terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Teatro de Ontem e de Hoje (Cordélia Brasil)


Primeiro texto de Antônio Bivar a chamar a atenção, encenado por Emílio Di Biasi, que estréia na direção e protagonizado pela musa do cinema nacional, Norma Bengell. A peça causa polêmica por mostrar a vida íntima de um casal e valorizar a subjetividade das personagens, que expressam sem pudores suas misérias tendência que diverge da dramaturgia engajada da geração anterior.

Para sustentar seu companheiro Leônidas, que sonha em ser escritor de histórias em quadrinhos, Cordélia, além de trabalhar como auxiliar de escritório, começa a se prostituir. Ela traz para casa um jovem de 16 anos, Rico, que acaba morando com eles. Forma-se então um triângulo, em que se insinua a cumplicidade entre os dois homens, já que Rico se identifica com o comportamento de Leônidas para com Cordélia. A relação torna-se cada vez mais conflituosa, acabando por precipitar um desfecho trágico que, paradoxalmente, é tratado de forma poética e absurda. 

Entre 1968 e 1969, estréiam vários jovens autores que começam a despontar com uma nova dramaturgia, tributária da trilha aberta por Plínio Marcos, mostrando a exacerbação de conflitos entre personagens marginalizadas: Leilah Assumpção, Consuelo de Castro, José Vicente e Isabel Câmara. Segundo Sábato Magaldi, "a desilusão pelo recuo do movimento internacional de maio de 1968, as forças repressoras que tomaram maior fôlego com o Ato Institucional nº 5, o escárnio do Poder diante das necessidades legítimas do povo forçaram esse grupo a defender-se em códigos subjetivos, confundidos com a idéia de que ele via o mundo a partir do próprio umbigo. A ausência de preconceitos encontrará, nessa dramaturgia, o resultado da sufocação, a que se deu resposta rebelde, de vários tipos".1

O texto, cujo título original é O Começo É Sempre Difícil, Cordélia Brasil, Vamos Tentar Outra Vez, é premiado no 1º Seminário de Dramaturgia do Rio de Janeiro, em 1967. No ano seguinte, a montagem é interditada pela Censura durante o período de ensaios, juntamente com Barrela, de Plínio Marcos, e Santidade, de José Vicente. Uma leitura dramática é organizada na cobertura de Danusa Leão para que os intelectuais cariocas conheçam a obra. O evento é bem-sucedido e os críticos vão aos jornais interceder pela liberação do texto, que consegue subir à cena ainda em 1968, com o título de Cordélia Brasil, no Teatro Mesbla.

Enfatizando aspectos da construção do texto, analisa Yan Michalski: "À medida que o desfecho se aproxima, Bivar introduz no tom de realismo, até então característico da peça, um surpreendente elemento de fantasia, que cresce e se expande com enorme rapidez, a ponto de acabar por sobrepor-se, inexoravelmente, ao realismo. A saída final de Leônidas se desenrola num clima de alucinada lógica sem lógica, que me faz pensar, toda vez que releio a peça, em Pierrot le Fou, de Godard; e o suicídio de Cordélia é, ao mesmo tempo, comovente e engraçado na sua cafonice: as últimas palavras da heroína, que se referem à marca que ela deixará da sua passagem pela Terra - uma fotografia para a qual posou nua, na praia, a pedido de um fotógrafo americano -, constituem uma das mais poéticas contribuições para a antologia de nosso florescente tropicalismo. A facilidade com a qual Bivar conseguiu passar do realismo para a fantasia me pareceu constituir a mais evidente prova do seu talento".2

A crítica se divide quanto à encenação de Emílio Di Biasi, alguns considerando o espetáculo jovem e imaturo, mas Bivar é amplamente elogiado na imprensa, e a presença de Norma Bengell como protagonista garante o afluxo do público ao teatro. 
O espetáculo viaja a São Paulo, é apresentado no Teatro de Arena e ganha os prêmios Associação Paulista dos Críticos de Artes, APCA, e Governador do Estado de melhor autor para Bivar e APCA de melhor atriz para Norma Bengell. Durante a temporada paulista, Bengell é seqüestrada por dois dias pelos agentes da repressão, acirrando o confronto entre a classe teatral e a ditadura militar.

Vinte anos depois, afirma o crítico Sábato Magaldi: "Cordélia Brasil já é um clássico do moderno repertório teatral brasileiro".3
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Notas 

1. MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo: Global, 1997, p. 308-309.

2 . MICHALSKI, Yan. Suicídio Tropical. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 1968. In: BIVAR, Antonio. As Três Primeiras Peças. Londrina, Azougue Editorial e Atrito Art. Editorial, 2002, p. 15.

3. MAGALDI, Sábato. Sem Título. In: BIVAR, Antonio. As Três Primeiras Peças. Londrina, Azougue Editorial e Atrito Art. Editorial, 2002, p. 17.

Fonte:

Socorro Lima Dantas / PE (Poemas)



AS MAIS DOCES PALAVRAS SOFRIDAS

É madrugada,
 aconchegada pela suave brisa da ilusão,
 traduzo o meu silêncio
  com palavras sofridas, 
 surgidas pelo sopro da tua respiração.
  
 Pensamento embaralhado,
 dos segredos por nós vivenciados,
 semeados pelo tempo outrora passado,  
 obrigam-me a escrever de um amor ainda silenciado.
    
 Com o dedo indicador, vou compondo...
 Concluindo quase a uma frase inteira !
 São palavras loucas, 
 escritas com os olhos vendados,
 procurando o segredo
 entre a versão verdadeira e a ilusão primeira.
  
 São tentativas repetidas, 
 palavras intermináveis...
  Arrisco ler a escrita primeira, 
 Não encontro...
  Pulo para a derradeira...
 Não há tempo sequer de ler a última citação !
 O vento encarregou-se de apagar uma história verdadeira!

 Nesta imensidão de areias brancas,
 diante deste oceano azul,  aspirações contidas, 
 colhidas neste mar de silêncio e pensamento,
 carregaram tão rapidamente meus sentimentos:
 As mais doces palavras sofridas!

QUEM É VOCÊ?

Quem é você ? 
 Que plantou uma rosa em meu jardim,
Adentrou em minha vida,
 chegou assim...  lentamente...
 sem pedir permissão
Penetrou em meu coração, 
e nele passou a habitar
Numa troca de afeição sem fim.

Quem é você ?
Que me traz rosas perfumadas
A cada vez que nos encontramos,
Sem ao menos conhecer a tua voz
Nem tu conheces a minha...
Que em nossas noites insones 
tantos segredos trocamos.

Quem é você ?
Que me faz revelações
Deixa-me sentir segura
Agarra-me forte pelas mãos
amparando-me da maneira mais pura.

Quem é você ?
Que se tornou minha alma-gêmea
dela não consigo mais abrir mão
e passou a fazer parte
do meu coração!

Seria você meu amigo?
Que segura a minha mão
Ouve a minha história
Ri e chora comigo,
E me chama de irmão!

MINHA VIDA

Há vezes: - deparo-me com indagações,
procuro repostas às minhas aflições,
da história de um amor guardado,
o tempo perdido...
coberto pela poeira do passado.

Peito comprimido,
hóspede dos sentimentos perdidos,
ressente-se com imagens de outrora,.
fecho meu mundo numa concha
permito escoar para mim vãs recordações.
Estou inerte !...  sem resposta alguma...
são inquietações e sofrimentos vividos.

Arrastada pela solidão,
comparo-me a uma bailarina... imóvel !...
no picadeiro, ninguém a me aplaudir...
um grito selvagem aborda o meu íntimo.
Sinto-me só, em meio a uma multidão.

Vem àquela vontade de esquecer,
partir definitivamente...
numa noite insone, exposta ao inesperado,
sem identidade da alma ...

sem levar a saudade !
quero esquecer o passado... o desejo insólito,
perdido ao encontro do nada...

Não há resposta a esta incerteza que me cerca !...
permanecem meus anseios,
aproxima-se o tédio...  
a saudade que ficou...
as recordações alteram as batidas do meu coração,
na inútil reconstrução do que fui,
e o que será deste meu eterno devaneio...

De repente,  
desperto meus pensamentos antes adormecidos !
descubro, sem querer acreditar,
tudo não passou de uma aspiração !...
pensamentos levados pelo vento
removidos pelos castelos construídos por mim,
num tempo vivido apenas para sonhar.

Anseios reprimidos,
aborda-me a vontade de esquecer tudo !
Retorno ao caminho de volta,
na inútil tentativa de mudar o destino.
Quero recontar a minha história,
alterar as versões...
mudar a rota dos nossos corações,
transformar nossas almas sofridas e amarguradas,
numa amplidão de amor ao alvorecer !

Quero viver este sonho,
quero te amar  como se não fosse existir outro momento igual,
quero esquecer a sucessão de outros dias,
viver apenas o presente !
Quero ser EU e TU numa só existência,
assim será a minha vida !

TRISTEZA… SOLIDÃO

Essa tristeza,
que não me abandona este coração,
recusa-se partir... dizer adeus...
Deixando-o em total desolação!

Essa tristeza,
que insiste em invadir a realidade,
atraindo o acesso a solidão,
que o peito não deseja enxergar...
entregando-se a saudade.

Essa tristeza... essa solidão...
Adentraram nesta alma sofrida,
que guarda um amor contido
sem licença pedir, 
Como se fosse seu !
É uma dor sem jeito, 
deixando-a perdida.

Essa tristeza... essa solidão...
que  impedem esta vida em paz prosseguir
 em seus sonhos imaginados,
devaneio de alegria
juras de amor
felicidade eterna
vida feliz
sem traumas
 sem cobranças
nem decisões imediatas.

Essa tristeza... essa solidão…

A VALSA DOS MEUS SONHOS

Embalada pelos braços da vida,
 Estou aqui, mais uma vez,
 entrando neste salão cheio de luzes e cores.
 Preparando-me para a realização de mais um sonho,
 confesso, com timidez.
    
 Interrompo o caminhar...
 Procuro abrigo para dividir esta alegria.
 Apuro o olhar e o sentir.
 Contemplo a orquestra... As pessoas...
 Descubro amigos a espera!!
 Por um momento, detenho-me,
 desacreditando viver este momento!
 Afinal, sou uma dama sonhadora
 Preste a concretizar uma aspiração,
 Este será o grande dia?!...
    
 Adianto o passo até o meio do salão,
 todos aplaudem, risonhos,
 denunciando a cumplicidade neste grande evento.
 A orquestra inicia os primeiros acordes
 da música tão esperada.
 Quanta emoção!
 Irei dançar  a valsa dos meus sonhos...
    
 Embalada pela realização, dou os primeiros passos!
 Flutuando como um pássaro...
 A melodia leva-me ao deslumbre do momento,
 Meu coração pulsa descompassado,
 São instantes de pura emoção!
  
   Enternecida nesta magia,
 Sigo deslizando docemente ao ritmo da valsa
 que não para de tocar!
 Esta é a mais linda música
 no salão de mais uma conquista.
 Será a mais inesquecível das valsas já bailadas...
 A felicidade invade minha alma!
    
 A incerteza dissolve-se...
 Descubro ser verdade!
 Extasiada pela magia do momento,
 sigo dançando com o coração cintilando
 nesta imensa realização da minha existência.
 Divido com vocês este encanto!
 Afinal, são os figurantes principais 
deste acontecimento na minha vida.
    
 Estou dançando a valsa da Felicidade!
 A valsa da realização!
 A valsa da emoção!
 A valsa de um sonho conquistado
 apenas com a alma!
 Convido todos para dançar comigo
 a valsa dos meus sonhos!

Fonte:
http://www.socorrolimadantas.com.br/poesias/index.html

Machado de Assis (O Ideal do Crítico)


EXERCER a crítica, afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, corno para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais que um simples desejo de falar a multidão. Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes. 

São óbvias as conseqüências de uma tal situação. As musas, privadas de um farol seguro, correm o risco de naufragar nos mares sempre desconhecidos da publicidade. O erro produzirá o erro; amortecidos os nobres estímulos, abatidas as legítimas ambições, só um tribunal será acatado, e esse, se é o mais numeroso, é também o menos decisivo. O poeta oscilará entre as sentenças mal concebidas do crítico, e os arestos caprichosos da opinião; nenhuma luz, nenhum conselho, nada lhe mostrará o caminho que deve segir,—e a morte próxima será o prêmio definitivo das suas fadigas e das suas lutas.

Chegamos já a estas tristes conseqüências? Não quero proferir juízo, que seria temerário, mas qualquer pode notar com que largos intervalos aparecem as boas obras, e como são raras as publicações seladas por um talento verdadeiro. Quereis mudar esta situação aflitiva? Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda? e não a estéril,  que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada, - será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio a camaradagem e a indiferença, - essas três chagas da crítica de hoje, - podem em lugar deles, pondo em lugar deles, a sinceridade, a solicitude e a justiça, - é só assim que teremos uma grande literatura. 

É claro que a essa crítica, destinada a produzir tamanha reforma, deve-se exigir as condições e as virtudes que faltam a crítica dominante; - e para melhor definir o meu pensamento, eis o que eu exigiria no crítico do futuro. O crítico atualmente aceito não prima pela ciência literária; creio que até que uma das condições para desempenhar tão curioso papel, é despreocupar-se de todas as questões que entendem com o domínio da imaginação. Outra, entretanto, deve ser a marcha do crítico; longe de resumir em duas linhas, - cujas frases já o tipógrafo as tem feitas, - o jugamento de uma obra, cumpre-lhe meditar profundamente sobre ela, procurar-lhe o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas, ver em fim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção. deste modo as conclusões do crítico servem tanto à obra concluída, como a obra em embrião. Crítica é análise, - a crítica que não analisa é a mais cômoda, mas não pode pretender a ser fecunda.

Para realizar tão multiplicadas obrigações, compreendo eu que não basta uma leitura superficiais dos autores, nem a simples reprodução das impressões de um momento; pode-se, é verdade, fascinar o público, mediante uma fraseologia que se emprega sempre para louvar ou deprimir; mas no ânimo daqueles para quem uma frase nada vale, desde que não traz uma idéia, - esse meio é impotente, e essa crítica negativa.

Não compreendo o crítico sem consciência. A ciência e a consciência, eis as duas condições principais para escrever a crítica. A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure produzir unicamente os juízos da sua consciência. Ela deve ser sincera, sob pena de ser nula. Não lhe é dado defender nem os seus interesses pessoais, nem os alheios, mas somente a sua convicção e a sua convicção, deve formar-se tão pura e tão alta, que não sofra a ação das circunstâncias externas. Pouco lhe deve importar as simpatias ou antipatias dos outros; um sorriso complacente, se pode ser recebido e retribuído com outro, não deve determinar, como a espada de Breno, o peso da balança; acima de tudo, dos sorrisos e das desatenções, está o dever de dizer a verdade, e em caso de dúvida, antes calá-la, que negá-la.

Com tais princípios, eu compreendo que é difícil viver; mas a crítica não é uma profissão de rosas, e se o é, é-o somente no que respeita à satisfação íntima de dizer a verdade.

Das duas condições indicadas acima decorrem naturalmente outras, tão necessárias como elas, ao exercício da crítica. A coerência é uma dessas condições, e só pode praticá-la o crítico verdadeiramente consciencioso. Com efeito, se o crítico, na manifestação dos seus juízos, deixa-se impressionar por circunstâcias estranhas às questões literárias, há de cair freqüentemente na contradição, e os seus juízos de hoje serão a condenação das suas aspirações de ontem. Sem uma coerência perfeita, as suas sentenças perdem todo o vislumbre de autoridade, e abatendo-se à condição de ventoinha, movida ao sopro de todos os interesses e de todos os caprichos, o crítico fica sendo ùnicamente o oráculo de
seus aduladores.

O crítico deve ser independente, - independente em tudo e de tudo, - independente da vaidade dos autores e da vaidade própria. Não deve curar de inviolabilidades literárias, nem de cegas adorações; mas também deve ser uma luta constante contra todas essas dependências pessoais, que desautoram os seus juízos, sem deixar de perverter a opinião. Para que a crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial, - armada contra a insuficiência dos seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários, - e neste ponto, a melhor lição que eu poderia apresentar aos olhos do crítico, seria aquela expressão de Cícero, quando César mandava levantar as estátuas de Pompeu: -"É levantando as estátuas do teu inimigo que tu consolidas as tuas proprias estátuas" .

A tolerância é ainda uma virtude do crítico. A intolerância é cega, e a cegueira é um elemento do erro; o conselho e a moderação podem corrigir e encaminhar as inteligências; mas a intolerância nada produz que tenha as condições de fecundo e duradouro. É preciso que o crítico seja tolerante, mesmo no terreno das diferenças de escola: se as preferências do crítico são pela escola romântica, cumpre não condenar, só por isso, as obras-primas que a tradição clássica nos legou, nem as obras meditadas que a musa moderna inspira, do mesmo modo devem os clássicos fazer justiça às boas obras dos românticos e dos realistas, tão inteira justiça, como estes devem fazer às boas obras daqueles. Pode haver um homem de bem no corpo de um maometano, pode haver uma verdade na obra de um realista. A minha admiração pelo Cid não me fez obscurecer as belezas de Ruy Blas. A crítica, que, para não ter o trabalho de meditar e aprofundar, se limitasse a uma proscrição em massa, seria a crítica da destruição e do aniquilamento.

Será necessário dizer que uma das condições da crítica deve ser a urbanidade? Uma crítica que, para a expressão das suas idéias, só encontra fórmulas ásperas, pode perder as esperanças de influir e dirigir. Para muita gente será esse o meio de provar independência; mas os olhos experimentados farão muito pouco caso de uma independência que precisa sair da sala para mostrar que existe.

Moderação e urbanidade na expressão, eis o melhor meio de convencer, não há outro que seja tão eficaz. Se a delicadeza das maneiras é um dever de todo homem que vive entre homens, com mais razão é um dever do crítico, e o crítico deve ser delicado por excelência. Como a sua obrigação é dizer a verdade, e dizê-la ao que há de mais susceptível neste mundo, que é a vaidade dos poetas, cumpre-lhe, a ele sobretudo, não esquecer nunca esse dever. De outro modo, o crítico passará o limite da discussão literária, para cair no terreno das questões pessoais; mudará o campo das idéias, em campo de palavras, de doestos, de recriminações,— se acaso uma boa dose de sangue frio, da parte do adversário, não tornar impossível esse espetáculo indecente.

Tais são as condições, as virtudes e os deveres dos que se destinam a analise literária; se a tudo isto juntarmos uma última virtude, a virtude da perseverança, teremos completado o ideal do crítico.

Saber a matéria em que fala, procurar o espírito de um livro, escarná-lo, aprofundá-lo, até encontrar-lhe a alma, indagar constantemente as leis do belo, tudo isso com a mão na consciência e a convicção nos lábios, adotar uma regra definida, a fim de não cair na contradição, ser franco sem aspereza, independente sem injustiças tarefa nobre é essa que mais de um talento podia desempenhar, se quisesse aplicar exclusivamente a ela. No meu entender é mesmo uma obrigação de todo aquele que se sentir com força de tentar a grande obra da análise conscienciosa, solícita e verdadeira.

Os resultados seriam imediatos e fecundos. As obras que passassem do cérebro do poeta para a consciência do crítico, em vez de serem tratadas conforme o seu bom ou mau humor, seriam sujeitas a uma análise severa, mas útil; o conselho substituiria a intolerância, a fórmula urbana entraria no lugar da expressão rústica,—a imparcialidade daria leis, no lugar do capricho, da indiferença e da superficialidade. Isto pelo que respeita aos poetas. Quanto à crítica dominante, como não se poderia sustentar por si, - ou procuraria entrar na estrada dos deveres difíceis, mas nobres, — ou ficaria reduzida a conquistar de si própria, os aplausos que lhe negassem as inteligências esclarecidas. Se esta reforma, que eu sonho, sem esperanças de uma realização próxima, viesse mudar a situação atual das coisas, que talentos novos! que novos escritos! Que estímulos! que ambições! A arte tomaria novos aspectos aos olhos dos estreantes; as leis poéticas,—tão confundidas hoje, e tão caprichosas,—seriam as únicas pelas quais se aferisse o merecimento das produções, —e a literatura alimentada ainda hoje por algum talento corajoso e bem encaminhado,—veria nascer para ela um dia de florescimento e prosperidade. Tudo isso depende da crítica. 

Que ela apareça, convencida e resoluta, —e a sua obra será a melhor obra dos nossos dias.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 760)



Uma Trova de Ademar  

Sua ausência, por maldade,
deixou, talvez, por vingança,
um punhado de saudade
dentro da minha lembrança! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Eu não lamento a saudade, 
que a tudo invade porque 
é tão bom sentir saudade 
quando a saudade é você. 
–Olympio Coutinho/MG– 

Uma Trova Potiguar  

No vasto salão do mar,
num perenal movimento,
as ondas de par em par,
bailam nos braços do vento... 
–Pedro Grilo/RN– 

Uma Trova Premiada  

2010   -   Pindamonhangaba/SP 
Tema   -   MULTIDÃO   -   M/E 

Na pressa descontrolada
da multidão, há, contudo,
rostos que não dizem nada…
e rostos que dizem tudo!!!
–Ercy Maria M. de Faria/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Em minha agenda, enfadonho, 
hoje eu me curvo à evidência 
das folhas que o próprio sonho 
arrancou... por desistência! 
–João Freire Filho/RJ– 

U m a P o e s i a  

Quando Deus me levar pra eternidade 
deixarei nesta terra a minha cruz, 
juntamente com todos meus pecados 
pois pecados pra o Céu não se conduz; 
agradeço ao bom Deus por esta vida 
e eu não quero que chorem na partida, 
porque vou para o céu... Pra ver Jesus ! 
–Ademar Macedo/RN– 

Soneto do Dia  

FRANCISCO MACEDO...
–Delcy Canalles/RS– 

Partiste, amigo meu, grande Macedo,
e nós pranteamos a tua partida,
é que tu nos deixaste muito cedo,
entrando em nova dimensão de vida!

Ao saber do ocorrido, tive medo,
pois estava, em verdade, convencida
da tua participação no enredo
do livro, que ganhou nossa acolhida!

O nosso livro "A Quatro Irmãos", amigo,
terá, apenas três, aqui, te digo,
pois estarás trovando aí no céu!

E, pelo muito, Chico, que tu vales
para Ademar e pras Irmãs Canalles,
tu serás, para nós, lindo troféu !

Jornais e Revistas do Brasil (Corsario: periodico critico, satyrico e litterario)


Período disponível: 1880 a 1896 
Local: Rio de Janeiro, RJ 

Corsário! Eis, leitores, um nome para um periódico, que a primeira vista causará surpresa, se não temor. Mas, tudo se explica: Depois do descalabro enraizado que germina assombrosamente na nossa sociedade, correndo a escala social sem distincção de classes (...) Respeitador da intelligência que tem por apoio a honra, o Corsario só atacará os traficantes. Os delapidadores do erário, os parasitas que sugam a seiva da sociedade, os políticos que mentem ao povo e á nação, enfim, toda a casta de “piratas”, serão perseguidos, ainda que construam um novo Gibraltar e nelle se refugiem”.

 É nesse tom ameaçador que O Corsário: periódico critico, satyrico e chistoso se apresentava em sua primeira edição no dia 2 de outubro de 1880. Tratava-se de um dos muitos pasquins – aqueles pequenos jornais de pouquíssimas páginas surgidos no Primeiro Reinado, circulação efêmera, linguagem agressiva e primando por ataques pessoais, muitas vezes, sem identificar o proprietário – ainda em circulação no final do século XIX.

 Segundo Nelson Werneck Sodré , um dos primeiros a tipificar essa imprensa, O Corsário não passava de um “repositório de escândalos” e, por isso, seu editor, Apulco de Castro, acabaria pagando com a vida. Não poupava ninguém, desqualificando desde prostituas e seus cafetões até o imperador Pedro II e seus ministros.

 Como se revela o seguinte trecho da edição número 8 do dia 27 de outubro do mesmo ano de seu lançamento: “A S. M. O IMPERADOR... Senhor, tendes muitos defeitos, tantos como qualquer outro homem que fosse educado como Vossa Majestade, mas elses se tornam mais notáveis em Vós porque sois Soberano. Educado por padres, cercado só por aduladores e ambiciosos vulgares, Vossa Majestade circumscreveu o seu caráter em um estreito círculo e deu logo campo a qualidade que predomina em Vossa família – a hipocrysia. Tímido, fraco, puerilmente caprichoso, pouco esperto, muito pretencioso e ridiculo, eis o que é Vossa Majestade”.

 Em outro trecho desse mesmo número ataca as casas de prostituição: “Parece que a civilização e moralidade retiraram-se da cidade de Trampolinopolis [nome fictício para a capital] para dar lugar as acções torpes e vis. Uma cidade onde o progresso tem germens, e a moralidade asylo, não pode tolerar casas, cujo fim não esteja de acordo com a civilização. É de casas de alugar comodos por hora que nos referimos. A cidade está infestada por esses antros de prostituição”.

 Talvez por atacar sistematicamente diversas personalidades o Corsário não divulgou em seus primeiros números os nomes de seu editor. Somente em 10 de janeiro de 1881 o nome de Apulco de Castro, o editor e proprietário do jornal, apareceu. Conta Sodré que, ao atacar alguns oficiais do 1º Regimento de Cavalaria, 20 oficiais desse mesmo regimento invadiram e depredaram as oficinas do jornal. Apulcro de Castro conseguiu fugir, mas foi assassinado com sete facadas e dois tiros de revólver logo em seguida .

 O Corsário, sempre em quatro páginas e com quatro colunas, teve seu subtítulo alterado algumas vezes: "periódico critico, satirico e literário", depois “periódico e literário, "órgão devotado ao povo e aos seus interesses" e, a partir de 1882, "órgão de moralização social". O acervo da Biblioteca Nacional tem 310 edições do jornal.

Fonte:
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/correio-de-são-paulo-diário-noticioso-e-informativo

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 6 de maio: Uma Visita ao Estabelecimento Óptico do Reis


Ontem, por volta de nove horas do dia, saí de casa com tenção de visitar o novo estabelecimento óptico do Reis, à Rua do Hospício nº. 71.

Tinham-se feito tantos elogios deste armazém, do seu arranjo e elegância, que assentei de julga-lo pelos meus próprios olhos.

Não foi, porém, esta a única razão que  excitou a minha curiosidade. O que principalmente me levava àquela casa era um sentimento egoísta, um desejo de míope.

Les yeux sont les fenêtres de l’âme, diz Alfonse Karr num livrinho espirituoso que dedicou às mulheres

Ora, há muitas almas que têm a felicidade de poderem de manhã cedo abrirem as suas janelas de par em par, e se debruçarem nelas para espreitarem o que se passa diante do nariz.

Outras mais modestas, como as almas das mocinhas tímidas, abrem a meio as suas janelas, mas se escondem por detrás das gelosias que formam seus longos cílios de seda; e assim vêem tudo sem serem vistas

Algumas, porém, são tão felizes, que, quando abrem as suas janelas, vêem-se obrigadas a descerem imediatamente as empanadas. Estas são as almas dos míopes que usam de óculos fixos.

Estou, portanto, convencido que as janelas d’alma são em tudo e por tudo semelhantes às janelas das casas, com a única diferença do arquiteto.

Assim, há olhos de sacada, de peitoril, de persianas, de empanadas, de cortinas, da mesma maneira que há janelas azuis, pretas, verdes, de forma chinesa ou de estilo gótico.

Essas janelas d’alma são de todo o tamanho.

Umas excedem a medida da Câmara Municipal, e deviam ser multadas porque afetam a ordem e o sossego público; são os olhos grandes de mulher bonita.

Outras não passam de pequenas frestas ou seteiras, como certos olhos pequeninos e buliçosos que, quando olham, fazem cócegas dentro do coração. 

O que, porém, dava matéria a um estudo muito interessante é o modo por que a alma costuma chegar à janela.

A alma é mulher, e como tal padece do mal de Eva, da curiosidade; por isso, apenas há o menor barulho nas ruas, faz o mesmo que qualquer menina janeleira, atira a costura ao lado e corre à varanda.

Entretanto cada um tem o seu sistema diferente.

As almas francas e leais debruçam-se inteiramente na sacada, sorriem ao amigo que passa, cumprimentam os conhecidos, e às vezes oferecem a casa a algum dos seus íntimos.

Outras, ao contrário, nunca se reclinam à janela, ficam sempre por detrás da cortina, e olham o que se passa por uma pequena fresta. Deste número são as almas dos diplomatas, dos jesuítas e dos ministros de Estado.

Em compensação, há também algumas almas que, quando pilham um espírito descuidado, saltam pela janela como um estudante vadio, e vão flanar pelas estrelas, abandonando por um instante o corpo, seu hóspede e companheiro.

Animula vagula, blandula,
Hospescomesque corporis.

As almas andaluzitas, e de algumas mulheres coquettes que eu conheço, têm um costume mui lindo de chegar à janela.

Escondem-se e começam a brincar com as cortinas, a fazer tantos requebros graciosos, tantos meneios encantadores, que seduzem e martirizam um homem.

Para exprimir esta travessura d’alma na janela, os espanhóis inventaram uma palavra mui doce, o verbo ojear, que não tem tradução nas outras línguas.

Ia eu meu caminho, pensando em todas estas coisas, e formando um plano de estudo sobre as janelas d’alma, quando encontrei um amigo que se prestou a me acompanhar.

Chegamos juntos ao armazém óptico da Rua do Hospício nº. 71. O seu proprietário nos recebeu com toda a amabilidade e cortesia, e nos mostrou o seu estabelecimento.

Com efeito, não eram exagerados os elogios que me tinham feito dessa casa, onde se encontra um sortimento completo de instrumentos e objetos de óptica, tudo perfeito e bem acabado.

Vi um telescópio que me asseguraram se o melhor que existe no Rio de Janeiro atualmente, e com o auxílio do qual pode um homem uma bela noite ir fazer uma visita aos planetas e examinar de perto os anéis de Saturno.

Vi muitos outros instrumentos para medir as distâncias, tomar as alturas das montanhas, estudar as variações da atmosfera, muita coisa enfim que os nossos avós teriam de certo classificado como bruxaria.

Chegamos finalmente, aos óculos, e entre todos aqueles primores d’arte, no meio de tantos trabalhos delicados e de tantas invenções admiráveis, causou-me reparo uma velha luneta de grossos aros de tartaruga, de feitio tão grosseiro que me pareceu ser uma das primeiras obras do inventor dos óculos.

Estava metida numa caixa de marroquim roxo, sobre o qual se destacavam uns traços apagados, que me pareciam de letras desconhecidas de alguma língua antiga.

Disse-me o proprietário que esta luneta lhe viera por acaso entre uma coleção de elegantes pince-nez que lhe chegara ultimamente da Europa; excedia o número da fatura, o que fazia supor que naturalmente tinha-se confundido com as outras, quando o fabricante as arrumara na caixa.

Embora não me dê a estudos de antiquário, contudo aprecio esses objetos de outros tempos, que muitas vezes podem ter um caráter histórico.

Continuei a examinar a luneta, levei-a aos olhos, e por acaso fitei o amigo que me acompanhava.

Horresco referens!

Li na boca do meu companheiro, em letras encarnadas, estas formais palavras:

- Forte maçante! Está me fazendo perder o tempo!

Agarrei mais que depressa a minha alma que ia lançar-se à janela; e, disfarçando a minha surpresa, voltei-me para o proprietário.

Através do seu ar amável e cortês, li ainda o seguinte:

- Que extravagância! Com tantos óculos bonitos, ocupar-se com uma luneta velha que não vale nada!

Enfim, olhei para o caixeiro da casa, e vi imediatamente a tradução de um sorriso complacente que lhe assomava nos lábios:

- Ah! se o homem me livra deste alcaide! Dizia o sorriso do caixeiro.

Não havia que duvidar. Tinha em meu poder a célebre luneta mágica de que falam os sábios antigos. Comprei-a por uma bagatela, apesar da insistência do proprietário que não queria abrir preço a um traste velho e sem valia.

Despedi-me do meu amigo, pedindo que desculpasse a maçada, guardei com todo o cuidado a minha luneta, e segui o meu caminho.

Precisava refletir.

 Como é que aquele vidro mágico que se perdera na antiguidade, e que depois Frederico Soulié achou nas Memórias do Diabo, o emprestou um instante a Luigi, se achava nesse momento na minha algibeira?

Por que fatalidade o lorgnon de Delfina Gay viera parar ao Rio de Janeiro, e se achava naquela casa, desconhecido, ignorado de todos, podendo cair nas mãos do chefe de polícia, que então se veria obrigado a prender nove décimos da cidade?

Pensem que turbilhão de idéias, que torvelinho de pensamentos, me agitava a mente  exaltada por este fato. Visões fantásticas surgiram de repente começavam a dançar um sabbat vertiginoso no meu cérebro escandecido.

Via cenas do Roberto do Diabo, de Macbeth, do Paraíso Perdido e da Divina Comédia, mais bem pintadas do que as de Bragaldi, de Dante, de Milton, e de todos os pintores e poetas do mundo.

Enfim, decidi-me e fui almoçar.

O almoço – e especialmente o almoço diplomático e parlamentar – é um dos mais poderosos calmantes que eu conheço. Atua sobre o espírito pelo sistema homeopático.

Se este ano pudesse haver a mais pequena sombra de oposição, aconselharia os ministros que pusessem em voga nesta estação os almoços parlamentares.

Depois de almoçar, senti-me mais senhor de mim, e pude refletir friamente sobre a posse da minha luneta.

Lembrei-me que era escritor, e avaliei o alcance imenso que tinha para mim aquele vidro mágico.

Bastavam-me três ou quatro coups de lorgnon, para escrever uma revista que antes me roubava bem boas horas de descanso e sossego.

Não precisava mais estar preso a uma banca, a escrever, a riscar, a contar as tábuas do teto em busca de uma idéia a esgrimir contra a musa rebelde.

O meu folhetim tornava-se um agradável passeio, um  doce espaciar, olhando à direita e à esquerda, medindo a calçada a passos lentos, e rindo-me das coisas engraçadas que me revelaria a minha luneta.

Assim, pois, não é um artigo ao correr da pena que ides hoje ler, mas um simples passeio, uma revista ao correr dos olhos

São duas horas.

É a hora da flânerie parlamentar.

Lá vêm braço a braço dois deputados oposicionistas.

Oposicionistas?... Quero dizer queixosos. Oposicionista é uma palavra  antediluviana, cujo sentido se perdeu na confusão das línguas da Torre de Babel, e que naturalmente existiu no tempo que havia governo.

 Oposicionistas ou queixosos eram dois belos tipos a estudar. Isto é, eu pensava que eram dois: mas, fitando-lhes a minha luneta, vi com pasmo que ambos pensavam não só da mesma maneira, mas com as mesmas palavras.

- A falar a verdade, diziam os olhos de ambos, é uma asneira comprometer-me com o ministério, que parece estar seguro a duas amarras. O melhor é esperar!... entretanto vamos a ver se este sujeitinho, que aqui vai, toma a coisa ao sério, e mete-se na corriola!...

Quase ao mesmo tempo em que terminavam esta idéia luminosa, um deles virou-se para o outro:

- Então sempre está decidido?

- De pedra e cal.

- Pois conta comigo.

Um sorriso, um aperto de mão, e separaram-se na mais estreita entente cordiale.

Um tomou a direção do Caminho Novo de Botafogo; o outro entrou no Jornal do Comércio.

Estava ainda moralizando o fato, em pé na porta do Walerstein, quando descobri um moço político, esperanças da pátria, que vinha mordendo os beiços de uma maneira desesperada.

- Que lhe terá acontecido? Disse eu comigo.

E assestei-lhe a luneta.

Um interessante monólogo, que tinha lugar no seu espírito, acompanhava as furiosas mordeduras de beiços.

- Que época! Que época! pensava o homem. Le monde va de mal em pire.Tudo se profana! Tudo se desmoraliza!

“Não há mais crédito senão no comércio. Em política é vender a dinheiro e não fiar de ninguém.

“Esses oradores, que prometiam esmagar o ministério, nem se atrevem a tocar na casa dos marimbondos; antes de começarem os discursos, já adoçaram a boca; já beberam o copo d’água com açúcar.

“No tempo de Cícero e Demóstenes não se usava o copo d’água com açúcar; por isso nota-se que o estilo daqueles famosos oradores é forte e vigoroso. 

“Os de hoje, ao contrário, levam mel pelos beiços, e por isso têm sempre palavrinhas doces e açucaradas.

“E tenha um homem princípios numa quadra como esta! Tudo é mentira! Tudo é falsidade!

“Fronti nulla fides! Não há homem hoje em dia no qual se possa acreditar.

“Até o reverendo consta-nos do Jornal do Comércio já não é uma verdade oficial, uma confidência de ministros, uma página da pasta....

”Esse pigeon ministerial, mensageiro fiel dos segredos de Estado, tornou-se velho, mudou de penas, e hoje não passa de um canard, que por aí anda mariscando à beira da praia os poissons de primeiro de abril!

“Há dias fez o Sr. José Ricardo tomar posse da presidência duas vezes; ontem nomeou um Chefe de Polícia que infelizmente o Ministro da Justiça não quis confirmar”.

Neste ponto do diálogo o nosso filósofo dobrou a esquina de modo que não pude mais acompanhar o seu monólogo.

Voltando-me, dei com um representante de província que caiu sob o raio do meu lorgnon.

Estava ocupado a guardar um livrinho verde; o seu Agenda.

Veio-me a curiosidade de ler uma página desse livro; e com o auxílio da luneta o consegui.
A primeira folha rezava assim:

LEMBRANÇAS

1.º - Encomendar um fraque de cor no Dagnan, e visitar os ministros.
2.º - Projeto para que se trate seriamente de providenciar a respeito do papel existente no mercado, a fim de que não se sinta falta com o consumo feito em regulamentos.
3.º - Proposta para que se autorize o governo a confeccionar um  regimento de custas para a Câmara dos Deputados, com o fim de estimular o trabalho e fazer com que se abra a assembléia no dia marcado.

Pouco depois do representante, passou um folhetinista dando o braço a um personagem importante.

- Então como é isso? Dizia o personagem; desvaneceu-se a nuvem negra? Não há mais oposição?

- Não; tudo isto acabou.

- Ora, senhor...

- De que se admira, meu amigo?

- Pois esses homens que gritavam tanto...

- Ouviram a missa do Espírito Santo, meu caro.

- E então?...

- Ficaram inspirados.

- Ah! Intendo, como diz o Gentile.

- Por falar nisto, retrucou o folhetinista, lembra-se que na ocasião da abertura da assembléia, a música tocava a ária de tenor do 4.º ato do Trovador: Madre infelice, corro a salvarti!.... 

- Seria uma alusão?

- Não sei, meu amigo; mas a época é de calembures e trocadilhos..

Enganei-me: é um correio de ministro vestido em grande uniforme.

Depois que os estafetas de correio adotaram a jaqueta de pano com vivos, é justo que o estafeta do ministro, que constitui a aristocracia da classe, recorra à sobrecasaca militar. A tout seigneur tout honneur.

Tinha já visto tanta coisa, faltava-me ver o que existe dentro de uma pasta de ministro.

Em primeiro lugar, havia o rascunho de um projeto para estabelecer o emprego de escritor público, à guisa do promotor, do professor e do advogado público.

Necessidade de marcar-se um bom ordenado ao escritor público, o qual deve ser examinado como o professor, e marchar de acordo com a polícia como o promotor.

Vi também os papéis relativos à nomeação do novo inspetor da instrução pública, lugar que exerce interinamente o ilustrado e infatigável Dr. Pacheco da Silva.

Entre os nomes li o do Sr. Visconde de Sapucaí, do Sr. Marquês de Abrantes, e de muitas outras pessoas habilitadas; mas num cantinho descobri escrito de um modo especial o nome do Sr. Herculano Pena.

Deixei estes papéis, convencido que a dignidade e energia com que o Sr. Visconde de Itaboraí exerceu este cargo, exige que o governo medite bem antes de decidir-se na escolha do seu sucessor.

Vi também uma porção de pedidos de demissões de presidentes, de nomeações de outros, de lembranças a respeito que me deram a entender ia haver uma contradança geral nas altas posições administrativas.

Tudo isto, porém, ainda é segredo, e vos conto em confidência.  

Parece que os Srs. Pena e Zacarias renunciaram as suas presidências, e que irá para o Alto Amazonas o atual Presidente do Maranhão, um dos mais dignos caracteres e dos mais notáveis administradores que temos.

Os Presidentes da Bahia e Rio Grande do Sul vêm assistir a esta sessão com a idéia firme de não reassumirem os seus cargos.

Ia-me esquecendo dizer que estava na tal pasta um voto de agradecimento da Província de Rio de Janeiro, por se acharem na vice-presidência e no cargo de chefe de polícia dois dignos fluminenses.

Vinha de envolta uma pequena queixa por ser tudo isto apenas uma interinidade; mas também, para uma província cuja deputação não tem em seu seio quem a possa reger, é ser muito exigente.

Passou o tal capitão improvisado e eu limpei os vidros da minha luneta, guardei-a cuidadosamente para me servir em melhores ocasiões, e fui tratar de escrever alguma coisa, para que os meus leitores não me tomem por negligente.

Li hoje um belo folhetim lírico, em que se acha mau tudo quanto o Mercantil caiu na asneira de achar bom. Li-o com muito prazer, e sem surpresa.

Quem julga que a Zechini encantou na Luísa Miller devia lógica e necessariamente achar que a Charton cantou como uma fúria nos Puritanos.

O Campestre deu sua partida no dia 28 de abril. O baile vai em decadência quanto à dança; mas, em compensação, o serviço é excelente e de uma profusão inesgotável. O Francioni conseguiu vencer a sorvete e à empada a carga cerrada dos cossacos e zuavos de vinte polegadas de altura.

A nova empresa lírica fez a eleição da sua diretoria, e da notícia que publicaram os jornais haveis de ver o acerto da escolha. O Sr. Visconde de Jequitinhonha aceitou a presidência.

No horizonte poético da bela sociedade já se lobriga um baile do cassino, uma regata em Botafogo, e algumas partidas familiares e encantadoras.

Venham essas flores do mês de maio, flores perfumadas dos salões, que apenas vivem uma noite, mas que deixam na alma tantas reminiscências.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.