terça-feira, 12 de junho de 2012

Millôr Fernandes (Reflexão Sobre a Reflexão)


Terrível é o pensar.
Eu penso tanto
E me canso tanto com meu pensamento
Que às vezes penso em não pensar jamais.
Mas isto requer ser bem pensado
Pois se penso demais
Acabo despensando tudo que pensava antes
E se não penso
Fico pensando nisso o tempo todo.


Fonte:
Jornal de Poesia

Mia Couto (O Derradeiro Eclipse)


Justinho Salomão era ratazanado pela dúvida sem método. O homem sofria de ser marido, lhe pesavam as frias sombras da desconfiança. A mulher, Dona Acera, é linda de fazer crescer bocas, águas e noites. Devorado pelo ciúme, Justinho emagrecia a pontos de tutano. Lastimagro, carcomido, ele para se enxergar precisava procurar-se por todo o espelho. Justinho fazia comichão às pulgas. Um dia, o padre o avisou à saída da missa:

-  Seja prestável na atenção, Justinho: sua alma é como um fumo que não tem lugar onde caiba- .

Raios picassem o padre que nunca falava direito. O que o sacerdote sabia era do domínio incomum: Acera era demasiado mulher para esposa. Justinho suspeitava mais dos argumentos que dos factos. Seria a esposa mais desleal que um segredo? A resposta era sombra sem luz nem objeto. Em véspera de viagem, a suspeita do marido se agravava. Desta vez, um longo serviço de visitações o vai obrigar a geográfica ausência. Acera recebe, tristonha, a notícia:

-  Quanto tempo você me vai sozinhar?- 

Um mês. A mulher contorce o batom, abana as  mechas. Até uma lágrima lhe crocodileja a pálpebra. O marido ainda mais se aflige perante tanto inconsolo. Será verdade ou conveniência de fingimento? Quem, tão novo, guelra tão ensanguentada, pode se aguentar em guardos de fidelidade? Na véspera de partir, o marido se decidiu certificar em garantia de lealdade. Primeiro se dirigiu à Igreja e solicitou socorro do padre português. O religioso torce as mãos, reticente e, como era hábito, barateou filosofia:

-  Bem, não sei. Para cruzar as pernas é preciso que haja duas...

-  Duas quê?

-  Duas pernas, ora essa.

E prosseguiu desaguando, água em líquidos carreiros. Justinho esperava que o sacerdote o tranquilizasse. Lhe dissesse, por exemplo: vai em paz, você está bem casado, mais anelado que Saturno. Mas não, o padre ondulava a testa de suposições.

-  Não sei, não. Quem mais espreita não é o próprio sol?

-  Explique-se melhor, senhor padre.

-  Quer que seja mais claro? Me responda, então: onde o chão está mais limpo não é em casa de mortos?- 

Justinho não respondeu. Voltou costas e saiu da igreja. Ainda se afastava e a voz irada do padre se faz ouvir:

-  Já sei para onde vais, criaturazita. Vais ter com o feiticeiro! Mas verás o que os meus poderes, aliás os poderes divinos, irão fazer com esse bruxo tropical!- 

Um arrepio ainda atravessou Justinho. Mas ele não toldou passo no caminho para o feiticeiro e pediu que lhe assegurasse. Heresia bater nos ambos lados da porta? Se um mortal tem mais que um deus-pai não pode ter mais que uma crença?

-  Isso não posso. Vontade de mulher está acima dos meus poderes. Posso, sim, destinar castigo nos abusadores. 

-  E como?

-  Hei-de tratar sua casa.

E foi executado o tratamento: uma pequena cabaça à entrada da residência de madeira e zinco. Desrespeitoso que entrasse haveria de sofrer muitas consequências. O marido ainda tem acanhamento na consciência:

-  Eles... eles irão morrer?- 

O feiticeiro ri-se. O que iria suceder eram inchaços e gases, tudo inflando as entranhas do culposo intrometedor. No final dos serviços e depois de saldadas as contas, o feiticeiro hesita no momento da despedida:

-  Você, antes de mim, consultou o senhor padre? E ele o que disse de mim? 

Justinho subiu as omoplatas, fosse um assunto superior a suas competências. O feiticeiro virou costas e se afasta, enquanto comenta:

-  Esse padre ainda vai chorar como a galinha. Conhece a história da galinha que comeu o colar das missangas só para a outra galinha não usar?- 

Passaram-se dias e Justinho lá partiu. A viagem demora mais que ele pretende. Quando regressa, a mulher está à espera dele, à entrada. Vestido do gosto dele, penteada a presente, corpo todo na conveniência do marido. Até o botão cimeiro está desempregado, distraído sobre o decote. Acera, toda ela, está às ordens da saudade dele. Se engolfinham, enredando pernas nos suspiros, confundindo lábios e suores, vidas e corpos.

Cumpridos os compridos amores Justinho se estira na cama, consolado. Fecha os olhos, menino após o seio. Depois, olha para cima e é fulminado por uma visão: dois homens flutuam de encontro ao teto. Estão redondos, insuflados como balões.

-  Mulher quem é aquilo?

-  Que aquilo? 

Levanta-se em gesto de lamina e se espanta ainda mais ao reconhecer os desditosos ditos. E quem eram?  O padre e o feiticeiro. Esses mesmos a que Justinho confiara a guarda de sua esposa. Esses mesmos estavam ali pregados no teto.

-  Vocês, logo vocês?

-  Marido, está falar com quem? 

Gaguejando o marido aponta o teto. A mulher acredita que ele está em ataque de religiosidade, aspirando proximidades com o céu. Justinho insanou-se, epiléctico?

Acera ainda correu atrás do tresloucado marido. Mas o homem, de venta peluda, se eclipsou pelo escuro. Nem demorou: voltou com testemunhas. Fez introduzir uns tantos no quarto e apontou os autores do flagrante. Os outros ficaram, parvos da cara, sem nada vislumbrarem. Só Justinho via os voáveis amantes de sua mulher. E lhe explicam o padre e o feiticeiro não são possíveis ali Eles se ausentaram em breve excursão à cidade. Todos os viram partir, todos lhes acenaram à saída do machimbombo.

Os vizinhos lhe asseguram os bons comportamentos de Acera. Despedem-se, cuidando de o seguir, doente que estava o viajante. Dava até azar ter um desvairado daqueles no lugar. Mesmo o enfermeiro reformado lhe trouxe uns comprimidos de arrefecer o sangue. Justinho aceitou ficar estendido, a apurar descansos. Dava forma à cabeça, ajustava o pensamento à existência.

E todos e tanto insistiram que ele deixou de ver gente suspensa no tecto. Aos poucos se libertou das visões, manufaturas de suas ciumeiras. Noites há em que, de sobressalto, se levanta. Escuta risos. O padre e o feiticeiro se divertem à sua custa? Escuta melhor: não é gargalhada, é um pranto, um pedido de socorro. Incapazes de descer, os homens aprisionados no teto lhe pedem uma aguinha, migalha de entreteter fome e sede. Os pobres já são só ar e osso.

A voz de Acera o traz à realidade: - venha marido, se deite. Se acalme. Não quer dormir comigo? Durma em mim, então. Não me quer atravessar? Me use de travesseiro.  Isso, descanse, meu amor- . E o tempo passava, compondo semana e mais semana. Justinho não melhora. Mais e mais escuta as lamentações dos dois que agonizam dentro das suas paredes.

Até que, uma noite, ele acordou estrebuchando. Não eram já os gemidos dos moribundos mas uma estrangeira calmaria. Olhou por entre o escuro e viu Acera vagueando, o pé pedindo licença ao silêncio. O marido nem se mexeu, desejoso de decifrar a misteriosa deambulação da mulher. Então ele viu que Acera subia para um banco e, com um cordel, amarrava o padre e o feiticeiro pela cintura. E assim, atados como balões, ela os transportou para fora de casa. No quintal, Acera limpou no rosto do padre uma lágrima e beijou a face do feiticeiro. Depois, largou os cordéis e os dois insufláveis começaram a subir pelos ares, atravessando nuvens e extinguindo-se no céu e nas pupilas espantadas de Justinho Salomão.

Nessa noite, os habitantes da vila assistiram à lua se obscurecer naquilo que viria a ser um derradeiro e permanente eclipse.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

Iara Pacini /RS (Poemas Avulsos)


POR QUE AS ESTRELAS NÃO CALAM

 Em silêncio, sigo cansada,
 longa jornada,
 este peso...
 À noite me olho,
 Vejo,
 Sinto,
 Reflito,
 Mergulho em meu grito!
 As estrelas não calam,
 em dizer, às minhas lágrimas,
 calma ao meu coração
 Torturado
 Cansado,
 as batidas em descompasso
 sentimentos em desalinho,
 talhados em dor...
 E ao chegar a noite,
 Procuro,
 Ando,
 Procuro nas emoções vividas
 que me invadem de mansinho...
 um brilho no céu...
 Luzinhas multicoloridas,
 prateadas,
 me ondulo no mar,
 na longa espera,
 e entre os girassóis suspiro
 com sintomas de solidão,
 e tento,
 reinvento
 a espera da eterna renovação
 do tempo.

 VERSOS DESFOLHADOS

 Hoje, desfolhada pela saudade que me tortura,
 vou a tua procura e choro no meu canto.
 De minha melancolia faço versos desfolhados.
 Plantei e guardei beijos, carinhos e afagos que tu me deste.
 Levei tudo para o universo do meu coração
 Tento caminhar e caminhar ate te encontrar,
 pois calada, consumida pela distancia,
 na solidão das horas das minhas recordações,
 fica o amor imenso que tenho por ti
 Saudades doidas
 que me consomem...

 FLORESCER

 Floresço em cada dia...
 na poesia vou buscar o teu encanto,
 a esperança brota,
 me cubro de amor,
 sonhando ao teu lado,
 sentir um pouco de felicidade,
 e enfrento a distância,
 com tristeza,
 sorrio, pra não chorar,
 memorizando emoções queridas,
 numa silenciosa noite.
 Ó meu Deus,
 como te agradeço o amor,
 pois só tu sabias que o meu caminho seria assim,
 e me faço poeta, cantando, na ilusão de escrever
 na linha de tua mão
 TE AMO

O AGASALHO DO AMOR

 Meus pensamentos voam,
 ouvi de longe, muito longe,
 um sussurro tão doce...
 A alegria tomou conta de mim,
 (A saudade deixou-me,
 embalada pela nostalgia).
 me levaou a alcançar a serenidade
 ao logo do dia,
 em silêncio, revejo cenas lindas,
 coloridas ,
 que enfeitaram meu coração...
 nas colinas o verde,
 no céu o azul,
 nas estrelas o brilho dos teus olhos,
 momento concretizado com emoção pura
 com chuvas de carinho,
 (alimento constante),
 agasalhados nesse amor.

DELÍRIOS !

 Quero você:
 Vontade no cio!
 Nessa estação,
 Em meus braços
 Embalando sonhos
 Dançamos até o amanhecer
 Uma valsa arrebatada de amor...
 Enamorada volúpia
 Flama
 Fornalha quente uivando
 Carícias em beijos...
 Sorvidos - ardemos em paixão
 Bebendo da emoção selvagem.
 Delírios puros em plenitude.
 No ápice do reencontro,
 Prazer supremo!

ÊXTASE

 Quero ficar...
 ao teu lado em êxtase,
 sentir a batida louca do teu coração,
 o dialogo mudo de nossos olhos,
 em busca de sol, em carinhos,
 quero diluir-te em temperos ,
 abraços que se entrelaçam,
 palavras murmuradas sobre as ondas do mar
 sentindo emoções fortes,quentes,
 bombeando o elemento de nossas entregas,
 que levaram a nossa alma em tapetes de brilhantes


Fonte:
Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores.

Alcantara Machado (O Inteligente Cícero)


(Menino Cícero José Melo de Sá Ramos)

Dois dias depois da chegada de Cícero ao mundo (garoava) o Diário Popular escreveu: Acha-se em festas o venturoso lar do nosso amigo senhor Major Manuel José de Sá Ramos, conhecido fabricante do molho João Bull e da pasta dentifrícia Japonesa, e de sua gentilíssima consorte Dona Francisca Melo de Sá Ramos, com o nascimento de uma esperta criança do sexo masculino que receberá na pia batismal o nome de Cícero. Felicitamos muito cordialmente os carinhosos pais. O major foi pessoalmente à redação levar os agradecimentos dos carinhosos pais e no dia seguinte o órgão da opinião pública registrou a visita referindo-se mais uma vez à esperteza congênita de Cícero.

Quando o pequeno fez dois anos passou a ser robusto. Quando fez quatro foi promovido pelo Diário Popular a inteligente e mui promissor menino.

Nesse dia Dona Francisca achou que era chegado o momento de ensinar ao Cícero O Estudante Alsaciano. Seis estrofes mais ou menos foram decoradas. E a madrinha Dona Isolina Vaz Costa (cuja especialidade era doce de ovos) foi de parecer que quanto à dicção ainda não está visto mas quanto à expressão Cícero lembrava o Chabi Pinheiro. No entanto advertiu que do meio para o fim é que era mais difícil. Principalmente quando o heróico rapazinho desabotoava virilmente a blusa preta e gritava batendo no peito: Aqui dentro, aqui é que está a França!

Cícero na véspera do Natal de seus cinco anos às sete horas da noite estava entretido em puxar o rabo do Biscoito quando Dona Francisca veio buscá-lo para dormir. Cícero esperneou, berrou, fugiu e meteu-se embaixo da mesa da sala de jantar. Foi pescado pelas orelhas. Carregado até a cama.

Dona Francisca tirou a roupa dele, enfiou-o no macacão e disse:

- Vá dizer boa-noite para papai.

Beijada a mão do major (que decifrava umas charadas do Malho) voltou. E Dona Francisca então falou assim:

- Olhe aqui, meu filhinho. Tire o dedo do nariz. Olhe aqui. Você agora vai pôr seu sapatinho atrás da porta (compreendeu?) para São Nicolau esta noite deixar nele um brinquedo para o meu benzinho.

Cícero obedeceu correndo.

- Bom. Agora reze com a mamãe para Nossa Senhora proteger sempre você.

Rezou sem discutir.

- Assim sim que é bonito. Não meta o dedo no nariz que é feio. E durma bem direitinho para São Nicolau poder deixar um brinquedo bem bonito.

Cícero no escuro deu de pensar no presente de São Nicolau. E resolveu indicar ao santo o brinquedo que queria por causa das dúvidas. Não confiava no gosto do santo não. Na sua cabeça os soldados vistos de manhã marchavam com a banda na frente. E disse baixinho:

- São Nicolau: deixe uma espingardinha.

Virou do lado direito e dormiu de boca aberta. Às sete da manhã encontrou um brinquedo de armar atrás da porta. Ficou danado. Deu um pontapé no brinquedo. E chorou na cama apertando o dedão do pé.

Na véspera do Natal de seus seis anos às sete e meia da noite estava Cícero matando moscas na copa quando o major veio chamá-lo para dormir. Ranzinzou. Choramingou. Quis escapar. Foi seguro por um braço e posto a muque na cama. Dona Francisca já esperava afofando o travesseiro.

- Fique quietinho, meu filho, que é para São Nicolau trazer um brinquedo para você.

Não quis ouvir mais nada. Arrancou os sapatos e foi mais que depressa deixar atrás da porta. Mas depois ficou algum tanto macambúzio. Coçando a barriga e tal.

- Que é que você tem? Mostre a língua.

Com má vontade mas mostrou. Dona Francisca verificou o seu aspecto saudável.

- Vá. Diga para sua mamãe que é que você tem.

- Como o da outra vez eu não quero mesmo.

- Não quer o quê?

- O brinquedo...

Dona Francisca riu muito. Beijou a cabecinha do Cícero. Foi buscar um lenço. Encostou no nariz do filho.

- Assoe. Com bastante força. Assim. De novo. Está bem. Agora me diga direitinho que brinquedo você quer que São Nicolau traga.

- Não.

- Diga sim, minha flor, para mamãe também pedir.

- Não.

- Então mamãe apaga a luz e vai embora. Depois que ela sair o meu filhinho ajoelha na cama e diz bem alto o presente que ele quer para São Nicolau poder ouvir lá do céu. Dê um beijinho na mamãe.

Não ajoelhou não. Ficou em pé em cima do travesseiro, ergueu o rosto para o teto e berrou:

- Eu quero um tamborzinho, São Nicolau! Ouviu? Também um chicotinho e uma cornetinha! Ouviu?

Dona Francisca ouviu. E o major logo de manhãzinha levou uma cornetada no ouvido. Pulou da cama indignadíssimo. Porém o tambor já ia rolando pelo corredor. O chicotinho foi reservado para o Biscoito.

Cícero na véspera do Natal de seus sete anos às oito horas da noite estava beliscando os braços da Guiomar quando Dona Francisca (regime alemão) apareceu na porta da cozinha para mandá-lo dormir. Escondeu-se atrás da Guiomar.

- Depois. mamãe, depois eu vou!

- Já e já!

O rugido do major dai a segundos decidiu-o.

Sentado na cama bebeu umas lágrimas, fez um ligeiro exercício de cuspo tendo por alvo o armário, vestiu a camisola e veio descalço até o escritório beijar a mão do papai e da mamãe. Dona Francisca voltou com ele para o quarto. Sentou-o no colo.

- Você já pôs os sapatos atrás da porta?

Cícero fez-se de desentendido.

- Eu sou paulista mas... de Taubaté!

- Agora não é hora de cantar. Responda.

- Atrás da porta não cabe.

Dona Francisca não podia compreender. Não cabe o quê?

- O que eu quero.

- Que é que você quer?

Cícero começou a contar nos dedos.

- Um-dois, feijão com arroz! Três-quatro...

- Responda!

- Ara, mamãe...

- Diga. Que é?

- Ara...

- Não faça assim. Diga!

Foi barata que entrou ali debaixo do armário?

- Eu quero... Ah! mamãe, eu não quero dizer...

- Se você não disser São Nicolau castiga você.

- Quando é que a gente vai na chácara de titio outra vez?

Dona Francisca apertou os braços do menino.

- Assim machuca, mamãe! Eu quero um automóvel igual ao de titio, pronto!

- Que é isso, Cícero? Um Ford? Pra quê? Você é muito pequeno ainda para ter um Ford.

- Mas eu quero, pronto!

Dona Francisca deixou o filho muito preocupada e foi confabular com o major. Mas o major (premiado com um estojo Gillette no concurso charadístico do Malho) achou logo a solução do problema.

- Tenho uma idéia genial.

Tapou a idéia com o chapéu e saiu. Dona Francisca ninava o corpo na cadeira de balanço louca para adivinhar.

As sete horas da manhã Cícero sem sair da cama encompridou o pescoço para examinar um automóvel deste tamanhinho parado no meio do quarto. Meio tonto ainda deu um pulo e foi ver o negócio de perto. Em cima do volante tinha um bilhete escrito à maquina: Meu querido Cícero. Dentro de meu cesto não cabia um automóvel grande como você pediu. Por isso deixo este que é a mesma cousa. Tenha sempre muito juízo e seja bonzinho para seus pais. (a) S. Nicolau.

Não vê. Cícero soltou dois ou três berros que levantaram no travesseiro os cabelos cortados de Dona Francisca. O major enfiou os pés nos chinelos e foi ver o que havia. Cícero pulava de ódio.

- Mas você não viu o bilhete, meu filhinho? Quer que eu leia para você?

- Eu não quero essa porcaria!

O major encabulou e se ofendeu mesmo. Dona Francisca veio também saber da gritaria.

- Mas então, Cícero! Não chore assim. Você chorando São Nicolau nunca mais traz um presente para você.

- Eu não preciso de nada!

O major já alimentava a sinistra idéia de passar um dos chinelos do pé para a mão. Dona Francisca pelo contrário ameigava a voz.

- Ah, meu benzinho, assim você deixa mamãe triste! Não chore mais.

O major foi se aproximando do filho assim como quem não quer.

- Deixe, Neco. Agradando se arranja tudo.

Do lado de lá da cama o Cícero desesperado da vida. Do lado de cá os carinhosos pais falando alternadamente. Sobre a cama (já com um farol espatifado) o pomo da discórdia.

- São Nicolau é velhinho. não pode carregar um cesto muito grande...

- E depois por grandão que fosse não podia caber um Ford de verdade dentro dele...

- É. E se cabesse...

- Se coubesse, Francisca!

- ... se coubesse São Nicolau não agüentaria com o peso...

- Está cansado, não tem mais força.

Cícero foi retendo a choradeira. Levantou a camisola para enxugar as lágrimas.

- Não fique assim descomposto!

Os últimos soluços foram os mais doídos para engolir. Mas parecia convencido.

- Então? Não chora mais?

Assumiu uns ares meditabundos. Em seguida pôs as mãos na cintura. Ergueu o coco. Pregou os olhos no pai (o major sem querer estremeceu). Disse num repente:

- Se ele não podia com o peso por que não deixou o dinheiro para eu comprar o Fordinho então?

Nem o major nem Dona Francisca tiveram resposta. Ficaram abobados. Berganharam olhares de boca aberta. O major piscava e piscava. Sorrindo. Procurou alcançar o filho contornando a cama. Cícero farejou uns cocres e foi se meter entre o armário e a janela. Fazendo beicinho. Tremendo encolhido.

- Não dê em mim, papai, não dê em mim!

Mas o major levantou-o nos braços. Sentou-se na beirada da cama com ele no colo. Cícero. Apertou-lhe comovidamente a cabeça contra o peito. Olhando para a mulher traçou com a mão direita três círculos pouco acima da própria testa. Depois mordeu o beiço de baixo e esbugalhou os olhos para o teto. Cícero. Dona Francisca sorriu apertando os olhos:

- Veja você, Neco!

- Estou vendo! E palavra que tenho medo!

Dona Francisca não entendeu. E o major então começou a explicar.

Fonte:
Alcântara Machado. Laranja-da-China.

João A. Carrascoza (Estrelas em Greve)


Todas as noites, as mulheres se punham diante da televisão para ver as novelas. Os homens cochilavam no sofá e a criançada brincava com os computadores. Ninguém tinha tempo de olhar para o céu. 

Sem platéia, as estrelas decidiram entrar em greve por tempo indeterminado. A Lua, solidária com as amigas, aderiu ao protesto e também se escondeu.

Foi um fuzuê no mundo inteiro. As galinhas, que dormiam com a estrela-d’alva, perderam o sono e deixaram de botar ovos. As corujas pararam de piar. Os tatus não saíram mais das tocas. Os grilos silenciaram. Os anjos da guarda, que desciam à noitinha para ninar as crianças, perdiam-se no caminho. As damas da noite não abriram mais suas pétalas. No escuro, o vento não enxergava nada e não sabia para onde soprar. 

Os poetas caíram em desânimo e a produção de poesia imediatamente cessou. Os agricultores ignoravam se era ou não a época certa para semear. As marés, desorientadas, subiam e desciam à deriva. 

Então, os homens descobriram que aquilo tinha a ver com o sumiço das estrelas. Chamaram os melhores astrônomos, mas eles não souberam explicar o ocorrido. Convocaram as feiticeiras para resolver o assunto, elas fizeram lá suas mandingas, mas não adiantou nada. A coisa estava realmente preta. 

Até que, numa noite, um homem saiu de casa e se pôs a contemplar o céu na escuridão. 

Lembrou que a mãe lhe ensinara a posição do Cruzeiro do Sul. Outro se juntou a ele e recordou as histórias de Lua cheia, quando aparecia o lobisomem. Um velho ouviu a conversa dos dois e veio contar que, em criança, tinha visto o Cometa Halley. Apareceu uma mulher e comentou que só cortava os cabelos na Lua minguante. Outra mulher falou que, havia alguns anos, vira uma estrela cadente e fizera um pedido. O marido ouviu-a e disse que o pedido era ter o amor dele para sempre. Outro homem contou que lhe nascera uma verruga no dedo porque, quando garoto, apontara para as Três-Marias. Aos poucos, as pessoas foram saindo de casa e cada uma tinha sua história para contar sobre a Lua e as estrelas.

Quanto estavam todos na rua olhando o céu vazio, as estrelas, que os observavam do fundo da noite, apareceram de surpresa, acendendo-se ao mesmo tempo. Foi lindo: parecia uma chuva de gotas prateadas. Em seguida, despontou a Lua, com seu brilho magnífico, como um holofote. 

Aí todos entenderam o motivo daquela greve. E, imediatamente, decidiram em consenso: podiam ver televisão, dormir no sofá e brincar com o computador todas as noites. Mas, de vez em quando, iriam dar uma espiadinha no céu para ver o show das estrelas.

Fonte:
Nova Escola. Contos, fábulas e outros.

Carlos Nader (Trabalho = poesia)


16/05/2008, para a Revista Trip

Por que a civilização ocidental colocou em polos opostos dois conceitos que têm origem na mesma palavra grega?

 É um fato relativamente sabido que a palavra "poesia" vem do grego antigo "poiesis", que também significa "trabalho". Muita gente já refletiu sobre as razões que levaram os fundadores da civilização ocidental a amalgamarem em uma só palavra dois conceitos aparentemente tão diversos. E eu agora me pergunto, aproveitando o tema desta Trip: o que levou a própria civilização ocidental, no estágio em que a vivemos hoje, a apartar os conceitos de poesia e trabalho em polos praticamente opostos?

 A equação poesia = trabalho é simples e fácil de entender. O relâmpago poético depende do suor do poeta para ser comunicado. Poema é obra. E o chavão "90% de transpiração e 10% de inspiração" é perfeitamente compreensível para qualquer mortal. Os problemas começam quando invertemos o sentido da equação e pensamos na ideia de que trabalho = poesia. Para o imaginário pedestre, poeta é justamente aquele que vive de nuvens, aquele que, na definição oficial do Houaiss, é dado a devaneios.

 Mesmo que enganada no particular, já que o poeta é de fato um trabalhador dos mais aguerridos a seu ofício, a sabedoria pública tem lá seu fundamento. No mundo de hoje, poesia e trabalho são vinho e petróleo. A poesia, como disse Mallarmé, quer limpar o mundo lotado de palavras para criar silêncio ao redor das coisas. O trabalho hoje quer criar muitas coisas e lotar o redor delas de palavras. Poesia é a linguagem pela qual expressamos nossa eterna surpresa com a beleza ou com o horror da vida. Trabalho é a linguagem pela qual 90% dos nossos contemporâneos esquecem-se dessa eterna surpresa.

 A labuta diária é anestésica. Para o mal ou para o bem. Mas uma verdade ainda mais inconveniente que aquela do Al Gore é o fato de que, para a maioria das pessoas, trabalho ainda seja sinônimo de insatisfação. E, pior, a falta de trabalho também. Talvez a mais insana das utopias, o mais nefelibata dos devaneios, seja a ideia de que a humanidade possa um dia sair dessa sinuca de bico que envolve sua relação com o ato de trabalhar. Quando é que as propostas de emprego terão como cerne, tanto do lado do empregador quanto do empregado, a ideia de "vocação", palavra que aliás tem como origem o latim vo catio, que justamente significa "proposta", "chamado", "convite"? 

 TRABALHA-SE PARA QUÊ?

 Robert Frost, um dos grandes nomes da poesia americana do século 20, diz que poeta é uma condição, não uma profissão. É demais esperar que um dia cada profissão humana esteja subjugada à condição mais essencial de cada ser humano? Não sei. Exercer uma profissão harmônica com os desejos vocacionais mais íntimos parece um sonho bem distante da maioria das pessoas. É demais então esperar que um dia essa forma imanente de injustiça social seja corrigida? Também não sei. Mas não me parece que estamos no caminho errado, apesar da histeria produtiva deste início de milênio. Se hoje "trabalho" é sinônimo de "insatisfação", há não muito tempo "trabalho" era sinônimo de "escravidão".

 Andamos bem. Para andar mais, é preciso primeiro colocar a pergunta: "Trabalha-se para quê?". Não há uma resposta única. Se em Pirituba trabalha-se mais pela sobrevivência, na Suécia trabalha-se mais pela inserção social, já que a sobrevivência está garantida. Em qualquer lugar, se uns trabalham por dinheiro, outros trabalham pela reputação, pelo poder ou por tudo isso junto. Talvez uma palavra que resuma os desejos e necessidades envolvidos no ato de trabalhar seja "prestígio". Queremos o reconhecimento da sociedade que nos cerca, seja na forma de um depósito na conta, seja na forma de um afago no ego. "Prestígio." É uma palavra que tem origem no latim praestigium, assim como a palavra "prestidigitador". Significa "ilusão". Ilusão?

 É possível que, um dia, toda decisão de trabalho seja baseada menos na ideia daquilo que o mundo quer de cada um de nós e mais na ideia daquilo que de mais íntimo cada um de nós pode dar ao mundo. Nossa vocação. Nesse dia, a vida se tornará mais real. Como a poesia.

Fonte:
Artigo publicado no site de Bernardo Trancoso, http://www.sonetos.com.br/trip.php

Ana Miranda (Desmundo)


O discurso ficcional permite a desestabilização do discurso da história, e as histórias podem, então, ser narradas a partir de um ponto de vista não focalizado pelo último. Se, por exemplo, à história dos primeiros anos de colonização do país o acesso se dá através dos cronistas portugueses, o romance de Ana Miranda lê a história destes momentos a partir de um outro prisma, acompanhando, inclusive, o pensamento da personagem pontilhado de crenças, medos e questionamentos diante do mundo/Desmundo que a ela se apresenta. 

 A literatura passa a traduzir uma história que não se quer imóvel. Através da narrativa de Oribela, o leitor ingressa em formas de ação e de pensamento da época, deparando-se com aspectos tais como existência feminina, religiosidade, nova terra, amor e sexualidade. Por meio do relato da personagem fictícia, torna-se possível pensar no que ela possui de comum com outros indivíduos que viveram no século XVI, que, por sua vez, herdaram sua forma de ver o mundo a partir de estruturas mentais construídas culturalmente. O romance de Ana Miranda, enquanto situação especial de comunicação, se oferece a uma leitura no horizonte da história das mentalidades e aproveita para utilizar as informações que lhe pode oferecer este tipo de história. 

Mais uma vez o intertexto com a história se faz presente em Desmundo e, no discurso de Oribela, ouvem-se as vozes que surgem também quando se consultam livros sobre a história das mulheres na sociedade colonial, sociedade esta que procurava, conforme Mary del Priori, domesticar a mulher no seio da família, privando-a de qualquer poder ou saber ameaçador e regulando seus corpos e suas almas.

Esta normatização se dava através de dois mecanismos poderosos: o discurso normativo da Igreja e o discurso médico. Em Desmundo, os ecos do discurso religioso se fazem ouvir, por diversas vezes, na voz da própria personagem narradora, que permite as vozes de seu pai, da Velha, de Francisco de Albuquerque, de membros da Igreja, a revelarem qual deveria ser o papel feminino. 

Um dos momentos em que se torna perceptível de maneira mais enfática esta questão pode ser apreendido no fragmento textual seguinte: 

“Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem deve jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais deixar os cabelos soltos, mas atados, seja em turbante, seja trançado, não morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar os ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação, nem punho cerrado, que é ameaça. Tampouco a mão torcer, que é despeito. Nem pá pá pá pá nem lari lará. Nem lengalengas nem conversas com vizinho, seja ele quem for, ou cigano, nem jogos nem danças de rua, nem olhar cão preto que pode ser chifrudo, deus te chame lá que ninguém te chama cá, temperar legume com sal, não apagar luz que alumia morto nem deitar as águas fora que é de judaísmo, não pedir favores nem pôr os olhos no vizinho nem o corpo na cama de outro, tem o esposo direito de acusar, para provar inocência a esposa deve lavrar a mão num ferro de arado em brasa. Açoite e língua furada àquela que arrenegar. Os esposos devem dar panos às mulheres, mas só nas festas reais, se lhes oferecer o mercador um bom preço, que eles não façam obra alguma desde o posto do sol até o sol saído e dia de domingo e a viver segundo o capricho dos homens. Aqui do rei. 

 E disse eu, Ora, hei, hei, não é melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou, olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira nem folha de figueira”. 

O fragmento textual pertencente à terceira parte do romance, intitulada Casamento, revela aspectos interessantes que podem ser analisados. Este fragmento desdobra-se em duas vozes diferentes: a da Velha que orienta as jovens próximas do casamento e a de Oribela a questionar sobre tantas imposições. Oribela parece, em determinado momento, encurtar as orientações da Velha, quando, após tantas regras, surge a frase: “Nem pá pá pá nem lari lará”. Percebo as interdições impostas pela Velha como um momento em que a autora recorre às informações extraídas de textos referentes à história das mentalidades para construir seu texto. É significativo observar, por exemplo, a reiteração da conjunção coordenativa aditiva “nem” e do advérbio de negação “não”, para revelar a quantidade de interdições a que uma mulher casada seria submetida. 

Outro aspecto bastante significativo, quanto ao fragmento textual, é a referência à normatização do corpo representada, no texto, pelo fato de as interdições estarem ligadas a partes do corpo, em seqüência: cabelos, beiço, nariz, bochechas, ombros, olhos, punhos, mãos, língua e, por fim, novamente, o corpo todo. Nada pertenceria totalmente à mulher: nem sua alma, nem seu corpo. 

O emprego da maior parte dos verbos no infinitivo revela, ainda, a idéia de atemporalidade, ou seja, as interdições que se declaram a partir do discurso da Velha parecem valer por muito tempo, numa alusão às mudanças lentas estudadas pela história das mentalidades, a história da longa duração. 

 Como é possível perceber, a história vai sendo lida a partir da literatura, com a possibilidade de uma liberdade maior no trato com questões esquecidas pela história tradicional. Zilah Bernd relaciona esta liberdade de que pode desfrutar o texto ficcional à literatura das sociedades pós-coloniais, atentando para o fato de que, nestas sociedades, a literatura terá o papel de suprir os vazios da história oficial, possibilitando que versões populares dos fatos históricos possam se fazer ouvir, versões estas repletas de referências ao imaginário e de muitas outras significações, postura bastante comum na ficção da América Latina. O escritor assume a tarefa do cronista e, além de trabalhar com a informação, trabalha com a possibilidade de reconstruir o imaginário. A vantagem deste tipo de discurso é exatamente a possibilidade de desestabilizar a história oficial, seja através da utilização do ponto de vista descentralizado, seja através da apresentação de questões não abordadas por aquele tipo de história. No romance de Ana Miranda, por exemplo, são apreensíveis as relações intertextuais com o discurso histórico, já a partir do momento em que as epígrafes são cotejadas. Quando a personagem Oribela passa a narrar sua experiência no desmundo, a rede intertextual continua.

A linguagem que permite este discurso intertextual em Desmundo advém, ao que parece, de uma linhagem rosiana. Alguns aspectos presentes na produção literária de Guimarães Rosa surgem na linguagem da personagem narradora, como a revelar a necessidade de compreender a realidade e o mundo, ambos muitas vezes incompreensíveis. A linguagem vai sendo, então, moldada conforme o uso que se quer fazer da língua. 

Davi Arrigucci Jr., quando se detém a observar, em Guimarães Rosa, as relações entre linguagem e realidade, aponta para vários aspectos presentes na linguagem rosiana, especificamente no que concerne ao poético presente em Rosa.

Percebo que muitos dos aspectos apontados por Arrigucci em relação à linguagem de Rosa são utilizados, também, por Ana Miranda, para construir a linguagem de Oribela. 

Arrigucci, ao ater-se ao poético em Rosa, elege traços que caracterizam a linguagem rosiana, estabelecendo, entre o primeiro e o poeta espanhol Góngora, um paralelo. Em meu trabalho, aproprio-me da análise da linguagem rosiana feita por Arrigucci e, ao invés de relacioná-la a Góngora, procuro buscar o que há em comum entre a linguagem rosiana e a linguagem utilizada por Ana Miranda, para construir o discurso de Oribela. 

Em ambos, o instrumento lingüístico disponível é insuficiente para demonstrar a grandiosidade dos universos apresentados. Em Desmundo, especificamente, do mundo – desmundo que a Oribela se apresenta. Há, então, a fuga à linguagem bem comportada e lexicalizada. Para a criação desta linguagem, comparece uma série de recursos. A começar pelo título do romance, uma palavra não-dicionarizada, Desmundo, uma vez que parece faltar o termo exato para expressar o significado da nova terra para Oribela, que vê seu destino como “desrumo”, outro termo inexistente na língua oficial. Vale lembrar, ainda, que, ao se referir à nova terra, a personagem narradora utiliza palavras, dicionarizadas ou não, que são iniciadas pelo prefixo de negação “des”, como se, vê em: “despejado lugar”, “terras desabafadas”, “desventura”, além dos já citados “desrumo” e “desmundo”. Ou seja, através do trabalho com a linguagem, é possível revelar o caráter de purgação que caracterizava a nova terra. Além dos termos não-dicionarizados já citados, outros comparecem para construir o discurso da personagem Oribela, conferindo à linguagem um matiz arcaico e, ao mesmo tempo, popular. 

Há, entre as palavras não-dicionarizadas, aquelas cujo matiz arcaico se faz pela ocorrência de metaplasmos, de alterações fonéticas, o que se verifica também em Guimarães Rosa. Tais palavras podem, ou não, registrar, em dicionário, uma forma correspondente, estatuída como oficial. De Guimarães Rosa, extraídos de Grande Sertão: veredas, ilustram o primeiro caso: “satanazim”, “patavim”, “asp’ro”, “arreparare”, “essezim”, “tirotêi”. As formas diminutivas “satanazim” e “essezim” exemplificam a apócope e, ao lado da alteração fonética do sufixo, “inho”, remetem ao tom arcaizante que Guimarães Rosa deu à linguagem literária, inscrevendo-a como voz do povo. A tais ocorrências junta-se a síncope do /e/ em áspero>asp’ro, lembrando a rejeição popular às formas proparoxítonas. E, ainda, “arreparare”, trazendo à memória a freqüência de próteses características do desempenho popular: alembrar, afamilhar, azangar, arreceber, adispois, arruído, arrefém, alumiar, entre outros elementos lexicais, numerosos, dicionarizados, ou não. 

Na linguagem rosiana, são freqüentes, ainda, criações resultantes de processos derivacionais: pacificioso, vastoso, estranhoso, docice, pobrejar, espinarol, desenormes, antesmente, horrorizância, prostitutriz, trestriste, desjustiça, desmim, regrosso, etc.... Formas compostas inusitadas também são encontradas: “zé-zombar”, “outrolhos”, “vagavagar”, “alinhalinhar”, “neblim-neblim”, “contracalado”, “malmontar”, etc... 

Assim como em Guimarães Rosa, também em Ana Miranda formas derivadas e compostas revestem a linguagem de acento popular e arcaico. “Omildosa” e “trigosas” trazem à tona a freqüência de adjetivos em “oso”/“osa”, já em textos medievais. Além da marca sufixal, é preciso considerar, em “omildosa”, o registro escrito sem o h inicial, um dos traços da escrita arcaica, fonética, desvinculada de étimos gregos ou latinos e que caracteriza, também, a grafia popular; “trigosas”, significando apressadas, pressurosas, aparece no “Auto da Alma”, de Gil Vicente, numa das falas do anjo: “Já cansais, alma preciosa / Tão asinha desmaiais? / Sede esforçada! / Oh! como viríeis trigosa / e desejosa / se vísseis quanto ganhais/nesta jornada”. 

Há, na fala do povo, uma intuição da forma da palavra que se quer linguagem como imagem, conduzindo a criações não estatuídas, pelas quais o dizer enuncia com maior clarividência o que quer fazer-se voz. Assim “renembranças”, “desrumo”, “disraiar”, “dulçura”, “esmerdada”, “cuidações”, “estridosamente” , “bonamore”, “vem-para-casa-mesmo-bêbado-papai”, “águafrescáguafresca”. 

Doçura é expressão corriqueira, e o sentimento, quando se quer dizê-lo inusitado, é num percurso de reencontro com raízes que se vai buscá-lo, retornando ao étimo latino dulce>doce. Da mesma forma, “bonamore”, forma composta, aglutinando os radicais latinos bonus>bom e amoris>amor, o bom amor, imune às contradições, o amor sonhado tranqüilo: Benditas as desposadas e casadas; para o meu varão me guardei perfeita, ru, ru, chegasse com o pé direito, trouxesse Deus o bonamore, que não tenho nenhuma burrinha, tirasse de mim os desejos, os temores, os fingimentos, as visões (...) (p. 30). É uma voz ambígua esta de Oribela que, no “bonamore”, situa o sonho na realidade da obrigação de guardar-se para o esposo, e, nas visões, a experiência do inferno da relação homem/mulher, o real, a fazer-se negativa do sonho. 

A justaposição “ia-voava”, em “sentimento meu ia-voava para ele”, extraída de Guimarães Rosa, já referida anteriormente, faz-se tradutora de um sentimento trigoso, pressuroso, impulso amoroso em apressamento que com essa, não com outra voz, deve ser dito. Em Ana Miranda, o “aviso da terra” traz o júbilo desenfreado da sede a ser saciada e que se expressa, aqui também, numa forma justaposta “águafrescáguafresca” transfigurando-se em canto, euforia: “acabada a água do armário do camarote e só chuva para tomar, atinava eu que ia beber água fresca, água fresca, água fresca, água fresca águafrescáguafresca lari lará, molhar as mãos, as ventas, derramar o que fosse, sem contar gota por gota, não ouvir mais gente bradar por água, molhar meus cabelos em um chafariz, bica ...”. 

“Diguice”, “conspeito”, “percurar, “imigo” são arcaísmos, dentre outros presentes em Guimarães Rosa. A eles acrescenta-se “peia”, bagagem, cuja ocorrência em Gil Vicente pode ser comprovada com um excerto da “Farsa de Inês Pereira”: “Pero: deitai as peias no chão./Inês: “As perlas para enfiar,/três chocalhos e um novelo/e as peras do capelo: e as peras onde estão?”

Também, em Ana Miranda, além de “trigosas”, registra-se o arcaísmo “pardeus” interjeição correspondente a “por Deus”, cujo emprego pode ser ilustrado pelo verso: “Pardeus! bom ia eu à aldeia”, da “Farsa de Inês Pereira”, de Gil Vicente. “Rodiquelhe”, “alvaiade”, “adens”, manseza tornam-se ilustrativos de uma freqüência considerável de palavras que dão, à linguagem de Ana Miranda, o acento medieval / popular. 

Surge, na voz de Oribela, uma língua viva, vida perceptível pela negação de sua unicidade. Não é uma língua social única, mas representante da contínua evolução histórica de uma língua viva. A voz de Oribela busca compreender, a partir desta língua, o desmundo em que se encontra. 

Há momentos em que, para compreendê-lo, parecem faltar palavras. É necessário entender a vida, “uma rede de tristuras tenebrosas”. Neste momento, a metáfora, mais um recurso utilizado pela linguagem rosiana, segundo Arrigucci, comparece na construção de uma linguagem cheia de mistérios a serem descobertos, num “estilo cujo objeto é o próprio estilo”.

Em Ana Miranda, as metáforas atuam na construção do discurso de Oribela e representam a linguagem poética de forma significativa. Há que se observar uma delas: “nem dobrou minha alma em joelhos”. Esta metáfora faz referência à expressão “em joelhos”, muitas vezes presente durante o romance, reveladora da concepção medieval de mundo (tantos joelhos viviam a dobrar-se), ainda no século XVI. Quanto à metáfora, não são os joelhos no sentido denotativo que se recusam a dobrar-se, mas os joelhos da alma, a alma que se quer livre, que não se dobra diante de tantas imposições e negações oferecidas pelo mundo novo à alma de quem fosse mulher. Que se quer mistério e não permite que o coração seja desvendado. 

Nesta metáfora há, ainda, referência a dois aspectos relativos à mulher, que deveriam ser domesticados: a alma e o corpo (representado pela palavra joelho). Quanto a Oribela, os joelhos podem até dobrar-se, mas, quanto à alma ... É ter “numa parte o corpo e noutra o coração”. 

Surgem metáforas que atestam a forma como Oribela compreende o real, mas, até mais que isto, a maneira como procura entender-se enquanto ser humano neste mundo que entra pela porta de seus olhos, a fazer que seus desejos sejam “torcidos com amarguras”. 

Um outro recurso utilizado por Guimarães Rosa, as antíteses, também surge em Desmundo, como a revelar o caráter contraditório mundo versus desmundo, ou seja, a esperança e a desesperança e as próprias dúvidas que atormentam a personagem: “boas mulheres versus putas e regateiras”, “poder alembrar e poder esquecer”, “luz e sombra”, “grande segredo é o morrer, maior segredo é o viver”, “sacramentada ao Ximeno versus a suspeitar que ele era o demo” e muitas outras antíteses que, muito mais que as matas, as grandes florestas fazem seu estro perder-se em labirintos sem fim. Quando me atenho com mais vagar a uma destas antíteses “boas mulheres x putas e regateiras”, torna-se inevitável um retorno ao intertexto com a história das mentalidades e aos protótipos de mulher forjados pela sociedade colonial: o da santa mãezinha e o da mulher sem qualidades. 

Ao papel da santa mãezinha estava associado o perfil inspirado na devoção européia à Virgem Maria, e o modelo de feminilidade correspondia à castidade, ao sacrifício e à sociedade. Era necessária a purificação da mulher, desde as origens um agente de Satã, e esta purificação, de forma mais urgente, era mister numa terra como a nossa, onde reinava o Diabo. 

À mulher sem qualidade, aquela da rua, corresponde o avesso da santa mãezinha, e, por não enquadrar-se no papel a ela destinado, era demonizada e excluída. O uso que fazia da sexualidade era considerado ameaçador, por colocar em perigo o projeto da Igreja e do Estado, segundo o qual o corpo feminino deveria estar a serviço da sociedade patriarcal e do projeto de colonização. 

Oribela, outras vezes, durante o romance, demarcará esta diferença e parece se perguntar: até que ponto sou uma “santa mãezinha” e até que ponto sou uma “mulher sem qualidade”? Que papel agradaria a ela, de verdade, assumir? 
 Todas as antíteses observadas durante a leitura do romance, parecem culminar em questionamentos acerca de assuntos muito variados, como, por exemplo: Viver, que significa? Morrer? Quem realmente é o mouro? Vida, qual seu significado? 

Uma outra característica da linguagem rosiana é a utilização da hipérbole propriamente dita, também aproveitada para a elaboração do romance Desmundo. Há um grande medo do castigo divino, e a hipérbole seguinte representa a enormidade do medo: “ia o pai mandar muitas setas de fogo, gemidos, chamas de enxofre que nunca acabam de queimar, tal que o ímpeto de um rio de lágrimas não poderia apagar um dia Deus alagaria o velho mundo com as águas do céu em que se afogaria todo o gênero humano como se matasse uma vaca brava e a terra ficaria deserta, restando os que tinham vindo ao novo país e quem aqui fosse o mais forte seria o rei do mundo”. 

O que se refere a Deus, principalmente no que concerne ao castigo divino, é sempre visto de maneira hiperbólica pela personagem narradora. O hiperbólico se presentifica, também, no que concerne às imagens visionárias que povoam os delírios da personagem central: “era eu devedora de pagar com meu coração no que de mim abriram o peito, um corte fino de dor e as mãos dedudas e grosseiras do algoz se meteram no meu peito a arrancar o coração."  

Conforme Arrigucci, em Rosa, ocorre uma subversão do esquema lingüístico tradicional, numa quebra da harmonia e da regularidade do clássico na linguagem literária. Em Desmundo, esta subversão também se dá e despontam, então, construções frasais não muito usuais, tais como a expressão “todos chegando o chegar”. O contexto em que esta expressão é empregada permite uma melhor compreensão da riqueza de seu significado. Oribela utiliza esta expressão para relatar a alegria da chegada da nau portuguesa às terras brasileiras “tocar com os pés ali naquela terra onde nunca entrava o inverno, arribar, arribar, a salvamento, sem se poder a gente nem a cargo, todos chegando o chegar, deleitando, gozo”. 

Na construção da expressão analisada, comparecem dois termos semelhantes: chegando (verbo conjugado no gerúndio) e chegar (substantivo formado por derivação imprópria). A frase poderia ser simplesmente “Todos chegando”, mas, ao acrescentar “o chegar”, a autora quer intensificar, mostrar a importância desta chegada, aliás, “Chegada” é o nome da primeira parte do romance, parte em que se localiza o fragmento que está sendo analisado. Ao apropriar-se de um verbo para dar a ele o estatuto de nome e, ainda, utilizá-lo para provocar uma redundância, a autora dá maior sentido à chegada dos portugueses à nova terra e, ao mesmo tempo, subverte a linguagem tradicional. Não é uma chegada qualquer, é uma chegada prenhe de esperança e de desejos de felicidade. 

Outra construção bastante intrigante pertence ao fragmento localizado na parte dois do romance, intitulada “Terra”. As jovens órfãs aguardam seu destino no convento dos padres “esquecidas ali, guardadas, esperando esperandesperando...” A expressão me chama atenção. Exatamente por divergir das construções usuais “esperando esperandesesperando” intensifica a idéia da espera, que é também desespero. A começar pelo uso do gerúndio, tempo verbal que dá idéia de uma ação contínua, a intensificação se faz, também, pela repetição da própria palavra “esperando” três vezes. A elipse do “o” final do segundo emprego da forma “esperando”, que se une ao outro “esperando”, conota a angústia da espera, monta-se em desespero. É preciso apressar o término da espera, para saber o que as aguarda neste mundo tão novo. 

Somando-se às várias construções inusitadas, aparecem palavras pertencentes à língua indígena, na fala de Temericô; à língua espanhola, nas falas da Parva e em construções como “No he temor, piedoso es el Señor” e, ainda, à língua latina mesclada à fala/oração de Francisco de Albuquerque. Esta mescla de línguas diferentes colabora para a criação de uma linguagem que remete às diversidades de línguas presentes no século XVI em terras brasileiras. Remeto-me, neste caso, às idéias de Mikhail Bakhtin, no que diz respeito a uma das características do gênero romanesco: a diversidade social de línguas presentes no romance. Mesmo que o romance de Ana Miranda se enuncie como expressão da língua portuguesa, a língua do colonizador, outras línguas aparecem para representar o plurilingüismo. Surgem expressões em espanhol e latim, linguagens muito próximas da língua portuguesa, mas também expressões em língua indígena, a dizerem como o conflito lingüístico pode ser internalizado no próprio discurso. E, ainda mais, o quanto este confronto pode significar também um conflito social e cultural. Na passagem do romance em que Temericô conta a Oribela sua história antes da chegada dos portugueses, este conflito começa a se anunciar: 

“Cantava cantigas, tocava um pífano de graveto, contava de sua povoação onde amava os pais e irmãos, de quem mais nada sabia, que lhe falavam deles as estrelas, fora ela caça o mato e palavras mansas. Era de um gentio muito antigo que fora lançado fora da sua terra das vizinhanças do mar por outro gentio seu contrário que descera do sertão pela fama da fartura da riba do mar e seus pais e avós perderam as terras que tinham senhoreado muito anos e lhe destruíram as aldeias, roças, matando os que lhes faziam rosto, sem perdoar a ninguém, em frontaria com os contrários numa crua guerra, onde se comiam uns aos outros, os que cativavam ficavam escravos dos vencedores, numas batalhas navais, ciladas por entre as ilhas grandes mortandade e se comiam e se faziam escravos, até chegar o tempo dos portugueses. O – z o – a k y p û e r i, um trás outro, trás de um o outro, mokõî, mokô’, mokõî. Tinga”. 

É através do discurso de Oribela que se manifesta o discurso de Temericô e, mesmo o tempo anterior à chegada dos portugueses, é narrado em língua portuguesa, a língua do colonizador. Onde a língua indígena? Está restrita aos termos utilizados nas duas últimas linhas e a linguagem do dominado parece manifestar-se, então, muito mais pela ausência, denúncia da subjugação de uma língua e de um povo. 

Um outro fragmento textual em que a língua indígena aparece trata do momento em que Temericô pretende ensinar sua língua a Oribela. As palavras indígenas buscam sempre seu equivalente na língua portuguesa, numa tentativa de aproximação de línguas provenientes de culturas extremamente diversas, como a cultura portuguesa européia e a cultura indígena. Nesta tentativa de aproximação, entretanto, o tempo já mostrou, os resultados são desiguais e conduzem ao quase total desaparecimento da língua indígena como se pode hoje constatar.

Enredo

 Em 1570, chega ao Brasil um grupo de órfãs, enviadas pela rainha de Portugal para desposarem os primeiros colonizadores. Entre elas vem Oribela, uma jovem sensível e religiosa. 

 Contra sua vontade, ela se casa com Francisco de Albuquerque, que a leva para seu engenho de açúcar. Apesar de rude, Francisco trata Oribela respeitosamente: quer que ela seja a senhora da casa, mãe de seus filhos brancos. Contudo, na fazenda moram a mãe e uma jovem irmã de Francisco, num estranho e incestuoso núcleo familiar. 

 Certo dia, aproveitando a passagem de Ximeno, um comerciante vendedor de escravos, Oribela foge. Quer pegar um navio e voltar a Portugal. Nesta primeira tentativa, é estuprada pelos marinheiros que deveriam levá-la ao navio. Furioso, o marido a prende acorrentada num galpão. Sozinha e ferida, a jovem esposa se deprime, passa os dias chorando. A índia que lhe leva comida é quem, pouco a pouco, ajuda-a na sua recuperação. Mas Oribela é obstinada em tentar uma volta impossível para o velho mundo. 

 Em busca do conhecido - passado doloroso, mas conhecido - acaba indo de encontro a todos os perigos, da ira do marido abandonado, às feras da mata virgem e as pedras da sociedade. Três vezes ela foge do casamento a que foi empurrada, pelos padres e reis, com um desconhecido que só lhe provocava náuseas. "Seu aspecto era o de um cão danado, lhe faltavam dentes, tinha pernas finas, nariz quebrado, da cor de um desbotado seus olhares. Cheirava a vinho de açúcar, usava um chapéu roto, tinha tantos pêlos a modo de uma floresta desgrenhada e estava sujo, imundo (...) O homem me veio a mirar e no rosto lhe cuspi", conta a jovem rebelde, que aceita o casamento com medo de um mal maior, acabar como outra mulher que conheceu no mosteiro, que teve os pés e mãos cortados por recusar um marido. Mas, como um animal selvagem engaiolado, Oribela só pensa em fugir. Na segunda tentativa, perde a esquadra, mas encontra a paixão pelo homem a que mais temia. Na terceira, depois de colocar fogo em tudo, vive a loucura ou a felicidade.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/d/desmundo