segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Machado de Assis (Viver!)


Fim dos tempos. Ahasverus, sentado em uma rocha, fita longamente o horizonte, onde passam duas águias cruzando-se. Medita, depois sonha. Vai declinando o dia.

Ahasverus. — Chego à cláusula dos tempos; este é o limiar da eternidade. A terra está deserta; nenhum outro homem respira o ar da vida. Sou o último; posso morrer. Morrer! Deliciosa idéia! Séculos de séculos vivi, cansado, mortificado, andando sempre, mas ei-los que acabam e vou morrer com eles. Velha natureza, adeus! Céu azul, imenso céu for aberto para que desçam os espíritos da vida nova, terra inimiga, que me não comeste os ossos, adeus! O errante não errará mais. Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me. Aquela montanha é áspera como a minha dor; aquelas águias, que ali passam, devem ser famintas como o meu desespero. Morrereis também, águias divinas?

Prometeu. — Certo que os homens acabaram; a terra está nua deles.

Ahasverus. — Ouço ainda uma voz... Voz de homem? Céus implacáveis, não sou então o último? Ei-lo que se aproxima... Quem és tu? Há em teus grandes olhos alguma cousa parecida com a luz misteriosa dos arcanjos de Israel; não és homem...

Prometeu. — Não.

Ahasverus. — Raça divina?

Prometeu. — Tu o disseste.

Ahasverus. — Não te conheço; mas que importa que te não conheça? Não és homem; posso então morrer; pois sou o último, e fecho a porta da vida.

Prometeu. — A vida, como a antiga Tebas, tem cem portas. Fechas uma, outras se abrirão. És o último da tua espécie? Virá outra espécie melhor, não feita do mesmo barro, mas da mesma luz. Sim, homem derradeiro, toda a plebe dos espíritos perecerá para sempre; a flor deles é que voltará à terra para reger as coisas. Os tempos serão retificados. O mal acabará; os ventos não espalharão mais nem os germes da morte, nem o clamor dos oprimidos, mas tão somente a cantiga do amor perene e a bênção da universal justiça...

Ahasverus. — Que importa à espécie que vai morrer comigo toda essa delícia póstuma? Crê-me, tu que és imortal, para os ossos que apodrecem na terra as púrpuras de Sidônia não valem nada. O que tu me contas é ainda melhor que o sonho de Campanella. Na cidade deste havia delitos e enfermidades; a tua exclui todas as lesões morais e físicas. O Senhor te ouça! Mas deixa-me ir morrer.

Prometeu. — Vai, vai. Que pressa tens em acabar os teus dias?

Ahasverus. — A pressa de um homem que tem vivido milheiros de anos. Sim, milheiros de anos. Homens que apenas respiraram por dezenas deles, inventaram um sentimento de enfado, tedium vitae, que eles nunca puderam conhecer, ao menos em toda a sua implacável e vasta realidade, porque é preciso haver calcado, como eu, todas as gerações e todas as ruínas, para experimentar esse profundo fastio da existência.

Prometeu. — Milheiros de anos?

Ahasverus. — Meu nome é Ahasverus: vivia em Jerusalém, ao tempo em que iam crucificar Jesus Cristo. Quando ele passou pela minha porta, afrouxou ao peso do madeiro que levava aos ombros, e eu empurrei-o, bradando-lhe que não parasse, que não descansasse, que fosse andando até à colina, onde tinha de ser crucificado... Então uma voz anunciou-me do céu que eu andaria sempre, continuamente, até o fim dos tempos. Tal é a minha culpa; não tive piedade para com aquele que ia morrer. Não sei mesmo como isto foi. Os fariseus diziam que o filho de Maria vinha destruir a lei, e que era preciso matá-lo; eu, pobre ignorante, quis realçar o meu zelo e daí a ação daquele dia. Que de vezes vi isto mesmo, depois, atravessando os tempos e as cidades! Onde quer que o zelo penetrou numa alma subalterna, fez-se cruel ou ridículo. Foi a minha culpa irremissível.

Prometeu. — Grave culpa, em verdade, mas a pena foi benévola. Os outros homens leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Que sabe um capítulo de outro capítulo? Nada; mas o que os leu a todos, liga-os e conclui. Há páginas melancólicas? Há outras joviais e felizes. À convulsão trágica precede a do riso, a vida brota da morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamais abandoná-lo inteiramente; é assim que tudo se concerta e restitui. Tu viste isso, não dez vezes, não mil vezes, mas todas as vezes; viste a magnificência da terra curando a aflição da alma, e a alegria da alma suprindo à desolação das cousas; dança alternada da natureza, que dá a mão esquerda a Jó e a direita a Sardanapalo.

Ahasverus. — Que sabes tu da minha vida? Nada; ignoras a vida humana.

Prometeu. — Ignoro a vida humana? Deixa-me rir! Eia, homem perpétuo, explica-te. Conta-me tudo; saíste de Jerusalém...

Ahasverus. — Saí de Jerusalém. Comecei a peregrinação dos tempos. Ia a toda parte, qualquer que fosse a raça, o culto ou a língua; sóis e neves, povos bárbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem aí respirei eu. Nunca mais trabalhei. Trabalho é refúgio, e não tive esse refúgio. Cada manhã achava comigo a moeda do dia... Vede; cá está a última. Ide, que já não sois precisa (atira a moeda ao longe). Não trabalhava, andava apenas, sempre, sempre, sempre, um dia e outro dia, um ano e outro ano, e todos os anos, e todos os séculos. A eterna justiça soube o que fez: somou a eternidade com a ociosidade. As gerações legavam-me umas às outras. As línguas que morriam ficavam com o meu nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo; os heróis dissipavam-se em mitos, na penumbra, ao longe; e a história ia caindo aos pedaços, não lhe ficando mais que duas ou três feições vagas e remotas. E eu via-as de um modo e de outro modo. Falaste em capítulo? Os que se foram, à nascença dos impérios, levaram a impressão da perpetuidade deles; os que expiraram quando eles decaíam, enterraram-se com a esperança da recomposição; mas sabes tu o que é ver as mesmas cousas, sem parar, a mesma alternativa de prosperidade e desolação, desolação e prosperidade, eternas exéquias e eternas aleluias, auroras sobre auroras, ocasos sobre ocasos?

Prometeu. — Mas não padeceste, creio; é alguma cousa não padecer nada.

Ahasverus. — Sim, mas vi padecer os outros homens, e para o fim o espetáculo da alegria dava-me a mesma sensação que os discursos de um doido. Fatalidades do sangue e da carne, conflitos sem fim, tudo vi passar a meus olhos, a ponto que a noite me fez perder o gosto ao dia, e acabo não distinguindo as flores das urzes. Tudo se me confunde na retina enfarada.

Prometeu. — Pessoalmente não te doeu nada; e eu que padeci por tempos inúmeros o efeito da cólera divina?

Ahasverus. — Tu?

Prometeu. — Prometeu é o meu nome.

Ahasverus. — Tu Prometeu?

Prometeu. — E qual foi o meu crime? Fiz de lodo e água os primeiros homens, e depois, compadecido, roubei para eles o fogo do céu. Tal foi o meu crime. Júpiter, que então regia o Olimpo, condenou-me ao mais cruel suplício. Anda, sobe comigo a este rochedo.

Ahasverus. — Contas-me uma fábula. Conheço esse sonho helênico.

Prometeu. — Velho incrédulo! Anda ver as próprias correntes que me agrilhoaram; foi uma pena excessiva para nenhuma culpa; mas a divindade orgulhosa e terrível... Chegamos, olha, aqui estão elas...

Ahasverus. — O tempo que tudo rói não as quis então?

Prometeu. — Eram de mão divina; fabricou-as Vulcano. Dois emissários do céu vieram atar-me ao rochedo, e uma águia, como aquela que lá corta o horizonte, comia-me o fígado, sem consumi-lo nunca. Durou isto tempos que não contei. Não, não podes imaginar este suplício...

Ahasverus. — Não me iludes? Tu Prometeu? Não foi então um sonho da imaginação antiga?

Prometeu. — Olha bem para mim, palpa estas mãos. Vê se existo.

Ahasverus. — Moisés mentiu-me. Tu Prometeu, criador dos primeiros homens?

Prometeu. — Foi o meu crime.

Ahasverus. — Sim, foi o teu crime, artífice do inferno; foi o teu crime inexpiável. Aqui devias ter ficado por todos os tempos, agrilhoado e devorado, tu, origem dos males que me afligiram. Careci de piedade, é certo; mas tu, que me trouxeste à existência, divindade perversa, foste a causa original de tudo.

Prometeu. — A morte próxima obscurece-te a razão.

Ahasverus. — Sim, és tu mesmo, tens a fronte olímpica, forte e belo titão: és tu mesmo... São estas as cadeias? Não vejo o sinal das tuas lágrimas.

Prometeu. — Chorei-as pela tua raça.

Ahasverus. — Ela chorou muito mais por tua culpa.

Prometeu. — Ouve, último homem, último ingrato!

Ahasverus. — Para que quero eu palavras tuas? Quero os teus gemidos, divindade perversa. Aqui estão as cadeias. Vê como as levanto nas mãos; ouve o tinir dos ferros... Quem te desagrilhoou outrora?

Prometeu. — Hércules.

Ahasverus. — Hércules... Vê se ele te presta igual serviço, agora que vais ser novamente agrilhoado.

Prometeu. — Deliras.

Ahasverus. — O céu deu-te o primeiro castigo; agora a terra vai dar-te o segundo e derradeiro. Nem Hércules poderá mais romper estes ferros. Olha como os agito no ar, à maneira de plumas; é que eu represento a força dos desesperos milenários. Toda a humanidade está em mim. Antes de cair no abismo, escreverei nesta pedra o epitáfio de um mundo. Chamarei a águia, e ela virá; dir-lhe-ei que o derradeiro homem, ao partir da vida, deixa-lhe um regalo de deuses.

Prometeu. — Pobre ignorante, que rejeitas um trono! Não, não podes mesmo rejeitá-lo.

Ahasverus. — És tu agora que deliras. Eia, prostra-te, deixa-me ligar-te os braços. Assim, bem, não resistirás mais; arqueja para aí. Agora as pernas...

Prometeu. — Acaba, acaba. São as paixões da terra que se voltam contra mim; mas eu, que não sou homem, não conheço a ingratidão. Não arrancarás uma letra ao teu destino, ele se cumprirá inteiro. Tu mesmo serás o novo Hércules. Eu, que anunciei a glória do outro, anuncio a tua; e não serás menos generoso que ele.

Ahasverus. — Deliras tu?

Prometeu. — A verdade ignota aos homens é o delírio de quem a anuncia. Anda, acaba.

Ahasverus. — A glória não paga nada, e extingue-se.

Prometeu. — Esta não se extinguirá. Acaba, acaba; ensina ao bico adunco da águia como me há de devorar a entranha; mas escuta... Não, não escutes nada; não podes entender-me.

Ahasverus. — Fala, fala.

Prometeu. — O mundo passageiro não pode entender o mundo eterno; mas tu serás o elo entre ambos.

Ahasverus. — Dize tudo.

Prometeu. — Não digo nada; anda, aperta bem estes pulsos, para que eu não fuja, para que me aches aqui à tua volta. Que te diga tudo? Já te disse que uma raça nova povoará a terra, feita dos melhores espíritos da raça extinta; a multidão dos outros perecerá. Nobre família, lúcida e poderosa, será perfeita comunhão do divino com o humano. Outros serão os tempos, mas entre eles e estes um elo é preciso, e esse elo és tu.

Ahasverus. — Eu?

Prometeu. — Tu mesmo, tu eleito, tu, rei. Sim, Ahasverus, tu serás rei. O errante pousará. O desprezado dos homens governará os homens.

Ahasverus. — Titão artificioso, iludes-me... Rei, eu?

Prometeu. — Tu rei. Que outro seria? O mundo novo precisa de uma tradição do mundo velho, e ninguém pode falar de um a outro como tu. Assim não haverá interrupção entre as duas humanidades. O perfeito procederá do imperfeito, e a tua boca dir-lhe-á as suas origens. Contarás aos novos homens todo o bem e todo o mal antigo. Reviverás assim como a árvore a que cortaram as folhas secas, e conserva tão-somente as viçosas; mas aqui o viço é eterno.

Ahasverus. — Visão luminosa! Eu mesmo?

Prometeu. — Tu mesmo.

Ahasverus. — Estes olhos... estas mãos... vida nova e melhor... Visão excelsa! Titão, é justo. Justa foi a pena; mas igualmente justa é a remissão gloriosa do meu pecado. Viverei eu? eu mesmo? Vida nova e melhor? Não, tu mofas de mim.

Prometeu. — Bem, deixa-me, voltarás um dia, quando este imenso céu for aberto para que desçam os espíritos da vida nova. Aqui me acharás tranqüilo. Vai.

Ahasverus. — Saudarei outra vez o sol?

Prometeu. — Esse mesmo que ora vai a cair. Sol amigo, olho dos tempos, nunca mais se fechará a tua pálpebra. Fita-o, se podes.

Ahasverus. — Não posso.

Prometeu. — Podê-lo-ás depois quando as condições da vida houverem mudado. Então a tua retina fitará o sol sem perigo, porque no homem futuro ficará concentrado tudo o que há melhor na natureza, enérgico ou sutil, cintilante ou puro.

Ahasverus. — Jura que me não mentes.

Prometeu. — Verás se minto.

Ahasverus. — Fala, fala mais, conta-me tudo.
.

Prometeu. — A descrição da vida não vale a sensação da vida; tê-la-ás prodigiosa. O seio de Abraão das tuas velhas Escrituras não é senão esse mundo ulterior e perfeito. Lá verás David e os profetas. Lá contarás à gente estupefata não só as grandes ações do mundo extinto, como também os males que ela não há de conhecer, lesão ou velhice, dolo, egoísmo, hipocrisia, a aborrecida vaidade, a inopinável toleima e o resto. A alma terá, como a terra, uma túnica incorruptível.

Ahasverus. — Verei ainda este imenso céu azul!

Prometeu. — Olha como é belo.

Ahasverus. — Belo e sereno como a eterna justiça. Céu magnífico, melhor que as tendas de Cedar, ver-te-ei ainda e sempre; tu recolherás os meus pensamentos, como outrora; tu me darás os dias claros e as noites amigas...

Prometeu. — Auroras sobre auroras.

Ahasverus. — Eia, fala, fala mais. Conta-me tudo. Deixa-me desatar-te estas cadeias...

Prometeu. — Desata-as, Hércules novo, homem derradeiro de um mundo, que vás ser o primeiro de outro. É o teu destino; nem tu nem eu, ninguém poderá mudá-lo. És mais ainda que o teu Moisés. Do alto do Nebo, viu ele, prestes a morrer, toda a terra de Jericó, que ia pertencer à sua posteridade; e o Senhor lhe disse: "Tu a viste com teus olhos, e não passarás a ela." Tu passarás a ela, Ahasverus; tu habitarás Jericó.

Ahasverus. — Põe a mão sobre a minha cabeça, olha bem para mim; incute-me a tua realidade e a tua predição; deixa-me sentir um pouco da vida nova e plena... Rei disseste?

Prometeu. — Rei eleito de uma raça eleita.

Ahasverus. — Não é demais para resgatar o profundo desprezo em que vivi. Onde uma vida cuspiu lama, outra vida porá uma auréola. Anda, fala mais... fala mais... (Continua sonhando. As duas águias aproximam-se.)

Uma águia. — Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida.

A outra. — Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito.

Fonte:
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Ed. Martin Claret.

Haroldo de Campos Homenageado em São Paulo

imagem por Eder Chiodetto
A partir de 17 de fevereiro, a nona edição do projeto Ocupação homenageia o poeta, ensaísta e tradutor Haroldo de Campos. Com uma exposição, debates e instalações inspiradas na obra do escritor, o evento apresenta momentos de seu processo criativo e de seu percurso intelectual e artístico.

A mostra acontece em dois espaços, na sede do Itaú Cultural e na Casa das Rosas, em São Paulo. Será lançado também um site especial, com parte do material exposto e atrativos exclusivos. No portal atual, você pode conhecer as exposições anteriores.

A Ocupação Haroldo de Campos é uma parceria entre o Itaú Cultural, a Casa das Rosas e o Governo do Estado de São Paulo.

Ocupação Haroldo de Campos
quinta 17 de fevereiro a domingo 10 de abril
terça a sexta 9h às 20h
sábado domingo feriado 11h às 20h

Debates - sempre às 17h, na Casa das Rosas

Confira a programação completa no site.

entrada franca

Casa das Rosas Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura Avenida Paulista 37 - Paraíso - São Paulo SP informações: 11 3285 6986 3288 9447 contato.cr@poiesis.org.br twitter.com/casadasrosas

Itaú Cultural Avenida Paulista 149 - Paraíso - São Paulo SP [próximo à estação Brigadeiro do metrô] informações: 11 2168 1777 atendimento@itaucultural.org.br twitter.com/itaucultural http://www.youtube.com/itaucultural

Fonte:
Itau Cultural

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Ana Maria Motta (Caderno de Trovas)


Ao ver um índio passar
com seu cocar grandalhão,
pôs-se o pirralho a gritar:
- Olha, mãe... Que petecão!

Cartas lidas e relidas
guardam lembranças tão minhas
da história de nossas vidas
escrita... nas entrelinhas...

Com greves, o Juvenal,
dá-se sempre muito bem:
se faz greve a "filial",
a "matriz" até que nem...

Com um ciúme tremendo,
o galo teve um desmaio,
porque a franga anda sofrendo
de bico-de-papagaio.

Coração - Casa em ruínas,
onde a espera se instalou,
e o adeus rasgou as cortinas
que a saudade costurou !

Da tua ausência estou farta
(ensaio a mensagem breve)...
meu coração dita a carta,
mas o orgulho não escreve!

É tão roxa por novela,
a mulher do Serafim,
que, se alguém chama por ela
ela responde: - Plim-plim !

- Eu gostaria de ver
um fantasma - a sogra fala.
E o genro, sem se conter:
- Tem espelho ali na sala!

Ganha tão pouco o Ademar
na profissão de engraxate,
que a mulher, para ajudar,
anda fazendo biscate...

Na porta o trinco a girar...
No peito, um sino em repique...
Não basta você chegar;
Deus queira que você fique!

Não sei se vai ter futuro
o casal Chico e Tereza :
ela quer que ele dê duro,
E o coitado... que moleza!...

O Doutor não é otário
e tem dinheiro de sobra,
pois, sem ser veterinário,
mata, cobra, cura, cobra...

O suspiro está perfeito,
mas é tão pequenininho
que deve ter sido feito
com ovos...de passarinho!

Planejo a carta e o maldoso
orgulho logo desponta
E caneta de orgulhoso
não tem tinta e não tem ponta!

Por favor, não desarrume
este encanto verdadeiro
só porque tenho ciúme
até... do seu travesseiro!

Prazer no vício... Onde a graça
de um destino mais ameno?
- Nada vale o ouro do taça
se o conteúdo é veneno !

Que importa se foste ingrato?
Sou perdulária em clemência...
- Eu, com castigo, não mato
a angústia da tua ausência...

Quis dar vida ao nosso amor,
mas não pude; não deu certo:
quem dá vida a um beija-flor
no coração do deserto?

Um caráter mal formado
em desculpas se resume :
Faz do destino o culpado
dos erros que não assume.

Você nem sabe a ventura
que me traz seu bem-querer:
se é paixão ou se é loucura,
eu não quero nem saber!

Volto a contemplar a esmo,
ao luar, o meu recanto,
o luar parece o mesmo,
mas o lugar mudou tanto!...

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Avulsas II)


CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, qe tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

CARTA

Bem quisera escrevê-la
com palavras sabidas,
as mesmas, triviais,
embora estremecessem
a um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
canais de argila e sombra,
ela iria contando
que vou bem, e amo sempre
e amo cada vez mais
a essa minha maneira
torcida e reticente,
e espero uma resposta
mas que não tarde: e peço
um objeto minúsculo
só para dar prazer
e quem pode ofertá-lo;
diria ela do tempo
que faz do nosso lado;
as chuvas já secaram,
as crianças estudam,
uma última invenção
(inda não é perfeita)
faz ler nos corações,
mas todos esperamos
rever-nos bem depressa.
Muito depressa, não.
Vai-se tornando o tempo
estranhamente longo
à medida que encurta.
O que ontem disparava,
desbordado alazão,
hoje se paralisa
em esfinge de mármore,
e até o sono, o sono
que era grato e era absurdo
é um dormir acordado
numa planície grave.
Rápido é o sono, apenas,
que se vai, de mandar
notícias amorosas
quando não há amor
a dar ou receber;
quando só há lembrança,
ainda menos, pó,
menos ainda, nada,
nada de nada em tudo,
em mim mais do que em tudo,
e não vale acordar
quem acaso repousa
na colina sem árvores.
Contudo, está é uma carta.

A PALAVRA MÁGICA

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

A FALTA QUE AMA

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?

AMAR

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

LIRA DO AMOR ROMÂNTICO
(OU A ETERNA REPETIÇÃO)


Atirei um limão n'água
e fiquei vendo na margem.
Os peixinhos responderam:
Quem tem amor tem coragem.

Atirei um limão n'água
e caiu enviesado.
Ouvi um peixe dizer:
Melhor é o beijo roubado.

Atirei um limão n'água,
como faço todo ano.
Senti que os peixes diziam:
Todo amor vive de engano.

Atirei um limão n'água,
como um vidro de perfume.
Em coro os peixes disseram:
Joga fora teu ciúme.

Atirei um limão n'água
mas perdi a direção
Os peixes, rindo, notaram:
Quanto dói uma paixão!

Atirei um limão n'água,
ele afundou um barquinho.
Não se espantaram os peixes:
faltava-me o teu carinho.

Atirei um limão n'água,
o rio logo amargou.
Os peixinhos repetiram:
é dor de quem muito amou.

Atirei um limão n'água,
o rio ficou vermelho
e cada peixinho viu
meu coração num espelho.

Atirei um limão n'água
mas depois me arrependi.
Cada peixinho assustado
me lembra o que já sofri.

Atirei um limão n'água,
antes não tivesse feito.
Os peixinhos me acusaram
de amar com falta de jeito.

Atirei um limão n'água,
fez-se logo um burburinho.
Nenhum peixe me avisou
da pedra no meu caminho.

Atirei um limão n'água,
de tão baixo ele boiou.
Comenta o peixe mais velho:
Infeliz quem não amou.

Atirei um limão n'água,
antes atirasse a vida.
Iria viver com os peixes
a minh'alma dolorida.

Atirei um limão n'água,
pedindo à água que o arraste.
Até os peixes choraram
porque tu me abandonaste.

Atirei um limão n'água.
Foi tamanho o rebuliço
que os peixinhos protestaram:
Se é amor, deixa disso.

Atirei um limão n'água,
não fez o menor ruído.
Se os peixes nada disseram,
tu me terás esquecido?

Atirei um limão n'água,
caiu certeiro: zás-trás.
Bem me avisou um peixinho:
Fui passado para trás.

Atirei um limão n'água,
de clara ficou escura.
Até os peixes já sabem:
Você não ama: tortura.

Atirei um limão n'água
e caí n'água também
pois os peixes me avisaram,
que lá estava meu bem.

Atirei um limão n'água,
foi levado na corrente.
Senti que os peixes diziam:
Hás de amar eternamente.

Folclore, Superstição, Lendas e Histórias (Aves do Brasil: Pássaro Mágico)


Um tuxaua navegava numa canoa em direção contrária à corrente do rio. De repente, percebeu, com espanto, o ruído cada vez mais forte da cascata que tinha ficado muito para trás. Parecia que, em lugar de avançar, ele recuava para o abismo. Remou com mais força. Mas, quanto mais remava, mais intenso se tornava o ruído da cachoeira. Apavorado com o que acontecia, implorou a um pássaro que voava sobre a sua cabeça:

- Pássaro empresta-me as tuas asas, para que eu possa chegar à minha tribo!

Assim que o índio falou, o pássaro mergulhou nas águas do rio e desapareceu. Imediatamente, o ruído da cascata foi diminuindo, até desaparecer de todo. O tuxaua pode então, fazer sua canoa deslizar rapidamente sobre o rio.

Chegando à taba, foi recebido com grande alegria por seus companheiros. Ele saíra de casa havia muitos dias e todos já o consideravam perdido. Em regozijo pelo seu regresso, houve à noite, uma grande festa na tribo.

Durante as danças, chamou a atencão do tuxaua a presença na taba, de um guerreiro desconhecido, que cortejava a sua noiva. Era um índio alto, belo e forte, tendo ao pescoço muitos colares feitos com dentes de animais abatidos e de inimigos mortos na guerra, que lembravam as do pássaro que havia salvo o tuxaua.

Ficou este com inveja da beleza do guerreiro desconhecido. Além disso, encheu-se de ciúmes diante das atenções que o jovem dispensava à sua noiva. Sem poder dominar sua revolta, aproximou-se do casal e, numa atitude provocadora, arrancou a noiva da companhia do guerreiro. Este não repeliu o insulto. Então, todos os índios da tribo o expulsaram da festa por ser covarde.

O guerreiro de asas de pássaros afastou-se em silêncio, mas de cabeça erguida. Ao chegar à beira do rio, atirou-se na água. Julgando que ele quisesse fugir a nado, os índios embarcaram em suas canoas para persegui-lo.

Nesse momento, o estrondo de uma cascata ecoou no espaço. E um pássaro surgiu no ar, gritando: Tincoã! Tincoã! Então, a noite desceu sobre a terra, os índios foram dominados por um pavor que nunca tinham sentido, e todos foram envolvidos e arrastados pelas águas furiosas do rio.

Fonte:
SANTOS, Teobaldo Miranda. Lendas e mitos do Brasil. 9ª Ed., São Paulo, Ed. Nacional, 1985

Machado de Assis (D. Paula)


NÃO ERA POSSÍVEL chegar mais a ponto. D. Paula entrou na sala exatamente quando a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar. Compreende-se o assombro da tia. Entender-se-á também o da sobrinha, em se sabendo que D. Paula vive no alto da Tijuca, donde raras vezes desce; a última foi pelo Natal passado, e estamos em maio de 1882. Desceu ontem, à tarde, e foi para casa da irmã, Rua do Lavradio. Hoje, tão depressa almoçou, vestiu-se e correu a visitar a sobrinha. A primeira escrava que a viu, quis ir avisar a senhora, mas D. Paula ordenou-lhe que não, e foi pé ante pé, muito devagar, para impedir o rumor das saias, abriu a porta da sala de visitas, e entrou.

— Que é isto? exclamou.

Venancinha atirou-se-lhe aos braços, as lágrimas vieram-lhe de novo. A tia beijou-a muito, abraçou-a, disse-lhe palavras de conforto e pediu, e quis que lhe contasse o que era, se alguma doença, ou...

— Antes fosse uma doença! antes fosse a morte! interrompeu a moça.
— Não digas tolices; mas que foi? anda, que foi?

Venancinha enxugou os olhos e começou a falar. Não pôde ir além de cinco ou seis palavras; as lágrimas tornaram, tão abundantes e impetuosas, que D. Paula achou de bom aviso deixá-las correr primeiro. Entretanto, foi tirando a capa de rendas pretas que a envolvia, e descalçando as luvas . Era uma bonita velha, elegante, dona de um par de olhos grandes, que deviam ter sido infinitos. Enquanto a sobrinha chorava, ela foi cerrar cautelosamente a porta da sala, e voltou ao canapé. No fim de alguns minutos, Venancinha cessou de chorar, e confiou à tia o que era.

Era nada menos que uma briga com o marido, tão violenta, que chegaram a falar de separação. A causa eram ciúmes. Desde muito que o marido embirrava com um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do C..., vendo-a dançar com ele duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram namorados. Voltou amuado para casa de manhã, acabado o almoço, a cólera estourou, e ele disse-lhe cousas duras e amargas, que ela repeliu com outras.

— Onde está teu marido? perguntou a tia.
— Saiu; parece que foi para o escritório.

D. Paula perguntou-lhe se o escritório era ainda o mesmo, e disse-lhe que descansasse, que não era nada, dali a duas horas tudo estaria acabado. Calçava as luvas rapidamente.

— Titia vai lá?
— Vou... Pois então? Vou. Teu marido é bom, são arrufos. 104? Vou lá; espera por mim, que as escravas não te vejam.

Tudo isso era dito com volubilidade, confiança e doçura. Calçadas as luvas, pôs o mantelete, e a sobrinha ajudou-a, falando também, jurando que, apesar de tudo, adorava o Conrado. Conrado era o marido, advogado desde 1874. D. Paula saiu, levando muitos beijos da moça. Na verdade, não podia chegar mais a ponto. De caminho, parece que ela encarou o incidente, não digo desconfiada, mas curiosa, um pouco inquieta da realidade positiva; em todo caso ia resoluta a reconstruir a paz doméstica.

Chegou, não achou o sobrinho no escritório, mas ele veio logo, e, passado o primeiro espanto, não foi preciso que D. Paula lhe dissesse o objeto da visita; Conrado adivinhou tudo. Confessou que fora excessivo em algumas cousas, e, por outro lado, não atribuía à mulher nenhuma índole perversa ou viciosa. Só isso; no mais, era uma cabeça de vento, muito amiga de cortesias, de olhos ternos, de palavrinhas doces, e a leviandade também é uma das portas do vício. Em relação à pessoa de quem se tratava, não tinha dúvida de que eram namorados. Venancinha contara só o fato da véspera; não referiu outros, quatro ou cinco, o penúltimo no teatro, onde chegou a haver tal ou qual escândalo. Não estava disposto a cobrir com a sua responsabilidade os desazos da mulher. Que namorasse, mas por conta própria.

D. Paula ouviu tudo, calada; depois falou também. Concordava que a sobrinha fosse leviana; era próprio da idade. Moça bonita não sai à rua sem atrair os olhos, e é natural que a admiração dos outros a lisonjeie. Também é natural que o que ela fizer de lisonjeada pareça aos outros e ao marido um princípio de namoro: a fatuidade de uns e o ciúme do outro explicam tudo. Pela parte dela, acabava de ver a moça chorar lágrimas sinceras, deixou-a consternada, falando de morrer, abatida com o que ele lhe dissera. E se ele próprio só lhe atribuía leviandade, por que não proceder com cautela e doçura, por meio de conselho e de observação, poupando-lhe as ocasiões, apontando-lhe o mal que fazem à reputação de uma senhora as aparências de acordo, de simpatia, de boa vontade para os homens?

Não gastou menos de vinte minutos a boa senhora em dizer essas cousas mansas, com tão boa sombra, que o sobrinho sentiu apaziguar-se-lhe o coração. Resistia, é verdade; duas ou três vezes, para não resvalar na indulgência, declarou à tia que entre eles tudo estava acabado. E, para animar-se, evocava mentalmente as razões que tinha contra a mulher. A tia, porém, abaixava a cabeça para deixar passar a onda, e surgia outra vez com os seus grandes olhos sagazes e teimosos. Conrado ia cedendo aos poucos e mal. Foi então que D. Paula propôs um meio-termo.

— Você perdoa-lhe, fazem as pazes, e ela vai estar comigo, na Tijuca, um ou dous meses; uma espécie de desterro. Eu, durante este tempo, encarrego-me de lhe pôr ordem no espírito. Valeu?

Conrado aceitou. D. Paula, tão depressa obteve a palavra, despediu-se para levar a boa nova à outra, Conrado acompanhou-a até à escada. Apertaram as mãos; D. Paula não soltou a dele sem lhe repetir os conselhos de brandura e prudência; depois, fez esta reflexão natural:

— E vão ver que o homem de quem se trata nem merece um minuto dos nossos cuidados...
— É um tal Vasco Maria Portela...

D. Paula empalideceu. Que Vasco Maria Portela? Um velho, antigo diplomata, que. .. Não, esse estava na Europa desde alguns anos, aposentado, e acabava de receber um título de barão. Era um filho dele, chegado de pouco, um pelintra... D. Paula apertou-lhe a mão, e desceu rapidamente. No corredor, sem ter necessidade de ajustar a capa, fê-lo durante alguns minutos, com a mão trêmula e um pouco de alvoroço na fisionomia. Chegou mesmo a olhar para o chão, refletindo. Saiu, foi ter com a sobrinha, levando a reconciliação e a cláusula. Venancinha aceitou tudo.

Dous dias depois foram para a Tijuca. Venancinha ia menos alegre do que prometera; provavelmente era o exílio, ou pode ser também que algumas saudades. Em todo caso, o nome de Vasco subiu a Tijuca, se não em ambas as cabeças, ao menos na da tia, onde era uma espécie de eco, um som remoto e brando, alguma cousa que parecia vir do tempo da Stoltz e do ministério Paraná. Cantora e ministério, cousas frágeis, não o eram menos que a ventura de ser moça, e onde iam essas três eternidades? Jaziam nas ruínas de trinta anos. Era tudo o que D. Paula tinha em si e diante de si.

Já se entende que o outro Vasco, o antigo, também foi moço e amou. Amaram-se, fartaram-se um do outro, à sombra do casamento, durante alguns anos, e, como o vento que passa não guarda a palestra dos homens, não há meio de escrever aqui o que então se disse da aventura. A aventura acabou; foi uma sucessão de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, de arroubos, drogas várias com que encheram a esta senhora a taça das paixões. D. Paula esgotou-a inteira e emborcou-a depois para não mais beber. A saciedade trouxe-lhe a abstinência, e com o tempo foi esta última fase que fez a opinião. Morreu-lhe o marido e foram vindo os anos. D. Paula era agora uma pessoa austera e pia, cheia de prestígio e consideração.

A sobrinha é que lhe levou o pensamento ao passado. Foi a presença de uma situação análoga, de mistura com o nome e o sangue do mesmo homem, que lhe acordou algumas velhas lembranças. Não esqueçam que elas estavam na Tijuca, que iam viver juntas algumas semanas, e que uma obedecia à outra; era tentar e desafiar a memória

— Mas nós deveras não voltamos à cidade tão cedo? perguntou Venancinha rindo, no outro dia de manhã.
—Já estás aborrecida?
—Não, não, isso nunca, mas pergunto...

D. Paula, rindo também, fez com o dedo um gesto negativo; depois, perguntou-lhe se tinha saudades cá de baixo. Venancinha respondeu que nenhumas; e para dar mais força à resposta, acompanhou-a de um descair dos cantos da boca, a modo de indiferença e desdém. Era pôr demais na carta, D. Paula tinha o bom costume de não ler às carreiras, como quem vai salvar o pai da forca, mas devagar, enfiando os olhos entre as sílabas e entre as letras, para ver tudo, e achou que o gesto da sobrinha era excessivo.

"Eles amam-se!" pensou ela.

A descoberta avivou o espírito do passado. D. Paula forcejou por sacudir fora essas memórias importunas; elas, porém, voltavam, ou de manso ou de assalto, como raparigas que eram, cantando, rindo, fazendo o diabo. D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, às suas eternas valsas que faziam pasmar a toda a gente, às mazurcas, que ela metia à cara das sobrinha como sendo a mais graciosa cousa do mundo, e aos teatros, e às cartas, e vagamente, aos beijos; mas tudo isso — e esta é a situação — tudo isso era como as frias crônicas, esqueleto da história, sem a alma da história. Passava-se tudo na cabeça. D. Paula tentava emparelhar o coração com o cérebro, a ver se sentia alguma cousa além da pura repetição mental, mas, por mais que evocasse as comoções extintas, não lhe voltava nenhuma. Cousas truncadas!

Se ela conseguisse espiar para dentro do coração da sobrinha , pode ser que achasse ali a sua imagem, e então... Desde que esta idéia penetrou no espírito de D. Paula, complicou-lhe um pouco a obra de reparação e cura. Era sincera, tratava da alma da outra, queria vê-la restituída ao marido. Na constância do pecado é que se pode desejar que outros pequem também, para descer de companhia ao purgatório; mas aqui o pecado já não existia. D. Paula mostrava à sobrinha a superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um mau desfecho ao casamento, pior que trágico, o repúdio.

Conrado, na primeira visita que lhes fez, nove dias depois, confirmou a advertência da tia; entrou frio e saiu frio. Venancinha ficou aterrada. Esperava que os nove dias de separação tivessem abrandado o marido, e, em verdade, assim era; mas ele mascarou-se à entrada e conteve-se para não capitular. E isto foi mais salutar que tudo o mais. O terror de perder o marido foi o principal elemento de restauração. O próprio desterro não pôde tanto.

Vai senão quando, dois dias depois daquela visita, estando ambas ao portão da chácara, prestes a sair para o passeio do costume, viram vir um cavaleiro. Venancinha fixou a vista, deu um pequeno grito, e correu a esconder-se atrás do muro. D. Paula compreendeu e ficou. Quis ver o cavaleiro de mais perto; viu-o dali a dois ou três minutos, um galhardo rapaz, elegante, com as suas finas botas lustrosas, muito bem-posto no selim; tinha a mesma cara do outro Vasco, era o filho; o mesmo jeito da cabeça, um pouco à direita, os mesmos ombros largos, os mesmos olhos redondos e profundos.

Nessa mesma noite, Venancinha contou-lhe tudo, depois da primeira palavra que ela lhe arrancou. Tinham-se visto nas corridas, uma vez, logo que ele chegou da Europa. Quinze dias depois, foi-lhe apresentado em um baile, e pareceu-lhe tão bem, com um ar tão parisiense, que ela falou dele, na manhã seguinte, ao marido. Conrado franziu o sobrolho, e foi este gesto que lhe deu uma idéia que até então não tinha. Começou a vê-lo com prazer; daí a pouco com certa ansiedade. Ele falava-lhe respeitosamente, dizia-lhe cousas amiga, que ela era a mais bonita moça do Rio, e a mais elegante, que já em Paris ouvira elogiá-la muito, por algumas senhoras da família Alvarenga. Tinha graça em criticar os outros, e sabia dizer também umas palavras sentidas, como ninguém. Não falava de amor, mas perseguia-a com os olhos, e ela, por mais que afastasse os seus, não podia afastá-los de todo. Começou a pensar nele, amiudadamente, com interesse, e quando se encontravam, batia-lhe muito o coração, pode ser que ele lhe visse então, no rosto, a impressão que fazia.

D. Paula, inclinada para ela, ouvia essa narração, que aí fica apenas resumida e coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio aberta, parecia beber as palavras da sobrinha, ansiosamente, como um cordial. E pedia-lhe mais, que lhe contasse tudo, tudo. Venancinha criou confiança. O ar da tia era tão jovem, a exortação tão meiga e cheia de um perdão antecipado, que ela achou ali uma confidente e amiga, não obstante algumas frases severas que lhe ouviu, mescladas às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia. Não digo cálculo; D. Paula enganava-se a si mesma. Podemos compará-la a um general inválido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas.

—Já vês que teu marido tinha razão, dizia ela; foste imprudente, muito imprudente...

Venancinha achou que sim, mas jurou que estava tudo acabado.

— Receio que não. Chegaste a amá-lo deveras?
—Titia...
—Tu ainda gostas dele!
—Juro que não. Não gosto; mas confesso... sim... confesso que gostei. . . Perdoe-me tudo; não diga nada a Conrado; estou arrependida... Repito que a princípio um pouco fascinada... Mas que quer a senhora?
— Ele declarou-te alguma cousa?
—Declarou; foi no teatro, uma noite, no Teatro Lírico, à saída. Tinha costume de ir buscar-me ao camarote e conduzir-me até o carro, e foi à saída... duas palavras...

D. Paula não perguntou, por pudor, as próprias palavras do namorado, mas imaginou as circunstâncias, o corredor, os pares que saíam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes, e teve o poder de representar, com o quadro, um pouco das sensações dela; e pediu-lhas com interesse, astutamente.

—Não sei o que senti, acudiu a moça cuja comoção crescente ia desatando a língua; não me lembro dos primeiros cinco minutos. Creio que fiquei séria; em todo o caso, não lhe disse nada. Pareceu-me que toda gente olhava para nós, que teriam ouvido, e quando alguém me cumprimentava sorrindo, dava-me idéia de estar caçoando. Desci as escadas não sei como, entrei no carro sem saber o que fazia; ao apertar-lhe a mão, afrouxei bem os dedos. Juro-lhe que não queria ter ouvido nada. Conrado disse-me que tinha sono, e encostou-se ao fundo do carro; foi melhor assim, porque eu não sei que diria, se tivéssemos de ir conversando. Encostei-me também, mas por pouco tempo; não podia estar na mesma posição. Olhava para fora através dos vidros, e via só o clarão dos lampiões, de quando em quando, e afinal nem isso mesmo; via os corredores do teatro, as escadas, as pessoas todas, e ele ao pé de mim, cochichando as palavras, duas palavras só, e não posso dizer o que pensei em todo esse tempo; tinha as idéias baralhadas, confusas, uma revolução em mim . . .
— Mas, em casa?
—Em casa, despindo-me, é que pude refletir um pouco, mas muito pouco. Dormi tarde, e mal. De manhã, tinha a cabeça aturdida. Não posso dizer que estava alegre nem triste, lembro-me que pensava muito nele, e para arredá-lo prometi a mim mesma revelar tudo ao Conrado; mas o pensamento voltava outra vez. De quando em quando, parecia-me escutar a voz dele, e estremecia. Cheguei a lembrar-me que, à despedida, lhe dera os dedos frouxos, e sentia, não sei como diga, uma espécie de arrependimento, um medo de o ter ofendido... e depois vinha o desejo de o ver outra vez... Perdoe-me, titia; a senhora é que quer que lhe conte tudo.

A resposta de D. Paula foi apertar-lhe muito a mão e fazer um gesto de cabeça. Afinal achava alguma cousa de outro tempo, ao contacto daquelas sensações ingenuamente narradas. Tinha os olhos ora meio cerrados, na sonolência da recordação, — ora aguçados de curiosidade e calor, e ouvia tudo, dia por dia, encontro por encontro, a própria cena do teatro, que a sobrinha a princípio lhe ocultara. E vinha tudo o mais, horas de ânsia, de saudade, de medo, de esperança, desalentos, dissimulações, ímpetos, toda a agitação de uma criatura em tais circunstâncias, nada dispensava a curiosidade insaciável da tia. Não era um livro, não era sequer um capítulo de adultério, mas um prólogo, — interessante e violento.

Venancinha acabou. A tia não lhe disse nada, deixou-se estar metida em si mesma; depois acordou, pegou-lhe na mão e puxou-a. Não lhe falou logo; fitou primeiro, e de perto, toda essa mocidade, inquieta e palpitante, a boca fresca, os olhos ainda infinitos, e só voltou a si quando a sobrinha lhe pediu outra vez perdão. D. Paula disse-lhe tudo o que a ternura e a austeridade da mãe lhe poderia dizer, falou-lhe de castidade, de amor ao marido, de respeito público; foi tão eloqüente que Venancinha não pôde conter-se, e chorou.

Veio o chá, mas não há chá possível depois de certas confidências. Venancinha recolheu-se logo, e, como a luz era agora maior, saiu da sala com os olhos baixos, para que o criado lhe não visse a comoção. D. Paula ficou diante da mesa e do criado. Gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber uma xícara de chá e roer um biscouto, e apenas ficou só, foi encostar-se à janela, que dava para a chácara.

Ventava um pouco, as folhas moviam-se sussurrando, e, conquanto não fossem as mesmas do outro tempo, ainda assim perguntavam-lhe: "Paula, você lembra-se do outro tempo?" Que esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as cousas que viram, e é assim que todas sabem tudo e perguntam por tudo. Você lembra-se do outro tempo?

Lembrar, lembrava, mas aquela sensação de há pouco, reflexo apenas, tinha agora cessado. Em vão repetia as palavras da sobrinha, farejando o ar agreste da noite: era só na cabeça que achava algum vestígio, reminiscências, cousas truncadas. O coração empacara de novo, o sangue ia outra vez com a andadura do costume. Faltava-lhe o contacto moral da outra. E continuava, apesar de tudo, diante da noite, que era igual às outras noites de então, e nada tinha que se parecesse com as do tempo da Stoltz e do Marquês de Paraná; mas continuava, e lá dentro as pretas espalhavam o sono contando anedotas, e diziam, uma ou outra vez, impacientes:

—Sinhá velha hoje deita tarde como diabo!

Fontes:
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Ed. Martin Claret.
Imagem = www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/paula.jpg

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 14. D. Paula)


Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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O conto D. Paula, de Machado de Assis, escrito em 1884, foi publicado na obra Várias Histórias e percebe-se neste relato um tema que já fora desenvolvido em O Enfermeiro e outros contos: a desconexão entre o externo e o interno, pois se dizia e pregava o moralismo, no seu íntimo desejava, ou pelo menos deliciava-se com algo imoral.

Em D. Paula, Machado descreve o ambiente propício às abordagens amorosas “...o corredor, os pares que saíam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes...”

Na obra em análise, o narrador faz uma focalização externa de Venancinha, com a intenção de mostrar ao leitor que algo estava acontecendo: “a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar”, mas não revela o porquê de tantas lágrimas da moça, fazendo assim uma paralipse (Figura de linguagem que consiste em mencionar um assunto justamente ao negar querer fazê-lo) que representa um recurso retórico em que a narrativa não salta, como na elipse, por cima de um momento, passa ao lado de um lado.

Dessa forma a paralipse causa um breve enigma, pois não revela o motivo de tantas lágrimas derramadas pela sobrinha quando D. Paula a encontra. Nesse instante o enunciador volta-se para o leitor instigando-o a desvendar o que realmente teria acontecido, “quando Venancinha atirou-lhe aos braços, as lágrimas vieram-lhe de novo”. Mas em seguida, o leitor recebe a informação de que quando a senhora envolveu a moça em um jogo de gestos carinhosos e de palavras doces e confortáveis, Venancinha confiou à tia tudo o que havia acontecido. Trata-se de uma briga que a moça teve com o marido porque este achava que ela cometera adultério.

Esta crença do marido é revelada sumariamente:

Desde muito que o marido embirrava com um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do C..., vendo-a dançar com ele duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram namorados.

O sumário aumenta a velocidade discursiva, distanciando o leitor dos fatos, pois não se sabe até então se era “birra” do marido ou algo semelhante.

D. Paula, agora envolvida na situação em que o casal encontrava-se, decide ajudá-los. A princípio ela vai ao escritório de Conrado para conversar e ver se há possibilidades, entre o casal, de reconstituir a paz conjugal. Quando a senhora está de partida, a sobrinha acrescenta-lhe que: “apesar de tudo” adorava-o, gerando aí uma ambiguidade, permitindo ao leitor pensar que ela realmente traiu o marido ou estava dissimulando para se mostrar arrependida de tal situação, diante da tia. Neste momento, o narrador instiga o enunciatário a refletir se realmente houve ou não adultério, criando assim uma postura depreciativa sobre a moça em relação ao seu caráter. Esta passagem pode ser identificada quando a jovem jura que “apesar de tudo, adorava o Conrado”.

Na verdade o que se nota é que o discurso toma um rumo, quando na verdade seu foco é outro. Ou seja, o sujeito da enunciação também é um dissimulador, pois focaliza o adultério de Venancinha sendo que a trama está em volta da figura de D. Paula. Porém, isso está latente na narrativa.

D. Paula segue o seu destino a caminho do escritório do rapaz, para que possa tentar promover a paz entre a moça e Conrado, “não digo desconfiada, mas curiosa”, esta focalização interna não é tão reveladora assim, pois a tia, a partir de então, passa a possuir dúvidas a respeito da traição da sobrinha e fica instigada em saber se houve, ou não o adultério.

Quando a senhora chegou ao escritório não precisou explicar o motivo de sua visita, porque o sobrinho adivinhara tudo e em seguida “confessou que fora excessivo em algumas cousas”. Por intermédio do narrador o leitor descobre que Conrado tinha certeza de que sua mulher o traía devido a pessoa de quem se tratava. Sendo assim, pode-se observar que o moço tinha certo conhecimento do caso, para afirmar com tanta firmeza sobre a situação. Ou ainda, pode ser que ele conhecesse o caráter do sujeito; levando em consideração também a leviandade de sua esposa, e chegou a esta conclusão de que eram namorados.

Após uns minutos de conversa, a senhora propõe ao moço que a jovem passasse alguns dias com ela, em sua casa, para a recuperação de caráter. E ainda deu-lhe conselhos de brandura e prudência e também alertou-o de que esse homem não merecia todo esse cuidado que estavam tomando.

Percebe-se então que nesta circunstância a senhora não tinha o conhecimento de quem se tratava, pois até neste ponto o enunciador não estava completamente voltado para D. Paula, e sim para Venancinha. Ou seja, o narrador prende a atenção do enunciatário que está concentrado na situação em que a moça se encontra, mas isso é até o momento em que a tia descobre de quem se tratava, pois, a partir daí o sujeito da enunciação volta-se para a senhora.

Na continuidade da narrativa o narrador conta que na hora da despedida, de D. Paula com Conrado, o nome do rapaz envolvido na separação temporária entre o casal, é pronunciado e de imediato “D. Paula empalideceu”. Diante desta reação mostrada através de uma focalização externa o leitor prossegue com um mistério em mãos. Afinal por que D. Paula ficou pálida? Que valor tem o nome do rapaz na vida dela? Neste momento do enunciado começa o enigma em torno da personagem.

Para reafirmar o grande significado que este nome representa para a senhora, o sujeito da enunciação associa o modo pelo qual ela retira-se do local, usando uma focalização externa: “com a mão trêmula e um pouco de alvoroço na fisionomia”. Em relação a este tipo focalização, pode-se dizer que ela é geradora de significados para o leitor, pois a personagem age na frente do enunciatário sem que ele tenha o conhecimento dos seus sentimentos ou pensamentos.

Na sequência do conto o narrador utiliza outra paralipse, mas desta vez omitindo os sentimentos da tia quanto ao Vasco Maria Portela, sendo este o nome revelado na despedida. Com isso gera outro enigma na diegese (realidade interna da obra, como criada pelo autor, independente da realidade não ficcional do 'mundo real), só que agora em relação à senhora.

Então D. Paula após o choque que tomara, foi encontrar-se com a sobrinha para notificar-lhe a sentença final, a moça por sua vez aceitara tudo. Após este fato o narrador utiliza a elipse para omitir o que acontece nos dois dias que antecede a ida de Venancinha para a casa da tia. Finalmente a jovem segue para a casa da senhora, que com ajuda desta, tem a intenção de modificar-se e reconciliar-se com o marido.

Quando a tia e a sobrinha estão a caminho da casa, o enunciador usa outra estratégia para que o leitor possa imaginar o que teria acontecido nos dias anteriores.
Através do discurso modalizante da ordem do crer na expressão “pode ser também que algumas saudades”, o narrador sabe o que realmente se passa na cabeça da moça, mas não afirma e ainda não identifica de quem são estas possíveis saudades sentidas, se pelo marido ou pelo amante.

Na proporção em que o nome do Vasco foi revelado, D. Paula não teve sossego em seus pensamentos, pois a partir daí começou a escutar espécies de ecos, que a conduziam a seu passado, às suas aventuras do tempo de moça. Entende-se nesse momento, que a senhora também foi leviana, assim como a sobrinha é no presente; e que agora a tia é: “uma pessoa austera e pia, cheia de prestígio e consideração”. Com isso D. Paula deparava-se com as lembranças do passado identificando-se com Venancinha na situação em que está vivendo.

Na seqüência dos fatos o narrador revela ao leitor o que de fato aconteceu com D. Paula e Vasco Maria Portela, que consiste em uma aventura com sucessões de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, de arroubos, e que foram momentos vividos intensamente. Com a intenção de anunciar que foi apenas uma aventura, o sujeito da enunciação nos fornece, em seguida, a informação do fim do relacionamento entre a tia e Vasco, e revela também que a senhora mantinha este caso “à sombra do casamento, durante alguns anos”. Aqui no tempo da enunciação o narrador sugere que no passado, no tempo da diegese, a personagem, D. Paula, não era uma figura prestigiada devido à postura que apresentava, mas que no tempo presente constitui-se de um caráter sério, digno de considerações.

Desta forma o enunciador caracteriza duas personalidades distintas referentes à senhora, sendo uma de quando era jovem e apresentava atos de leviandade; e a outra, a de agora que adquiriu experiências da vida e compõe-se de uma postura séria. Considerando este aspecto podemos chegar a conclusão de que a tia na sua juventude, mantinha uma postura não recomendável em que descaracterizava os “bons costumes” da época e consequentemente, colocava em risco sua reputação. Por outro lado nota-se o oposto, porque D. Paula atribuiu outro caráter, em relação ao que tinha, fazendo assim com que o leitor tenha uma visão apreciativa sobre ela, no presente, com isso o enunciatário passa a depositar mais confiança na senhora em relação a recuperação de caráter de Venancinha.
Na proporção em que a sobrinha relatava os fatos para a tia, esta voltava, em seus pensamentos, para o tempo passado relembrando, ou até mesmo revivendo, as suas aventuras. Diante deste processo pode-se afirmar que a moça é quem levou a senhora a recuar-se para as emoções ocorridas.

Durante uma conversa com a sobrinha, a tia percebe a dissimulação da jovem quando lhe responde uma pergunta que diz respeito às saudades da Tijuca, e a moça para dar mais intensidade à resposta faz gestos que D. Paula acompanhou, observando cada detalhe com seus olhos sagazes. Os mesmos que se mostram na conversa com Conrado, reafirmando, portanto, que ela está sempre atenta ao que acontece ao seu redor.

Diante da dissimulação de Venancinha, a senhora chega a concluir que: ”eles amam-se”. Esta descoberta fez com que avivasse ainda mais suas lembranças. Apesar de lutar contra esses pensamentos, nada adiantou, pois o passado voltara de manso ou de assalto. Desta maneira o narrador faz uma analepse sumarizada, registrando alguns momentos vividos pela tia:

D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, às suas eternas valsas que faziam pasmar a toda a gente, às mazurcas, que ela metia à cara da sobrinha como sendo a mais graciosa cousa do mundo, e aos teatros, e às cartas, e vagamente, aos beijos.

Desde que a tia retornou ao tempo passado não pôde mais concentrar-se totalmente em sua missão para atingir seu objetivo, isso porque ficava dividida entre o presente e o passado. Contudo:

D. Paula mostrava à sobrinha a superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um mau desfecho ao casamento, pior que trágico, o repúdio.

Na continuidade do discurso o narrador utiliza uma elipse que é caracterizada como “um segmento nulo de narrativa que corresponde a uma qualquer duração da história.”. “Nove dias depois”, Conrado fez a sua primeira visita à sua esposa e à tia. Durante essa visita ele manteve a mesma conduta de quando chegou até a sua saída; caracterizando-se em uma postura fria. Esse procedimento do marido resume-se em uma dissimulação para atingir os sentimentos de Venancinha, e assim aconteceu pois ela ficou sem reação ao vê-lo daquele jeito, que até temeu a perda do marido e a partir daí tornou o seu principal motivo de sua transformação, ou seja, quando viu o marido naquele estado, decidiu lutar pelo seu casamento.

Após dois dias do ocorrido, a jovem e a senhora vão para um passeio, como de costume, e viram em suas direções, um cavaleiro, em que Venancinha após fixar seus olhos nele, escondeu-se atrás de um muro enquanto D. Paula manteve-se em seu lugar observando-o. Com a reação da mocinha a tia pôde perceber de quem se tratava e que este relacionamento chegou a um grau perigoso, porque a reputação de sua sobrinha estava em risco.

Na mesma noite em que a jovem avistou o rapaz, a senhora com toda a sua experiência manipulou a sobrinha para lhe contar tudo o que aconteceu. O sujeito da enunciação faz neste instante um sumário caracterizando a história da moça, acelerando o tempo do discurso.

O sumário em questão mostra ao leitor o quanto a jovem se encantou com o sujeito, a ponto de comentar dele para o marido que ao escutar “franziu o sobrolho” e que “foi este gesto que lhe deu uma idéia que até então não tinha”. Ou seja, a mulher falou com tanta graça sobre o rapaz, que despertou em Conrado uma certa desconfiança que antes não tinha.

Ainda na residência da tia, Venancinha continuava a revelar à D. Paula os fatos e a senhora escutava-os prestando atenção em cada detalhe pronunciado, fazendo assim com que voltasse a seu espírito jovem, criando, no entanto, mais confiança à moça. Nestas circunstâncias a sobrinha “achou ali uma confidente e amiga”. Na verdade o não julgamento pela tia era mais um ato egoísta do que humano, pois ela encontrou naquele momento em seu passado, mesmo que por alguns instantes. Para melhor exemplificar esta passagem o narrador compara a senhora “a um general inválido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas”. É como se a senhora tentasse perdoar ela mesma.

Ao longo da confissão Venancinha contou à tia que gostou do rapaz, mas agora estava arrependida e assim foi contando-lhe mais coisas. À medida em que a sobrinha revelava os acontecimentos, D. Paula deliciava-se com as confissões retornando ao seu passado, e no final do discurso da jovem a senhora conclui que esta situação não passava de um prólogo (começo), interessante e violento. Enfim, a tia consegue colocar na cabeça da sobrinha a idéia do erro que quase cometera. Mas para a senhora esta história ainda se passava em sua mente fazendo-a viajar no tempo, isso pode ser notado quando ela “gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber uma xícara de chá e roer um biscoito”.

Em seguida o narrador faz uma alegoria que refere-se exatamente ao que se passou com D. Paula: “esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as cousas que viram”, que neste caso a senhora viveu a mesma situação em que a sobrinha vive atualmente. Porém D. Paula prefere dissimular ao invés de revelar à sobrinha que passou por experiência similar.

Voltando ao início do conto nota-se uma frase interessante: “Não era possível chegar mais a ponto”, que se repete no decorrer da história. No entanto com esta expressão pode-se observar que Venancinha e D. Paula encontram-se em um ponto em comum. Ou seja, ambas as personagens têm uma história semelhante, a diferença é apenas temporal, uma aconteceu no passado e a outra ocorre no presente.

Partindo da análise do conto referido, verifica-se que o adultério cometido pela personagem que protagoniza o conto foi mais extenso do que da moça, pois este foi apenas um começo e com a ajuda da senhora não foi prolongado.

Contudo, nota-se que apesar de D. Paula ter solucionado o caso de Venancinha, fica para ela a incômoda, inquietante e impossível de ser “resolvida” lembrança do passado.

Tendo em vista nosso interesse em compreender a construção ambígua da personagem D. Paula, percebemos no conto analisado que a perspectiva que prevalece para gerar efeito ambivalente ao comportamento da personagem, que nomeia o conto, é a focalização externa, permitindo assim a visualização do aspecto físico em que se encontra a personagem analisada, o que consequentemente, contribuiu para o estudo do seu comportamento.

Neste texto também foram usados os recursos anisocrônicos, como os sumários e as elipses, com a finalidade de economizar tempo e espaço, simplificando os fatos da diegese. A presença das anacronias e modalidades básicas acrescentam-se também no decorrer do conto em quantidade mínima.

Em relação aos estudos realizados em D. Paula, podemos encontrar uma chave de interpretação para o clássico Dom Casmurro e uma preocupação central da obra de Machado de Assis. Ora, se inicialmente (como em Dom Casmurro) pensamos ser a questão central do conto um dado de enredo (o adultério), logo percebemos o interesse real do escritor que se caracteriza-se em deslocar a atenção do leitor para o efeito que este dado provoca na vida interior da personagem. Ou seja, Machado de Assis direciona o conto, e paralelamente ao que acontece, há sempre o que parece estar acontecendo.

Créditos: Thalita Moraes Guimarães, Letras UEMG
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Continua… Análise do Conto “Viver!”
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias

José Reinaldo de Melo Paes lança Jornal Virtual dos Trovadores de Alagoas nº 4 - fevereiro de 2011



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CONVERSA DE MESA DE BAR

Certa vez, ao ouvir um comentário elogioso do Poeta Jucá Santos sobre a minha humilde pessoa, fiz-lhe a seguinte septilha (ou redondilha maior):

Meu amigo Jucá Santos ,
bom irmão que Deus me deu,
tudo que escrevi na vida
não vale um verso seu.
Você sim é um poeta
de rima sempre correta,
muito melhor do que eu.
(Zé Reinaldo – Maceió/AL)

Mais do que depressa, de improviso, Jucá Santos fez a seguinte pérola:

Meu amigo Zé Reinaldo,
eu não sei se é modéstia
ou se apenas uma réstia
de luz que em você se vê ...
Porque se existe um poeta
de rima rica e correta,
esse poeta é você. .
(Jucá Santos – Maceió/Al)

Jucá Santos é, em minha opinião, o maior sonetista de Alagoas. Diz ele que não faz repentes, mas o que pude comprovar nas nossas conversas de mesa de bar foi justamente o contrário.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.125)

Praça do Centro de Santana do Matos/RN
Uma Trova Nacional

Discórdias, sonhos frustrados,
e as mágoas não resolvidas,
são os nós não desatados
das cordas das nossas vidas...
(JOSÉ VALDEZ MOURA/SP)

Uma Trova Potiguar

Ó coqueiro pequenino,
que tanta água nos deu!
Que ironia o teu destino:
por falta d'agua morreu!!!
(PROF. GARCIA/RN)

Uma Trova Premiada

2006 > Pitangui/MG
Tema > TERÇO > Venc.

Reze seu terço baixinho,
sem atrair atenções,
que o Deus que escuta o sozinho
é o mesmo das multidões.
(ALTIVO CINTRA/MG)

Simplesmente Poesia

MOTE.
E a terra caiu no chão.

GLOSA:
Plantei um pé de roseira
dentro de uma lata rasa,
pendurei detrás de casa
numa vara da biqueira,
numa noite de fogueira
na véspera de são João,
o danado de um barrão
pensando que era batata
furou o fundo da lata
e a terra caiu no chão.
(CHICO DE SOUSA/PB)

Uma Trova de Ademar

Para alcançar a pujança,
basta-me ter, sem fadigas,
a força e a perseverança
do Trabalho das formigas!...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Hoje eu pergunto sem ira:
porque deixaste, meu Deus,
os brinquedos de mentira
parecerem que eram meus?...
(MILTON NUNES LOUREIRO/RJ)

Estrofe do Dia

Eu por ser infantil caí nos laços
das promessas do mundo deprimente
leiloei o meu corpo adolescente
nos bordéis frequentados por ricaços.
Atirei-me na noite dos devassos
paguei caro por minhas travessuras.
Pela boca das trevas mais escuras
meu destino fatal foi engolido,
o silêncio da noite é quem tem sido
testemunha das minhas amarguras.
(GERALDO AMÂNCIO/CE)

Soneto do Dia

– Rogaciano Leite/PE –
A BARCAÇA

O mar soluça e geme. A onda bravia
num véu de espuma contra o céu se envolve
e o leito enorme d’água se revolve
em convulsões de dor e de agonia.

Ao longe, uma barcaça fugidia
seu vulto branco às longas praias volve
como a garça cansada que resolve
tocar da costa a areia luzidia...

Eu vou como a barcaça em desalento,
que as águas corta por mercê do vento
e após mil temporais toca no porto...

Também após mil temporais da sorte,
do mar da vida para o cais da morte
meu coração vai navegando morto!

Fonte:
Ademar Macedo

Adélia Bezerra de Menezes (Do Poder da Palavra)

Sheherazade e o Sultão.
Bonecas criadas por Corinne Thorner
Em "As 1001 Noites", Sheherazade vence a morte e o poder, propiciando a cura através de um discurso vivo, corpóreo

“As 1001 Noites" em geral nos chegaram através de antologias infantis. Conhecemos as Histórias: "Simbad, O Marujo", "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa”, "O Pescador e o Gênio” etc. Mas tais antologias acabam por privar o leitor do plano geral da obra - a estrutura de encaixe dos contos, embutido uns dentro de outros- e, sobretudo, da poderosa figura da Sheherazade, que vence a morte através da Literatura. Trata-se da maior apologia da Palavra, de que se tem conhecimento. E analisar o papel da contadeira de histórias significará abordar o problema das relações da mulher com a Literatura, da mulher com a Palavra, da mulher com o símbolo e com o corpo.

Sheherazade é personagem da narrativa que inicia e termina "As 1001 Noites", servindo-lhes de moldura; é a partir dela que se dará o pretexto para os demais contos. Trata-se da história de Xariar, sultão de todas as Índias, da Pérsia e do Turquestão, que descobre, por intermédio de seu irmão, imperador da Grande Tártaria, que sua mulher o traía. E ele toma conhecimento disso no mesmo momento em que o irmão lhe revela que também fora traído pela mulher. A conclusão é inevitável: "Todas as mulheres são naturalmente levadas pela infâmia, e não podem resistir à sua inclinação". O sultão, no estupor da mais funda desilusão afetiva, propõe ao irmão que ambos abandonem seus Estados e toda a sua glória, e saiam pelo mundo para, em terras estranhas, melhor esconderem seu comum infortúnio. O irmão aceita, com a condição de que voltariam se encontras sem alguém mais infeliz do que eles próprios. Seguem caminho, disfarçados, e chegam à beira-mar, onde são surpreendidos por algo que parece um maremoto. Sobem a uma árvore, escondem-se entre os galhos, e presenciam uma cena qual um gênio (um djinn) tira do mar uma grande caixa de vidro, fechada a quatro chaves, onde estava encerrada uma bela mulher, quase adolescente, que ele libera da caixa. Era a sua mulher, que ele roubara para si no dia de suas núpcias, e que mantinha presa. Declarando-se cansado, o gênio diz à mulher que gostaria de deitar a cabeça nos seus joelhos, e adormece.

Os dois irmãos acabam por ser descobertos no meio das ramagens de seu esconderijo pelos olhos perscrutadores da jovem. Ela retira delicadamente a cabeça do gigante do colo, vem para baixo da árvore e propõe aos dois irmãos que tenham relação com ela. Atemorizados pela presença do gênio, eles inicialmente se recusam, mas ela os força exatamente com o argumento de que, se não dormissem com ela, ela acordaria o gênio. Obrigados, eles satisfazem sua vontade, primeiro o mais velho, depois o caçula. Ao fim, a jovem pede a cada um o seu anel. E diante de seus olhos estupefatos, abre uma pequena bolsa que continha outros 98 anéis. Conta que esses anéis foram dos homens que já a tinham possuído. "Com os dois de agora, diz ela, completo uma centena". "Uma centena de amantes, malgrado a vigilância ciumenta e a precaução do gênio, que me quer só para si". Ele se esmerava em encerrá-la numa caixa no fundo do mar, mas ela não deixava de enganá-lo... “Vede que, quando uma mulher tem um desejo, não há marido que possa impedir a sua execução" - dizendo isso, ela se senta e coloca de novo a cabeça do gênio, que continuava a dormir, tranqüilamente em seu colo.

PLANO

Os dois irmãos voltam pelo caminho de onde tinham vindo, comentando que nada no mundo ultrapassava a malícia das mulheres, e que, nesse assunto, até aquele gênio de poderes sobrenaturais era mais infeliz do que eles. Convencidos da perfídia feminina, decidem retornar cada um para o seu reino. O sultão Xariar formula um plano, que lhe permitiria manter sua honra inviolavelmente preservada, sem que fosse obrigado a prescindir de mulher: consistia em dormir a cada noite com uma virgem, e no dia seguinte, ao acordar, mandar matá-la, pelo seu grão-vizir. E escolheria uma nova para a noite seguinte, e assim por diante. A cada dia, uma jovem casada e morta. E o início dessa prática trouxe à cidade a mais intensa das desolações.

Ora, o grão-vizir, que devia ao sultão a mais cega obediência e que malgrado sua vontade, a cada noite apresentava ao sultão um nova virgem, e a cada manhã, malgrado sua repugnância, era obrigado a matá-la, tinha duas filhas: Sheherazade e Dinerzade. E assim que, textualmente, é apresentada Sheherazade, na versão de Galland:

"... tinha uma coragem maior do que se seria de esperar do seu sexo, e um espírito de uma admirável penetração. Tinha muita leitura e uma memória tão prodigiosa, que nada lhe escapava, de tudo que ela "havia lido. Aplicara-se com todo sucesso ao estudo da filosofia e da medicina, e das belas-artes; e fazia versos melhores que os mais célebres poetas do seu tempo. Além disso, era provida de uma grande beleza, e uma muito sólida virtude coroava todas essas belas qualidades." (G., vol. 1, pág. 35)

Dessa descrição ressaltam primeiro as qualidades "intelectuais" que fazem de Sheherazade uma mulher extremamente inteligente e que se cultivava (lia, estudava, fazia poesia). Mas suas características propriamente físicas -que não são dadas em detalhe, e vêm depois, e só depois, das intelectuais, também não são descuradas: trata-se de uma bela mulher.

Pois bem: essa mulher altamente interessante que parece ser Sheherazade, comunica um dia ao grão-vizir seu pai que queria tornar-se mulher do sultão:

"Desejo por um termo a essa barbárie que o sultão exerce sobre as famílias desta cidade. Quero dissipar o temor que tantas mães têm de perder suas filhas de uma maneira tão terrível. (...) Se eu perecer, minha morte será gloriosa; se tiver êxito, restarei um serviço importante minha pátria."

E combina com a irmã seu plano: Dinerzade deveria deitar-se no quarto nupcial (sob pretexto de que, ainda uma vez, elas pudessem passar uma noite próximas), e uma hora antes do romper do dia, deveria acordar Sheherazade e solicitar-lhe que contasse uma de suas histórias. É o que se passa: nessa noite, depois de ter dormido com o sultão, que a desvirgina, Sheherazade é despertada pela irmã, que lhe pede uma história -talvez pela ultima vez. Depois de obtida a permissão do sultão, Sheherazade começa a narrar. E no auge do suspense, quando a ação esta para ser definida e a curiosidade do seu real ouvinte aguçada, vendo que a aurora se anunciava, suspende sua narrativa:

"Sheherazade, nesta passagem, percebendo que era dia e sabendo que o sultão se levantava bem cedo para fazer suas preces e ir gerir seus negócios de Estado, parou de falar." (G., vol. 1, pág. 46).

Diante da observação da irmã, de que essa história era maravilhosa, Sheherazade lhe afirma que a continuação seria mais maravilhosa ainda e que, se o sultão quisesse deixá-la viver mais um dia, que lhe desse permissão para acabá-la na noite seguinte. Sheherazade ganha um dia de vida. Na segunda noite, quando a irmã a acorda, Sheherazade "satisfaz a curiosidade do sultão"; acaba a história iniciada e começa uma nova, interrompida no auge do suspense, ao romper a aurora: e assim, noite após noite, o sultão declara desejar ouvir a história iniciada na véspera, e a deixa viver por mais um dia. Não há garantia, nem Sheherazade a pede: ela consegue, à prestação, dia a dia, ganhar um dia de vida. Ela aceita assumir o risco absoluto: arrisca perder a vida, para recuperar ao sultão uma imagem feminina, perdida pela infidelidade. Há algo de épico no seu gesto: uma mulher que, através da Palavra, salva a raça feminina.

E quando chega a milésima primeira noite, o sultão se rende: "1001 noites tinham transcorrido nesses inocentes divertimentos; elas tinham mesmo ajudado muito a diminuir as prevenções iradas do sultão contra a fidelidade das mulheres; seu espírito tinha-se abrandado; ele estava convencido do mérito e da sabedoria de Sheherazade; lembrava-se da coragem com a qual ela se tinha exposto voluntariamente a tornar-se sua esposa, sem apreensão quanto à morte a que se sabia destinada no dia seguinte."

E diz o sultão: "Bem vejo, amável Sheherazade, que sois inesgotável em vossas narrativas; há muito me divertis; pacificaste minha cólera, e eu renuncio de bom grado à lei cruel que eu me tinha imposto... Desejo que sejais considerada como a libertadora de todas as moças que deveriam ser imoladas ao meu justo ressentimento". (G.vol.3,pág. 439).

MEMÓRIA

Isso, na versão de Galland. Na versão de Mardrus (1) (por muitos considerada a "tradução obscena" de "As 1001 Noites"), as coisas são apresentadas de uma maneira bem mais concreta. Em Mardrus, Sheherazade apresenta ao sultão ao fim da 1001ª noite, os filhos que, ao longo desses quase 3 anos, ela tivera com ele. A relação sexual entre o sultão e Sheherazade, que Galland omite, Mardrus explicita: ganha aqui inequívocas provas, ganha concretude.

Mas voltemos um instante à caracterização inicial de Sheherazade. Se há algo que a tipifica sobremaneira, é sua prodigiosa memória. Em "As 1001 Noites" podemos vislumbrar as ligações da narrativa com o infinito, da Memória com o infinito aspecto esse que se tornará bastante evidente se formos situar a Memória na sua dimensão mítica. Com efeito, no Panteão grego, a Memória, "Mnemosyne", é uma deusa, filha de Urano e de Gaia, irmã de Chronos e de Okeanos - a memória, filha do céu e da terra, irmã do tempo e do oceano: todas, metáforas de infinitude...

E a Memória é para os gregos a mãe das Musas, mãe das divindades responsáveis pela inspiração. ''Mnemosyne'' preside à função poética. A própria sacralização da Memória (os gregos fizeram dela uma divindade!) revela, por si só, o alto valor que lhe é atribuído numa civilização de tradição oral, como foi, entre os século 12 e 8, antes da difusão da escrita, a da Grécia.

Essa deusa feminina tem tudo a ver com Sheherazade. "Mnemosyne" revela as ligações obscuras entre o rememorar" e o "inventar": a musa inspiradora da invenção poética é, ela própria, filha da Memória. Sheherazade, a contadeira de histórias, não era apenas uma espécie de repositório vivo das histórias de seu povo, não apenas aquela que "transmitia" histórias contadas por outros; na sua caracterização inicial, fora-nos dito que ela também escrevia "versos melhores que os dos mais célebres poetas seu tempo". Ela também criava.

E assim, noite após noite, Sheherazade vai, com a ajuda da Memória, conduzindo adiante o fio de suas histórias: vai tecendo as narrativas. Não é um fio linear: é uma teia, uma trama. Infindável, infinita. Uma história dará margem a uma outra história que, embutida dentro dela, desembocará numa terceira, que contém em si o germe de uma quarta etc. etc. Na acepção do último tradutor ocidental de "As 1001 Noites", Khavam (saiu sua tradução completa, na França, em 1986), Sheherazade é "La Tisserande .des Nuits" -a tecelã das noites.

MULHER TECELÃ

Evidentemente, essa trama, essa rede narrativa eram frutos da astúcia de Sheherazade: serviam para enredar o sultão. Essa trama narrativa (trama quer dizer também procedimento ardiloso!) no limite significava... tramóia: a astúcia, velha arma dos fracos contra os fortes. E arma feminina, muitas vezes.

Sheherazade, a astuciosa, é a mulher que tece narrativas intermináveis, e que nesse fio prende o seu homem e vence seu poder. E nessa linha de astúcias, e de fios, e de tramas, há toda uma tradição (é verdade que de outra cultura, mais uma vez, a grega) de mulheres fiandeiras (2). Penso sobretudo em Penélope, de quem já se disse que é tão astuciosa quanto seu marido, o astuto Ulisses, tecendo infindavelmente o manto com o qual afastará os pretendentes à sua mão, enquanto espera a volta do seu homem. Mas há também Ariadne, que fornece a Teseu o fio com que ele enfrenta o Labirinto; e Pandora (a primeira mulher), tecelã, que aprendeu a arte das fiandeiras com a deusa Atena, cujo epíteto é exatamente Atena Penitis, a "tecelã"; e Aracnê, que desafia a deusa Atena na arte da tapeçaria e acaba transformada em aranha. E há as Parcas, que tecem a trama dos destinos humanos. Todas, mulheres. Por que é sempre feminina a personagem que lida com o fio? Num estudo sobre a Feminilidade (3), Freud tece uma engenhosa explicação: a arte da tecelagem teria sido uma invenção de mulheres, inspirada pelo pudor feminino. Com efeito, o pudor, diz ele, teria como finalidade primitiva dissimular os órgãos genitais, dissimular a fenda que existe no sexo feminino:

"Parece que as mulheres fizeram poucas contribuições para as descobertas e invenções na história da civilização; no entanto, há uma técnica que podem ter inventado traçar e tecer. Sendo assim, sentir-nos-íamos tentados a imaginar o motivo inconsciente de tal realização. A própria natureza parece ter proporcionado o modelo que essa realização imita, causando o crescimento, na maturidade, dos pelos pubianos que escondem os genitais. O passo que faltava dar era enlaçar os fios, enquanto, no corpo, eles estão fixos à pele e só se emaranham."

Mas voltemos a Sheherazade e Penélope, astuciosas e fiéis. Trata-se, aqui, do mesmo tema da fidelidade. Não nos podemos esquecer de que, na história de Sheherazade, é a fidelidade que está em jogo: o desígnio cruel que o sultão se havia imposto, de que sua mulher por uma noite fosse morta ao romper da aurora não tem outro objetivo senão preservar, ainda que à custa da morte, a fidelidade feminina. (E ao mesmo tempo, como veremos mais adiante, tal desígnio impedia-o de amar vedava ao sultão o amor: matando a mulher com quem dormia a cada noite, impedia-se de relacionar-se em continuidade, de estabelecer vínculos).

Penélope/Sheherazade Uma tece infindavelmente o manto, dia após dia, no meio dos príncipes, e sua fidelidade é condição para o reencontro; outra tece infindavelmente, noite após noite, teia de sua narrativa: sempre em suspense, sempre na terminada. Terminá-la, seria a morte.

Penélope: a fidelidade por um fio. Sheherazade: a vida por um fio. A falta de término, em ambas, é uma metáfora do infinito. Em ambos o casos, na tecelagem que praticam, é a fidelidade que está em questão. No caso de Penélope, a trama feita desfeita é seu ardil, para afastar os pretendentes reservar-se para a volta de Ulisses. No caso de Sheherazade, a construção de su teia narrativa não apenas ardil para ganhar mais um dia de vida, mas seu fio narrativo refaz, ponto a ponto, os farrapos do coração do sultão, dilacerado pela traição feminina.

Sheherazade tece o tecido de sua história, conduz o fio da narrativa. A trama da narrativa não é um fio; é uma teia, com todas as suas ramificações, e nessa rede ela enreda o sultão. Não por acaso que ela é a imagem mesma da sedução.

Penélope: aquela que tece. Seu próprio nome (em grego, Penelopéia) revela sua vocação: do grego "pene", fio de tecelagem, e, por extensão, trama, tecido (daí nosso pano do latim pannus). E c substantivo grego "penelopéia" significa: dor. Tudo se explica quando pensamos que ela vivia na nostalgia (= dor do retorno) de Ulisses, e que o pano que ela tecia (que tem a ver com a morte: era uma mortalha para Laertes, o pai do seu marido) era garantia da sua fidelidade, como que vedava o acesso de sua sexualidade aos pretendentes que a assediavam:

"Então, de dia ela tecia a grande tela e de noite, desfazia a sua obra, à luz das tochas. Foi assim que, durante três anos, ela soube esconder sua astúcia e enganar os Aqueus" ("Odisséia", cap. 24).

ASTÚCIA

Penélope, Sheherazade uma tece de dia, outra tece de noite. Três anos: aproximadamente 1001 noites. Fidelidade e sedução articuladas Em ambas, uma mulher vence o poder masculino. Qual é, exatamente, a astúcia de Sheherazade?

A primeira resposta é que Sheherazade não apenas joga com a imperiosa necessidade de ficção que habita o coração de cada homem, mas teria inventado também a técnica do suspense: inicia uma narrativa aguça a curiosidade de seu ouvinte e... não a satisfaz - naquela noite. O desenlace seria narrado na próxima noite, se o sultão lhe concedesse mais um dia. Aos poucos, vão sendo introduzidas referências às reações do sultão, e, especificamente, à sua curiosidade. Assim termina, por exemplo, a noite 33:

Sheherazade preparava­se para prosseguir seu conto; mas, percebendo que era dia, interrompeu sua narrativa. A qualidade dos novos personagens que a sultana acabava de introduzir em cena tendo aguçado a curiosidade Xariar, e deixando-o na espera de algum acontecimento singular, o príncipe esperou a noite seguinte com impaciência" (G., vol. 1, pág.25)

Ou então: "O sultão, persuadido de que a história que Sheherazade tinha a contar seria o desenlace das precedentes disse consigo mesmo: “ É preciso que eu me conceda o prazer completo."Levantou-se e resolveu deixar viver ainda este dia a sultana". (G., vol. 1, pág. 216).

Satisfazer a curiosidade, para o sultão, significa prazer. Postergá-la, significa cultura. Pois uma das coisas que diferenciam o homem do animal é exatamente isso: a capacidade de postergar a realização do prazer. E assim temos a curiosidade do sultão extremamente bem administrada por Sheherazade, com sua técnica de suspense. E os textos acima provam o quanto a qualidade narrativa de suas histórias, sua qualidade literária, portanto (a saber: introdução adequada de novos personagens; previsão de acontecimentos singulares; preparação cuidada do desenlace) conta.

E o interessante é que a curiosidade está presente em dois níveis, em "As 1001 Noites": nesse primeiro nível, da "macro-estrutura", na história que serve de moldura é a curiosidade que fundamenta o adiamento da execução da sultana. Mas também, ao nível das histórias contadas, entre os muitos motivos recorrentes nas narrativas de "As 1001 Noites", esse motivo da curiosidade adquire grande importância, dado seu estatuto de desencadeador das ações. Curiosidade necessidade imperiosa de conhecer. Aguilhão do saber por experiência. Haveria que se fazer um estudo antropológico da curiosidade, e do papel que ela desempenha em várias religiões e mitologias: desde a curiosidade de Eva, atiçada pela serpente, na narrativa mítica do Paraíso, tal como aparece no "Gênesis" ("Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do Bem e do Mal não comerás..." E o resto a gente sabe: a queda, a expulsão do Éden, o Paraíso Perdido...), passando pela curiosidade de Pandora, que abre a fatídica caixa de males que se espalharão por toda a terra, só restando no fundo da caixa a esperança...; até a curiosidade do curumim que abre o coco de tucumã que encerra noite, fazendo com que a escuridão se espalhasse pelo mundo, como na lenda indígena brasileira. Sempre a curiosidade, com o que ela representa de fálico e faustico, de motor do progresso e de propulsora do espírito humano, mas também com o que ela comporta de fragilidade: deixar-se vencer pela curiosidade significa "sucumbir a uma fraqueza", cair em tentação. Como naquela história que Sheherazade conta ao sultão, do moço a quem foram franqueadas 99 salas de um castelo, com todas as suas delícias; mas vedada a abertura da 100 ª porta: premido pela curiosidade, ele a abre, e ai começa a sua perdição. Mas sobretudo, em vários contos de "As 1001 Noites" (como "O Comerciante e o Gênio" ou "História dos Três Dervixes e das Cinco Damas de Bagdá", e muitas outras), é a curiosidade por uma narrativa a ser feita por uma personagem que lhe salva a vida, inicialmente suspendendo a execução da sentença e, finalmente, anulando-a. Assim, o mesmo elemento que se encontra, importantíssimo, a nível da estrutura geral da obra, comparece no detalhe, em numerosos contos.

E Sheherazade, o que faz é manipular a curiosidade do sultão. No entanto, ao longo das 1001 noites processasse uma evolução. Considera-se Sheherazade como a especialista do suspense. Contudo, isso é só inicialmente verdade: ao longo de suas tantas noites de contadeira de histórias, ela abandona o suspense, chegando a levar a termo, ao romper da aurora, as suas narrativas. Mas acena com a próxima... Ela abandonará o recurso do suspense - que tem algo de um golpe mais ou menos enviesado - um discursus interruptus- chegando a terminar os contos na mesma noite em que os iniciara. E mesmo prescindindo do recurso do suspense, o sultão a deixará viver, mais um dia.

E aqui está a segunda a resposta para a pergunta "em que consiste a astúcia de Sheherazade": na realidade, ela lida é com o Desejo. E todos sabemos que o Desejo não tem um objeto que o aplaque; uma vez cumulado, ele ressurge, desperto do outro, e assim sucessivamente. Não tem objeto que o supra, que o satisfaça, que o cumule. O que é que o sultão queria? Uma nova de história, e por isso Sheherazade viveria mais um dia, e depois outro, e outro. Ela não tenta obter dele, logo de do início, que lhe poupe a vida para sempre: consegue dele, a cada dia, que lhe poupe a vida por aquele dia. Mas ele, também, o sultão, daria sentido a mais um dia de sua existência, na espera/expectativa de algo que o plenifique. A função de Sheherazade era alçar sua vontade, tendê-la para algo por vir. Ela age no sentido de acutilar o Desejo, de atiçá-lo, de só ilusoriamente aplacá-lo... por uma noite. Uma vez supostamente aplacado, ele renascerá. O objeto do Desejo está sempre além, sempre adiante, visa sempre um além que escapa: é isso que nos conta a história de Sheherazade e do sultão de todas as Indias.

E o mundo do Desejo é o mundo do Id, mundo da noite, da magia e da fantasia. O dia que surge significa que a voz de Sheherazade deve-se calar; é de dia que se realizaria sua execução. Há uma fórmula quase que ritual, que esconde o fio narrativo de Sheherazade: quando rompe o dia, ela se cala, e o sultão vai "cumprir seus deveres" de chefe de Estado. Há aí um confronto entre o princípio do prazer e o princípio de realidade: o princípio do prazer cessa com a luz do dia, quando se impõe a realidade, com o seu cortejo de opressões. As noites são para as histórias e para o amor; os dias são para o trabalho (e para a morte)

PALAVRA

Referi a situação (presente tanto a nível das histórias que Sheherazade conta, quanto naquela da própria sultana, e que serve de moldura às demais) em que uma vida é trocada por uma narrativa. Isso significa um extraordinário apreço pela palavra. As vezes esse apreço é expresso materialmente. Numa das histórias que Sheherazade conta ao sultão ("A História de Ganem"), por exemplo, registra-se o seguinte:

"Ele [o califa] achou esta história tão extraordinária que ordenou a um famoso historiador que a escrevesse, em todos os detalhes. Ela foi em seguida depositada no seu tesouro, de onde várias cópias tiradas deste original a tornaram pública." (G., vol. 2, pág. 420)

As histórias excelentes são guardadas no tesouro real! Estamos numa civilização em que, literalmente, a palavra vale ouro, em que a história narrada é tesouro.

E ainda, a palavra aqui é mágica. Já repeti várias vezes que, através da Palavra, Sheherazade vence a morte e o Poder. Sheherazade, a mulher, instaura um novo tipo de poder. A força da Palavra radica na magia. A palavra aqui transforma -como no curandeirismo, na magia, na religião... e na psicanálise. O conto "Ali-Babá e os 40 ladrões", por exemplo, é expressivo disso: trata-se de uma palavra mágica, palavra eficaz, que tem o poder de remover um rochedo, o poder de fazer abrir a entrada da gruta onde os ladrões guardam seus tesouros: "Abre-te Sésamo". Ali-Babá a guarda na memória, com cuidado e respeito, e ela se torna um instrumento de força na sua boca. Mas seu irmão, o invejoso e insolente Cassim, se esquece da palavra certa, e tenta outras, que não têm, no entanto, a força mobilizadora da palavra mágica. Da palavra transformadora, que remove rochedos. Ele consegue penetrar na gruta dos ladrões, mas depois não consegue sair:

“... acontece que ele se esquecera da palavra necessária (...) e, em lugar de "Sésamo", diz "abre-te Cevada"; e espanta-se ao ver que a porta, longe de se abrir, permanece fechada. Nomeia vários outros nomes de grãos, diferentes daquele que era necessário, e a porta não se abre". (G., vol. 3, pág. 247).

Ele se esquecera da palavra certa, da boa palavra acaba perecendo às mãos dos ladrões, que o pilham preso dentro da gruta.

Pois bem, há algo de mágico na palavra, na história do rei Xariar e da bela Sheherazade, que consegue demover seu coração de pedra. A tentação de um paralelo com a psicanálise é bastante grande: essa situação extraordinária em que a Palavra (aquela que é preferida pelo paciente, e aquela que é ouvida por ele) é palavra eficaz: provoca alterações, transforma aquele que a recebe. Restaura-se aqui o poder arcaico e mágico da Palavra.

O poeta, o mago e o psicanalista: aqueles que constroem coisas com a palavra, que alteram a realidade, modificam a essência profunda do ser. E ao lado poeta, do mago e do psicanalista, a mãe, que conta histórias, a mulher.

A mulher contadeira de histórias: sua influência foi reconhecida por todos aqueles que, desde a Antiguidade, se preocuparam com o problema da eficácia da Palavra, da força transformadora da palavra:

"Por conseguinte, teremos de começar pela vigilância sobre os criadores de fábulas, para aceitarmos as boas e rejeitarmos as ruins. Em seguida, recomendaremos às mães que contem a seus filhos somente as que lhes indicarmos e procurem amoldar por meio delas as almas das crianças com mais carinho do que por meio das mãos fazem com o corpo." ("República", livro 1 2,377b).

O grifo, evidentemente é meu, realça a importância extrema que Platão atribui às narrativas: capacidade de moldar, de plasmar almas. Não seria exatamente isso que Sheherazade faz com o sultão? Ela plasmou, moldou sua alma, "abrandando o seu espírito".

Jeanne Marie Gaguebin, num artigo publicado no Folhetim (4), articula essa passagem de Platão a um texto de Walter Benjanim, que se intitula, exatamente, "Narrar e Curar" (5). Além da ligação entre a fala e o gesto, entre a voz e a mão (a que retornarei mais adiante), o texto de Benjamin aponta, de uma maneira extremamente pertinente, para a cura pela narração (não fosse esse o seu título!) - que é, como todos sabemos, apanágio da psicanálise ("talking cure') e de certas técnicas de cura xamanísticas.

Pode-se considerar o sultão doente, ferido na sua afetividade, na sua capacidade amorosa, pela traição feminina; pois bem, nessas longas noites de história, Sheherazade vai exercendo junto a ele um longo processo terapêutico, analítico, pontuado, a cada manhã, pela interrupção com que ela o remetia á vida real. Ao fim das 1001 noites, o sultão se declara "curado", abandona o "sintoma" e se dá alta: "Vós pacificastes minha cólera, e eu renuncio de bom grado e, vosso favor, à lei cruel que eu me tinha imposto". E Sheherazade cessa suas narrativas.

Num processo analítico, o paciente fala; ao analista, cabe a escuta. Ele também fala, interpretando; mas o que funda a psicanálise é o discurso do analisando. Pois bem, aqui se trata de um processo invertido: é a escuta que é transformadora, é a escuta que cura o sultão.

Falei da psicanálise e também aludi a certos processos de cura xamanistica, que, aliás, estabelecem com a psicanálise mais de um vínculo. Lévi Strauss relata, na "Antropologia Estrutural" (no capitulo "L'Efficacité Symbolique") um procedimento dos índios Cuna do Panamá, por ocasião dos partos difíceis: o xamã canta para a mulher grávida, diz palavras ao seu ouvido, e assim o nascimento da criança é facilitado. Trata-se, como observa o antropólogo, "de uma medicação puramente psicológica, uma vez que o xamã não toca no corpo da paciente, nem lhe administra remédios; mas, ao mesmo tempo, é colocado diretamente e explicitamente em causa o estado patológico e seu centro: diríamos antes que o canto constitui uma manipulação psicológica do órgão doente, e que é desta manipulação que a cura é esperada' (6). Manipulação psicológica: metáfora expressiva para o processo psicanalítico. E também para aquele processo em que as narrativas, como queria Platão, moldam as almas, "com mais carinho do que por meio das mãos fazem com o corpo". Mas voltemos a Lévi Strauss. Diz ele que o xamã fornece à sua doente uma 'linguagem: "E é a passagem a esta expressão verbal (que permite, ao mesmo tempo, viver sob uma forma ordenada e inteligível uma experiência atual, mas sem isso, anárquica e inefável) que provoca o desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização, num sentido favorável, da sequência da qual a doente sofre o desenvolvimento" (pág. 218).

O sultão se encontra crispado na sua ira de traído, bloqueado na sua capacidade de amar: Sheherazade oferece a ele uma linguagem, na qual esse estado pode exprimir-se. Sheherazade fala, e o sultão escuta. É como se a perturbação afetiva grave, de que fora acometido, na sua ira de traído pelas mulheres, só fosse acessível à linguagem simbólica da poesia e da literatura. E aqui a gente encontra a narrativa restaurada no seu sentido pleno e primordial, de veículo de experiência humana.

Sheherazade oferece ao sultão uma linguagem, um discurso simbólico que possa atingi-lo, por inteiriçado e crispado que ele estivesse na sua incapacidade afetiva. Ela oferece ao sultão o acesso ao mundo simbólico; oferta-lhe uma linguagem, como queria Lévi-Strauss, "na qual podem exprimir-se estados não formulados e, de outro modo, não formuláveis". "Não é portentoso que na noite 602, o rei Xariar ouça da boca da rainha a sua própria história?", pergunta-se Jorge Luís Borges (7) extasiado.

Sheherazade apresenta a Xariar o nível mítico: apresenta-lhe à consciência conflitos que o traumatizaram, bloqueando sua capacidade afetiva, de tal maneira que ele possa lidar com eles. É por isso que ela não expurga de suas narrativas as histórias de adultérios e traições femininas, não omite casos em que as mulheres enganam a seus maridos; ela não faz ao rei uma narrativa "ad usum delphini"; é notável a ausência de censura moral nas suas histórias.

Trata-se aqui, como na psicanálise, (e na cura xamanística), de propiciar uma transformação interior, consistindo numa reorganização estrutural da personalidade: trata-se de recuperar a capacidade amorosa do sultão. Pois bem, Sheherazade, como na transferência, propicia ao sultão que reviva com ela uma experiência afetiva continuada e para isso ela precisava de tempo (a saber: 1001 noites -o tempo de uma terapia?) e assim resgata sua capacidade afetiva.

Falei em paralelo com a psicanálise. Mas trata-se aqui de um paralelismo que, evidentemente, não exclui as diferenças. Pois há em "As 1001 Noites", como aparece em Platão, como sugere W. Benjamin, uma ligação entre a fala e o gesto, entre a voz e a carícia. Não nos podemos esquecer de que as narrativas de Sheherazade se seguiam às suas noites de amor com o sultão e são suas histórias que lhe facultam a possibilidade de dormir próxima noite com ele. É a narrativa que possibilita o encontro futuro. Já se disse que se Sheherazade tivesse oferecido ao sultão só o seu corpo, ela teria sido executada, logo após a primeira noite: foi o que, todas as suas antecessoras fizeram, e todas pereceram. E Sheherazade salva não apenas a si própria e a todas as mulheres em idade de casar do seu povo: ela salva também o sultão: ela o cura de sua ira patológica e assassina, e possibilita a ele uma descendência. A persistir no seu plano cruel e genocida, o sultão se privaria para sempre de amar, e de filhos. Sheherazade oferece a ele o tempo e, junto com as suas histórias, a História; oferece a ele o tempo, e, junto com ele, as coisas todas que dele precisam para se engendrarem: os filhos, a duração do afeto, a permanência de vínculos, o longo processo (analítico) de uma cura. Sheherazade oferece ao sultão um discurso vivo.

Sheherazade ou do poder da palavra. A sultana era uma contadeira de histórias, não em primeira linha uma escritora: ela as contava de viva voz. Aquelas 1001 noites eram marcadas pela cálida proximidade da 'mulher, da mulher na sua inarrável corporeidade. Não podemos esquecer da carga corporal que a palavra falada carrega. Na narrativa oral, a Palavra é corpo: modulada pela voz humana, e portanto carregada de marcas corporais; carregada de valor significante. Que é a voz humana senão um sopro (pneuma: espírito...) que atravessa os labirintos dos órgãos da fala, carregando as marcas cálidas de um corpo humano? A palavra oral é isso: ligação de sema e soma, de signo e corpo. A palavra narrada guarda uma inequívoca dimensão sensorial.

"No princípio era a Ação", diz o Fausto de Goethe. Mas entre a Ação e a Palavra, em "As 1001 Noites" a escolha está feita. "No princípio era o Verbo", parecem dizer-nos elas, retomando o início do texto do mais visionário dos Evangelistas. No entanto, esse texto não para aí: "...e o Verbo se fez carne": restaura-se, assim, a dialética sema/soma, inscrita no cerne da palavra a Palavra é também, inapelavelmente, corpo.

Notas
1. Utilizo aqui basicamente o texto de Antoine Galland (1717), em edição Garnier , 1965, recorrendo também por vezes, ao texto de Mardrus (1899), publicado por Robert/Laffont, Paris, 1985.
2. Cf. Gilbert Lescault Figurées, Défigurées (Petit Vocabulaire de la Féminité Représentée)", Union Générale d'Editions, Paris, 1977, em que, no vocábulo "Fileuses" são elencadas várias mulheres mitológicas que lidam com o fio.
3. Freud: "A Feminilidade", Conferência 33 das "Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise", 1933, vol. 22 das "Obras Completas", Imago, pág. 162. A referência a esse ensaio foi sugerida pela leitura de Gilbert Lescault: "Figurées, Défigurées", op. cit.
4. "Narrar e Curar", Folhetim, S. Paulo, 1 de setembro de 1985.
5. "Erzaehlung und Heilung", in "Gesammelte Schriften", vol. 4, Suhrkamp Verlag, pág. 430.
6. Cf. capítulo "L'Efficacité Symbolique", in "Anthropologie Structurale", Paris, Plon, 1958, págs. 211 e seguintes.
7. Cf. J. L. Borges -"Los Traductores de las 1001 Noches", in "Historia de la Eternidad", Emecé Editores, Buenos Aires, 1953.

Fonte:
Publicado no caderno Folhetim/Folha de São Paulo, em sexta-feira, 29 de janeiro de 1988
Disponível em Revista Virtual Partes. Ano I - Nº9 - dezembro de 2000. http://www.partes.com.br/educacao09.html

Adélia Bezerra de Menezes


Possui graduação em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (1965),

Mestrado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1975) e

Doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1981).

Foi docente de Literatura Brasileira no Leitorado de Romanística da Technische Universität de Berlim,

Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP e na UNICAMP, onde se aposentou.

Atua na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, trabalhando principalmente com: Literatura e Psicanálise, Sonho e Literatura, O "pathos" amoroso na Literatura, Literatura e Sociedade, Chico Buarque e Guimarães Rosa.

Autora de A Obra Crítica de Álvaro Lias e Sua Função Histórica" (Vozes) e "Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque" (Hucitec)

Fontes:
http://www.partes.com.br/educacao09.html
Radio USP