terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia I)

ABAT-JOUR

A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.

E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.

Bem sei ... Era dia
E longe de aqui...
Quanto me sorria
O que nunca vi!

E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar...

ABDICAÇÃO

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

ABISMO

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é sério, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.

A GRANDE ESFINGE DO EGITO

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops ...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste
candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com
a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim! ...

A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO
A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.

A MORTE CHEGA CEDO

A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.

ANDEI LÉGUAS DE SOMBRA

Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas
Meu ócio com sem-nexo,
E apagaram-se as lâmpadas
Na alcova cambaleante.

Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tato
Dos veludos da alcova,
Não pela minha vista.
Há um oásis no Incerto
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.

Esquece-me de súbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.

A ALCOVA

Desce não se por onde
Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora.

E o deserto está agora
Virado para baixo.

A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.

Qualquer coisa caiu
E tiniu no infinito.

AO LONGE, AO LUAR
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela ?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem = formatação da imagem para o blog, com imagens sobrepostas e modificadas, encontradas na internet, as quais não se pôde apurar a autoria.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 4. O Pescador e o Silêncio

"Com que então, Barbosa, você é pescador?"

Esta simples frase, dita numa voz branca, de um jeito quase distraído, me ia hoje rendendo uma quebra de amizade.

Frederico Paulo Barbosa Ramires é o homem mais calmo, sisudo e direito que jamais conheci. O senso comum encarnou-se nele como a seiva se infunde e se solidifica numa cabiúna. Dir-se-ia que a própria arquitetura de Barbosa fora armada com aquele material primário: os ossos robustos, as carnes duras, o corpanzil maciço, a fisionomia densa de hoplita membrudo. Familiarizamo-nos há muito. E nunca descobri no meu amigo uma trinca, um recanto desleixado, uma dependência indecisa e frouxa.

Vendo-o, hoje, no bonde, de caniço em punho, tive uma pequena surpresa, olhei para ele fiz-lhe aquela pergunta inócua. Parece que lhe toquei num ponto dolorido. Não se desconcertou, nem se irritou propriamente, mas respondeu-me com um nadinha de impertinência:

- "É verdade; pescador. Todos têm a sua mania, a minha é esta. Não faz mal a ninguém - senãoaos peixes. É higiênica, tem a sua dose de poesia..."

-"Bem, Barbosa, pesque, pesque, isso não precisa de justificação."

-"Mas, se eu quiser justificar?"

Fez então o elogio da pesca de vara. Uma pessoa fica à beira da água com a cana em punho, lança o anzol, e espera. Não há nisso nenhum desbarato de energias físicas nem morais. Por outro lado, não há tampouco a mínima astúcia nem a mínima violência. Fica à espera. Não corre atrás do peixe, não vai agarrá-lo. Nem o enxerga sequer. É como quem tira a sorte. O rio traz o peixe, o peixe vê a isca, engole-a, engasga-se. Então, o pescador sente na ponta da vara um estremecimento característico, dá-lhe um meneio, e puxa.

-"Como vê" (prosseguiu) "a intervenção do pescador é em tudo semelhante à do acaso, ou dos acidentes cegos que semeiam o curso dos rios e de todas as coisas. Ele espera, entendeu? ali, parado. Não vê o peixe, não sabe se o peixe virá, nem de que espécie há de ser caso venha;não sabe nada. Espera. É de uma imparcialidade absoluta."

-"Em todo caso atalhei, sabe que o rio é piscoso. E a imparcialidade, aí, quer dizer simplesmente que qualquer um serve."

-"Sim. Mas o peixe, se não pegasse no anzol, seria imortal? Não teria de morrer logo adiante?"
-"Dizem que eles têm o sestro de viver muito; até duzentos anos, conforme.,'

-"E você acredita isso? Quem é que contou os aniversários do peixe? E depois, olhe aqui, e depois que vem a ser um século ou dois diante da imensidade do tempo."

-"Alto lá, nós não vivemos a imensidade do tempo, Barbosa. Com esse artifício metafísico, se tem justificado muita pose de espíritos inumanos e muita monstruosidade material. Nós vivemos um minuto! Esse minuto é que deve ser a nossa medida. Tudo que o excede é imensurável. E, sendo imensurável, é sagrado."

-"Ahn..."

-"Mas, falando sério, você não precisa ter esse trabalho de justificar o seu gosto. Nada de repreensível na pesca, nem mesmo na caça. É lei do mundo que as espécies umas às outras se exterminem, por necessidade, por esporte, por prazer, por passar o tempo, é lei do homem que combata as outras espécies todas e a própria. Que lhe havemos de fazer? Observo-lhe, simplesmente, que a sua filosofia piscatória poderia justificar também uma larga parte da moral corrente nas relações humanas. Lança-se o anzol, fica-se à espera. Conheci um mercador que, fisgando e aleijando o freguês, não se desculpava por outra forma: Veio porque quis! Não obrigo ninguém a comprar."

-"Mas está muito direito" (replicou Barbosa). "Ele tinha razão. Eu, dono de um negócio, daria o preço que bem entendesse às minhas coisas."

-"Você não o faria, Barbosa."

-"Faria, sim, e você também."

-"Pois, se eu o fizesse, seria um espertalhão como qualquer outro."

Barbosa amuou, resmungou, e creio que só a sua sensatez e bonomia de animal forte, o impediu de levar adiante a contenda. Separamo-nos sem nos encarar. Fiquei penalizado com esse primeiro fio partido na teia de seda que vínhamos tecendo há tantos anos. Por um fio roto vai-se às vezes o tecido inteiro.

Fonte:
Domínio Público

Claudia Dimer (A Morte da Natureza)

Imagem formatada obtida no facebook da poetisa

Adriana Falcão (Primeiro Amor)

É que nem saudade. Mesmo que a pessoa nunca tenha sentido, quando sente já sabe logo que aquilo é saudade, ou melhor, que saudade é aquilo: aquele vazio que queria ser cheio. É que nem azia. A sensação puxa a palavra exata na hora, e a pessoa diz "Que azia!", ainda que seja a primeira vez que tem uma.

Primeiro amor é que nem festa surpresa. Quando acontece não avisa, mas é tão óbvio que dali pra frente não dá mais para viver sem pensar nele. Apesar de Tatiana só ter 14 anos, quando viu Felipe pela primeira vez, com sua roupa de goleiro, teve certeza: "Amei". E amou mesmo. Pulava. Sofria. Gargalhava de amor quando ele chegava à escola ou jogava nos treinos. Quando ele defendia uma bola, queria ser bola. Tatiana estava mesmo apaixonada.

O amor já estava transbordando quando ela foi contar a novidade pra Chiquinha Mota Pereira, sua amiga imaginária desde que elas eram pequenas. As duas cresceram juntas, Tatiana de verdade e Chiquinha de mentira, se é que se pode chamar de "mentira" alguém que, apesar de imaginária, é amiga verdadeira.

Chiquinha adorou a novidade e quis saber apenas se aquele amor era correspondido.

- Como é que eu posso saber? - respondeu (ou perguntou) Tatiana.

- Olhando fundo nos olhos dele.

Tatiana nem dormiu direito, ligada naquela urgência dos que amam pela primeira vez na vida, esperando amanhecer e ir pra escola, olhar fundo nos olhos de Felipe, pra conferir se havia algum sinal de amor vindo de lá, feito um espelho.

Finalmente deu 7 e meia e a campainha tocou. Ia começar a aula. Todos nos seus lugares, restou um lugar vazio. "Cadê Felipe, meu Deus?" Foi na hora do recreio que ela recebeu a notícia: "Felipe saiu da escola porque o pai dele foi transferido pra uma outra cidade".

E agora? Não foi fácil aquela manhã segurar o choro pra mais tarde.

- Será que todo amor de verdade tem que ter um impedimento pra se tornar impossível? - Tatiana soluçou baixinho. E Chiquinha respondeu (ou perguntou):

- Ou será que todo amor, pra se tornar possível, tem que provar que é de verdade?

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 4

O QUE NÓS VEREMOS

Estava na Europa em 1915, quando recebi da Diretoria do Aero Club da América um convite para tomar parte no Segundo Congresso Científico Pan-Americano, onde se fizeram representar, pelos seus filhos mais ilustres, todos os países do nosso continente.

Aproveitei a oportunidade, que tão especialmente se me oferecia, para, mais uma vez, exprimir a minha inteira confiança no futuro da navegação aérea.

Escolhi, para isso, este tema:

Como o aeroplano pode facilitar as relações entre as Américas.

As condições topográficas do continente sul-americano, tornando economicamente impossível a construção de estradas de ferro e, portanto, o transporte e comunicação adequados, têm retardado a estreita união, tão desejável, entre os estados do hemisfério ocidental. Cidades importantes, situadas em grandes altitudes, ficam isoladas. Algumas, em verdade, parecem estar, praticamente, fora do alcance da civilização moderna.

A longa e penosa viagem, o tempo que nela se gasta, em vapor, vai demorando a aliança íntima dos países sul-americanos com os Estados Unidos, para quem parecem inacessíveis, por tão remotos.
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Um largo tempo de percurso nos separa, impedindo o desenvolvimento de proveitosas relações comerciais, reciprocamente interessantes, sobretudo agora que a guerra anormaliza o mercado mundial.

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Quem sabe quando uma potência européia há de ameaçar um estado americano? Quem poderá dizer se na presente guerra não veremos uma potência européia vir apoderar-se de território sul-americano? A guerra entre os Estados Unidos e um país da Europa é impossível? Uma aliança estreita entre a América do Norte e a do Sul redundaria em uma força formidável.

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Eu vos falei do comércio e da dificuldade do seu desenvolvimento, das facilidades de transporte e comunicações e do incremento das relações amistosas. Estou convencido que os obstáculos de tempo e distância serão removidos. As cidades exiladas da América do Sul entrarão em contato direto com o mundo de hoje. Os países distantes de encontrarão, apesar das barreiras de montanhas, rios e florestas. Os Estados Unidos e os países sul-americanos, se conhecerão tão bem como a Inglaterra e a França se conhecem. A distância entre Nova York as Rio de Janeiro, que é agora de mais de vinte dias de viagem por mar, será reduzida a 2 ou 3 dias. Anulados o tempo e a distância, as relações comerciais, por tanto tempo retardadas, se desenvolverão espontaneamente. Teremos facilidades para as comunicações rápidas. Chegaremos a um contato mais íntimo. Seremos mais fortes, nos nossos laços de compreensão e amizade.

Tudo isso, Srs., será realizado pelo aeroplano.

Não me parece muito longe o tempo em que se estabeleça o serviço de aeroplanos entre as cidades dos Estados Unidos e as capitais sul-americanas. Com um serviço postal em aeroplano e a comunicação entre os dois continentes se reduzirá de vinte para dois ou três dias. O transporte de passageiros entre Nova York e os mais longínquos pontos da América do Sul não é impossível. Creio, Srs., que o aeroplano, com pequenos aperfeiçoamentos, resolverá o problema por que tanto temos lutado.
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A possibilidade da navegação aérea entre os Estados Unidos e a América doSul, é mera especulação fantasiosa?

Intimamente creio que a navegação aérea será utilizada no transporte de correspondência e passageiros entre os dois continentes. Algum de vós demonstrará incredulidade e rirá desta predição.

Sem embargo, faz 12 anos que eu disse que as máquinas aéreas tomariam parte nas futuras guerras e todos, incrédulos, sorriram.

Em 14 de julho de 1903, voei sobre a revista militar de Longchamps. Nela tomavam parte 50.000 soldados e em seus arredores se acotovelavam 200.000 espectadores. Foi a primeira vez que a navegação aérea figurou em uma demonstração militar. Naquela época, predisse que a guerra aérea seria um dos aspectos mais interessantes das futuras campanhas militares. Minha predição foi ridicularizada por alguns militares; outros, entretanto, houve que, desde logo, alcançaram as futuras e imensas utilidades da navegação aérea. Dentre estes, é, para mim, grato recordar o nome do General André, então Ministro da Guerra da França, de quem recebi a seguinte carta:

MINISTÈRE DE LA GUERRE
Cabinet du Ministre

Paris, le 19 Juillet 1903

Monsieur,

Au cours de la revue du 14 Juillet, j'avais remarqué et admiré la facilité et la sureté avec les-quelles évoluait le ballon que vous dirigiez. Il était impossible de ne pas constater les progrès dont vouz avez doté la navigation aérienne. Il semble que, grace à vous, elle doive se prèter désormais à des applications pratiques, surtout au poin de vue militaire.

J'estime qu' à cet égard elle peut rendre des services très sèrieux en temps de guerre...

GENERAL ANDRÉ.

Consideremos, entretanto, os acontecimentos desde aquela época. Consideremos o valioso trabalho que o aeroplano tem produzido na atual guerra.

A aviação revolucionou a arte da guerra.

A cavalaria, que teve grande importância em momentos valiosos, deixou de existir.
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No meu livro "Dans l'Air", publicado em 1904, eu dizia:

"... Je ne puis toutefois abandonner ce suject sans faire allusion à un avantage maritìme unique de l'aéronef: je veux dire la faculté que possède le navigateur aérien d'apercevoir les corps en mouvement sous la surface des eaux. Croisant à bout de guide-rope sur la mer et se maintenant à la hauteur qui lui parait convenable, l'aéronef pròmene librement en tous sans le navigateur. Cependant, le sous-marin qui poursuit sa course furtive sous les vagues est parfaitement visible pour lui, quand, du pont d'un navire de guerre, il reste absolument invisible. C'est un fait d'observation et qui tient à certaines lois de l'optique. Ainsi, chose vraiment curieuse, l'aéronef du xxo siècle peut devenir, à son dèbut, le grand ennemi de cette autre merveille du xxo siècle, le sous-marin! Car tandis que le sous-marin est ímpuíssant contre l'aéronef, celui-ci, animé d'une vitesse double, peut croiser à sa recherche, suivre tous ses mouvements, les signaler aux navires qu'il menace. Et enfin, rien n'empêche l'aéronef de détruire le sous-marin en dirigeant contre luí des longs projectiles chargés de dynamite et capables de pénétrer sous les vagues à des profundeurs où l'artillerie ne peut atteindre du pont d'un cuírassè."
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Vemos que hoje se realiza, inteiramente, essa previsão, feita há doze anos, quando a Aeronáutica acabava de nascer.
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O aeroplano provou a sua importância suprema nos reconhecimentos.

De seu bordo, podem-se locar as trincheiras inimigas, observar os seus movimentos, o transporte de tropas, munições e canhões. De bordo do aeroplano, por meio de telegrafia sem fios, ou de sinais, pode-se dirigir o fogo das forças. Por meio de informações transmitidas pelo telégrafo sem fios, grandes peças de artilharia podem precisar seus tiros contra as trincheiras e baterias inimigas......... O avião é de maior valor na defesa das costas do que os cruzadores.
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A aviação demonstrou-se a mais eficaz arma de guerra tanto na ofensiva como na defensiva. Desde o início da guerra, os aperfeiçoamentos do aeroplano têm sido maravilhosos.

Quem, há cinco anos atrás, acreditaria na utilização de aeroplanos para atacar forças inimigas? Que os projéteis de canhões poderiam ser lançados com efeitos mortíferos de alturas inacessíveis ao inimigo?

Desde o começo da guerra, os aparelhos têm melhorado. Têm sido aumentados em dimensões e alguns, hoje, são feitos exclusivamente de aço. Os motores igualmente se têm aperfeiçoado. O mais espantoso acontecimento foi o desenvolvimento dos canhões para aeroplanos. A princípio, o recuo dos canhões, ao atirar, constituía a maior dificuldade relativa aos ataques aéreos. Os constantes e repetidos choques do contra-golpe do disparo mesmo de pequenos canhões, logo bambeavam as frágeis estruturas dos aeroplanos assim utilizados, pondo-os fora de uso. Este inconveniente já está sanado. Novos canhões foram inventados, que não produzem contra-choque. Consistem em um tubo do qual são expelidos dois projéteis, por uma única explosão. No momento de atirar, um dos projéteis, uma mortífera bala de aço, desce velozmente em direção ao inimigo, e o outro, de areia, é descarregado no sentido contrário; dessas duas descargas simultâneas resulta a ausência de contra-choque.

Imaginai o poder deste terrível fogo lançado de um aeroplano!

Se o aeroplano, Srs., se tem mostrado tão útil na guerra, quanto mais não o deverá ser em tempos de paz?

Há menos de dez anos o meu aparelho era considerado uma maravilha. Nele havia lugar para apenas uma pessoa; eu me utilizei de uma motor de menos de 20 hp. A princípio apenas consegui voar alguns meros, e pouco depois alguns quilômetros. Meu recorde foi de 20 quilômetros. Eu carregava gasolina suficiente para um vôo de 15 minutos. Naquela época o aeroplano era considerado um brinquedo. Ninguém acreditava que a aviação chegaria ao progresso de hoje. Nesses tempos voávamos apenas quando a atmosfera estava tranqüila, geralmente ao nascer do sol ou ao seu pôr.

Acreditava-se que um aeroplano só poderia voar quando não houvesse vento. Hoje fabricam-se aparelhos que podem transportar 30 passageiros, capazes de viajar nos ares durante horas, de percorrerem cerca de mil milhas sem tocar em terra, movido por motores num total de mais de mil cavalos. Um aeroplano já atingiu a altura de 26.200 pés, e já se manteve no ar durante 24 horas e 12 minutos, e entre o levantar e o pôr do sol, percorreram-se, em aeroplano, 2.100 quilômetros. Não tememos mais ventos nem temporais; o aparelho moderno de voar atreve-se em qualquer céu e atravessa tempestades de qualquer velocidade, e pode, ainda, elevar-se acima das regiões tempestuosas. Ainda agora o aeroplano está em sua infância. No espaço de dez anos ele progrediu mais rapidamente que o automóvel.
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Por meio do aeroplano, estamos hoje habilitados a viajar com velocidade superior a 130 milhas por hora. Para fins comerciais e comunicações internacionais, tanto as estradas de ferro como os automóveis, chegaram a um ponto em que a sua utilidade termina. Montanhas, florestas, rios e mares, entravam o seu progresso. Mas o ar fornece um caminho livre e rápido para o aeroplano; para ele não há empecilhos. A atmosfera é o nosso oceano e temos portos em toda a parte!...
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Eu, que tenho algo de sonhador, nunca imaginei o que tive ocasião de observar quando visitei uma enorme fábrica nos Estados Unidos. Vi milhares de hábeis mecânicos ocupados na construção de aeroplanos, produzidos diariamente em número de 12 a 18.

continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Soares de Passos (O Mendigo)

Nas torres soberbas da grande cidade
O sol desmaiado não tarda a morrer;
Recrescem as sombras: que importa? a vaidade
No manto das sombras envolve o prazer.

E u velho entretanto lá sobe a montanha,
Caminha, caminha, no cimo parou:
Em frígidas gotas o rosto lhe banha
Suor copioso, que à terra baixou.

Quis antes da morte, nas serras distantes
Fitar inda os olhos cansados da luz;
A aldeia da infância saudar por instantes,
Depois satisfeito depor sua cruz.

Olhou, e um suspiro de vaga saudade
Juntou a seus prantos em funda mudez;
Depois, ao volver-se, topando a cidade,
Que em ébrio tumulto folgava a seus pés:

«Mal hajas, cidade, que ao pobre faminto
«O pão da desgraça negaste cruel!
«Mal hajas, mal hajas, que a terra do extinto
«Talvez lhe negaras, à tumba infiel!»

E exausto e sem forças, caiu de joelhos;
E a fronte cansada firmou no bordão:
Passados instantes, os olhos vermelhos
Ao céu levantava, dizendo: perdão!

Caíam-lhe soltas no colo vergado
As longas madeixas em longos anéis:
Que nobre semblante de rugas sulcado,
Sulcado dos anos e mágoas cruéis!

«Perdão para as vozes que solta a desgraça!
«Perdão para o triste, perdão, ó meu Deus!
«Bem hajas, que aos lábios lhe roubas a taça
«De fel e amarguras, abrindo-lhe os céus.

«Já filhos não tenho, levou-mos a guerra;
«Esposa não tenho, finou-se de dor;
«Amigos não vejo na face da terra:
«Que faço eu no mundo? bem hajas, Senhor!

«Às portas do rico bati sem alento,
«Eu rico n'outrora, mendigo por fim:
«O rico sem alma negou-me o sustento,
«Aqueles que amava fugiram de mim.

«Vaguei pelo mundo, nas faces mirradas
«Colhendo os insultos que ao pobre se dão;
«Sem pão, sem abrigo, por noites geladas
«Pousei minha fronte nas lajes do chão.

«Que vezes a morte chamei sem alento
«Cansado dos anos, e fomes, e dor!
«A morte não veio: sofri meu tormento...
«Só hoje me ouviste! bem hajas, Senhor!

«Os homens e o mundo negaram-me os braços,
«Mas tu me recolhes, tu me abres os teus...
«Minha alma te busca, desprende-a dos laços...
«Perdão para todos, perdão, ó meu Deus!»

E um ai derradeiro soltou d'ansiedade,
Caindo por terra nas urzes do chão;
Ao longe, no seio da grande cidade,
Brilhava das festas nocturno clarão.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Jacqueline Aisenman (Varal do Brasil Informa)

Bom dia amigos!

Neva muito em Genebra neste mês de fevereiro! Se janeiro foi até clemente, fevereiro nos mostra bem que o inverno ainda não acabou!

Enquanto isto, ao sul do Equador, nas belas terras do Brasil, termina hoje o carnaval, a maior festa popular do mundo. E, com se diz brincando: começará finalmente o ano de 2013 por lá!

Brincadeiras e frio à parte, nós do Varal continuamos nossas atividades e gostaríamos de compartilhar com vocês como estão indo cada uma delas.

Sobre o Concurso:

- As inscrições para o I Prêmio Varal do Brasil de Literatura continuam abertas, temos recebido várias inscrições, o que nos deixa muito felizes. Se você ainda não se inscreveu, não perca tempo, não perca a oportunidade! Peça o regulamento através de nosso e-mail varaldobrasil@gmail.com e enviaremos todas as coordenadas.

Sobre o Salão do Livro de Genebra 2013:

- Infelizmente nos restam muito poucas vagas para autores que desejem vir autografar em Genebra. Para os que desejem apenas expor seus livros ainda temos vagas (também não muitas). Pediríamos que entrassem em contato conosco o mais breve possível para que a inscrição seja feita. Uma vez atingido o número adequado de autores e livros não acrescentaremos mais ninguém em respeito aos que já estiverem inscritos. Contato: varaldobrasil!@gmail.com

- A todos os inscritos que ainda não nos enviaram o material necessário por e-mail (fotos de capa em boa resolução (fotos pequenas não servem), fotos de rosto em boa resolução (fotos de corpo inteiro e fotos pequenas não servem), resenhas curtas dos livros e biografias curtas (resenhas longas e biografias longas – mais de dez linhas, não servem) pedimos que nos enviem no mais breve prazo, assim como também pedimos que enviem os livros. Os correios, quando os livros não são enviados por SEDEX, podem levar muito tempo para entregar os pacotes.

Sobre as revistas:

- Encerradas as inscrições para a revista de março (sobre o amor) que sairá no final deste mês. Contato: varaldobrasil!@gmail.com

 Até 10 de março estarão abertas as inscrições para a revista de abril com tema livre;

 Até 10 de abril estarão abertas as inscrições para a revista de maio com o tema SAUDADE (Parece que foi ontem...);

Até 10 de maio estarão abertas as inscrições para a revista de junho com o tema SEGREDOS E PECADOS;

Até 10 de junho estarão abertas as inscrições para a revista de julho/agosto com tema livre.

Cada edição encerrará as inscrições na data marcada, ou antes, caso atingirmos um número adequado de participantes.

Esperamos que para você que está aqui pela Europa o frio seja cada vez mais ameno e que a esperança da chegada da primavera no próximo mês anime o seu coração!

Esperamos que para você que está no Brasil o carnaval tenha sido (ou esteja sendo!) alegre e tenha trazido muitos bons momentos em sua vida!

Esperamos que para você que está nos outros países dos outros continentes onde também chegamos, que as boas coisas estejam fazendo parte da sua vida a cada instante!

Em nosso site, vejam as fotos de Kacianni Ferreira
http://www.varaldobrasil.ch/23264/317322.html e

Leni André: 
http://www.varaldobrasil.ch/23264/317343.html

Também as pinturas de Maria Lagranha
http://www.varaldobrasil.ch/23222/317364.html e

EstherRogessi 
http://www.varaldobrasil.ch/23222/301201.html

Um abraço sempre amigo,
 
Jacqueline Aisenman
Editora-Chefe
Varal do Brasil
http://www.varaldobrasil.com
http://varaldobrasil.blogspot.com
E-mail: varaldobrasil@gmail.com
http://www.facebook.com/jacquelineaisenman
http://www.facebook.com/pages/VARAL-DO-BRASIL/107298649306743
www.coracional.com
www.certaslinhastortas.blogspot.com

Fonte:
E-mail enviado por Jacqueline

Fabrício Brandão (Diversos Afins, primeira edição de 2013)

Caro Leitor,

A Diversos Afins desfolha sua primeira edição de 2013. Entre palavras e imagens, destacamos:

- as incursões poéticas de Gil T. de Sousa, Daniela Delias, Jorge Vicente, Alexandra Vieira de Almeida, Lílian Maial e Alvaro Posselt

- os contos de Natércia Pontes, Bruna Mitrano e Eleonora Marino Duarte

- a multiplicidade de mundos nos desenhos de Luiza Maciel Nogueira

- uma conversa com a fotógrafa e poetisa Mercedes Lorenzo

- percursos de Bolívar Landi no mais novo filme de Quentin Tarantino

- as escutas de Larissa Mendes sobre o novo disco da Orquestra Imperial

Estes e outros caminhos em:
www.diversosafins.com.br

Saudações culturais,
Fabrício Brandão & Leila Andrade – LEVEIROS
twitter: @diversosafins
facebook: facebook.com/diversosafins

Fonte:
e-mail enviado por Fabrício Brandão

Bibliotecas de São Paulo (Agenda de Fevereiro)

Leitura da minha história

Com Anita Correa

Aproximar o público do projeto com as diferentes formas de leitura (leitura da palavra escrita, leitura visual, leitura artística) e construir individualmente a história de vida de cada um, usando um dos recursos utilizados durante as oficinas, para valorizar a história pessoal de cada participante e suas possibilidades de leitura de mundo e das letras.

Dias 6,13,20 e 27 de fevereiro (qua), das 15h às16h – Biblioteca Pública Pedro Nava

CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

Brincando de ler


Com Maria de Lourdes Jorge, Cecília Graner e Lucélia Silva
Tarde de dobraduras, histórias e tangram.

Dias 7 e 14 de fevereiro (qui), das 14h30 às 16h30 - Biblioteca Pública Paulo Duarte
================
Contar é preciso, ler é indispensável, brincar é fundamental
 
Com Antonia Andréa de Sousa.

Leitura e Narrativas de histórias e contos estimulam o potencial criativo e o prazer de ler. Público alvo: participantes de programas de incentivo à leitura. Inscrições pelo telefone: 5687-0408.

Dia 20 de fevereiro (qua), 10h e14h30 - Biblioteca Pública Belmonte
=============
Sarau líteromusical da Zona Norte

Organização: Tereza Rocha

Espaço onde as pessoas se reúnem para se expressarem ou se manifestarem artisticamente – dança, música, teatro, poesia, leitura de textos etc. Além disso, todo mês um escritor é homenageado, onde os participantes entraram em contato com as obras e biografia do escritor homenageado. Livre.

Dia 22 de fevereiro (sex), 14h – Biblioteca Pública Nuto Sant’anna

Fonte:
e-mail recebido de Secretaria Municipal de Bibliotecas de São Paulo

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 4

Creio interessante citar a opinião de algumas revistas sobre esses meus vôos, por elas amplamente apreciados. Não o faço por não ter à mão, pois nunca me preocupei em colecionar artigos que se referiam a mim. Dentre todas, porém, lembro-me que "L'Aerophile", a mais importante e antiga das revistas de Aeronáutica, considerou-os um acontecimento histórico.

"L'Illustration" e "La Nature", cujos números aqui encontrei, assim os consignaram:

"L'ILLUSTRATION"
SAMEDI 27 OCTOBRE 1906

M.Santos-Dumont, dèja vainqueur du prix Deutsch, de 100.000 fcs. grace à son dirigeable, vient de remporter aussi, mardi dernier, la Coupe Archdeacon, réservée aux appareils d'aviation. Monté sur cet appareil original, M. Santos-Dumont, a parcouru, l'autre matin, d'un breau vol, une distance de 60 mètres. La photographie que nous donnons ici est, croyons-nous, la seule qui ait été authentiquement prise au cours de cette passionnante expérience; elle montre que l'aéroplane ne s'est pas elevé à une bien grande hauteur audessus du sol: 2 mètres environ. La, d'ailleurs, n'était pas la question, et le grand intérêt de l'experience était de dèmontrer que l'on peut, sans le concours d'un support plus léger que l'air, réaliser le vol plane. Cette démonstration est aujourd'hui faite.


Eis aqui parte do artigo que publicou "L'Illustration" e, na página em frente, a fotografia que o acompanhava.

"La Nature" disse:

"La journée du 13 Septembre 1906 sera désormais historique, car, pour la prémiere fois, un homme s'est elevé dans l'air par ses propres moyens, Santos-Dumont, sans cesser ses travaux sur le "plus léger que l'air" fait aussi de três importantes études sur le "plus lourd que l'air", et c'est lui qui est parvenu à "voler" en ce jour mémorable, devant un public nombreux.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
... il rest un fait acquis, c'est qu'il s'est éléve dans l'espace, sans ballon, et c'est une victoire importante pour les partisans du "plus lourd que l'air".
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
C'est donc maintenant (23 Octobre) la victoire complète du "plus lourd que l'air; Santos-Dumont a démontré de façon indiscutable qu'il est possible de s'élever du sol par ses propres moyens et de se maintenir dans l'air."

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
* *

Um público numeroso assistiu aos primeiros vôos feitos por um homem, como tais, reconhecidos por todos os jornais do mundo inteiro. Basta abri-los, mesmo os dos Estados Unidos, para se constatar essa opinião geral.

Podia citar todos os jornais e revistas do mundo, todos foram, então, unânimes em glorificar "esse minuto memorável na história da navegação aérea".
* *

No ano seguinte o aeroplano Farman fez vôos que se tornaram célebres; foi esse inventor-aviador que primeiro conseguiu um vôo de ida e volta. Depois dele,veio Bleriot, e só dois anos mais tarde é que os irmãos Wright fazem os seus vôos. É verdade que eles dizem ter feito outros, porém às escondidas.

Eu não quero tirar em nada o mérito dos irmãos Wright, por quem tenho a maior admiração; mas é inegável que, só depois de nós, se apresentaram eles com um aparelho superior aos nossos, dizendo que era cópia de um que tinham construído antes dos nossos.

Logo depois dos irmãos Wright, aparece Levavassor com o aeroplano "Antoinette", superior a tudo quanto, então, existia; Levavassor havia já 20 anos que trabalhava em resolver o problema do vôo; poderia, pois, dizer que o seu aparelho era cópia de outro construído muitos anos antes. Mas não o fez.

O que diriam Edison, Graham Bell ou Marconi se, depois que apresentaram em público a lâmpada elétrica, o telefone e o telégrafo sem fios, um outro inventor se apresentasse com uma melhor lâmpada elétrica, telefone ou aparelho de telefonia sem fios dizendo que os tinha construído antes deles?!

A quem a humanidade deve a navegação aérea pelo mais pesado que o ar? Às experiências dos irmãos Wright, feitas às escondidas (eles são os próprios a dizer que fizeram todo o possível para que não transpirasse nada dos resultados de suas experiências) e que estavam tão ignoradas no mundo, que vemos todos qualificarem os meus 250 metros de "minuto memorável na história da aviação", ou é aos Farman, Bleriot e a mim que fizemos todas as nossas demonstrações diante de comissões científicas e em plena luz do sol?
* *

Nessa época, os aparelhos eram grandes, enormes, com pequenos motores, voavam devagar, uns 60 quilômetros por hora ou pouco mais. Mandei, então, construir um motor especial de minha invenção, desenhado especialmente para um aeroplano minúsculo.

Este motor possuía dois cilindros opostos, o que trás a inconveniência da dificuldade de lubrificação, mas, também, as vantagens consideráveis de um peso pequeno e um perfeito equilíbrio, não ultrapassado por qualquer outro motor.

Pesava 40 quilos e desenvolvia 35 HP.

Nunca se conseguiu um motor fixo, resfriado a água, e de peso insignificante, somente igualado, mais tarde, pelos motores rotativos, aos quais, entretanto, fui sempre contrário, desde o seu aparecimento. Hoje, 10 anos passados, parece-me, confirma-se esta minha apreciação, pois o motor fixo tem tido uma aceitação geral.

A "Demoiselle" media 10 metros quadrados de superfície de asas; era 8 vezes menor que o 14-bis! Com ela, durante um ano, fiz vôos todas as tardes e fui, mesmo, em certa ocasião, visitar um amigo em seu Castelo. Como era um aeroplano pequenino e transparente, deram-lhe o nome de "Libelule" ou "Demoiselle".

Este foi, de todos os meus aparelhos, o mais fácil de conduzir, e o que conseguiu maior popularidade.

Com ele obtive a "Carta de piloto" de monoplanos. Fiquei, pois, possuidor de todas as cartas da Federação Aeronáutica Internacional: — Piloto de balão livre, piloto de dirigível, piloto de biplano e piloto de monoplano.

Durante muitos anos, somente eu possuía todas essas cartas, e não sei mesmo se há já alguém que as possua.

Fui pois o único homem a ter verdadeiramente direito ao título de aeronauta, pois conduzia todos os aparelhos aéreos.

Para conseguir este resultado me foi necessário não só inventar, mas também experimentar, e nestas experiências tinha, durante dez anos, recebido os choques mais terríveis; sentia-me com os nervos cansados.

Anunciei a meus amigos a intenção de pôr fim à minha carreira de aeronauta, — tive a aprovação de todos.
* *

Tenho acompanhado, com o mais vivo interesse e admiração, o progresso fantástico da Aeronáutica. Bleriot atravessa a Mancha e obtém um sucesso digno de sua audácia. Os circuitos europeus se multiplicam; primeiro, de cidade a cidade; depois, percursos que abrangem várias províncias; depois, o "raid" de França à Inglaterra; depois, o "tour" da Europa.

Devo citar também o primeiro "meeting" de Reins que marcou, pode-se dizer, a entrada do aeroplano no domínio comercial.
* *

Entramos na época da vulgarização da aviação e, nessa empresa, brilha sobre todos, o nome de Garros.
Esse rapaz personificou a audácia; até então, só se voava em dias calmos, sem vento. Garros foi o primeiro a voar em plena tempestade. Logo depois, atravessou o Mediterrâneo.

O estado atual da aeronáutica todos nós o conhecemos, basta abrir os olhos e ler o que ela faz na Europa; e é com enternecido contentamento que eu acompanho o domínio dos ares pelo homem:

É meu sonho que se realiza.

––––––-
Continua… O Que Nós Veremos

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Soares de Passos (À Morte do meu Amigo Licínio F. C. de Carvalho)

Morreste, amigo, partiste
Desta mansão passageira!
Bem depressa da carreira
Tocaste a meta fatal!
Com a folhagem dos bosques
Gelou-te o vento do outono,
E dormes o longo sono
Do teu leito sepulcral!

Já tua mão extremosa
Não aperta a mão do amigo
Que tantas vezes contigo
Em sonhos vãos delirou.
No seio da fria terra
Já não me escutas nem falas,
Contando lutos ou gaias
Do teu viver que passou.

Oh! quantas vezes, imersos
Nesses íntimos enleios
Que fazem um de dois seios,
Sentimos horas fugir!
Quantas, sonhando horizontes
De poesia, amor, ou glória,
Numa expansão transitória
Criamos longo porvir!

E morto jazes, ai! morto,
Sem poder de teus anelos
Realizar os sonhos belos,
Cruzar a vasta amplidão?
Morto sem ter dito ao mundo
A palavra augusta e santa
Que a turba ansiosa espanta,
E que é do génio o condão?

Morto à luz da tua aurora
Sem que à luz da tua sesta
Pudesses, na hora funesta,
Sorrir ao passado teu?
Morto, ai, morto sem ter ganho
Mais lágrimas de saudade,
Tão doces à soledade
Daquele que já morreu!

Deus! se a vida é campo ameno
Onde se vem colher flores,
Porque, do sol aos fulgores,
Não se hão-de as flores colher?
Se é deserto ingrato e rude,
Onde não brota uma fonte,
Porque há-de em nosso horizonte
A luz do dia nascer?

Mas dorme, descansa, amigo,
Que a vida é o deserto às vezes...
Estrada de mil reveses,
E de voragens fatais...
E que é o poeta? o viajante
Que fere os pés nos abrolhos,
Enquanto levanta os olhos
Às regiões divinais.

Ave estrangeira que passa
Neste clima proceloso,
Com seu canto mavioso
Levando as turbas d'após;
Mas que chora de saudade
Por sua pátria querida,
Té que afinal abatida
Cai sem alento e sem voz.

Descansa! no frio leito
De teu eterno repouso
Não te irá o sol formoso
Cada manhã despertar;
Mas também, da aurora à noite,
Não calcarás os espinhos
Que em teus agrestes caminhos
Verias da flor a par.

Lá não irão festejar-te
Ruidosos ecos do mundo,
Que dizem, no som profundo,
Qual é do génio o poder;
Mas também tuas coroas
Não regarás com teu pranto,
Nem a inveja em negro manto
Tua estrela há-de envolver.

Descansa! que digo! surge!
Ergue-te à luz, ó poeta,
E revoa aonde inquieta
Te levava a inspiração!
Sonhaste mundos brilhantes,
Sonhaste amor e poesia:
No país do eterno dia
Vai colher teu galardão!

Vai! das plagas do desterro
Eis-te afinal resgatado:
Procura regenerado
A pátria que te sorri!
Lá terás as harmonias
Que soltam milhões d'esferas,
E florentes primaveras
Quais não terias aqui.

Lá goza! lá, sacudido
Sobre a terra o térreo manto,
Desprende teu novo encanto
De novos sóis ao fulgor!
E, se lá pode chegar-te
Esta nota de saudade,
Escuta a voz da amizade
Entre os mil hinos do amor!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Vicência Jaguaribe (O Samba, da Ficção à Realidade)

A trama da novela “Lado a Lado”, produzida pela Rede Globo e transmitida no horário das seis, ambienta-se no Rio de Janeiro, então capital da recém-proclamada república. O ambiente histórico-social é o do início do século XX, poucos anos após a abolição da escravatura, quando os negros, embora libertos, viviam ainda sob o tacão dos brancos.

Morando nos morros, em situações precárias, os ex-escravos, negros ou mulatos, não frequentavam os lugares frequentados pelos brancos nem tinham acesso ao estudo e ao trabalho bem remunerado. Viviam, pois, de biscates. Homens pobres, negros (e também brancos), que haviam ingressado na Marinha, eram humilhados e até recebiam castigos físicos, o que provocou a Revolta da Chibata, insurreição dos marinheiros da Marinha Brasileira, em cujo primeiro dia houve ameaça de bombardeamento da cidade do Rio de Janeiro, mas os revoltosos tiveram de se render. As mulheres viviam como criadas nas casas de famílias endinheiradas ou vendiam doces e outras comidas, cujas receitas vieram da terra de seus antepassados. Porém, principalmente, eram com frequência assediadas sexualmente pelos brancos, como se ainda vivessem na senzala.

Preservar as tradições de seus ancestrais trazidos contra a vontade da mãe África era a única maneira de construir uma identidade negra. Mas a sociedade dos brancos criava empecilho a esse desejo de individualidade coletiva, considerando ilegal a prática da capoeira e dos ritos religiosos africanos.

Focaliza-se, então, o momento em que surgiu o samba e a reação da sociedade branca àquele ritmo primitivo, de sensualidade explícita. E é esse o ponto mais interessante da novela: os brancos racistas e imunes às transformações e ao advento de uma nova era, lutando para ignorar o ritmo que nascia da musicalidade inerente aos negros e que acabou sendo adotado como o ritmo brasileiro por excelência.

É interessante pensar nessa luta — que acabou gloriosa — hoje, no ano de 2013, nestes dias de carnaval, momento da apoteose do samba e dos sambistas, muitos dos quais descendentes de escravos e herdeiros da genialidade e da coragem dos primeiros sambistas. Eles, os sambistas de hoje, que, em bom número, ainda moram nos morros do Rio de Janeiro e que são, pelo menos durante os dias de carnaval, respeitados e homenageados como os legítimos representantes da brasilidade.

Agora, saiamos um pouco do universo ficcional da novela e entremos na máquina do tempo. Tentemos reconstituir o mundo da realidade em que surgiu o samba.

Comecemos com a origem e o significado da palavra samba. Segundo consta nos variados estudos sobre o assunto, tem o vocábulo origem no termo africano semba, cujo significado é rejeitar, separar. Esse elemento lexical denominou uma dança, a “umbigada”: no centro de uma roda formada por homens e mulheres que batem palmas, fazem coro e tocam instrumentos de percussão, o dançarino solista, com requebros, dá uma umbigada em um companheiro da roda, que vai substituí-lo no centro. Outros instrumentos, importantes para o samba como hoje o conhecemos, foram sendo inseridos nessas manifestações de dança: o ganzá, a cuíca, o reco-reco, o pandeiro.

Mas, ao que parece, o samba cantado está diretamente relacionado às cantigas dos negros nas senzalas, associadas ao ritmo das umbigadas. Esse canto era marcado por uma estrofe solo, com um refrão fixo cantado em coral, como resposta. Essa é uma estrutura tipicamente africana.

Para que surgisse o samba propriamente dito, somou-se uma conjunção de influências: da umbigada, do lundum ou lundu e do maxixe, considerado uma versão nacional da polca, ritmo ao qual foram introduzidos passos sensuais.

Pode-se determinar o espaço físico do surgimento do samba: a cidade do Rio de Janeiro, em uma área conhecida na época como Pequena África — mais especificamente Cidade Nova —, território que compreendia o eixo que vai da Avenida Presidente Vargas ao canal do Mangue, cujos extremos eram a zona do porto, o Centro tradicional e o bairro do Estácio. Concomitantemente surgem, no Rio de Janeiro, os primeiros ranchos carnavalescos, oriundos dos ranchos baianos da Folia de Reis, uma manifestação, pois, da cultura tradicional baiana na cidade. A informação da inserção de elementos da tradição baiana no Rio de Janeiro é importante: os boêmios, músicos e cantores reuniam-se nas casas de mulheres baianas, que organizavam as festas e os desfiles carnavalescos da comunidade.

Essas baianas, chamadas tias, proporcionaram o ambiente para o surgimento do samba, gênero novo na música popular brasileira. Foi na casa de tia Dadá que o compositor carioca Caninha ficou conhecendo o samba-raiado, chamado depois samba de partido-alto, cuja característica era o improviso cantado em forma de desafio por dois ou mais solistas.

A mais famosa dessas baianas, no entanto, foi a tia Ciata — Hilária Batista de Almeida —, baiana de Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso e de Maria Bethânia. A casa de tia Ciata, em cujas festas rolava cachaça em excesso, era frequentada por figuras como Pixinguinha, João da Baiana, Sinhô e Donga. Aliás, uma versão dos fatos diz haver sido Donga o autor do primeiro samba brasileiro, Pelo telefone, composto em 1916, versão contestada pelos outros frequentadores da casa de tia Ciata, com o argumento de que o que se compunha ali era coletivo.

Mas a polêmica em torno do samba Pelo telefone vai além de sua autoria. Há mais de uma versão de sua letra. A versão gravada pela Casa Édison, em 1917, diz o seguinte: O chefe da folia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar. Outra versão, essa usada pelos que se sentiram lesados por Donga e afirmavam que a letra da música era coletiva, traz os seguintes versos: O chefe da polícia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que na Carioca / Tem uma roleta / Para se jogar. Como se vê, é a versão não oficial, isto é, a não gravada na época, a mais aceita hoje. Essa versão, inclusive, está apoiada pelo contexto da época: em maio de 1913, o jornal “A noite”, para denunciar a incapacidade da polícia do Rio de Janeiro, mandou instalar uma roleta no Largo da Carioca, 14, em frente à sua sede. Os repórteres convidavam os passantes a jogar. No dia seguinte, o próprio jornal publicou uma reportagem com o título “O jogo é livre”.

Donga, anos depois, reconheceu que o samba não fora composição sua. Ele simplesmente aproveitara versos das trovas populares.

Finda a visão histórica do nascimento do samba, voltemos ao universo ficcional da novela. Há no teleteatro em foco um casal que poderia muito bem haver existido na realidade: o negro Zé Maria e a mulata Izabel. Ele entrou na Marinha, foi humilhado e chicoteado. Revoltado, insurge-se contra o comandante do navio e participa da “Revolta da Chibata”. Zé Maria foi expulso da Marinha e preso.

Izabel, que no momento da revolta estava noiva de Zé Maria, sem saber que o noivo havia sido preso, sentiu-se abandonada. Desgostosa e carente, acabou seduzida pelo filho branco de um senador da República, e engravida. A esposa do senador fez tudo para separar o filho — um rapazote irresponsável e contumaz sedutor de mulatas — de Izabel, que, aliás, não o amava. A baronesa, como gostava de ser tratada, simulou, inclusive, a morte do neto.

Na época, apresentava-se, no Rio de Janeiro, uma dançarina francesa, que se interessou pelas manifestações artísticas do morro e convidou Izabel a ir com ela para a França divulgar o novo ritmo oriundo das danças e cantigas dos escravos. Izabel, sem notícias de Zé Maria e sofrendo com a perda do filho, acompanha a dançarina. Na França, é sucesso. Estava, assim, começando a internacionalizar-se o samba, ritmo rejeitado pelos  brasileiros da época, grande parte dos quais ex-proprietários de escravos. Não aceitavam os novos tempos e não admitiam que uma dança de movimentos lascivos e ritmo primitivo fosse aceita e aplaudida pela sociedade e representasse o Brasil no exterior.

Projetemos um episódio fantástico. Imaginemos que fosse dado à sociedade carioca, racista e conservadora do início do século XX assistir aos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Imaginemos aqueles senhores tradicionalistas e bem postos na vida, acreditando em uma origem puramente europeia, e aquelas senhoras compenetradas e cientes de sua condição e origem, vendo a apoteose do samba e dos sambistas, em uma festa cujos lugares de destaque são ocupados por negros e mulatos de várias tonalidades de pele; assistindo a uma festa cuja atração principal é a figura escultural e praticamente nua da mulata, aplaudida de pé por homens e mulheres brancos, brasileiros e estrangeiros vindos de todas as partes do mundo.

Que aconteceria às nossas personagens de ficção? Continuariam a comportar-se como escravocratas empedernidos, imunes às inovações socioculturais, ou mudariam de atitude, diante daquelas brônzeas estátuas vivas, dançando no ritmo sensual do samba?

Quem poderá responder a essas questões provenientes de uma situação surrealista? Ninguém, é claro. Mas que esse exercício de imaginação nos leve a refletir sobre a maneira como ainda é tratado em nossa sociedade esse povo que tanto contribuiu para o fortalecimento de nossa cultura e para a formação de uma identidade reconhecida lá fora como indiscutivelmente brasileira — própria do país do carnaval, que vive, nestes dias, mais um carnaval.

Fontes:
A Autora
Imagem = http://www.blogcartaobom.com.br/2012/11/dia-do-samba/

Mário Quintana (Data e Dedicatória)

Teus poemas, não os dates nunca...  Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho,
Se existe hora, é sempre a hora estrema
Quando o anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
Um poema é de sempre, Poeta:
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez ainda nem tenha nascido,
Dedica, pois, os teus poemas.
Não os dates, porém:
As almas não entendem disso...

Fontes:
"Baú de Espantos", 4ª ed., Editora Globo, SP
Imagem = http://www.tempodepoesia.name

Márcia Barbieri (O Homem do Terno de Vidro)

“O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros (...)
(Raduan Nassar - Lavoura Arcaica)”

Sentia o perfume indiscreto do concreto fresco da nossa casa. De fora, um cheiro forte de peixe me entupia as narinas. Era estranho, porque o mar estava tão longe dos nossos olhos faiscados de areia. Apenas um minúsculo aquário inabitado enfeitava meus pensamentos. A gordura mórbida da solidão. Morávamos numa ilha e jamais tivemos saudades ou necessidade do mar. O mundo ia e vinha, holístico, tão alheio a tudo... Indústrias fabricavam sonhos de novos amores e nós comíamos do pão mofado de cada dia. Vinte mil léguas submarinas. Não entendia as engrenagens engolindo monstros e crianças disformes, mas me dava por satisfeita por não ser devorada, faltavam somente alguns pedaços inúteis, que provavelmente não sentirei falta no futuro. Juntos, planejávamos viagens que nunca faríamos. Contabilizávamos filhos já perdidos nos labirintos ocos e fétidos do ventre. Não compreendia o motivo do nascimento se localizar tão a margem da lama. Bocas de lobo deságuam em mim. Encaramujo. Nas horas de monotonia crio larvas raras e até agora nenhuma se transformou em borboleta, serviram apenas para engolir nossos jardins, em seu tímido, porém grotesco gigantismo.

Olho-te. Côncavo. Um relógio de pendulo ameaça a paz das paredes caiadas. Tempo hemorrágico maculando meus olhos em andrajos de sangue e tédio. Palito os dentes e retiro restos de cadáveres. Venho me alimentando da vileza humana. Caranguejos esnobes de subúrbio.

Arrasto os pés pelos corredores ruidosos. Tudo que é velho range e dói, apenas nossos corpos se perdem num silêncio constrangedor e destrutivo. Rasgos. Você se foi. De repente. Entre os vãos. Deslizes. Não te culpo da ausência dessa paixão furta-cor. Mas peço que traga algo para estancar o sangue da minha garganta. Fisgadas. Ainda convulsiono pelo assalto ao eco das minhas palavras. Narcisos.

Torço os dedos e desfaço antigos nós. Você sempre fora forte. Viril. Um peixe grande. Observo, no entanto, a incoerência dos seus trajes. O homem do terno de vidro.
____
*Marcia Barbieri é paulista. Tem textos publicados nas revistas literárias Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas, O Bule, Meio Tom. É colunista das revistas literárias Caos e Letras e Sinestesia Cultural. Edita o blog: www.avidanaovaleumconto.blogspot.com.

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com.br/2011/02/o-homem-do-terno-de-vidro-marcia.html
Imagem = http://www.porcalhado.com

Flávia Muniz (O Espelho e a Perua)

A confusão começou
Certa vez, no galinheiro,
Quando as aves encontraram
Um espelho no terreiro.
Uma galinha vaidosa
Logo quis contar vantagem:
— Com licença, galináceas,
Vim conferir minha imagem!
A pata, torcendo o bico,
Comentou com a vizinha:
— Não vale arrancar as penas
Pra parecer mais magrinha!
E qual não foi a surpresa
Das aves estabanadas:
No reflexo do espelho
Só tinha coisas erradas!
Quem era alta e bela
Viu-se feiosa e baixinha.
Quem era gorda e forte
Ficou magrela e fraquinha.
— Credo! — grasnou o marreco.
— Cruzes! — o pinto piou.
— Incrível! — cantou o galo.
E o papagaio berrou.
A galinha carijó
Foi quem depressa falou:
— Este espelho tem feitiço...
Foi a bruxa que o mandou!
— Mentira! — disse a perua,
Balançando as pulseiras.
— Li esse conto de fadas,
Vocês só dizem besteiras!
Estufou-se, bem danada,
Mostrando o papo vermelho.
E com pose de malvada
Fez a pergunta ao espelho:
— Espelho, espelho meu!
Responda se há no mundo
Outra ave mais bonita,
Mais charmosa e elegante,
Mais esperta e fascinante,
Mais incrível e imponente,
Mais formosa do que eu?
Diga logo, espelho meu!!
Os bichos, impressionados,
Ouviram com atenção
A resposta do espelho
A tamanha pretensão:
— Se você quer a verdade,
Vou dizê-la, nua e crua.
E mostrar a realidade
Para uma simples perua.
Você disse que é esperta,
Imponente e charmosa.
Mas parece antipática,
Falando assim, toda prosa.
Desfila o ano inteiro
Como se fosse a tal.
Mas foge do cozinheiro
Quando chega o Natal!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 3. Rufina

-"Entre, Rufina."

Quando eu voltava, hoje, para casa, lendo uma folha da tarde, ouvi soar essa frase num dos bancos dianteiros. Instintivamente, olhei: Quem a proferira fora um senhor idoso, com uma grande cara bonacheirona e sonsa, dirigindo-se a uma rapariga que, não sei por que motivo, parecia hesitar sobre o estribo, como uma baratinha machucada.

O bonde estava parado. Quando o homem acabava de falar, o carro subitamente arrancou, e a moça ia perdendo o equilíbrio, soltando um desses guinchos de boneca rapidamente apertada na barriguinha. Dei um salto, voei, e quando caí em mim estava agarrando a jovem por um dos braços com a energia de um guindaste, enquanto os passageiros se levantavam à uma, como se o bonde fosse peneira de sururucar em movimento, e eles quirera.

Larguei logo a presa, que, cabisbaixa e ruborizada, foi para perto do senhor idoso. Como este me fizera uma cortesia, agradecendo a intervenção, aproveitei-me da oportunidade para pedir desculpas à menina, ainda arrufada do incidente, de a ter agarrado um pouco à bruta, no receio de a ver sofrer uma queda. Ela riu-se, com uma pontinha de desdém.

-"Queda? Ah! disso não havia perigo. Tomo o bonde em movimento a cada passinho!"

Curvei a cabeça com dignidade, como quem deliberadamente interrompe uma situação
delicada; recostei-me, e recomecei a leitura da minha gazeta. Tentei recomeçar. Mas não podia dar com o seguimento do artigo em que viera mergulhado. As seções tinham feito um chassêcroasê completo. Trechos vistosos, que antes me saltavam aos olhos, agora andavam brincando de Maria-condê pelas oito páginas do diário. Cheguei a desconfiar que alguma página se houvesse evaporado. E, na correnteza das minhas emoções embrulhadas, a consciência apenas tinha força para me sussurrar:

"Toma, burro! Bem feito. Por que é que te meteste? Por que é que não a deixaste periclitar à vontade?"

Já então, o gesto da moça, que fora quase imperceptivelmente abespinhado -também, com aquele susto -me reaparecia, em imagem, todo a arder em pura má criação. Cheguei a sentir por ela uma espécie de ódio. (Digo espécie de ódio, porque teria remorso, caso julgasse o meu coração à ligeira, capaz de tão grosseiro sentimento. O amor da justiça é inato nas almas; todos temos infinitos escrúpulos em sentenciar contra nós mesmos.)

Como quer que seja, no aceso da raiva, afastei um pouco o meu paravento, isto é, o meu jornal, e dardejei contra a rapariga uma torva olhadela de esguelha. Ela estava agora voltada para mim, de um modo repassado e calmante, olhando-me com esse ar de complacência desinteressada com que se contempla um animal de jardim zoológico. Dei imediatamente à minha olhadura envenenada o ar mais neutro e casual que foi possível. Sorri. Ela sorriu. Aquilo foi como se um céu borrascoso de repente clareasse, todo florido de nuvenzinhas recém-nascidas, castas como roupa lavada ao sol. Sorri, mais docemente. Ela baixou as pálpebras pestanudas e deu meia volta ao rosto moreno e rosado sobre cuja superfície; dura e lisa como a de uma figura de biscuít, o fumo de um cigarro vizinho punha a indecisão aérea de um tenuíssimo nevoeiro. E ainda sorria; e pude perceber que por entre a franja dos cílios a sua íris umidamente faiscava, enviesada para o meu lado, embutida numa sedosa penumbra. E os cílios palpitavam.

ainsi qu'un noir feuillage où filtre un long rayon d'étoile.

Nisto, o velho bezerrão fez sinal ao condutor e, na sua voz plácida: "Vamos, Rufina; mas não caia!" A moça riu-se de boa vontade, como um lindo modelo para anúncio de dentifrício; fez-me um cumprimento de cabeça, largo e cordial, e saltou, acompanhada pelo velhote.

Vieram-me ímpetos de saltar igualmente, mas uns temores me agarraram ao banco, pelos fundilhos, como cola. Não me acharia ela ridículo. Não daria o meu ato na vista dos passageiros? Refleti que este receio era estúpido. Eu tinha o sagrado direito de saltar onde quisesse. Demais, como é que se podia decentemente receber um sorriso de mulher bonita, sem a seguir, ainda que a custo de algum risco?

Ia eu refletindo, quando olhei para trás: Rufina tinha desaparecido. Bolas! Encolhi-me, num acabrunhado desprezo de mim mesmo, e deixei o bonde rodar. Quando dei acordo de mim, era o único passageiro restante e estava no fim da linha. Só, só na solidão do carro vazio. Só e triste como a fruta murcha que ficou no fundo do cesto. A voz do condutor português rolava, irônica, conclusiva, retumbando-me na alma como a voz do pai de Hamlet nos subterrâneos de Elsenor:

Pooonto finale!!!

Fonte:
Domínio Público

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Abílio Pacheco (A Porta de Vidro)

Semana passada, fui ao chaveiro tirar cópias de umas chaves. O molho tinha três chaves. Segurei duas delas e disse que gostaria de uma cópia de cada. Era uma senhora. Ela recolheu das minhas mãos, sumiu e depois voltou segurando a que não era para copiar e disse: duas cópias, certo? Não, senhora – respondi – uma de cada das outras duas. Ela revirou o chaveiro e fez cara de quem entendeu mas não gostou.

Colocou uma das chaves num suporte. Depois tirou e disse: É de uma porta de vidro. Como não disse nada, ela insistiu: Não é de uma porta de vidro!? Eu lhe disse que não. Ela puxou um huuummmm prolongado. Meditou e quis saber de onde era a chave. Disse-lhe que era da porta do apartamento. De vidro? Não, senhora. De madeira. Aprumou matriz e chave lisa no esmeril, resmungou: porta de vidro. Enquanto tirava a cópia da outra chave, dizia: De vidro. É de uma porta de vidro.

Aparou arestas das duas chaves e voltou-se para mim segurando a chave como brandindo: Esta chave é de uma porta de vidro! Convenci-me que não adiantaria discutir. Em qualquer outra situação, eu iria insistir que estava certo, mas havia rodado mais de 170 km (Capanema-Belém), eram quase 16h e tinha alguma fome. Além do mais, não me parecia haver motivo para insistir. Resolvi não teimar. Conforme ela me estendia a chave, eu confirmava que era. Era de uma porta de vidro. Eu pegaria as chaves, pagaria pela cópia e iria para casa.

Ela puxou de uma vez: Afinal, o senhor não disse que a porta era de madeira!? A mulher me desmontou de vez. Não quisera teimar, mas tergiversar parece que não fora a melhor opção. Estiquei um ééééé… Ela inclinou o rosto para um lado como quem dissesse ‘tô te vendo!’. Respirei calmo e disse, procurando um caminho no meio daquela armadilha. Senhora, a chave (hum!!) é de uma porta de vidro (ãh), mas a minha porta é de madeira (ah!).

Ela parecia ter se desarmado e ia me entregando a chave quando recuou novamente e perguntou onde eu morava. Cruzando minha resposta ela emendou a pergunta se eu estava indo para lá. Naturalmente, sim. Essa sua história está estranha, viu moço! Eu vou lá com o senhor. E foi. No caminho, resmungou outros problemas de clientes como eu. Aquilo não era somente uma cópia de chave errada. Seria caso de polícia. A chave era de uma porta de vidro. Conhecia bem aquelas chaves, seus formatos…

Chegamos à porta e lhe mostrei a madeira. Pegou a chave, ela mesma. Enfiou na fechadura e girou. Olhou-me aborrecida. Cobrou-me pelas cópias e pela visita. Paguei sem reclamar. Ela pegou o dinheiro, fez um rolinho e levantou alto como fosse uma vareta e vibrou o braço bradando. A chave é de uma porta de vidro. E ainda de costas reclamou: de vidro!

Belém/Capanema, 07 de fevereiro de 2013.

Fontes:
E-mail enviado pelo autor. Disponível em http://abiliopacheco.com.br/2013/02/07/a-porta-de-vidro/
Imagem = http://statuseesquadrias.blogspot.com.br 

Amadeu Amaral (Memorial de um Passageiro de Bonde) 2. Um Soneto

Saí, hoje, de casa maquinando um soneto. Não foi culpa minha, mas obra do acaso. Lendo um jornal, depara-se-me, perdido no entrecho de uma notícia ordinária, em que se narrava a prisão de uma negrinha gatuna, este retalho de frase: "Toda a ilusão da triste Gabriela..." -Magia do número! Não foi sem razão, ó sombra venerável de Pitágoras! que a pressentiste por tudo nas esferas como nas almas. Repeti duas, três, dez vezes esse pedaço de frase vulgar, que é um verso inteiro e excitante. Gabriela alvejou-se-me e transfigurou-se-me logo na remota imagem de uma linda pessoa que de repente se vira nua de toda ilusão, nua como lady Godiva montada num asno, em meio da praça. Comecei a compor... não, começou a compor-se em mim um soneto:

Já não tens ilusão, ó Gabriela!
Nega-ta o amor, essa comédia triste.
Nega-ta a vida. E em tudo quanto existe,
O espinho do real se te revela.

Subi para o bonde a escandir mentalmente esses decassílabos, que para ser sincero comigo mesmo, não me pareceram maravilhosos. Mas alentava-me a esperança de que pudessem ir melhorando do meio para o fim do soneto. -O que me apepinava um bocado era que as rimas aproveitáveis não se deixavam pegar como frangos de pés amarrados. A memória, afeita a servir-me os torresmos do vocabulário trivial, só me deparava coisas como fivela, moela, espinhela, chiste, alpiste, que não se coadunavam à pura nobreza da inspiração. Encolhi-me, cerrei as pálpebras e atirei-me à caça de boas rimas, exercício muito útil, para refrescar as idéias e especialmente indicado como passatempo higiênico e divertido para homens atarefados, nas horas vagas.

Ia engolfado nesse labor -Cellini do verso! - quando senti que uns dedos me bicavam no ombro. Voltei-me, era o meu amigo Fabiano Alves, prático de farmácia meu vizinho. Bom homem, mas confiado, e ainda com a particularidade esquisita de se achar sempre numa temperatura espiritual completamente diversa da minha.

-"Está calculando?" indagou.

Tive ganas de lhe perguntar que conta lhe fazia que eu estivesse calculando ou voando muito acima do lodaçal do mundo, onde patejam os boticários sem alma.

-"Vem tão concentrado, mexendo com os lábios."

-"Cá umas coisas."

Fabiano entrou imediatamente a explicar que era tapadíssimo em questões de cálculo. Decididamente, não dava para essa especialidade. De uma feita, propuseram-lhe um problema, no clube de Periquitos, sua terra natal: "Um pássaro faz sete voltas em redor de uma torre de cantaria em quarenta segundos; quantas torres serão precisas para que sete pássaros façam uma volta..." Mais ou menos isso. Coisa à-toa, simples aplicação da regra de três; podendo-se também resolver rapidamente por análise. Pois levou mais de meia hora para dar com a solução! Uma vergonha.

-"Ainda assim, você é um bicho, Fabiano."

-"Não; em Matemática, serei bicho, mas de má qualidade: um burrego. De todas as ciências, a que dá com o meu feitio é esta" (e batia com a larga e magra mão sobre a capa de um livro de espiritismo) "é esta, a filosofia."

E Fabiano falou copiosamente sobre a doutrina espírita, "a mais consoladora de todas", e em particular sobre a moral, "sem discussão possível, a mais perfeita."

-"Fabiano" (lhe disse eu, apenas por dizer alguma coisa), "você conhece a moral de Sócrates?

Ele sorriu:

-"Esse, justamente, freqüenta o meu círculo. Um espírito evoluído. Adiantado!"

E dizendo "adiantado", Fabiano esticou os beiços para um assobio, que deixou subentendido. Mas eu, intrigado, questionei:

-"Como é isso, ó Fabiano? Então Sócrates freqüenta..."

Ele sorriu com bonomia, explicando:

-"Manifesta-se, compreende? Está desencarnado há muitos anos, desde um desastre que houve aqui na Central. Saiu com as pernas esmigalhadas. Nesse mesmo dia visitou uns nossos irmãos, no Pará; por sinal que fez o pobre do aparelho gritar com dores nas pernas!"

Fabiano discorria, discorria. A certeza da verdade dava-lhe um ar de beatitude. "Ele já parecia respirar o eterno, planava além de todas as coisas perecedouras, que vão da molécula às estrelas. Este prático de farmácia, que acabava de largar o almofariz para ir comprar uma porção de calomelanos à drogaria, achava-se absolutamente integrado nos planos perpétuos da vida e do movimento universal. E o curioso é que se consolava com isto.

Ia sorrindo, no bonde, como sorriria um arcanjo na sua biga de chamas, através do infinito, assistindo ao florir e ao despertar das constelações pelos abismos sem fundo. Ou como uma criança contemplando um queimar de rodinhas e traques.

Com isto, deixei de fazer o meu soneto. Quando pretendi reinvocar a inspiração, ela havia batido as asas. Um acaso ma trouxera, um outro ma levou.

Assim acontece com tantas coisas belas e boas da alma! Nascem e morrem por aí na sombra e na bruma da vida larvada. Nascem por acaso, por acaso morrem. E nós caminhamos sobre as flores mortas dos nossos jardins interiores, como um cordão de porcos-do-mato sobre uma camada de pétalas, na época da inumerável florescência dos manacás. Mas entre a preta Gabriela e o boticário Fabiano, minha alma teve um momento de ventura inocente, embalada no berço dos ritmos e dos timbres. E, se não chegou a perpetrar nada, tanto melhor.

O melhor da poesia e de tudo quanto se lhe parece é a elaboração, o estado de graça, a embriaguez esporeante, a doce liberdade interior em que vive quem a elabora ou rumina. Talvez que o mais alto poeta seja um simples ruminante mudo de formas, O mais, vaidade e pretexto.

Bendita a Gabriela, e bendito o Fabiano.

Fonte:
Domínio Público

Ferreira Gular (Não Há Vagas)

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão.

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,
está fechado: “não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira.

Fontes:
Toda Poesia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980. p. 224
Imagem = http://www.rascunho.gazetadopovo.com.br

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 3

Três semanas, contadas dia por dia, após o último desastre, meu aparelho, o n.º 6, estava pronto.

O tempo, porém, continuava mau. Em 19 de Outubro (1901), à tarde, pois a manhã foi chuvosa, subi de novo, contornei a Torre, a uma altura de 250 metros, sobre uma enorme multidão que aí estacionava à minha espera, e passei por Autenil, sobre o hipódromo do mesmo nome, que ficava em meu caminho.

Havia corridas; a minha passagem, tanto na ida como na volta, despertou um delírio de aplausos; ouvi a gritaria e vi lenços e chapéus arrojados no ar; eu distava da terra apenas de 50 a 100 metros...

Da minha saída ao momento em que passei do zênite do ponto de partida, decorreram 29 minutos e 30 segundos.

Com a velocidade que levava, passei a linha da chegada — como fazem os yachts, os barcos a petróleo, os cavalos de corridas, etc. — , diminuí a força do motor e virei de bordo; então, voltando, e com menos velocidade, manobrei para tocar a terra, o que fiz em 31 minutos após minha partida.

Pois bem, alguns senhores quiseram que fosse esse o tempo oficial!

Grandes polêmicas.

Tive comigo toda a imprensa e o povo de Paris e também Son Altesse Imperiale le Prince Roland Bonaparte, presidente da Comissão Científica que ia julgar o assunto.

O voto me foi favorável.
* *

Não se tinham passado dois anos e eram ganhos os cem mil francos do prêmio Deutsch, que, acrescidos aos juros e mais prêmios pequenos, perfazia o total de 129.000 francos, que foram assim destinados: 50.000 francos aos meus mecânicos e operários das usinas que me tinham auxiliado; e o restante a mais de 3.950 pobres de Paris, distribuídos, a pedido meu, pelo Sr. Lepine, Chefe de Polícia, em donativos de menos de 20 francos.

Por essa ocasião, o saudoso Sr. Campos Sales, então Presidente da República, enviou-me uma medalha de ouro e, logo, em seguida, fui agradavelmente surpreendido com o recebimento com o prêmio de 100:000$000, que me foi oferecido pelo Congresso Nacional; além destas, duas outras medalhas recebi: uma do Instituto de França, outra do Aero Club de França.
* *

Depois do meu n.º 6, construí vários outros balões, que não me deram os resultados desejados. Há um ditado que ensina "o gênio é uma grande paciência"; sem pretender ser gênio, teimei em ser um grande paciente. As invenções são, sobretudo, o resultado de um trabalho teimoso, em que não deve haver lugar para o esmorecimento.

Consegui, afinal, construir o meu n.º 9; com ele pude alcançar alguma coisa; fiz dezenas de passeios sobre Paris, fui várias vezes às corridas, dele me apeei à porta de minha casa, na Avenida dos Campos Elíseos, e nele, quase todas as noites, fiz corso sobre o Bois de Boulogne.

A minha presença com ele na revista militar de Longchamps, em 14 de julho de 1903, causou um imenso sucesso.

Foi o mais popular de todos os meus... Filhos, só mais tarde suplantado pela minúscula "Demoiselle".
* *

Depois... Eu ouvia chalaças deste gênero: "O Sr. não faz nada?" "Está sempre fechado em seu quarto, a dormir!"

Nesse ínterim vim ao Brasil; no Rio de Janeiro, em São Paulo, Minas e Estados do Norte, por onde passei, me acolheram os meus patrícios com as mais cativantes festas de que jamais me esquecerei e que tanto me penhoraram.
* *

Durante as minhas horas de intensa alegria e felizes sucessos, só uma saudade me fazia triste: era a ausência de meu pai. Ele que me dera tão bons conselhos e os meios de realizar o meu sonho, não mais estava neste mundo para ver que eu "me tinha feito um homem".

É costume oriental fazer recair sobre os pais todo o mérito, toda a glória, que um homem conquiste na vida. Esta maneira de ver pode ser criticada ou desaprovada, porém, no meu caso, ela seria muito justa, pois, tudo devo a meu pai: conselhos, exemplos de trabalho, de audácia, de economia, sobriedade e os meios com os quais pude realizar as minhas invenções.

Tudo lhe devo, desde os exemplos.

Nascido na Cidade de Diamantina, o Dr. Henrique Dumont, formou-se, em Engenharia, pela Escola Central de Paris e, depois de trabalhar vários anos na E. F. Central (foi em uma casita situada na garganta João Aires que eu nasci) dedicou-se à lavoura no Estado do Rio. Vendo que aí nada de grande podia fazer, partiu com minha mãe e oito filhos, então todos crianças, para Ribeirão Preto, que se achava a três dias de viagem a cavalo da ponta dos trilhos da Mogiana.

Explorara, antes, o interior do Estado de São Paulo e ficou maravilhado com as matas de Ribeirão Preto.
* *

Neste país essencialmente agrícola, ele foi o protótipo do fazendeiro audacioso, e, com uma energia tão grande como a sua confiança no futuro, desbravou sertões e cultivou o solo, aí trabalhou durante dez anos, ao cabo dos quais, por ter sido acometido de uma paralisia, vendeu aquelas "matas", então transformadas em cerca de 5.000.000 de cafeeiros, servidos por uma estrada de ferro particular, por ele construída e que os liga a Ribeirão Preto.

Hoje, para que não morresse na memória dos homens a lembrança do valor desse audacioso, os ingleses, em significativa homenagem, conservaram em seu nome na companhia proprietária atual daquelas terras.

Em 1905, a Dumont Coffee Company colheu, naquele cafezal, 498 mil arrobas; em 1911, obteve uma renda bruta de 3.883 contos de réis.

Um de nossos grandes estadistas, depois de uma visita que fizera a meu pai, escreveu, numa impressão de viagem, referindo-se àquela fazenda: "Ali tudo é grande, tudo é imenso; só há uma coisa modesta; a casa onde mora o fundador de tudo aquilo".
* *

Dormi três anos e no mês de julho de 1906 apresentei-me no campo de Bagatelle com o meu primeiro aeroplano.

Perguntar-me-á o leitor porque não o construí mais cedo, ao mesmo tempo que os meus dirigíveis. É que o inventor, como a natureza de Linneu, não faz saltos; progride de manso, evolui. Comecei por fazer-me bom piloto de balão livre e só depois ataquei o problema de sua dirigibilidade. Fiz-me bom aeronauta no manejo dos meus dirigíveis; durante muitos anos, estudei a fundo o motor a petróleo e só quando verifiquei que o seu estado de perfeição era bastante para fazer voar, ataquei o problema do mais pesado que o ar.

A questão do aeroplano estava, havia já alguns anos, na ordem do dia; eu, porém, nunca tomava parte nas discussões, porque sempre acreditei que o inventor deve trabalhar em silêncio; as opiniões estranhas nunca produzem nada de bom.
* *

Abandonei meus balões e meu hangar no parque do Aero Club.

Em completo silêncio trabalhei três anos, até que, em fins de julho, após uma assembléia do Aero Club, convidei meus amigos a assistirem minhas experiências, no dia seguinte.

Foi um espanto geral. Todo mundo queria saber como era o aparelho.

A suas dimensões eram: comprimento, 10 metros; envergadura, 12 metros; superfície total, 80 metros quadrados; peso, 160 quilos; motor, 24 HP.

Era uma aparelho grande e biplano e assim o fiz, apenas, a fim de reunir maiores facilidades para voar, pois sempre preferi os aparelhos pequenos, tanto que me esforcei para inventa-los, o que consegui com o minúsculo "Demoiselle", o aeroplano ideal para o amador.

Continuando na minha idéia de evolução, dependurei o meu aeroplano em meu último balão, o n.º 14; por esta razão, batizaram aquele com o nome de 14-bis. Com esse conjunto híbrido, fiz várias experiências em Bagatelle, habituando-me, dia a dia, com o governo do aeroplano, e só quando me senti senhor das manobras é que me desfiz do balão.


É verdade que sempre fui de uma felicidade, de uma sorte inaudita em todos os meus empreendimentos aéreos; tive uma boa estrela.

Atribuo, também, essa sorte à minha prudência.

Nesta ordem de idéias; o primeiro problema que tive a resolver foi a possibilidade de levar-se um motor à explosão ao lado de um balão cheio de hidrogênio. Uma noite, tendo suspenso a alguns metros de altura o motor no meu n.º 1, pus-o em marcha; — estava com o seu silencioso — notei que as fagulhas que partiam com os gases queimados iam em todas as direções e poderiam atingir o balão.

Veio-me a idéia de suprimir o silencioso e curvar os tubos de escapamento para o chão. Passei da maior tristeza à maior alegria, pois, quanto maiores eram as fagulhas, com maior força eram jogadas para a terra e, por conseguinte, para longe do balão. Estava, pois, resolvido este problema: o motor não poria fogo ao balão.

Só o que precisava impedir era que, em caso de escapamento dos gases do balão pelas válvulas, estes não viessem alcançar o motor, Para impedir isto, eu sempre coloquei as válvulas bem atrás, à popa do balão, por conseguinte, longe do motor.

O ponto fraco nos aeroplanos era o leme; dei, pois, sempre a maior atenção a este órgão e seus comandos, para os quais sempre empreguei os cabos de aço de 1ª qualidade que são usados pelos relojoeiros nos relógios de igreja.

Lutei, a princípio, com as maiores dificuldades para conseguir a completa obediência do aeroplano; neste meu primeiro aparelho coloquei o leme à frente, pois era crença geral, nessa época, a necessidade de assim fazer. A razão que se dava era que, colocado ele atrás, seria preciso forçar para baixo a popa do aparelho, a fim de que ele pudesse subir; não deixava de haver uma certa verdade nisso, mas as dificuldades de direção foram tão grandes que tivemos de abandonar essa disposição do leme. Era o mesmo que tentar arremessar uma flecha com a cauda para a frente.
* *

Em meu primeiro vôo, após 60 metros, perdi a direção e caí.

Este meu primeiro vôo, de 60 metros, foi posto em dúvida por alguns, que o quiseram considerar apenas um salto. Eu, porém, no íntimo, estava convencido de que voara e, se me não mantive mais tempo no ar, não foi culpa de minha máquina, mas, exclusivamente minha, que perdi a direção.

Com grande velocidade, consertei rapidamente o aparelho, fiz-lhe algumas pequenas modificações e, durante algumas semanas, "rodei" em Bagatelle a fim de me aperfeiçoar no seu difícil governo.

Logo depois, em 23 de outubro, perante a Comissão Científica do Aero Club e de grande multidão, fiz o célebre vôo de 250 metros, que confirmou inteiramente a possibilidade de um homem voar.

Esta última experiência e a de 12 de julho de 1901, me proporcionaram os dois momentos mais felizes de toda a minha vida.
* *

––––––-
Continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Angela Lago (O Dicionário de Formas)

Era uma vez eu, Zé Sorveteiro, que me apaixonei por uma princesa que acabara de chegar do outro lado da Terra. Bolei para ela um dicionário de quatro palavras: bola, quadrado, retângulo, triângulo. Japonês se escreve com desenhos. Com desenhos a princesa aprenderia português!

Não demorou, ela estava arrasando. Ia até meu carrinho e pedia, desenhando no ar:

– Triângulo-bola.

Sorvete na casquinha! O dicionário funcionava às maravilhas.

Eu? Mandava bilhetes. Desenhava um quadrado com um triângulo em cima e escrevia: casa!!! Caprichava nos pontos de exclamação. Casa!!! Casa!!! Fácil de entender: casa comigo.

Mas toda princesa tem uma fera para encontrar bilhetes. Uma hora a fera mandou me chamar. Aí…

Aí eu transformei ponto de exclamação em sinal de aguaceiro:

– Um traço com um pingo é chuva. Três – !!! – muita chuva. Casa, chuva, chuva, chuva. Estou só avisando… Cuidado com goteiras.

Acabei subindo e limpando as calhas do telhado do futuro sogro e as de cada um de seus amigos e parentes.

Hoje, 60 anos depois, repito, valeu a pena. E lá vou eu apanhar uns triângulos vermelhos para a minha rainha arrumar no triângulo do retângulo do quadrado da frente. Perfeito. Daqui a pouco a jarra da mesa da sala estará toda perfumada com os… Como é mesmo? Vá lá! Com os triângulos vermelhos.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos