Imaginemos o estado de coisas àquela altura na capital sossegada e provinciana, que um acadêmico irreverente definia assim: "Depois, o povo paulista tem o mesmo tipo: é monótono por excelência. Chilenas, banguês, burros, padres, capas, mantilhas, lama, caipiras (machos e fêmeas) eis o que encontrava Genesco". Os padrões sociais previam o comportamento de sitiantes, proprietários, comerciantes, advogados, magistrados, funcionários, deputados — isto é, daquilo que os rapazes seriam depois do curso, depois de casados, compadres, pais de família, liberais ou conservadores, almoçando às oito, jantando às três, ceando às sete, dormindo às nove. Mas que padrões se ajustariam ao comportamento de dezenas e logo centenas de moços de gravata lavada, ocupados em atividades tão fora do esquadro? No flanco da comunidade paulistana cresceu e se firmou, com características próprias, o grupo diferenciado de acadêmicos.

Na idade em que estavam, de passagem da adolescência à maturidade, quase todos longe das famílias, socialmente colocados aquém da vida prática, nutridos de idéias e princípios diferentes dos que norteavam os paulistanos, é natural que desenvolvessem tipos excepcionais de comportamento. Antes, tinham sido meninos de família, como os outros; depois, seriam letrados, políticos e proprietários, como os outros. No breve curso da Academia, porém, eram algo diferente. Tanto mais diferentes, quanto os haviam concentrado na pequena e pacata São Paulo, que não possuía estrutura social constituída de modo a englobá-los.

Desse caráter de exceção nutriu-se a sua sociabilidade peculiar, definida por determinados tipos de comportamento, determinada consciência corporativa, e, finalmente, uma expressão intelectual própria.

A sua localização histórica é reconhecível pelo apogeu das manifestações características, que podemos delimitar, de um lado, pela fundação da Sociedade Epicuréia (1845); de outro, pela estadia de Castro Alves (1868). A partir de 1870 a convivência acadêmica se vai alterando. O crescimento rápido da cidade, a diferenciação crescente das funções, modificaram pouco a pouco o sistema de relações entre os dois grupos — o de estudantes e a comunidade. Aquele foi perdendo o relevo próprio, encontrando vias cada vez mais numerosas de conexão com esta, dissolvendo-se na vida comum. Em consequência, perdeu a sua gloriosa exceção, embora não a sua importância.

Na fase que nos interessa, portanto, o "corpo acadêmico" se define sociologicamente como um segmento diferenciado na estrutura da cidade, à qual por enquanto se justapõe, sem propriamente incorporar-se, caracterizando-se pela formação de uma consciência grupal própria. A boêmia e a literatura constituem a manifestação mais tangível desta, configurando o tipo clássico do estudante paulistano, exprimindo o seu ethos peculiar. É verdade que sempre houve numerosos rapazes alheios à vida acadêmica, tendendo por isto a integrar-se nos outros agrupamentos da comunidade e aproximando-se dos seus padrões. Eram os que decoravam o compêndio, cortejavam bons partidos, agradavam os figurões — antecipando-se à vida. Mas o fato é que os momentos de crise tornavam patente o elevado grau de coesão estudantil, como foi o caso, em 1843, das assuadas ao presidente Joaquim José Luís de Sousa, quando a prisão de dois rapazes levou grande parte dos colegas a se constituírem prisioneiros em solidariedade. E mais ainda no chamado "conflito dos cadetes" (1854), em que houve um morto e a cidade se pôs em pé de guerra, acabando tudo com a remoção do batalhão do Exército envolvido nas ocorrências. Nessa ocasião, toda a Academia saiu a limpo, a despeito da situação dramática, reagindo coesa, exigindo e obtendo desagravos aos seus brios, que reputara ofendidos.

Esta situação criava tensões frequentes entre os estudantes e a comunidade, e não há melhor prova da estrutura dual que era então a de São Paulo do que o seu reconhecimento tácito pela administração, nomeando em 1851 e mantendo por longos anos no cargo de delegado de polícia um lente da Faculdade, o conselheiro Furtado, que nesta qualidade servia de ponte entre a população e o grupo estudantil.

Além das estudantadas e da boêmia, a sociabilidade acadêmica se manifestava de modo mais estruturado nas "repúblicas", agremiações literárias, jornais e revistas.

Há em São Paulo uma reunião original, vivendo louca, caprichosa e interessante, que tem uma crônica importantíssima, mas que varia tanto, como o caráter de seus protagonistas.

Não sabemos que mente de poeta, ou de socialista observador, batizou essa reunião sob o nome simpático de República.

Três ou quatro rapazes reúnem-se, pactuam e vão viver na mesma casa, fazendo em comum as despesas do alimento, do aluguel etc. Eis a República proclamada.

Estruturadas pelo princípio da origem comum (taubateanos, mineiros, fluminenses) ou do interesse comum (troça, literatura, estudo), elas eram a unidade básica da vida estudantil. Unidades não apenas de pouso, mas de recreio e atividade intelectual. Nelas se originaram muitos escritos, muitos projetos literários. Pelos fins do decênio de 1840, nelas se reuniam para improvisar bestialógicos em prosa e verso (gênero da mais alta importância, cujas produções se dispersaram infelizmente quase todas) João Cardoso de Menezes, Silveira de Sousa, José Bonifácio, o moço, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães — autor do estupendo soneto:

Eu vi dos pólos o gigante alado…

Das repúblicas a sociabilidade literária se expandia pelos grêmios, inaugurados pela Filomática: o Ensaio Filosófico, 1850; o Ateneu Paulistano, 1852; a Associação Culto à Ciência, 1857 (de preparatorianos); o Instituto Acadêmico, 1858; o Clube Literário, o Instituto Científico. Merece lugar à parte a Epicuréia (1845), espécie de ponto de encontro entre a literatura e a vida onde os jovens procuraram dar realidade às suas imaginações românticas. Foi uma experiência do maior significado para definir o que houve de mais característico no Romantismo paulistano, na qual o exemplo conscientemente seguido dos personagens de Byron e Musset foi entroncar-se inconscientemente na tradição do marquês de Sade.

Algumas dessas associações tiveram o seu periódico, destacando-se os famosos Revista Mensal do Ensaio Filosófico Paulistano e Ensaios Literários do Ateneu Paulistano. E houve jornais, como o Acaiaba (1851), O Guaianá (1856) (cujos nomes indicam a tendência), A Academia (1856), íris (1857).

Concluindo, registremos, do ponto de vista que nos interessa, o caráter complexo e multifuncional do grupo estudantino, no que se refere à literatura.

Note-se, com efeito, que ele constituía um meio estimulante para a produção literária, seja envolvendo o estudante numa atmosfera de exceção, seja integrando-o num sistema de relações em que a atitude literária predominava. Muita gente, que pela vida afora nunca mais ia abrir um livro de ficção ou de poesia, era desta maneira conduzida a pagar o seu tributo, contribuindo para o patrimônio do grupo com produções as mais das vezes sem maior significado estético.

Mais ainda: era um sistema de intercâmbio literário, garantindo o curso das produções, seja por escrito, seja nas frequentes sessões de grêmio, seja nos recitativos, discursos e debates de república ou tertúlia. Era uma bolsa de livros, trocados, emprestados, filados — circulando de qualquer forma, na falta de bibliotecas e livrarias. Lembremos a importância decisiva que teve na formação de José de Alencar o fato de morar na República de um amigo de Francisco Otaviano — cujos livros pôde assim devorar, familiarizando-se com a literatura francesa, sobretudo Balzac. Conheço uma coleção encadernada dos Ensaios literários, em cuja primeira página se lê, numa letrinha corrente e amarelecida: "Foi arranjado com muito custo e por isso é infilável por sua natureza". Nada mais significativo das formas estudantis de circulação bibliográfica…

Além disso, as repúblicas constituíam o público, — elemento básico no funcionamento e na continuidade da literatura. No século passado, os estudantes de São Paulo tiveram este privilégio pouco vulgar no Brasil de então: saída certa para a sua atividade intelectual. Imagine-se o estímulo que decorria, devido à ressonância entre os colegas, espécie de auditório ou conjunto permanente de leitores, cuja opinião formava pedestal para a evidência das obras na comunidade e eventualmente no país.

Finalmente, o corpo estudantil fornecia a crítica, a sistematização das apreciações impressionistas, a tentativa de interpretar o significado das obras. Nas revistas e nos jornaizinhos, censores e apologistas ombreavam com poetas e prosadores. Alguns, da melhor e mais promissora qualidade, como Álvares de Azevedo e Antônio Joaquim de Macedo Soares — este, um embrião de grande crítico, sem dúvida superior aos que então pontificavam. Dedicando grande interesse à análise dos trabalhos de acadêmicos e ex-acadêmicos, ele enriquece as coleções da Revista Mensal, dos Ensaios e, no Rio, da Revista Popular, com um juízo agudo e equilibrado, que é pena tenha sido desviado em seguida para outros setores.

Estas considerações nada significam, todavia, se não lhes juntarmos uma última, a saber, que o Romantismo facilitou a constituição autárquica do corpo acadêmico, fornecendo-lhe uma ideologia adequada, pelas três vias em que se manifestou aqui: nacionalismo indianista, sentimentalismo ultra-romântico, satanismo. O primeiro, menos que os outros; o terceiro, mais do que todos.

Depois da publicação das poesias de Gonçalves Dias, o regato brotado na fonte de Nênia, de Firmino, alargou-se numa torrente imperiosa, a cujo fio se deixaram ir muitos dos jovens. O Acaiaba, redigido por Couto de Magalhães, depois o Guaianá, votaram-se ao Indianismo, que alastrou também pelas outras revistas, em poesia e crítica. Reconhecido por todos como fundador da poesia brasileira, Gonçalves Dias era por alguns considerado o modelo necessário. Dentro dos critérios de nacionalismo estético, imperantes em nosso Romantismo, julgou-se o valor dos poetas pela presença ou ausência, na sua obra, do pitoresco nacional, mormente o indígena. Álvares de Azevedo, embora admirado, era tido por muitos como pouco, ou não brasileiro, poeticamente. "Manuel Álvares de Azevedo pouco e muito pouco tem de brasileiro: apontaremos só a Canção do sertanejo", escrevem dois estudantes. "As suas poesias, embelezadas nos perfumes da escola byroniana" — diz outro — "não foram inspiradas ao fogo de nossos lares. As harmonias do nosso céu, os perfumes de nossa terra não ofereciam àquela alma ardente, senão um espetáculo quase sem vida; eram maravilhas por assim dizer murchas, ante as quais o poeta não se inclinava". Pode-se ver a que ponto chegou a obsessão indianista dos estudantes de então por esta primeira estrofe de O canto de Ibitinga, de L. B. Castilho:

Deixei taba adornada de crânios,
Meus djicks, meu forte cuang,
Deixei inis aonde embalava
Meus amores mais doces que o pang.

E o mocinho explica em notas, complacentemente, que djick é flecha, cuang é arco, inis é rede, pang é mel…

O Indianismo chegou pois a adquirir aspectos característicos na atmosfera acadêmica. Não obstante, era linguagem de maior comunicabilidade, ligando os estudantes ao nacionalismo — que se manifestou em São Paulo de forma ainda mais geral, na celebração constante do Ipiranga, tema localista correspondente ao que foram o Dois de Julho, na Bahia, a Guerra Holandesa, em Pernambuco, a Inconfidência, em Minas.

Igualmente acessível ao gosto comum foi o sentimentalismo ultra-romântico, — a idealização amorosa, a pieguice, a melancolia, vazadas em ritmos melodiosos e fáceis, desenvolvidos sob a inspiração direta dos portugueses. Constitui a maioria da produção estudantina do tempo, e bem se compreende a importância que teve para definir a ideologia do grupo, graças à sua insistência no poeta solitário, incompreendido, infeliz, separado por um abismo da comunidade dos homens comuns. Era uma solução para exprimir a posição autárquica do estudante, confirmando-o na sua singularidade, na sua diferença.

Ide, minhas canções, voai aos ermos,
Filhas da solidão, voltai a ela!
[B. Guimarães]

Em face do burguês que lhe esconde a filha e resmunga com as suas tropelias, o moço se define como alma de escol, incompreendida do mundo, fadada à infelicidade. Abundam nas revistas de então as diatribes contra a hipocrisia, a corrupção, a dureza da sociedade — saídas por vezes da pena de algum salteador noturno de galinheiros, ou comparsa de pândegas inconfessáveis. Em face da comunidade estática, o grupo trepidante de moços encontra na atitude romântica uma solução ideal para exprimir a sua diferenciação.

Foi, contudo, o satanismo que constituiu a manifestação mais típica dessa singularidade do poeta-estudante nos meados do século, fornecendo uma ideologia de revolta espiritual, de negação dos valores comuns, de desenfreado egotismo. Foi ele o ingrediente principal das lendas joviais e turvas que envolvem a vida acadêmica de São Paulo numa atmosfera de desvario. A melancolia, o humor negro, o sarcasmo, o gosto da morte traçam à roda do grupo estudantil um círculo de isolamento que acentua, para o observador, o seu caráter de exceção na sociedade ambiente. É a típica tonalidade paulistana, difundida por todo o país, contribuição original desta cidade ao Romantismo brasileiro, ligada à pessoa e à obra de Álvares de Azevedo — principalmente o Macário e A noite na taverna. Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e ele encarnam este momento da nossa literatura — sólida trinca de amigos que fascinou muitas gerações de acadêmicos-literatos. E realmente participaram de tal modo dos padrões excepcionais do seu grupo, que não se acomodaram fora dele: Manuel Antônio morreu antes de deixá-lo; Aureliano jamais conseguiu escapar ao seu influxo, a ponto de morrer de bêbado, inadaptado integral à vida; Bernardo deixou a poesia (pelo menos a verdadeira), buscando outro rumo no romance, e na vida foi sempre um inadaptado pouco melhor que o seu infeliz e fraternal amigo.

Com esta corrente, o grupo da Academia atingiu o ponto mais alto da diferenciação e forjou a sua expressão mais característica. Não era possível ir mais longe sem a ruptura total com a sociedade ambiente. E de fato não foi. As "exagerações" da sua poesia não cessam de ser apontadas nos jornaizinhos, e o grupo acadêmico, apesar do fascínio exercido pela lembrança do satanismo, irá pouco a pouco descobrindo conexões que possibilitem a sua integração na comunidade. Varela, que veio pouco depois refazer na vida, e um pouco na poesia, o caminho da famosa tríade, já não passaria de um continuador. Castro Alves dará o sinal da mudança deslocando os rapazes da sua autarquia para a vasta comunhão dos problemas sociais. E o grupo, crescido como floração estranha no flanco da pequena cidade, integrar-se-á lentamente na vida da grande cidade que desponta.

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continua……………
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Trova 169 - Pedro Ornellas (São Paulo)

Fonte:
Imagem obtida em http://edself.blogspot.com

Folclore Popular (Lenda do Preguiçoso)


Diz que era uma vez um homem que era o mais preguiçoso que já se viu debaixo do céu e acima da terra. Ao nascer nem chorou, e se pudesse falar teria dito:

“Choro não. Depois eu choro”.

Também a culpa não era do pobre. Foi o pai que fez pouco caso quando a parteira ralhou com ele: “Não cruze as pernas, moço. Não presta! Atrasa o menino pra nascer e ele pode crescer na preguiça, manhoso”.

E a sina se cumpriu. Cresceu o menino na maior preguiça e fastio. Nada de roça, nada de lida, tanto que um dia o moço se viu sozinho no pequeno sítio da família onde já não se plantava nada. O mato foi crescendo em volta da casa e ele já não tinha o que comer. Vai então que ele chama o vizinho, que era também seu compadre, e pede pra ser enterrado ainda vivo. O outro, no começo, não queria atender ao estranho pedido, mas quando se lembrou de que negar favor e desejo de compadre dá sete anos de azar...

E lá se foi o cortejo. Ia carregado por alguns poucos, nos braços de Josefina, sua rede de estimação. Quando passou diante da casa do fazendeiro mais rico da cidade, este tirou o chapéu, em sinal de respeito, e perguntou:

“Quem é que vai aí? Que Deus o tenha!”

“Deus não tem ainda, não, moço. Tá vivo.”

E quando o fazendeiro soube que era porque não tinha mais o que comer, ofereceu dez sacas de arroz. O preguiçoso levantou a aba do chapéu e ainda da rede cochichou no ouvido do homem:

“Moço, esse seu arroz tá escolhidinho, limpinho e fritinho?”

“Tá não.”

“Então toque o enterro, pessoal.”

Fonte:
Lenda recontada por Giba Pedroza, ilustrada por Orlando. in Revista Nova Escola. Edição Especial. Agosto de 2004.

Ialmar Pio Schneider (Soneto)


Como posso saber se tu me queres
quando me encontro assim... de ti distante ?...
Elejo-te a mais bela das mulheres
e concebo que sejas minha amante.

Quando sonho contigo deslumbrante,
nada me turva a mente e se tiveres
um pensamento alegre, não obstante
o verdadeiro amor não mais esperes...

Lembra-te do poeta que te quis
no decorrer da tua mocidade,
a quem nada ofertaste, mas apenas

fizeste com que fosse outro infeliz,
perdido pelos antros da cidade,
maldizendo das lástimas terrenas...

Canoas - RS, 17 de outubro de 2000

Fonte:
O Autor

Vicência Jaguaribe (Carolina Trovão, seu colar de corais e o raiozinho de sol)


Colar de Carolina
Com seu colar de coral,Carolina corre por entre as colunas da colina.
O colar de Carolina colore o colo de cal, torna corada a menina.
E o sol, vendo aquela cordo colar de Carolina, põe coroas de coral
nas colunas da colina.
(Cecília Meireles)


- Carolina, corra aqui, me ajude com esta bacia!

E a Carolina acionava as asinhas de seus pés, feito Hermes, o mensageiro dos deuses, e voava para ajudar a mamãe. A bacia estava cheia de roupa lavada para estender no quintal.

- Carolina, onde estão os meus óculos? Preciso ler o jornal e não os encontro!

E a Carolina abria bem seus olhos de lince e achava os óculos do vovô, que fazia um ar de felicidade ao abrir o jornal.

- Carolina! Carolina! Me ajude a pentear os cabelos, que já estou atrasada para a missa!

E a Carolina, com suas mãozinhas de fada, fazia um coque no cabelo da vovó e o prendia com um pente de madrepérola. E a vovó ia bonita e feliz rezar pela família.

- Carolina, leve a Silvinha para passear na colina!

E a Carolina punha seu colar de coral e levava a irmãzinha para passear na colina. E a Carolina ficava mais bonita com os corais do colar colorindo seu colo de cal.

A Carolina, segurando na mão da irmãzinha, apostava corrida com a própria sombra, que às vezes se escondia nas colunas da colina.

A Carolina Trovão era assim: em casa era pau para toda obra. Os adultos nunca a deixavam em paz, e a Carolina ajudava todo mundo. E era um tal de gritar, chamando a Carolina – Carolina, isso; Carolina, aquilo; Carolina, aquilo outro!

E a Carolina Trovão não era Trovão só no sobrenome, não! A Carolina parecia ser o resultado de uma descarga elétrica, que a fazia correr em vez de andar; que lhe conservava em alerta todos os sentidos – seus olhos viam mais; seus ouvidos ouviam mais; seu nariz cheirava mais; sua boca sentia mais gosto e suas mãos tinham mais sensibilidade do que... os olhos, os ouvidos, o nariz, a boca e as mãos das outras crianças e também dos adultos.

Mas a Carolina Trovão era, principalmente ruidosa – falava alto, ria alto, cantava alto e não deixava que ninguém ficasse triste ou desconsolado perto dela. E, sempre que podia, gostava de brincar com gente, com bicho, com coisas e, principalmente, com os elementos da natureza.

Naquele dia, na colina, com a Silvinha, ela percebeu que um raiozinho de sol insistia em tocar nos corais de seu colar. Ela, então, resolveu brincar de esconde-esconde de corais com ele.

Primeiro, puxou seus longos e lisos cabelos ruivos para a frente e escondeu os corais do colar. Mas o vento, amigo do raiozinho de sol, mandou uma rajada, que levantou a bela cabeleira da Carolina, deixando à mostra os corais do seu colar. E o raiozinho de sol caiu diretamente sobre eles.

Depois, ela levantou a gola da blusa de modo a fazer a fazenda cobrir os belos corais do colar. Um raio de sol mais forte do que o raiozinho brincador virou-se diretamente para a Carolina. Ela sentiu tanto calor, que o jeito foi abrir os primeiros botões da blusa e deixar à mostra os lindos corais de seu colar. E o raiozinho de sol refletiu diretamente sobre eles.

Por último, ela tentou proteger-se pelas sombras das colunas da colina, mas o sol mudou de posição, e as sombras foram para o outro lado da colina. Ela ficou, assim, cara a cara com o raiozinho de sol, que se lançou todinho sobre os corais de seu belo colar. E as duas meninas – a Carolina e a Silvinha – viram um espetáculo lindo, que elas nunca tinham visto nem no cinema: os reflexos dos corais do colar da Carolina enfeitaram de coroas de coral as colunas da colina.

Fonte:
Era Uma Vez Outra Vez.

Vicência Jaguaribe (Dois Livros Infantis à Venda)

Fonte:
Montagem da imagem por José Feldman

Antonio Cândido (Literatura e Sociedade: A Literatura na Evolução de uma Comunidade) Parte 3


2 — Um grupo real

Depois desse momento inicial, uma ou outra manifestação literária em São Paulo, ou de paulista — inclusive José Bonifácio, o poeta Américo Elísio — nada trazem de novo para o nosso ponto de vista. Por volta de 1830 é que vamos encontrar uma segunda congregação de homens, valores e idéias, em torno da Revista da Sociedade Filomática, de importância apreciável em nosso Pré-romantismo, como assinalou José Aderaldo Castelo.

Aqui, não se trata de personalidades tão eminentes quanto as dos três anteriores, nem a sua obra escassa possui o mesmo relevo que a deles. Trata-se, porém, de um agrupamento efetivo, não mais virtual, além de exercer sobre os grupos sucessores uma influência direta, como não aconteceu com a dos outros. O seu fator foi a criação da Faculdade de Direito (1827), que desempenharia papel decisivo na literatura em São Paulo.

Num estudo sugestivo, A. Almeida Júnior define com acerto e precisão o verdadeiro caráter da Academia de São Paulo — menos uma escola de juristas do que um ambiente, um meio plasmador da mentalidade das nossas elites do século passado. Bastante deficiente do ponto de vista didático e científico, foi não obstante o ponto de encontro de quantos se interessavam pelas coisas do espírito e da vida pública, vinculando-os numa solidariedade de grupo, fornecendo-lhes elementos para elaborar a sua visão do país, dos homens e do pensamento.

Interessa-nos aqui, justamente, apontar algumas manifestações desse espírito de grupo na literatura; mostrar como a convivência acadêmica propiciou em São Paulo a formação de agrupamentos, caracterizados por idéias estéticas, manifestações literárias e atitudes, dando lugar a expressões originais.

A Sociedade Filomática, fundada em 1833, reuniu alunos e jovens professores, entre os quais Francisco Bernardino Ribeiro, Justiniano José da Rocha, Francisco Pinheiro Guimarães, Antônio Augusto Queiroga, José Salomé Queiroga, nenhum dos quais nascido em São Paulo (eram cariocas os três primeiros, mineiros os dois últimos). Publicaram seis números de uma revista, esboçaram uma atitude bastante ambivalente de reforma anticlássica, promoveram reuniões e representações — agitaram, numa palavra, a pequena cidade de então, estabelecendo nela a literatura como atividade permanente, por meio do seu corpo estudantil. Quanto mais não fosse, este feito bastaria para consagrá-los, a despeito da pobreza quantitativa e qualitativa da sua produção. Há mais, todavia: desse agrupamento de amigos, tomados pelo entusiasmo da construção literária (que foi no Brasil a mola patriótica do Romantismo, a sua motivação consciente), surgiria, como breve fogacho, um poema que iria iluminar a posterior evolução das letras em São Paulo e abrir caminho para uma das suas mais típicas manifestações. O caso foi que em 1837 falecia Francisco Bernardino, aos vinte e três anos, já lente da Faculdade, guia da Filomática, grande esperança do tempo. O moço jurista protegia e orientava nos estudos um conterrâneo, Firmino Rodrigues Silva, já no fim do curso, e que podemos considerar rebento, primeiro produto do mencionado grupo literário. A amizade entre ambos era grande, e o mais moço nutria pelo mentor uma exaltada admiração. Morto este, a dor inspirou-lhe alguns belos poemas (quase os únicos que fez), entre os quais, e sobretudo, a famosa Nênia. Nela, o sentimento de amizade se exprimia de um modo já próximo às tonalidades românticas. Ao lamento se incorpora uma figura simbólica de índia — alegoria do Rio de Janeiro — que formula, pela primeira vez no Brasil, certos torneios indianistas, como seriam desenvolvidos na obra de Gonçalves Dias:

Tupá, Tupá, oh numen de meus pais!

Álvares de Azevedo, José de Alencar, Paulo do Vale, Sílvio Romero, Paranapiacaba — todos consideram-na o início da "escola brasileira". Nela se entronca o Indianismo inicial, em São Paulo, que em seguida recebeu o influxo decisivo e dominador de Gonçalves Dias. Em 1844, três anos antes dos Primeiros cantos, temos aqui CÂNTICO DO TUPÍ, IMPRECAÇÃO DO ÍNDIO, PRISIONEIRO ÍNDIO, do futuro barão de Paranapiacaba (natural de Santos), prefigurando o tom gonçalvino. Poetas menores da Faculdade de Direito ligaram-se à mesma tradição, como Antônio Lopes de Oliveira Araújo, autor do belo GEMIDO DO ÍNDIO (1850).

Quando a obra do maranhense dominou o meio literário, dando a impressão de que, afinal, havia poesia brasileira, o terreno já estava preparado em São Paulo, graças a Firmino. Também o ambiente criado pela Filomática não se dissolveria mais, e, extremamente receptivo, iria ficando daí por diante cada vez mais denso, — associações sucedendo a associações, revistas a revistas, até criar aquela saturação rompida pelo advento das correntes parnasianas e naturalistas.
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

Encontro com Eunice Arruda dia 21 de agosto

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Francisco Miguel de Moura (Sonetos Escolhidos)


QUERENÇAS

Quero ter a vaidade dos caminhos:
dão passagem mas pouco dão abrigo.
Quero ter o orgulho do tufão,
Quero ter a tristeza do jazigo.

Quero sentir da tarde a lassidão
e a solidão da noite no deserto,
das pobrezinhas flores – o perfume,
como as nuvens – ficar no céu aberto.

Quero ter emoções de amor secreto,
sentir como se sente uma paixão,
pra cantar glórias e chorar amores.

Quero viver do ideal concreto,
quero arrancar de mim o coração,
incapaz de conter todas as dores.

SENSUAL ALICE

Foi na queda da minha meninice,
desaguando na minha juventude,
que me veio à cabeça esta virtude
de te gravar no coração, Alice.

Tu brincavas na areia, ondas salgadas
vinham quebrar-se nos teus pés sem pejo.
Aproveitar meu prematuro ensejo
seria um céu. Perdi nossas pegadas.

Sonho as curvas da praia, as curvas tuas
como o seio nascente que guardavas...
De tantas coisas desejei só duas.

Na noite, as mãos levíssimas de sondas...
E entre séria e risonha te afastavas,
levada docemente pelas ondas.

O QUE É A SAUDADE

Impossível saber o que é a saudade...
Uma palavra? A cor de uma tristeza?
Ou uma felicidade sem certeza
que em nós se instala como eternidade?

O que passou, passou, não é verdade?
Ou nos ficou do tempo a chama acesa?
Saudade, um não-sei-quê que traz leveza?
Ou apenas enganos, leviandade?

Está no corpo inteiro ou está na alma?
E se está, por que não nos traz a calma?
Por que nos mata assim, tão devagar?

Saudade, o teu passado é tão presente,
és uma dor que chega de repente
e que parece nunca vai passar.

O TEMPO EXISTE

Existe um tempo que sequer sentimos,
existe um tempo que sequer pensou-se,
existe um tempo que o tempo não trouxe,
existe um tempo que sequer medimos.

Existe mais: um tempo em que sorrimos,
diferente do tempo em que chorou-se,
e um tempo neutro: nem amaro ou doce.
Tempos alheios, nem sequer são primos!

Existe um tempo pior do que ruim
e um tempo amado e um tempo de canção,
existe um tempo de pensar que é o fim.

Tempo é o que bate em nosso coração:
um tempo acumulado em tempo-sim,
e um tempo esvaziado em tempo-não.

O TEMPO SEMPRE VAI

O tempo sempre vai, tempo não volta,
pois do futuro faz sua grande meta.
Caminha sem volteios como atleta,
não anda devagar nem sob escolta.

Veja o tempo da moça, ou do poeta:
Precisa sempre da cabeça solta...
Mas se em dado momento se revolta,
não volta atrás, na linha se completa.

Se o tempo humano desse para trás
seria um desmantelo em tudo mais,
a matéria em fumaça tornar-se-ia.

E, loucos, os filósofos e os poetas
trocariam as curvas pelas retas,
e nesse passo a mundo acabaria.

Fonte:
http://franciscomigueldemoura.blogspot.com/search/label/poesia

Francisco Miguel de Moura (1933)



Nasceu em Francisco Santos (outrora “Jenipapeiro”, município de Picos, sertão do Piauí), aos 16 de junho de 1933.

Estudos primários com seu pai; ginasial e contabilidade, em Picos, onde contraiu matrimônio com D. Maria Mécia Morais Moura. Naquela cidade nasceram os 2 primeiros filhos: Franklin e Fulton; os outros, Laudemiro e Francisco Jr. nasceram na Bahia e Fritz e Mécia, em Teresina.

Formado em Letras pela Universidade Federal do Piauí e pós-graduado na Universidade Federal da Bahia. Funcionário aposentado do Banco do Brasil. Radialista, professor de língua portuguesa e literaturas brasileira e portuguesa, atividades que não mais exerce.

Hoje se dedica exclusivamente a ler e escrever e brincar com os netos, que ao todo são dez, na cidade que elegeu para sempre: Teresina.

Prêmios:

*Crítica: Dir.Acadêmico da FAFI -Teresina 1971, Academia de Uruguaiana-RS, 1972
*Poesias: Academia Piauiense de Letras, 1983; Academia Mineira de Letras, B.Horizonte - MG, 2003; Revista "Poesia para Todos", Rio - RJ, 2000; Concurso Nacional de Poesia, S. Paulo, 2000
*Soneto: Editora Alba, Varginha - MG, 2000
*Epitáfios: Edições Minas, Concurso Nacional de Poesia, Juiz de Fora, 1994 *Trovas: Centro de Cultura, Mogi das Cruzes - SP, 1972 *Crônicas: FENAB, Brasília-DF, 1983; Satélite Esporte Clube de São Paulo,1993
*Contos: Secretaria de Cultura do Piauí, 1984/1987; UBE/Academia Carioca de Letras, 2000
*Romances: Secretaria de Cultura do Piauí, 1986; Fundação Cultural do Piauí, Teresina, 2003
*Artigo: Diário dos Açores,IWA – 2005 - EUA
*Antologia: International Writers and Artists Association, 2006 – EUA

COLABORAÇÕES

Revista Jalons - França ; De Repente, Teresina - Piauí ; Mais Foco - Picos -PI ; "Jornal de Picos" - Piauí ; "O Dia", Teresina -PI ; "Meio Norte", Teresina-PI ; "Diário do Povo", Teresina-PI ; "O Primeiro de Janeiro" Portugal ; "Diário dos Açores", Portugal ; Jornal "Correio do Sul" MG ; Revista Lea, da Espanha ; Clarín, da Espanha ; Em-Revista, de São Paulo ; Cirandinha, de Teresina -PI ; Ficção, do Rio ; Cadernos de Teresina, Piauí ; Presença, Teresina-PI ; LB-Literatura Brasileira, de São Paulo ; Poesia para Todos, do Rio ; Literatura, de Brasília - DF ; Almanque da Parnaíba, de Parnaíba

Obras Publicadas

Areias-poesia (1966)
Linguagem e Comunicação...crítica (1972)
Pedra em Sobressalto-poesia (1974)
Bar Carnaúba-poesia(1979)
A Poesia Social de Castro Alves - crítica (1979)
Universo das Águas-poesia(1979)
Terra História e Literatura-antologia(1980)
Os Estigmas - romance (1984)
Eu e meu amigo Charles Brown-contos(1986)
Quinteto em mi(m)-poesia(1986)
Sonetos da Paixão-poesia (1988)
Um Depoimento Pós-Moderno-crítica (1989)
Assis Brasil -Conversa de Escritor-crítica (1989)
Laços de Poder-romance (1991)
Poemas Ou/tonais-poesia(1991)
Chico Miguel na Academia (parceria)-discursos(1993)
Poemas Traduzidos-poesias (1993)
Ternura - romance (1993)
E a vida se fez crônica-crônica(1996)
Poesia in Completa (1997)
Porque Petrônio não Ganhou o Céu -contos (1999)
Rebelião das Almas - contos (2001)
Vir@gens - poesia (2001)
Literatura do Piauí- história e crítica (2001)
Moura Lima - ensaio -(2002)
Sonetos Escolhidos -poesia (2003)
Miguel Guarani, mestre e violeiro - biografia (2005)
Dom Xicote - romance -(2005)
Poemas escolhidos -Antologia do autor -(2006)
Tempo Contra Tempo(parceria c/ Hardi Filho)- poesia (2007)

Fonte:
http://franciscomigueldemoura.blogspot.com/p/biografia.html

Ialmar Pio Schneider (Brique da Redenção)

Brique da Redenção no Bairro do Bonfim, Porto Alegre/RS
Cada domingo é uma festa para os que têm o privilégio de freqüentá-lo. Pessoas de todas as idades e ideologias passeiam ao largo da avenida, conversando, paquerando, olhando as estantes e perscrutando as mil e uma bugigangas expostas. Tudo tem o seu valor, tudo tem o seu preço. Muitos são os objetos antigos em oferta: móveis, louças, panelas, caçarolas, livros, discos, etc.

Por outro lado, existem também as obras de arte (quadros de pinturas diversas, a óleo), aquarelas, e o artesanato (cuias, estojos, barricas para erva-mate), enfim, apetrechos para o chimarrão.

São tantas coisas, até imprevisíveis ou estapafúrdias, que aparecem para permuta ou venda - moedas antigas, selos velhos, fogareiros, ferros de passar a carvão, vitrolas... Há os colecionadores ávidos de encontrar antiqualhas originais que tanto apreciam.

Surgem também os criadores de cães e gatos, das mais variadas raças, que vendem os filhotes a quem os queira adquirir, e não são poucos os que os compram, pois um animalzinho de estimação sempre faz parte do cotidiano daqueles que os podem manter.

A banca do mel é muito freqüentada, já que a oferta de um produto puro desperta o interesse de quantos apreciam esse manjar saboroso e tão completo. Os que ali chegam recebem uma prova para sentirem sua essência (eucalipto, laranjeira, florada silvestre, etc.).

De repente, um aglomerado de gente: é uma apresentação musical. Alguém cantando na manhã ensolarada; e as frases da canção enchendo o ar - “Felicidade foi-se embora e a saudade ainda mora...”, a evocar Lupicínio Rodrigues, o poeta inesquecível.

Lá mais adiante estão os bugres vendendo seus balaios multicoloridos, eles que são os mais legítimos filhos desta terra brasileira, uma vez que aqui se encontravam quando da chegada dos descobridores lusos e espanhóis. Hoje tão escassos resistem à civilização imposta, sofrivelmente.

Também não é difícil imaginar quantos encontros amorosos ou de amigos que não se viam há tempo, aconteceram aqui, nesses 20 anos! E daqueles quantos não frutificaram?

Os pais que trazem seus filhos a fim de espairecerem, os casais de namorados que desfilam de braços dados, os idosos enfrentando a velhice com resignação, todos parecem seguir seus destinos de maneira salutar na esperança de novos dias.

Certamente que a vida seria mais triste se não houvesse um local tão aprazível para preencher as horas de lazer nas manhãs dos domingos porto-alegrenses.
Eis um simples esboço do Brique da Redenção, decantado em prosa e verso, que já se transformou em uma tradicional referência para nossa altaneira cidade que desperta ao sorriso das águas do Guaíba !

Fonte:
O Autor

A Literatura e as Musas

Pintura de Baldassare Peruzzi
Na mitologia grega, as musas são filhas de Zeus e de Mnemósine, deusa da Memória. Na época romana adquirem atribuições mais precisas.
Clio presidia à História;
Euterpe à Música;
Talia à Comédia;
Melpómene à Tragédia;
Terpsicore à Poesia ligeira e à Dança;
Érato à Lírica coral;
Polímnia à Pantomina;
Urânia à Astronomia, e
Calíope à Epopeia.

O lugar da sua predileção era o monte Hélicon, onde cantavam e dançavam em companhia de Apolo.

LITERATURA

Literatura, desde Aristóteles, a retórica, reflexão geral sobre as estratégias do comunicação, especializou-se em poética, ou codificação dos diferentes gÊneros da escrita, restringindo-se apenas à elocutto, ornamento, arte de dizer, em detrimento da inventio – invenção, procura de argumentos; e dadispositio – disposição, ordenação. Estabeleceu-se uma hierarquia, do estilo nobre (ou sublime) ao estilo baixo (ou trivial) passando pelo medíocre, correspondente às três classes da sociedade – nobres, burgueses, camponeses. Para simplificar, podem caracterizar-se as obras literárias a partir dos pronomes pessoais e dos tempos verbais nelas dominantes.

Ao eu (presente) corresponde o gênero lírico, ao tu o teatro – cômico ou trágico, segundo a natureza dos personagens; ao ele – passado, a epopeia, o texto narrativo. Os teóricos aplicaram-se em definir as regras que convém a cada gênero e a designar cada uma das suas categorias internas – é este, essencialmente, o objeto das “artes poéticas. De modo que se estabelece um pacto, um contrato de leitura, entre o autor, inscrevendo o seu texto num dado conjunto, e o leitor, que sabe precisamente o tipo de emoções que deve esperar, ou a que princípios estéticos se apela sob uma dada etiqueta. Mas qualquer codificação rigorosa acaba por desagradar ao verdadeiro criador, que procura libertar-se dela ou situar-se noutro lugar; do mesmo modo o leitor cansa-se das formas convencionais.

PROSA E POESIA

A poesia distingue-se do discurso lógico e prático, destinado a nomear os objetos reais, , a exprimir as suas relações evidentes, a definir os fins e os meios de ação. Distingue-se da prosa como uma linguagem eurítmica e eufônica, próxima do canto. Mas, sendo também um discurso na medida em que é linguagem, o canto poético tem sempre um peso para a prosa, do mesmo modo que esta é sempre capaz de se elevar para a poesia.

O exame das etimologias permite traçar com mais segurança uma tal linha de demarcação: à prosa (oratio pró – r- sa), discurso que vai “direito” ao seu referente; opõe-se a mensagem essencialmente organizada pelo regresso (vertere, versus), o pôr em correspondência ou em ressonância de unidade de linguagem, no texto poético. Assim, critérios estruturais presidiam à distinção entre um tipo poético e tipos narrativos, descritivos ou argumentados. A versificação já não surge assim a não ser como uma manifestação particular e institucionalizada do princípio mais geral de repetição.

REGRAS POÉTICAS E REGRA SOCIAL

Da Idade Média à época clássica, a poesia aparece frequentemente submetida a uma arte de dizer que tem por objeto a procura do belo medido segundo o rigor da submissão às regras – regra poética, mas também regra social. O poeta é alternadamente o protegido do senhor, do príncipe ou do rei.

O século XVIII, não pensando que as “luzes” possam vir da poesia, manospreza-a. As convulsões políticas e sociais dos finais dos séculos XVIII e XIX suscitam um questionamento radical do homem, que experimenta subitamente uma dívida para com o mundo e consigo próprio: o princípio da unidade - do mundo, do homem, rompe-se; a poesia dá conta disso. Os românticos lançam o primeiro grito de alarme para denunciar as contingências de uma arte, que já não pode satisfazer a expressão da multiplicidade das aparências descobertas. Mas permanecem ainda submetidos à lei do verso, ao regime do género. Situação que se vai modificando nos séculos seguintes.

O ROMANCE

A narrativa romanesca é essencialmente prosaica, se tomarmos o adjetivo na sua dupla acepção: “escrito em prosa” e “anti-idealista”. Mesmo redigido em verso, o romance toca sempre na prosa pela utilização de uma linguagem corrente, de uma linguagem que, sem ser a de toda a gente, é utilizada quotidianamente por algumas classes privilegiadas: na sua origem, o fenómeno narrativo chamado “romance” é grafado numa linguagem românica, meio erudita, meio popular, língua nacional falada e lida por aqueles que querem ser os criadores e os chefes de uma nação. Os factores linguísticos, políticos e sociais que determinam o aparecimento do romance no Ocidente cristão têm os seus homólogos nas terras do Islão, no Japão ou na China. Prosaico é-o também o romance enquanto confronta tantos os seus heróis como os seus leitores com todos os aspectos da existência dos homens, nos planos social, psicológico e moral. Assim, nas suas origens, os romances de cavalaria relatam as aventuras que um herói atravessa para obter o bem pelo qual luta – na maior parte das vezes, o amor de sua dama – e já não os grandes feitos realizados ao serviço de uma causa, como celebram as canções de gesta.

O ROMANCE E A HISTÓRIA

Seja ele o aliado ou a negação do determinismo histórico, o romance é uma ficção de caráter histórico, a qual considera o homem comprometido num futuro e numa história coletiva. O romance de educação que descreve a formação moral e intelectual de um herói, é uma das grandes tradições do romance europeu. Do confronto com a história resulta uma grande variedade de tipos humanos, heróis de romance e representantes da sua época: do ambicioso, ao homem revoltado até ao homem estranho a si próprio. Esta relação com a história e com um futuro aberto traduz-se no plano narrativo. O romance recria as condições de experiência do presente histórico: aumento das percepções do mundo, incertezas e obscuridade do futuro.

O sabor do real faz parte do prazer da leitura de romances, e podemos pensar que o sucesso do romance realista do século XIX tinha igualmente a ver com o apetite de conhecimento de leitores para os quais os romances, publicados em folhetins na imprensa, constituíam a principal abertura ao mundo. Com o impulso das ciências humanas e da história das mentalidades, por um lado, da multiplicação dos meios de informação, por outro, os romancistas do século XX perderam o apanágio desta função de instrução. Reinvestiram nas funções de imaginação, estética e crítica, passando pelo questionamento do romance tradicional – daí o divórcio observado entre “romance de consumo” e “romance de criação”. Mas a leitura de romances é também a entrega ao “romanesco”, terreno de jogo intelectual com as mil e uma convenções através das quais se instaura a ilusão do real. Com isto, o romance surge sempre como o paraíso da leitura e o lugar de emergência de todas as possibilidades.

TEATRO

Já o Teatro surge sempre associado à religião ou em fases da vida social e política não estabilizadas. Essa relação religiosa surge-nos comprovada através de formas rituais, onde rito, liturgia e cerimônia são formas embrionárias de “espetáculos” só compreensíveis no espaço lúdico que todas as sociedades expressam numa simbiose entre o sagrado e o profano. A Poética, de Aristóteles, os tratados hindus, como o Natyastra, de Bharata, ou os princípios expostos por Zeami para o teatro japonês – embora diferenciados temporalmente – são a expressão teórica de uma prática social do teatro na sua estreita articulação com o sentimento religioso, primeiro de pequenas comunidades ou, mais tarde, da cidade como lugar cívico por excelência, de que a polis grega é a expressão mais evidente.

No teatro ocidental o primor da estética aristotélica vai ser dominante. Desde logo porque ela obrigará a repensar a diferença fundamental entre o teatro enquanto gênero literário dramático, por um lado, e, por outro, a sua projeção cênica, representada por atores num palco e dita perante o público. O florescimento da tragédia grega, paradigmaticamente representada pela produção de Esquilo, Sófocles e Eurípedes, irá assumir uma importância decisiva no estabelecimento de uma poética e prática teatrais que determinarão decisivamente os grandes vetores da criação dramática até aos nossos dias.

Fonte:
Colaboração de Carlos Leite Ribeiro, Portal CEN. Extrato do artigo A Casa das Musas

domingo, 15 de agosto de 2010

Trova 168 - Marina Bruna (São Paulo)

Pintura do cigano obtida em http://www.magocigano.blogger.com.br

Antonio Brás Constante (As Três Regras que Aprendi através das Três Regras)


Nossa razão de existir é pautada por coisas concretas, mas escrita pela intangibilidade dos sonhos. Outro dia meu filho mais velho (mas ainda assim tão novo na idade de seus dez anos), resolveu (através da determinação daqueles em que o tempo ainda não maculou as esperanças com as dúvidas e fracassos, que vem com a pretensa experiência que carregamos em nossa fase adulta) que queria ser jogador de futebol.

Até aí nenhuma novidade, já que de cada dez meninos, doze querem ser jogadores de futebol em nosso País das maravilhas. Pena que para esses doze pequenos indivíduos terem sucesso em uma carreira tão disputada, eles terão que se destacar perante outros doze milhões de meninos, para somente assim alcançarem o êxito no mundo da bola e em formato de bola, que não parece dar muita bola para tantas outras coisas importantes.

Quando se quer fortalecer um sonho deve-se utilizar a motivação para que ele brilhe, gere luz própria e passe a servir de foco para o futuro. Pensando em tudo isso resolvi dar alguns conselhos para meu rebento, algo que pudesse inspirá-lo e lhe servir de base para fazê-lo seguir em frente. Fechei os olhos buscando alguma sabedoria “zen transcendental” que pudesse utilizar nesse intento, mas o máximo de pretensos pensamentos orientais que vieram a minha mente foram as lembranças dos comerciais de massas instantâneas tipo miojo.

Somente após comer o tal miojo mentalmente é que pude finalmente desobstruir meu cérebro direcionando ele para os aprendizados de minha eterna e sabia professora, a Vida (ela é a orientadora universal de todos os seres vivos). Já falei dela em alguns de meus textos. Dona vida começa a nos ensinar já a partir do primeiro sopro de nossa existência, e suas aulas seguem até o nosso último e derradeiro suspiro.

Com ela aprendi três importantes regras. A primeira é que devemos ter prazer naquilo que fazemos. Quando acordamos pela manhã, por mais frio e chuvoso que esteja, podemos levantar da cama nos sentindo mal-humorados, chateados, sem vontade de cantar uma bela canção e achando que o dia vai ser péssimo, ou abraçar este mesmo dia como quem abraça um amigo. Sairmos dispostos a melhorar o astral geral. Isso ganha força quando desejamos algo. Por exemplo, se me perguntassem se valeu a pena me expor ao ridículo fazendo um certo filme no Youtube, onde contracenei com meu sobrinho e jogamos farinha, ovos, erva-mate, etc. um no outro (para assistir ao filme, basta procurar por “3D – Hoje é seu aniversário”, meu primeiro filme em padrão 3D), eu responderia que sim. Com certeza SIM. Quando tentamos algo, mesmo que não saia como esperamos, damos mais um empurrão em nossos sonhos.

A segunda regra é sempre buscar aprender algo nas coisas que fazemos, se você entra em um jogo onde é o mais fraco, não desanime, aprenda com os mais fortes, e se você for um dos mais fortes, também não desanime achando a partida uma perda de tempo, ensine e motive os mais fracos. Aprendemos muito quando ensinamos, quando nos doamos.

A terceira e última regra é a de procurarmos sempre trabalhar em prol da equipe onde estamos inseridos (afinal somos seres sociais que vivem em sociedade), somando esforços ao grupo. Seja este um grupo de amigos, um time esportivo, uma empresa, ou nossa própria família. Poder colocar a cabeça tranqüilamente no travesseiro ao final do dia tendo a certeza que fizemos o nosso melhor para aqueles que nos rodeiam não tem preço. É como em um jogo de futebol, você entra ali, e muitas vezes não te passam a bola, não demonstram confiança em você, te deixam de escanteio, mas se você passar a bola, se você inspirar confiança, se você demonstrar que pode ocupar um lugar ali sem prejudicar os outros, ajudando-os a alcançarem seus objetivos. Aos poucos os vínculos vão se fortalecendo e a harmonia vai se estabelecendo em volta de todos.

Provavelmente, nem sempre conseguiremos por em prática as tais regras, mas isso não pode nos impedir de recomeçar a cada amanhecer na esperança de fazer com que aquele único dia se torne um dia único. Enfim, como já dizia Cora Coralina:
"Feliz é aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina".

Fonte:
O Autor
Imagem = http://www.your-soul.com

Roberto Pinheiro Acruche (Poemas Avulsos)


CAMINHOS

Caminhos... Caminhos!
Cada um com a sua história,
cada um com um destino!...
Caminhos que levam e trazem;
caminhos cruzados, esquecidos, abandonados;
caminhos que se encontram;
caminhos que se perdem!...
Caminhos do medo, da incerteza e da revolta;
caminhos dos enganos e dos desenganos,
onde durante anos aguardei a sua volta!...
Caminho da insensatez, da vaidade;
pelo qual você foi
deixando de vez
um peito angustiado,
sofrendo de saudade.

QUEM SOU EU

Eu sou um caso,
um ocaso!
Eu sou um ser,
sem saber quem ser!
Eu sou uma esperança,
sem forças!
Eu sou energia,
ora cansada!
Eu sou um velho,
ora criança!
Eu sou um moço,
ora velho!
Eu sou uma luz,
ora apagada!
Eu sou tudo,
não sou nada!

BUSCA

Quisera confessar as tantas coisas que me habitam, tornar visível todos os pressentimentos meus, desafogar-me dos sentimentos imprudentes, descobrir uma serenidade divina e livrar-me do desconhecido que me incomoda.

Cruzei por pontes de todas as estações em busca de um momento que revelasse o que sou, o que me embriaga, me assusta e me satisfaz.

Perdi-me pelos corredores da vida,
Deixei que me levasse de vencida...

Grito por um sorriso e enxugo as lágrimas
dissipando a tormenta das dúvidas.
Amparo-me nos sonhos, nas ilusões
e as minhas esquivas, são extraídas das lembranças que despertam e reconstroem
as adormecidas esperanças.

DEGRADAÇÃO

Uma árvore desfolhada, abandonada,
em cujos galhos não havia um só ninho,
não ouve o cantar feliz de um passarinho,
saudando a natureza dedicada.

Outras árvores, têm melancólico destino!...
Alguém ao cruzar o seu habitar
vem espontaneamente lhe cortar,
derramando ali, o seu desatino.

A floresta minada de desgosto,
atormentada, sob um sol posto,
ao se sentir mortificada
chora o canto triste de um passarinho
que perdeu seu berço, perdeu seu ninho
em outra árvore derrubada.

LABAREDAS

Espero-te!
Meu corpo arde em chamas
muito além do suportável...
A saudade de ti
invade-me com imensurável loucura!
Volte, como sempre:
Poderosa, alucinada, insana...
Quero os teus beijos, teu colo, teu cheiro, teus desejos.
Venha com toda a tua excitação...
em busca do amor...
queimando de paixão.

Fontes:
Colaboração do Autor
Colaboração de Antonio Manoel Abreu Sardenberg

Roberto Pinheiro Acruche



Delegado da União Brasileira dos Trovadores - São Francisco de Itabapoana-RJ

Membro efetivo da Academia Pedralva Letras e Artes Campos dos Goytacazes-RJ

Autor dos Livros:
-Apontamentos para a História de São Francisco de Itabapoana
-A Minha Terra também faz parte da História do Brasil

Participou da:
-A Verve de Sete Poetas - nºs I,III,IV,VII,VIII

Coordenou a realização dos Jogos Florais de São Francisco de Itabapoana
Edita Mensalmente "Trovas e Poemas"
Autor de dezenas de Trovas,Poemas e Sonetos

Fonte:
UBT Nacional.

José Feldman (Lágrimas de um Coração Sofredor)



Sentado na varanda da casa fico a olhar a rua. Pela mente passaram-se muitos anos felizes da vida.

Os passeios com a minha esposa pelo Jardim da Luz. As tardes que sentavamos juntos no banco da praça e ficavamos a olhar as árvores e trocávamos palavras de amor, e sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Lembro-me das noites que ficávamos sentados nas mesas da esquina de um bar no Bom Retiro, onde comiamos porções e tomávamos cervejas, e sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

As caminhadas que faziamos pelo Bom Retiro, percorrendo ruas e ruas, e conversavamos e sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Lembro-me da primeira casa que moramos no bairro do Bexiga, uma kitinete, que mal dava para se mexer, mas moravamos os dois e a gata persa. E sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

A gatinha estava grávida e deu filhotinhos, e ficamos com um todo cinza. Nasceu no dia que o Robert Plant e Jimmy Page se apresentaram no Pacaembu. Foi só alegria. E sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Trabalhavamos o dia inteiro, mas tinhamos toda a noite a nossa disposição. Riamos, brincavamos, faziamos amigos. E sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Mudamos para uma cidade proxima a São Paulo, depois para Curitiba. A situação estava negra, mas nos viravamos. E sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Novos gatos, uma cachorra. Novos amigos, novos passeios, novos caminhos, mas sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

E assim foi, aos trancos e barrancos, mudando de endereços, de cidades, ora se acertando, ora se desesperando, a vida caminhou e caminhamos em direção a nossos sonhos. E sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Um dia…apenas eu sonhava, amava e queria namorar. Ela cansou de sonhar, de lutar, de amar e de namorar e foi embora. Só ficou um vazio enorme dentro do peito, um coração fragilizado que sofre por amor, e a noite escura que parece não ter fim.

Nunca mais sonhamos, nem amamos e nem namoramos...

sábado, 14 de agosto de 2010

Rogério Salgado (Poeminha Próximo de uma Fábula)

Aparecido Raimundo de Souza e Silviah Carvalho (Perdão)


É como se fosse um poço profundo
é como se a questão maior do mundo
fosse apenas o fim do poço

No poço sem fundo, um mundo sem poço
um sem fim de mundo mas tudo é simples...
só o fim do mundo no fundo do poço,
tudo faz parte da vida do sofrimento

Até a alegria o espaço finito
entre dois sentimentos
é o burburinho misterioso
de todos os outros momentos

E todos os momentos
também passam e tem fim
infinita é apenas a eternidade

Mas inexorável é a vida
posto que tudo voa de repente
alucinadamente, irrevogavelmente
mas eu te perdôo

“Eu também te perdôo
por que fostes embora
deixando este vazio em mim
saiu pelo mundo a fora”

Eu te perdôo
por teres me dado a vida
me teres feito frágil e covarde

eu te perdôo
por teres mostrado a mim
apenas coisas da natureza
e no misterioso universo
te escondeu de mim

É pouco...? Mas eu te perdôo

Por teres me feito guloso e insaciável
por viveres tão oculta
e não me teres revelado tantos
segredos que quero desvendar

Mas eu te perdôo
sobretudo e principalmente
por me teres deixado
te amar

“Palavras que me dão liberdade
eu,
você
e nunca nós e, eu também te perdôo
por ter me feito acreditar
na felicidade, na existência do amor

E agora não creio mais
todas as possibilidades você me tirou
mas eu também te perdôo”

Então moça...
canta vitória
com riso chorado
e mata a vitima de amor

“Quem é a vitima?”

Eu...

“Se falasse comigo agora
não saberia quem sou
posto que de tanto amor por ti
minha vida evaporou”

Por isso moço...
meu coração te perdoou.

Fonte:
Silviah Carvalho.

Laé de Souza (Coragem de Optar pela Arte)



Há quem diga que a responsabilidade maior foi do pai, que numa viagem ao nordeste o presenteou com um berimbau. Outros acham que a culpa foi da mãe que, enjoada do din-din-din-don , trocou o instrumento por um violão de plástico e cordas de náilon. Embora. muitos acreditem que ele já tenha vindo de nascença com um parafuso a menos e que essas coisas não tenham influenciado em nada. O que é certo, e concorde a todos, é que o Gertulino não tem um pingo de juízo.

Os pais, coitados, na verdade a gente sabe que fizeram de tudo para que ele se endireitasse, mas foi perda de tempo. Arrumaram uma vaga num escritório de contabilidade, mas qual nada. Na mala de boy , levava suas revistas de partituras e letras que cantarolava no ônibus e na fila do banco. No guichê, enquanto o caixa autenticava, ele tamborilava com uma bic no vidro do balcão. Não reclamava do salário, mas chiava quando tinha de catar milho na Olivetti para preencher de uma guia e também não queria nem saber de débito/crédito. O contador lhe apontava exemplos de quem entrou pequeno e agora era chefe de departamentos e ele, nem aí. Já bem crescido foi despedido por faltas. Trabalhava um, faltava dois dias. Arrumaram-lhe um emprego numa metalúrgica . Na prensa, com o pé livre batia duas vezes no chão e no do pedal batia uma, em ritmo de valsa. Puseram-no para rebitar , e o chefe o dispensou por não agüentar mais o bater compassado e a quarta batida mais forte, sempre.

Daí para a frente só fez bicos. Na maioria das vezes era encontrado em casa, fechado no quarto com seu violão , repetindo várias vezes a mesma música e descobrindo as notas de um solo. Começou tocar nuns barzinhos e até recebia acanhados aplausos. Quando perguntado pelo filho, seu Agildo, respondia que ele estava trabalhando. Mas quem ouvia os acordes vindos do quarto, dava uma risadinha e dizia que o Gertulino não tinha jeito mesmo.

Seu Agildo também achava que não era certo o proceder do filho, mas saiu a investigar se era só ele quem tinha filho doido.

O filho do padeiro era encafifado com negócio de pegar pedaços de pau e ficava horas e horas esculpindo. Às vezes até que fazia alguma coisa bonita, da qual o pai ignorava a beleza para não estimular a loucura. O filho do açougueiro era metido com coisas de teatro e vivia correndo atrás de roupas velhas. Perdia horas e horas em ensaios inúteis, fazendo cenários de papelão, perucas, narizes e, de vez em quando, junto com outros doidos dava um show na praça. O filho de um seu Geraldo ficava horas e horas como que fora do mundo, pintando um quadro. O filho da professora , era poeta e não fazia outra coisa senão rabiscar um caderno espiral de capa gasta. Assim, seu Agildo viu tantos malucos pelas noites que chegou a duvidar se era mesmo loucura.

Ele descobriu que existiam outros doidos e tentou adivinhar que espécie de doença é essa que ataca a mente, fazendo abandonar futuros planejados, por caminhos incertos. E nós, até com certa inveja, perguntamos de onde nasce essa força tão grande que faz com que alguns tenham coragem de optar pela arte.

Fonte:
http://www.projetosdeleitura.com.br/cronica04.html

Ialmar Pio Schneider (Baú de Trovas IV)


A manhã surge radiante,
envolvendo de esplendor,
na alegria contagiante
toda a natureza em flor.

Andei por árduo caminho
no qual não quero andar mais;
e voltei para o meu ninho
como voltam os pardais...

Ao tentar criar poemas
para contar minha história,
me deparei com dilemas
na fase contraditória...

Aquela que um dia fez
meu coração palpitar,
hoje não saiba, talvez,
desta saudade sem par.

Busco na trova a harmonia
para equilibrar a vida;
é o resumo da poesia
em quatro linhas contida.

Consegues viver sozinha,
enfrentando a solidão?!
Recorda que “uma andorinha
sozinha não faz verão...”

Contigo no pensamento,
eu vou compondo esta trova,
porque neste sentimento
minha paixão se renova.

Coração aventureiro,
vive sonhando um amor,
que pode ser verdadeiro,
infeliz ou enganador.

Entre amar e ser amado,
eu não sei o que é melhor;
porém, viver desprezado,
é, sem dúvida, o pior!

Eras bonita... Eu tão feio...
mas nos queríamos tanto,
que num mesmo devaneio
nos amamos por encanto...

É tão tarde... a madrugada
daqui a pouco vai raiar;
e pensando em minha amada
quero dormir e sonhar...

Eu já vou me convencendo
que nada sei pra ensinar;
amei tanto e não compreendo
o que significa amar.

Eu te quis com tanto afã,
não pude te conquistar;
pela tentativa vã,
peço perdão por te amar...

Houve sempre um sentimento
que nunca teve igualdade,
pois surge a qualquer momento,
e que se chama saudade.

Mágoas de amor não tem preço:
tudo pode acontecer;
um final sem ter começo,
impossível entender...

Mas antes que a chuva caia,
prefiro sentir o vento
levantando a tua saia
para meu contentamento.

Meu coração se enternece
quando vejo os passarinhos,
no instante que a noite desce,
retornarem aos seus ninhos.

Meu coração treme ainda
ao lembrar-te com saudade,
porque por seres tão linda
eras a felicidade!

Não me compreendes agora
porque no teu lindo rosto
nenhuma lágrima chora
ao saber do meu desgosto.

Neruda... Grande Neruda,
da “Canção Desesperada”,
careço de tua ajuda
pra cantar a minha amada!

No coração de quem ama
não morre nunca a saudade,
porquanto é qual uma chama
com fogo da eternidade...

Nosso amor em decadência
foi findando pouco a pouco;
você com sua demência
e eu me tornando mais louco.

O amor que nasce de um beijo
até pode fracassar,
mas se nasce de um desejo
vai permanecer no olhar...

O amor, sem paz nem sossego,
também merece louvor;
mas se não traz aconchego,
impossível ser amor.

Pelas trovas benfazejas
que solitário componho,
peço que ditosa sejas
e concretizes teu sonho.

Pelos caminhos do amor
quantos sonhos e ilusões;
e o que causa dissabor
são as nossas frustrações.

Pelos momentos vividos
longe de ti que me encanta,
meus soluços reprimidos
vão morrendo na garganta.

Penso em ti de vez em quando
e se não posso te amar,
quero somente, sonhando
teus olhares recordar.

Porque já chegou o outono
e foi embora o verão,
vou ficando no abandono
e minhas folhas cairão...

Por te querer me atormento
e de te amar não desisto;
para tanto sofrimento,
antes não te houvesse visto.

Por viver apaixonado
me chamam de sonhador;
porém, se amar é pecado,
sou o maior pecador.

Quando em pensamento a beijo
não sinto felicidade,
porque, afinal, meu desejo
é beijá-la de verdade.

Quando te vi deslumbrante
com teus olhares fatais,
eu notei naquele instante
que era então tarde demais.

Quantas noites mal dormidas,
pensando em que não me quer;
são as ilusões perdidas
por causa de uma mulher!...

Quem ama por conveniência
não conhece a sensação
que causa em nossa existência
o fogo de uma paixão.

Queres me amar, eu aceito
teu bem-querer de bom grado,
porque vivo insatisfeito
por nunca ter sido amado.

Saudade!... palavra viva
do que ficou no passado;
és o bem que nos cativa
para sempre ser lembrado!

Se eu não sentisse saudade
daquela que tanto quis,
talvez a felicidade
não me fizesse infeliz.

Segura o pouco que tens
e amanhã podes ter mais,
porque de todos teus bens
preponderam ideais.

Se leres os versos soltos
neste livro de lamentos,
que não te assaltem revoltos,
infelizes sentimentos...

Sendo um simples aprendiz
de saber da trova o enredo,
sinto que não sou feliz
e me condeno em segredo.

Se o amor não tem futuro
e vive só da esperança,
é qual um tiro no escuro
e sem querer você “dança”.

Se tens amor não escondas,
muito sofri por contê-los;
ele surge como as ondas
e foge ao não ter desvelo...

Simples trova mensageira
de mil recados de amor;
e por isto a vida inteira
desejo ser trovador.

Sócia de dor é paixão,
sem ter reciprocidade,
porque nos traz ilusão
e nos deixa na orfandade.

Tenho saudade da areia
sob o sol a cintilar
e as noites da lua cheia
clareando as águas do mar...

Tuas mãos nas minhas mãos
numa ternura incontida,
sinto que não foram vãos
esses momentos na vida.

Vai romper a madrugada
neste começo do outono,
e sem pensar mais em nada
quero me entregar ao sono...

Vens à noite de mansinho
e trazes junto contigo
a saudade do carinho
que olvidar eu não consigo.

Vou fazer-lhe uma proposta,
pense bem no que lhe digo:
se disser que não me gosta,
quero ser só seu amigo!

Fonte:
O Autor

Joyce Cavalcante (Lançamento do Livro "Longos Trechos de Dias Líquidos")

Antonio Cândido (Literatura e Sociedade: A Literatura na Evolução de uma Comunidade) Parte 2


1— Um grupo virtual

O primeiro agrupamento de escritores eminentes participando de valores comuns, procurando construir uma obra em torno deles e agindo em função de um estímulo recíproco, parece haver-se esboçado no intercâmbio e na produção de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, na do seu parente frei Gaspar da Madre de Deus e na de Cláudio Manuel da Costa. Os dois primeiros eram amigos, comunicavam-se nos estudos, valiam-se em mais de um transe. A circunstância que os aproximou do terceiro, nascido em Minas, onde viveu, foi a Academia Brasílica dos Renascidos, da qual foram acadêmicos supranumerários Cláudio e frei Gaspar, e que, da sua sede baiana, deitou laços de congregação sobre outras Capitanias, num primeiro arremedo de consciência literária comum. O paulista e o mineiro talvez nunca se tenham visto, e não restou correspondência escrita de um a outro. Entre ambos, porém, forma elemento de ligação Pedro Taques e, mais ainda, como veremos, o sentimento comum de paulistanismo à busca de expressão intelectual.

Na resposta à comunicação de que fora eleito para os Renascidos, e aceitando a incumbência de escrever a história do Bispado de São Paulo, pondera frei Gaspar: "Se o Sargento-mor Pedro Taques de Almeida Paes, natural daquela cidade e nela morador, fosse nosso sócio, ajudar-me-ia muito, ainda mais que escreveu as Memórias para a História Secular da dita Capitania" etc. O nome do linhagista andou, portanto, nas cogitações da Academia, e decerto teria sido eleito se ela não acabasse tão depressa.

Assim, Cláudio, frei Gaspar e Taques estiveram congregados espiritualmente a certa altura, além de terem mantido, a seguir, um intercâmbio que podemos inferir por vários motivos. No FUNDAMENTO HISTÓRICO do seu poema Vila Rica (terminado depois de 1770), diz Cláudio: "O sargento-mor Pedro Taques de Almeida Paes Leme, natural (…) da cidade de São Paulo, e ali morador, de estimável engenho e de completo merecimento, remeteu ao autor desde aquela cidade todos os documentos que conduziram ao bom discernimento desta obra" etc.

Esta relação é da maior importância, pois estes três homens foram os primeiros a dar expressão intelectual coerente ao sentimento localista dos naturais de São Paulo, e não apenas tiveram consciência disso, mas colaboraram neste sentido em alguns casos.

Antes de entrar em contacto com os outros, Cláudio já se manifestara ufano da tradição paulista em 1759, nos APONTAMENTOS PARA SE UNIR AO CATHALOGO DOS ACADÊMICOS DA ACADEMIA BRAZILICA DOS RENASCIDOS, que Lamego divulgou, e cujo manuscrito se encontra na Biblioteca Central da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. Declinando a filiação, é flagrante a diferença de importância que atribui à linhagem paterna e à linhagem materna:

"Seus avós por parte paterna: Antônio Gonçalves e Antonia Fernandez, moradores que forão no lugar das Arêas, Freguezia de S. Mamede das Talhadas, Bispado de Coimbra. Pela parte materna: O capitão Francisco de Barros Freire e D. Izabel Rodrigues de Alvarenga, moradores que foram na Freguezia de N. S. de Guarapiranga, Comarca do Ribeirão do Carmo, hoje cidade de Marianna, vindos de S. Paulo onde tem a sua ascendência de Famílias mui distinctas".

Esta prosápia o liga a Pedro Taques e a frei Gaspar, e ele a exprime poeticamente no poema épico Vila Rica, sugerido talvez pela epopéia perdida de Diogo Grasson Tinoco em louvor a Fernão Dias. Encarando em conjunto as obras dos três homens, veremos que elas representam a elaboração de um sistema de valores, difusos na sociedade paulista e reforçados tanto pelo conflito com os Emboabas quanto pelo encerramento do ciclo bandeirante. Figuremos essa sociedade limitada na sua expansão geográfica, privada da riqueza efêmera das minas, sangrada de certo modo pela dispersão de muitos dos seus filhos, obrigada a buscar novo amparo na agricultura sedentária. Figuremo-la, ainda, já estruturada por um sistema estável de vilas e freguesias, e, na cidade capital, com certo desenvolvimento da civilização. A consciência heróica do passado, emergindo do sentimento nativista, aparece como recurso de integração; como justificação de uma sociedade em crise de reajustamento das suas atividades. Daí o recurso à história, por meio da qual se cristaliza a tradição, projetando no plano ideológico os valores grupais, que deste modo se organizam.

Este processo se manifesta pela criação de uma consciência de estirpe, na Nobiliarquia, de Pedro Taques; pela definição de uma sequência histórica, nas Memórias, de frei Gaspar; pela transfiguração épica, no Vila Rica, de Cláudio Manuel.

Debruçados sobre o passado da terra, os três homens procuram traçar a sua projeção no tempo, irmanados pelo sentimento de orgulho ancestral e a consciência de dar estilo aos duros trabalhos que plasmaram metade do Brasil. A verdade e a fantasia irmanam-se igualmente no seu labor, e dele sairá a primeira visão intelectual coerente da grande empresa bandeirante.

Contrariando as informações dos jesuítas, e de vários reinóis, acentuam a lealdade, a magnanimidade, a nobreza dos aventureiros de Piratininga, traçando-lhes o perfil convencional que passou à posteridade.

Vê os Pires, Camargos e Pedrosos, Alvarengas, Godóis, Cabrais, Cardosos, Lemos, Toledos, Pais, Guerras, Furtados, E os outros, que primeiro assinalados Se fizeram no arrojo das conquistas, Ó sempre grandes, ó imortais Paulistas! brada Cláudio Manuel em versos que parecem transpostos da Nobiliarquia; Cláudio, cujo amor tão vivo à sua terra mineira fundava-se na consciência de ser ela devida ao esforço do bandeirismo:

Dos meus Paulistas honrarei a fama.
Eles a fome e sede vão sofrendo,
Rotos e nus os corpos vêm trazendo,
Na enfermidade a cura lhes falece,
E a miséria por tudo se conhece;
Em seu zelo outro espírito não obra
Mais que o amor do seu rei: isto lhes sobra.

Pedro Taques, do seu lado, dourava e redourava linhagens, procurando ajeitar às convenções européias o destino mameluco e americano desse povo errante, guindando os "modestos fidalgotes portugueses companheiros da travessia aventurosa de Martim Afonso de Sousa" (Taunay).

Nesta ordem de idéias, mencionemos a valorização do antepassado vermelho, feita pelos três à maneira do que faziam, para Pernambuco e Bahia, Jaboatão e Borges da Fonseca.

Afirmar o Autor, que da mistura do sangue saiu uma geração perversa, é supor que o sangue dos índios influiu para a maldade, suposição que muito desonra, senão a crença, ao menos o juízo de um sábio católico:

porquanto nem a Divina Graça perde a sua eficácia, nem a natureza se perverte, ou a malícia adquire maiores forças, quando o sangue europeu se ajunta com o brasílico. Pelo contrário, a experiência sempre mostrou, que os indivíduos nascidos desta união, reluzem aquelas belas qualidades, que caracterizam em geral o indígena do Brasil.

Nesta excelente refutação a Charlevoix, frei Gaspar lança as bases de um argumento que será por excelência romântico. Dando um passo a mais, Pedro Taques aristocratiza as Bartiras criadeiras do planalto, promovendo-as a "princesas do sangue brasílico" e fazendo grande cabedal da sua ancestralidade. Cláudio, recorrendo largamente ao índio para o maravilhoso e o romanesco do seu poema, culmina traçando amores ideais entre Garcia Paes e uma silvícola, tão mimosa, Que à vista sua desmaiava a rosa.

Vê-se, pois, que o "paulistanismo" aparece ideologicamente configurado, norteando as obras desses três escritores e nutrindo as suas relações, além de adquirir nelas as tonalidades características, que serviriam para definir a consciência do paulista moderno, e que operariam como poderosa arma de sentimento de classe, de um lado, e assimilação dos forasteiros, de outro.
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continua.... 2 - Um Grupo Real
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006
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Rogério Salgado (Poemas Escolhidos)


CONCEITO
Para Otávio de Campos

Sou o que representa
a febre, a dor
a expressão exata
a corda que desata
todos os nós acorrentados
aos conceitos do que
querem que a poesia seja.

Canto a canção ferida
daquilo que é doído

tenho olhos de vidros partidos
e a imensidão de compor.

Não me estabeleço
amanheço, entardeço, anoiteço
na forma mais concreta.

PIVETE

Vivo
do cheiro dessa cola.

Ando
na cola desse cheiro.

QUARTO DE HOTEL

Na solidão dessa insônia
não conto carneirinhos:
conto estrelas
uma a uma
expostas feito um quadro
na moldura da janela.

CONCERTO PARA LÁ MAIOR
(entre as nuvens)

Meus amigos estão todos indo embora
e eu, por enquanto
vou ficando por aqui
com aquela sensação de vazio
preenchendo-me os poros
as artérias, a alma, os versos.

Revejo catedrais que outrora
pensei um dia, edificar
entanto, o tempo escorre pelas mãos
entra pelos ralos
sem que ao menos, possa segurá-lo.

Alguns recitam versos lá
outros cantam entre nuvens
e cá, ficamos nós, desatando nós
nessa insegurança tão imperfeita.

Meus amigos estão todos indo embora
embora seja verdade, devo aceitar
aguardando que um dia
numa viagem menor
eu possa ver estrelas, constelações
e desvendar enfim, os mistérios dessa vida.

A PALAVRA

É necessário cantar
quando a palavra nos soa
poética
triste e sem limitações
feito sussurros de um poeta

e na claridade do verso
habita o sol
que brilha e cega
quando a rima
machuca.

E além da vida
sobrevive a palavra
mas o poeta
acaba

QUESTÃO DE LINGUAGEM

Todos os dias buteco
(pretérito mais que perfeito
do verbo embebedar)
sento à mesa
e entre um substantivo e outro
o tampo passa
calmo sob as estrelas.

Entre os dedos bêbedos
o poema surge tonto
embriagado de palavras
mas, despercebida de outros bêbedos
que discutem futebol
na mesa ao lado.

O poema é isso:
descompromissado
por isso surge lúcido
ou alcoolizado
(depende das circunstâncias)
sendo impresso em papéis
e distribuído entre tantos
que nem atentos percebem
a fragilidade do poeta.

Por isso, todos os dias poeto
(presente do subjuntivo
do verbo sofrer)
e entre um copo e outro
faço versos livres
que germinarão sementes silábicas
e serão plantadas
em papéis comuns
para que poucos apreciem:
— Assim é a sensibilidade!

INFÂNCIA

Quando garoto
em todos os natais, Irene
— babá de minha infância —
presenteava-me com um cartão
bem bonito.

E os meses se passavam
um, dois, três... doze
e este menino aguardava ansioso
pelo melhor presente
que nada mais era
que meras palavras escritas
pela minha babá, Irene.

Havia o ano novo
dia de aniversário
dias das crianças
mas dia nenhum era assim
tão esperado
como o dia de Natal.

Irene não escrevera
naquele ano.
Dias depois soube
que Irene falecera
por causa d'uma diabete.
Bem que eu dissera:
Como era doce a minha Irene!

O PIANO QUE MAMÃE TOCAVA

Venderam o piano que mamãe tocava
a sala hoje, encontra-se vazia.

No tempo do tempo do tempo
havia no canto de nossa velha casa
da Rua Doutor Mattos
além do criado mudo e móveis mais
a canção e a vida, na viagem
do piano que mamãe tocava.

— Quase tudo tem seu preço.
O piano que mamãe tocava
Não tinha preço: tinha valor —

A tristeza e a alegria
na história dessa senhora
e o toque sutil de suas mãos
tão calejadas e sofridas
faziam todas as canções, belas.

Hoje, o canto encontra-se vazio
mas a nostalgia embala a criança
que amadureceu criança
nas lembranças daquele tempo.

Acordaram todos os sonhos
a velha senhora se foi
e a canção desencantou-se
no dia em que venderam
o piano que mamãe tocava.

Fonte:
http://www.germinaliteratura.com.br/