quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte I

Resumo: O presente estudo procura contribuir para uma melhor compreensão do papel de Sousândrade dentro dos limites do Romantismo brasileiro. O artigo aponta para o fato de que sua poética não só perpetua o espírito libertário e revolucionário desse movimento, como também pode ser incluída em um Romantismo titânico. A partir desse romantismo racional, a poética de Sousândrade pode ser compreendida como precursora da modernidade.

1 Introdução

O propósito deste trabalho é estudar a presença de um olhar crítico em relação à tradição romântica na obra de Joaquim de Sousa Andrade ou como o próprio poeta se auto- intitulava, Sousândrade.

Selecionamos como corpus representativo da obra sousandradina fragmentos do poema O Guesa, em sua edição Fac-similar, organizada por Jomar de Morais, publicada no ano de 1979. A escolha se deu por acharmos que essa versão, sendo a última reedição de O Guesa, apresenta-se mais completa, oferecendo maiores possibilidades para o pleno desenvolvimento do trabalho.

Concordando com o posicionamento de Lobo (1986, p. 24), para quem o Romantismo teve um caráter “revolucionário e inovador – antes mesmo que o Modernismo preconizasse a deglutição do estrangeiro para sua reintegração na cultura nacional”, procuramos compreender esse movimento como ponto de partida para a Modernidade. Acreditamos que as antecipações à estética modernista encontradas na obra de Sousândrade – fato já apontado pela crítica do século XX[i] – estão intimamente relacionadas à racionalização imposta pelo poeta ao impulso emotivo primário do movimento romântico. Nossa hipótese é a de que o poeta maranhense, ao se apropriar da tradição romântica, o fez de maneira racional, tocando algumas características que ganhariam contornos definitivos com a arte do século XX.

O Romantismo brasileiro é visto aqui como um movimento amplamente heterogêneo, no qual podem ser percebidas duas vertentes principais: de um lado, uma vertente epigonal ou canônica, na qual prevalece uma visão conservadora marcadamente emotiva e extremamente dependente de modelos externos; de outro, uma vertente racional ou titânica, perpassada por uma maturação crítica e racional das características canônicas consagradas pela vertente epigonal e que, a nosso ver, pode ser percebida na poética de Sousândrade.

Como comenta Lobo (1986, p. 167), o “Romantismo tardio passou a apontar para novas soluções literárias, em busca de uma nova linguagem e um novo tipo de homem”. Esse “Romantismo tardio”, crivado de racionalidade, estaria na base do pensamento moderno. A partir desse prisma, centramos nossas considerações na modernidade de Sousândrade, entendendo-a como resultado de um olhar impregnado pelo Romantismo.

2 Romantismo: considerações preliminares

O Romantismo foi a expressão artística de uma sociedade em transição. O século XIX foi marcado por grandes mudanças sócio-econômicas como a Revolução Industrial, a Revolução Francesa, o crescimento e fortalecimento da classe operária, a transferência de grandes massas populacionais do campo para a cidade, além do fortalecimento e posterior ascensão da burguesia ao poder, que representaram uma mudança radical do comportamento do homem desse século.

Ocorre, assim, uma mudança de ordem social, e o Romantismo, como arte desse período, expressa as novidades e as agitações do “novo mundo”, expondo as expectativas e frustrações do conturbado homem do século XIX. Para Kal Mannheim (1959), o Romantismo foi a expressão dos sentimentos das camadas que ficaram à margem da sociedade. O artista romântico via, na arte, a concretização da “liberdade” materializada na rebeldia contra a estética vigente.

Sendo a expressão dos marginalizados, o movimento refletiria o desconforto do homem com seu meio, caracterizando o chamado “desajuste romântico”. Apresentando em seu âmago um profundo desapontamento com sua realidade, já que seus ímpetos eufóricos iniciais (concretização do ideário francês de Liberdade-Igualdade-Fraternidade) foram bruscamente interrompidos pelo aumento da pobreza e pela dificuldade de ascensão social na Europa do século XIX, o artista tenta, através da arte, expressar a possibilidade de mudança desse quadro degradante.

Diante desse quadro, o Romantismo expõe o desajuste do Eu com a realidade circundante. O sujeito nega a realidade para criar uma ilusão de equilíbrio. O mundo empírico não é suficiente para a expressão das aspirações do Eu; é preciso transfigurá-lo, transcendê-lo. Não podendo esse mundo ser alcançado na realidade empírica, o desejo de transcendência leva à transfiguração da realidade e, como conseqüência, a uma valorização da visão do Eu em relação ao mundo. “O mundo exterior nada é senão o mundo íntimo elevado a um estado secreto” (NOVALIS apud ROSENFELD, 1985, p. 158). Tem-se, então, o que Novalis denomina “transcendência romântica”.

Dessa forma, a transcendência configura-se como desejo de mudança, pois a perspectiva individual/subjetiva impõe a valorização da visão do Eu em relação ao “real’. O sujeito bifurca-se em duas possibilidades realizáveis: uma, centrada na realidade e outra, centrada na sublimação dessa realidade. Essas duas possibilidades complementam-se na esfera do Eu transcendente. Este, à medida que filtra a realidade, produz uma nova realidade através do olhar subjetivo sobre o mundo.

Centrado no traço subjetivo/individual, o movimento romântico, como representação de uma individualidade conflitante, torna-se complexo e escapa a uma definição exata e totalizadora, refletindo a inquietação do homem inserido no mundo. O romântico vive a contradição em seu grau máximo, pois, ao negar a realidade, nega a si próprio. Ao afirmar que seria necessário ter perdido todo o espírito de rigor para definir o Romantismo, Valéry (1999) já alertava para a dificuldade de uma delimitação exata da visão romântica. Segundo o crítico, é a totalidade complexa do movimento, imposta pelo olhar subjetivo/individual sobre o mundo, que dá a ele sua importância renovadora e o marca como ponto de influência sobre a arte moderna.

É justamente a complexidade do Romantismo que o leva a chocar-se com a linearidade objetiva e equilibrada da visão clássica. No lugar do equilíbrio clássico, surgiria no romântico a adoção do exótico, do mistério e de uma estética avessa à rigidez canônica. T S. Eliot (1989, p. 68), em comentário ao crítico John Middlteton Murry, observa que a diferença entre o clássico e o romântico está “entre o integral e o fragmentário, o adulto e o imaturo, a ordenação e o caos”. Para Rosenfeld (1993, p. 261), “o Romantismo é, antes de tudo, um movimento de oposição violenta ao Classicismo e à época da Ilustração”. O poeta romântico não quer pensar o mundo objetivamente, mas senti-lo em sua plenitude; a obra deve refletir aquilo que o Eu sente em relação ao mundo. Na busca por uma “pureza” expressiva, o artista romântico rebela-se contra a prisão imposta pela tradição clássica e, com isso, volta-se para o impulso emotivo, percebido como um mecanismo capaz de expressar os estados individuais em sua plenitude.

Permeada por uma rebeldia latente, tal postura proporciona ao movimento uma pluralidade expressiva, uma vez que o Eu muda sua perspectiva individual com o posicionamento do sujeito diante do mundo. Daí termos, nesse movimento, uma grande variedade de manifestações que lhe acabam outorgando uma enorme gama de possibilidades expressivas. Na Alemanha, por exemplo, o Romantismo deriva de um movimento surgido por volta de 1770, chamado “Strum und Drang” (tempestade e ímpeto) que, marcado por uma forte emotividade, teve uma atitude impulsiva em relação às características encontradas no discurso clássico.

Não obstante apresente afinidade com o “Strum und Drang”, o Romantismo alemão, propriamente dito, distingue-se dos “gênios impulsivos” no que se refere à irracionalidade impulsiva e à excessiva emotividade. Segundo Rosenfeld (1985, p. 154), o Romantismo na Alemanha “nada tem do titanismo fáustico dos gênios originais”, antes, busca a racionalização do ímpeto inicial dos Strümer do que sua perpetuação. Os artistas românticos alemães são racionais e tentam atingir o equilíbrio interior não pela pura emotividade, mas pela equalização racional desse elemento.

O poeta romântico alemão posiciona-se, assim, na interação racional com a sensibilidade emotiva. Dada essa tendência racional, a negação ao clássico, mais branda na vertente alemã, revela um fazer poético lúcido e consciente, valorizando, com isso, o trabalho estético como possibilidade de plasmar o impulso emotivo. Conhecida como Romantismo titânico, essa vertente racional do Romantismo alemão teve em Hölderlin um de seus maiores representantes.

Essas colocações vêm corroborar para a percepção da heterogeneidade imanente ao espírito romântico. Na Alemanha, por exemplo, os artistas procuram redefinir a realidade pela compreensão e interação e não pela simples emotividade. A esse respeito, Maurice Blanchot (1988) afirma que o Romantismo alemão teve um caráter político. Para esse autor, os alemães não querem negar a realidade, mas sim modificá-la por meio da interação do Eu com o mundo. Desejam, assim, retornar à situação de equilíbrio através da compreensão dos problemas que deterioram e corrompem os ímpetos positivos do homem. Para conseguir essa racionalização do ímpeto, os alemães buscam uma poesia emotiva trabalhada esteticamente.

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

Olivaldo Júnior (Água com Açúcar)

Segundo alguém,
sou um copo de água com açúcar.

Mas esse copo,
mas esse corpo,
sem se mover,
“amarga” o ser.

Segundo alguém,
sou um copo de água com açúcar.

Mas, sem afeto,
jamais me afeto.
Segundo alguém,
sou um copo de água com açúcar
cujo gosto d’água
está sem gosto.

Mas esse gosto,
mas esse rosto,
sem se gostar,
apaga o olhar.

Segundo alguém,
sou um copo de água cujo açúcar
quer toda a água
que não tem gosto
e não deságua.

Fonte:
O Autor

Ricardo Azevedo (Aquilo)

Quando aquilo apareceu na cidade, teve gente que levou um susto.

Teve gente que caiu na risada.

Teve gente que tremeu de medo.

E gente que achou uma delícia.

E gente arrancando os cabelos.

E gente soltando rojões.

E gente mordendo a língua, perdendo o sono, gritando viva, roendo as unhas, batendo palma, fugindo apavorada e ainda gente ficando muito, muito, muito feliz.

Uns tinham certeza de que aquilo não podia ser de jeito nenhum.

Outros também tinham certeza. Disseram: — Viva! Que bom! Até que enfim!

Muitos ficaram preocupados. Exigiram que aquilo fosse proibido. Garantiram que aquilo era impossível. Que aquilo era errado. Que aquilo podia ser muito perigoso.

Outros, tranqüilos, festejaram, deram risada, comemoraram e, abraçados, saíram pelas ruas, cantando e dançando felizes da vida.

Alguns, inconformados, resolveram perseguir aquilo. Disseram que aquilo não valia nada. Disseram que era preciso acabar logo com aquilo ou, pelo menos, pegar e mandar aquilo para bem longe.

Muitos defenderam e elogiaram aquilo. Juraram que aquilo era bom. Que aquilo ia ser melhor para todos. Que esperavam aquilo faz tempo.

Que aquilo era importante, bonito e precioso.

Alguém decidiu acabar com aquilo de qualquer jeito.

Mas outro alguém disse não! E foi correndo esconder aquilo devagarinho no fundo do coração.

Caro leitor: aquilo pode ser muitas coisas.

Se sentir vontade, pegue um lápis e uma folha de papel e escreva sobre aquilo: diga, em sua opinião e em seu sentimento, o que é aquilo, como é aquilo, o que aquilo faz, de onde aquilo veio, para onde aquilo vai e que sentido, afinal, aquilo tem. Se quiser, desenhe aquilo também.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Soares de Passos (A Vida)

A meu irmão

Que! lutar sempre em afanosa guerra
Contra os rigores dum feroz destino!
A cada passo lacerar as plantas
Nesta agra senda que nomeiam vida!
Correr após um sonho, uma esperança
Que leda nos sorria, a vê-la ao cabo
Sumir-se, desfazer-se como o fumo!
Ou, se tocamos o vedado pomo,
Arrojá-lo de nós, murcho e vazio!
Alcançar por um bem, mil dissabores!
Por uma hora de gozo, mil de prantos!
Sofrer, sempre sofrer, não vir um dia
Em que possamos exclamar: ventura!
E é este o cálice de aprazível néctar
Que ao banquete do mundo nos convida?
É este o éden que nos prende os olhos,
E nos faz recuar ante o sepulcro?

Nascemos: com que pena à luz do dia
Surgimos logo do materno seio,
Filhos da dor, obedecendo à origem,
Nos vagidos da infância a anunciamos:
E ainda assim no deslizar sereno
Dos dias infantis, a vida encanta;
A taça da existência tem doçura,
Como se o mel lhe coroasse a borda
Para mais fácil nos tentar os lábios.
O horizonte dos anos se dilata;
Vem a idade do amor. Que belos sonhos
Em mágico painel a vista iludem!
Um ser, que a mente em chama nos diviniza,
Nosso oásis feliz anima todo,
Bem como o sol anima toda a natureza,
Ou a rosa do vale os flóreos prados.
Mas quantos podem na manhã da vida
Colher a rosa de seu mago enlevo?
Quantos a estrela que adoraram crentes
Sentem passar, e desfazer-se em breve,
Não luzeiro do céu, porém da terra,
Meteoro fugaz que baixa ao solo,
E se dissipa, redobrando a noite!

As ilusões do amor se desvanecem:
Desse mundo feliz o homem baqueia
E devorando a mágoa segue avante.
Prometeu afanoso ei-lo procura
Dar alma e vida ás criações que inventa,
Ai! já não belas, mas de impura argila.
Honras, glórias, poder, bens de fortuna,
Ciência austera, festivais prazeres,
A tudo se abalança, aspira a tudo,
E em tudo encontra desenganos sempre,
Ao ponto que fitara jamais chega,
Ou, se o alcança, não lhe dura o gozo.
Ai do que envolto em miserandas faixas,
Embalada sentiu a pobre infância
Cos gemidos da fome! Esse à ventura
Quase nem ousa levantar os olhos:
Perpétuo desalento lhos abate
À triste condição em que nascera.
Planta gerada num terreno estéril,
Não se ergue altiva, não estende os ramos,
Vive entre espinhos, e entre espinhos morre.
Em vão se cansa o triste: raras vezes
A dura terra lhe concede o prémio
Do suor e das lágrimas que verte
No seio ingrato dessa mãe ferina
Um pão acerbo que amassou com pranto,
É o alimento que reparte aos filhos;
E o marco do caminho à cabeceira
Onde desprende o moribundo alento.
Ai dele! mas não menos desditoso
O que em púrpuras e ouro vendo o dia,
Ou conduzido pela mão da sorte,
Chegou ao cumes que a fortuna habita;
E, na posse dos bens que o mundo anseia,
Palpou tremendo seu medonho nada.
Este empunhando o cetro, empalidece,
Sentindo às plantas vacilar-lhe o sólio;
No fastígio da glória aquele geme,
Ao ver o louro que lhe cinge a frente
Pelo bafo da inveja emurchecido.
Um as honras consegue, e as vê sem preço;
Outro as riquezas, e lamenta os dias
Que mais belos perdeu em seu alcance.
Qual, a ciência devassando ousado,
Após longas vigílias estremece
Da dúvida ante o espectro; qual ardente
Das festas no rumor despende a vida,
E a taça do prazer lhe deixa o enfado.

Feliz aquele que em modesta lida,
Isento da ambição e da miséria,
No regaço do amor e da virtude
A vida passa. Mas feliz ainda
Se, das turbas ruidosas afastado,
À sombra do carvalho, entre os que adora,
Sente a existência deslizar tranquila.
Como as águas serenas do ribeiro
Que as herdades pacíficas lhe banha.
Mas, que digo! nem esse. Infindos males
Comuns a todos, seu viver não poupam,
Dum lado a crua guerra lhe sacode
O facho assolador às brandas messes;

A pálida doença, doutro lado,
Dos entes que mais ama o vai privando;
E ele mesmo talvez, infausta presa
Dessa serpente que nos liga à morte,
Nos ecúleos da dor a vida exaure.
E, como se estes males não bastaram,
Sua mesma virtude lhe é suplício.
Compassivo coa dor que os outros sofrem,
A dor alheia o atormenta ainda.
Justo, adora a justiça; e, olhando em torno,
A injustiça e opressão verá reinando;
Verá a inocência vítima do crime,
A virtude humilhada, o vício altivo,
Os prantos da miséria escarnecidos,
Por toda a parte o mal, a dor; e as queixas,
Ai dele, ai dele, se um momento pára
Na atroz contemplação de tantos males!
Ai dele, que turbado e confundido,
Em maldições blasfemará terrível
Da virtude, de si, de Deus, de tudo!

Não! da vida no pélago agitado
Um abrigo não há, não há um porto
Onde possamos descansar tranquilos.
Em nós, dentro em nós mesmos, ruge irada
A tempestade que evitar queremos.
Como a serpente no cristal da linfa,
Na alma serena o sofrimento mora;
Não pode o gozo dos mais belos dias
Encher o abismo que no seio temos.
Em vão, em vão ansiamos a ventura:
Sumos na terra qual viajante exausto
Que ouve o sussurro d'escondida fonte,
E morre à sede sem poder tocá-la.

Vida, tremenda herança d'amarguras,
Eu te hei sondado nos meus próprios males,
E em meus irmãos na dor, nos homens todos:
Grilhão pesado que nos dá o berço,
E que depomos nos umbrais da tumba
A luta, a mágoa, eis os teus dons funestos.
Mas donde a causa do sofrer eterno
Que as gerações às gerações transmitem?
Que um século, tombando de cansaço,
Como um peso importuno lega ao outro?
Donde o crime feroz que um tal castigo
Sobre nós atraiu? Se um Deus é justo,
Que deus, que lei, sem escutar-nos, pôde
A sentença lavrar? Silêncio é tudo!
Em vão, para sabê-lo, em vão mil vezes
Interroguei confuso o céu e a terra:
O céu de bronze não me ouviu a prece,
A terra obscura não me soube o enigma.
Dos profetas na voz, na voz dos sábios,
A dúvida cruel achei somente.
Pedindo à morte a solução da vida,
Desci às tumbas; apalpei as cinzas;
Quis ver se um eco da gelada campa
Surgirá à minha voz; mas foi debalde.
Frias ossadas, carcomidos restos
De quem sofreu também, só me disseram
Que tudo acaba ali. A terra, a terra,
O seio impuro dos famintos vermes:
Eis o refúgio, a habitação amiga
Que após a luta nos espera ao cabo!

Morte, morte, bem vinda sejas sempre,
Em nome da existência eu te saúdo!
Tu reinas pela dor na espécie humana,
E, quem sabe? talvez nesse universo;
O sol, o mesmo sol envolto nas sombras,
Parece reflectir-te as negras asas;
E acaso à tua voz, a cada instante,
Um cometa voraz fulmina um globo.
Por que inda tardas a empunhar o ceptro
Que neste ao menos te pertence há muito?
Ao desterrado do éden por que deixas
O resto do poder que inda te usurpa?
Eia, desprende sobre a terra as asas,
Sobre esta criação, que abandonada
Talvez por seu autor como imperfeita,
Qual nau perdida em tormentosos mares,
Vaga sem rumo nesse espaço etéreo!

Mas que sinistra voz! Silêncio, ó lira!
Não mais prossigas teu cantar blasfemo!
Fanal de salvamento, luz d'esp'rança,
Que na altura do Gólgota brilhaste,
Desce à minha alma que a tristeza inunda!
Desce! de todos resumindo as dores
O cálice d'Ele foi o mais acerba.
Ele sofreu! Soframos, e esperemos!
Depois da noite escura vem o dia:
Depois deste desterro, a eterna pátria!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 5

Melhorado pelas necessidades e exigências da guerra, o aeroplano — desviado dos fins destruidores — provará o seu incalculável valor como instrumento dos objetivos úteis da raça humana. No momento atual é bem possível que qualquer dos atuais grandes aparelhos possa fazer viagens de Nova York a Valparaíso, ou de Washington ao Rio de Janeiro. Um ponto de abastecimento de combustível poderia ser facilmente instalado em cada 600 milhas de percurso.
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A principal dificuldade para a navegação aérea está no progresso precário dos motores. Francamente, o motor atual ainda não atingiu o que deveria ser. O aeroplano em si desenvolveu-se mais rapidamente que o motor.

Penso, entretanto, que, em breve, o motor do aeroplano se aperfeiçoará a tal ponto que não terá maiores imperfeições que os dos melhores e mais perfeitos automóveis, hoje fabricados.

Atualmente, um motor de aeroplano precisa ser relativamente leve e, ao mesmo tempo, resistente a grande trabalho contínuo.

Já o aço tem sido melhorado e tornado mais resistente por processos especiais; ninguém sabe até que ponto poderíamos continuar a melhora-lo ainda. Se inventores como Edison, Tesla, Henry Wise Wood, Spery, e Curtis, etc., dedicassem sua energia a este assunto, estou convencido que em pouco tempo teríamos um motor perfeitamente satisfatório.

Outra dificuldade, que se apresenta à navegação aérea, é a de localizar-se o aeroplano. É agora impossível o uso do sextante nos ares.

Creio que um horizonte artificial, produzido por meio de um espelho, mantido em posição horizontal por um giroscópio, resolverá este problema. Com a aplicação do giroscópio os cientistas têm conseguido resultados maravilhosos. Não somente um aeroplano pode ser hoje mantido em equilíbrio, por meio de um giroscópio, como um grande vapor.
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Com o motor aperfeiçoado e meios precisos de guiar seu curso, o aeroplano está certamente predestinado a figurar como um dos fatores mais importantes no desenvolvimento do comércio e na aproximação das nações que se acham separadas pelas grandes distâncias.

Os países onde faltaram as boas estradas de rodagem foram, creio, os primeiros a adotar as estradas de ferro.
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Nos países novos da América do Sul, não há abundância de estradas de ferro.

Há cidades a tal altitude que a estrada de ferro dificilmente as poderia atingir, e é a essas cidades que o aeroplano levará a civilização e o progresso.
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Prevejo uma época em que se farão carreira regulares de aeroplano, entre cidades sul-americanas, e também não me surpreenderá se em poucos anos houver linhas de aeroplanos funcionando entre as cidades dos Estados Unidos e a América do Sul.
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Além das vantagens provenientes da aproximação dos países sul-americanos entre si e com os Estados Unidos, há ainda um ponto para o qual chamo vossa atenção. Todos os países europeus são velhos inimigos e aqui no Novo Mundo devemos ser todos amigos. Devemos estar habilitados a intimidar qualquer potência européia que pretenda guerra contra um de nós, não pelos canhões, dos quais temos tão pequeno número, mas sim pela força da nossa união. No caso de uma guerra contra uma potência européia nem os Estados Unidos, nem, tampouco, qualquer dos maiores países sul-americanos, nas atuais condições, poderia convenientemente proteger suas extensas costas. Seria irrealizável a proteção das costas brasileira e argentina por uma esquadra.

Unicamente uma esquadra de grandes aeroplanos, voado a 200 quilômetros por hora, poderia patrulhar estas longas costas... Aeroplanos de reconhecimento poderão descobrir a aproximação da esquadra hostil e prevenir os seus navios de guerra para a luta.
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Estarei eu falando de coisas irrealizáveis?

Lembrai-vos de que há dez anos ninguém me tomou a sério. Agora temos ocasião de observar o que tem feito o aeroplano na Europa, fazendo reconhecimentos, dirigindo batalhas, movimento de tropas, atacando o inimigo e defendendo as costas.
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A falta de comunicação nos antigos tempos foi a origem básica de uma Europa desunida e em guerra.

Esperemos que a navegação aérea traga a união permanente e a amizade entre as Américas.
* *

Aqui acabo de expor, em resumo, o que eu disse na minha conferência de Washington, e não tenho razão de desdizer-me. Pelo contrário, cada vez mais, creio maior e mais próximo o futuro da navegação aérea. As revistas especiais que recebo falam constantemente do problema da travessia do Atlântico. Podemos pois dizer que a idéia está no "ar"; é pois uma questão talvez de meses e, então, saberemos que um aeroplano partido do Novo Mundo foi ter ao Velho em talvez um dia! Colombo para fazer a viagem em sentido inverso levou 70. Saberemos também que 3 ou 4 audaciosos que pilotavam essa máquina, sofreram muito do frio, da chuva, etc., porém, cara leitor, tenhamos um pouco de paciência; em breve existirão transatlânticos aéreos com quartos de dormir, salão e também, o que é muito importante, governados automaticamente por giroscópios e acionados por vários motores com um grande excedente de força, para o fim de, em caso de avaria em um deles, serem os outros bastante poderosos para manter o vôo do aparelho.

Um pouco de paciência!

Quem ler o n.º 1 de "Je sais tout", 1905, verá que em meu artigo publicado nesse número eu dizia: "La guerre de l'avenir se fera au moyen de croiseurs aériens rapides se tenant à d'inaccessibles hauteurs, et bombardant à leur guise les forts, les armées et les vaisseaux". Este artigo foi ridicularizado por alguns militares.

Haverá hoje, talvez, quem ridicularize minhas predições sobre o futuro comercial dos aeroplanos. Quem viver, porém, verá.
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Esta minha conferência de Washington foi bem aceita e eu creio que uma das provas está em me ter o Aero Club da América, logo após ela, convidado para representa-lo no Congresso Pan-Americano de Aeronáutica, que se ia reunir no Chile. Aceitei esta honra e parti disposto a tudo encontrar no Chile: tinha conhecido em Paris a sociedade chilena e a sabia a mais amável do mundo; tinha ouvido falar nas belezas naturais do Chile, ia pois vê-las. Ia ver os Andes, ia ver muita coisa, tudo, menos aeroplanos. Era a minha expectativa. Faça, pois, o leitor idéia do meu espanto quando logo ao meu desembarque e em uma festa que organizaram em minha homenagem, voaram mais de 12 aparelhos e os mesmos aparelhos com aviadores diferentes!! Chegando a Santiago fui visitar o campo de aviação do exército, esplendidamente bem escolhido. À minha vista, os oficiais aviadores voavam e pousavam com a maior perícia. O meu espanto ainda foi maior quando me mostraram as usinas de construção, propriedade do exército e que são contíguas ao campo!!

Parecia que eu estava de novo nos arrabaldes de Paris!! Um dos oficiais presentes, com a maior naturalidade do mundo, convida-me para voarmos até Valparaíso, que se achava a 150 quilômetros e, para ir lá, era necessário passar por cima de parte dos Andes; aceito, e hora e meia depois lá estávamos!

O trabalho, a perícia, a capacidade e o sucesso destes nossos amigos do Pacífico só é excedida pela sua modéstia, pois é verdade, não perderam momento de me pedir conselhos, ora sobre hidroaviões; quando nas usinas, sobre material, madeiras nacionais, possibilidades de aperfeiçoamentos, etc. Querem aperfeiçoar-se e deram-me a honra de acreditar-me um especialista na arte.

De lá passei à Argentina, onde de novo encontrei um grande entusiasmo pela aeronáutica e também um grande resultado obtido; aí, porém, a aviação é muito facilitada pela topografia do país. Não sei o número de pilotos que há ali, mas é o que há de mais comum encontrar moços da alta sociedade que tem carta de piloto.
* *

Devo aqui fazer um elogio aos nossos amigos do Prata que, podendo encontrar facilmente um bom terreno para aeródromo, a 10 minutos de Buenos Aires, o foram escolher a algumas horas da cidade, para o terem ótimo, obrigando os oficiais e discípulos a lá viver e estar de pé ao nascer do sol, que é a hora das aulas!

Lá vi também um curso para oficiais observadores!
* *
Houve, entre os aeronautas argentinos e chilenos, uma rivalidade esportiva, em que se empenhavam para ver quem primeiro atravessaria os Andes. Era uma prova difícil, de cuja realização muitas honras viriam para a aeronáutica sul-americana.

Dois argentinos, os Srs. Bradley e Zuloaga, conseguiram fazer essa travessia.

Partidário que sempre fui da aproximação do Brasil e da Argentina e, seguro de interpretar os sentimentos dos meus patrícios, saudei-os em nome dos brasileiros, por ocasião da sua chegada a Buenos Aires, vindos do Chile pelo caminho dos ares.

Desse discurso aqui transcrevo algumas frases em homenagem a esse arrojado empreendimento daqueles dois filhos do povo amigo:

Bradley, Zuloaga:

Yo os saludo:

Para vosotros, que ayer fruisteis saludados por los condores, mi saludo es insignificante.
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Hoy, al cruzar los mares, pensamos en Colon... Mañana, los navegantes del espacio, al cruzar los Andes, recordaran los nombres de San Martin, Bradley y Zuloaga y diran: "Por aquí, dos veces, los argentinos passaron los primeros".
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En su "leyenda de los Siglos" Victor Hugo dice: "Car, devant un héros, la mort est la moins forte."

Vosotros habeis probado que el poeta tenia razon. Bravo!

Yo puedo assegurar os que veinte millones de corazones brasileños os han aplaudido.

Grande interesse, pois, no Chile e Argentina; nos Estados Unidos esse interesse chega quase ao delírio.

* *

Depois de ter visto o interesse extraordinário que tomam pela aeronáutica todos os países que percorri, e vendo o desprezo absoluto com que a encaravam entre nós, falou mais alto que minha timidez o meu patriotismo revoltado e, por duas vezes, me dirigi ao Sr. Presidente da República.

Há dois anos, fiz ver a S. Exa. o perigo que havia em não termos, nem no Exército, nem na Marinha, um corpo de aviadores. Há um ano, escrevi uma crítica e apresentei um exemplo a S. Exa.

Nestas notas, eu assim dizia: Leio que o governo vai, de novo, tomar posse do Campo dos Afonsos, onde será instalada a Escola Central de Aviação do Exército, e que a Marinha vai transportar para a Ilha do Governador a sua escola.

continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Apelo da Biblioteca Comunitária de Itu (Pode Acabar. Mas Não Deveria)

Somos a realização de um sonho em uma cidade com poucas alternativas de cultura, manifestação artística e educação não formal. Somos uma iniciativa popular construída com a ajuda de toda comunidade, gerida e organizada por uma rede de voluntárias/os desde 2008.

Uma grande campanha de doação de livros construiu todo o nosso acervo, hoje com mais de 15 mil itens, desencadeando uma rede de outras iniciativas em Porto Feliz, Salto e a do bairro São Judas também em Itu.

Nós somos um espaço de cultura e debate (eleitos pelo Ministério da Cultura como ponto de Leitura) até então não visto na cidade, com realização de sarais, exibições do cineclube, oficinas de grafite, fanzine, várias festas culturais, com ampla participação de jovens, famílias, estudantes e turistas. Hoje, temos mais de 600 usuários cadastrados em nosso sistema, além dos assíduos frequentadores.

Infelizmente, nossa casa sede foi vendida. Nossos livros, fanzines, dvds, jornais, estão todos sendo encaixotados, para serem levados à um local que ainda precisa ser construído e, assim, possa abrigar tudo que já construímos até hoje.

Queremos continuar a ser um espaço alternativo para a população da cidade. Queremos que a falta de dinheiro e local não seja um empecilho ao nosso funcionamento, pois o mais importante já temos: braços e sonhos. Dessa forma, pedimos à todos/as que contribuam doando tempo, materiais de construção ou dinheiro para que possamos reformar a nossa futura sede.

Diante de 5 anos de existência – e resistência – temos a certeza de que não queremos parar. Nossa vontade é compartilhar as experiências e alegrias que sempre transbordaram da Biblioteca. Precisamos de um espaço para que continuemos construindo, através da leitura, arte, cultura, 'um mundo onde caibam vários mundos', incluindo o seu. Vamos construí-lo juntas/os?

Saiba como ajudar enviando um e-mail para ajude@comunateca.com.br

PONTO DE LEITURA
BIBLIOTECA COMUNITÁRIA PROF. WALDIR DE SOUZA LIMA
Rua Floriano Peixoto, 238, Centro, Itu.SP
CEP: 13300-005

Contatos: (11) 8110.3598 (seg à sex) ou (11) 2429.2619 (sáb)
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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia I)

ABAT-JOUR

A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.

E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.

Bem sei ... Era dia
E longe de aqui...
Quanto me sorria
O que nunca vi!

E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar...

ABDICAÇÃO

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

ABISMO

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é sério, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.

A GRANDE ESFINGE DO EGITO

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops ...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste
candeeiro
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com
a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim! ...

A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO
A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.

A MORTE CHEGA CEDO

A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.

ANDEI LÉGUAS DE SOMBRA

Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas
Meu ócio com sem-nexo,
E apagaram-se as lâmpadas
Na alcova cambaleante.

Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tato
Dos veludos da alcova,
Não pela minha vista.
Há um oásis no Incerto
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.

Esquece-me de súbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.

A ALCOVA

Desce não se por onde
Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora.

E o deserto está agora
Virado para baixo.

A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.

Qualquer coisa caiu
E tiniu no infinito.

AO LONGE, AO LUAR
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela ?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem = formatação da imagem para o blog, com imagens sobrepostas e modificadas, encontradas na internet, as quais não se pôde apurar a autoria.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 4. O Pescador e o Silêncio

"Com que então, Barbosa, você é pescador?"

Esta simples frase, dita numa voz branca, de um jeito quase distraído, me ia hoje rendendo uma quebra de amizade.

Frederico Paulo Barbosa Ramires é o homem mais calmo, sisudo e direito que jamais conheci. O senso comum encarnou-se nele como a seiva se infunde e se solidifica numa cabiúna. Dir-se-ia que a própria arquitetura de Barbosa fora armada com aquele material primário: os ossos robustos, as carnes duras, o corpanzil maciço, a fisionomia densa de hoplita membrudo. Familiarizamo-nos há muito. E nunca descobri no meu amigo uma trinca, um recanto desleixado, uma dependência indecisa e frouxa.

Vendo-o, hoje, no bonde, de caniço em punho, tive uma pequena surpresa, olhei para ele fiz-lhe aquela pergunta inócua. Parece que lhe toquei num ponto dolorido. Não se desconcertou, nem se irritou propriamente, mas respondeu-me com um nadinha de impertinência:

- "É verdade; pescador. Todos têm a sua mania, a minha é esta. Não faz mal a ninguém - senãoaos peixes. É higiênica, tem a sua dose de poesia..."

-"Bem, Barbosa, pesque, pesque, isso não precisa de justificação."

-"Mas, se eu quiser justificar?"

Fez então o elogio da pesca de vara. Uma pessoa fica à beira da água com a cana em punho, lança o anzol, e espera. Não há nisso nenhum desbarato de energias físicas nem morais. Por outro lado, não há tampouco a mínima astúcia nem a mínima violência. Fica à espera. Não corre atrás do peixe, não vai agarrá-lo. Nem o enxerga sequer. É como quem tira a sorte. O rio traz o peixe, o peixe vê a isca, engole-a, engasga-se. Então, o pescador sente na ponta da vara um estremecimento característico, dá-lhe um meneio, e puxa.

-"Como vê" (prosseguiu) "a intervenção do pescador é em tudo semelhante à do acaso, ou dos acidentes cegos que semeiam o curso dos rios e de todas as coisas. Ele espera, entendeu? ali, parado. Não vê o peixe, não sabe se o peixe virá, nem de que espécie há de ser caso venha;não sabe nada. Espera. É de uma imparcialidade absoluta."

-"Em todo caso atalhei, sabe que o rio é piscoso. E a imparcialidade, aí, quer dizer simplesmente que qualquer um serve."

-"Sim. Mas o peixe, se não pegasse no anzol, seria imortal? Não teria de morrer logo adiante?"
-"Dizem que eles têm o sestro de viver muito; até duzentos anos, conforme.,'

-"E você acredita isso? Quem é que contou os aniversários do peixe? E depois, olhe aqui, e depois que vem a ser um século ou dois diante da imensidade do tempo."

-"Alto lá, nós não vivemos a imensidade do tempo, Barbosa. Com esse artifício metafísico, se tem justificado muita pose de espíritos inumanos e muita monstruosidade material. Nós vivemos um minuto! Esse minuto é que deve ser a nossa medida. Tudo que o excede é imensurável. E, sendo imensurável, é sagrado."

-"Ahn..."

-"Mas, falando sério, você não precisa ter esse trabalho de justificar o seu gosto. Nada de repreensível na pesca, nem mesmo na caça. É lei do mundo que as espécies umas às outras se exterminem, por necessidade, por esporte, por prazer, por passar o tempo, é lei do homem que combata as outras espécies todas e a própria. Que lhe havemos de fazer? Observo-lhe, simplesmente, que a sua filosofia piscatória poderia justificar também uma larga parte da moral corrente nas relações humanas. Lança-se o anzol, fica-se à espera. Conheci um mercador que, fisgando e aleijando o freguês, não se desculpava por outra forma: Veio porque quis! Não obrigo ninguém a comprar."

-"Mas está muito direito" (replicou Barbosa). "Ele tinha razão. Eu, dono de um negócio, daria o preço que bem entendesse às minhas coisas."

-"Você não o faria, Barbosa."

-"Faria, sim, e você também."

-"Pois, se eu o fizesse, seria um espertalhão como qualquer outro."

Barbosa amuou, resmungou, e creio que só a sua sensatez e bonomia de animal forte, o impediu de levar adiante a contenda. Separamo-nos sem nos encarar. Fiquei penalizado com esse primeiro fio partido na teia de seda que vínhamos tecendo há tantos anos. Por um fio roto vai-se às vezes o tecido inteiro.

Fonte:
Domínio Público

Claudia Dimer (A Morte da Natureza)

Imagem formatada obtida no facebook da poetisa

Adriana Falcão (Primeiro Amor)

É que nem saudade. Mesmo que a pessoa nunca tenha sentido, quando sente já sabe logo que aquilo é saudade, ou melhor, que saudade é aquilo: aquele vazio que queria ser cheio. É que nem azia. A sensação puxa a palavra exata na hora, e a pessoa diz "Que azia!", ainda que seja a primeira vez que tem uma.

Primeiro amor é que nem festa surpresa. Quando acontece não avisa, mas é tão óbvio que dali pra frente não dá mais para viver sem pensar nele. Apesar de Tatiana só ter 14 anos, quando viu Felipe pela primeira vez, com sua roupa de goleiro, teve certeza: "Amei". E amou mesmo. Pulava. Sofria. Gargalhava de amor quando ele chegava à escola ou jogava nos treinos. Quando ele defendia uma bola, queria ser bola. Tatiana estava mesmo apaixonada.

O amor já estava transbordando quando ela foi contar a novidade pra Chiquinha Mota Pereira, sua amiga imaginária desde que elas eram pequenas. As duas cresceram juntas, Tatiana de verdade e Chiquinha de mentira, se é que se pode chamar de "mentira" alguém que, apesar de imaginária, é amiga verdadeira.

Chiquinha adorou a novidade e quis saber apenas se aquele amor era correspondido.

- Como é que eu posso saber? - respondeu (ou perguntou) Tatiana.

- Olhando fundo nos olhos dele.

Tatiana nem dormiu direito, ligada naquela urgência dos que amam pela primeira vez na vida, esperando amanhecer e ir pra escola, olhar fundo nos olhos de Felipe, pra conferir se havia algum sinal de amor vindo de lá, feito um espelho.

Finalmente deu 7 e meia e a campainha tocou. Ia começar a aula. Todos nos seus lugares, restou um lugar vazio. "Cadê Felipe, meu Deus?" Foi na hora do recreio que ela recebeu a notícia: "Felipe saiu da escola porque o pai dele foi transferido pra uma outra cidade".

E agora? Não foi fácil aquela manhã segurar o choro pra mais tarde.

- Será que todo amor de verdade tem que ter um impedimento pra se tornar impossível? - Tatiana soluçou baixinho. E Chiquinha respondeu (ou perguntou):

- Ou será que todo amor, pra se tornar possível, tem que provar que é de verdade?

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 4

O QUE NÓS VEREMOS

Estava na Europa em 1915, quando recebi da Diretoria do Aero Club da América um convite para tomar parte no Segundo Congresso Científico Pan-Americano, onde se fizeram representar, pelos seus filhos mais ilustres, todos os países do nosso continente.

Aproveitei a oportunidade, que tão especialmente se me oferecia, para, mais uma vez, exprimir a minha inteira confiança no futuro da navegação aérea.

Escolhi, para isso, este tema:

Como o aeroplano pode facilitar as relações entre as Américas.

As condições topográficas do continente sul-americano, tornando economicamente impossível a construção de estradas de ferro e, portanto, o transporte e comunicação adequados, têm retardado a estreita união, tão desejável, entre os estados do hemisfério ocidental. Cidades importantes, situadas em grandes altitudes, ficam isoladas. Algumas, em verdade, parecem estar, praticamente, fora do alcance da civilização moderna.

A longa e penosa viagem, o tempo que nela se gasta, em vapor, vai demorando a aliança íntima dos países sul-americanos com os Estados Unidos, para quem parecem inacessíveis, por tão remotos.
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Um largo tempo de percurso nos separa, impedindo o desenvolvimento de proveitosas relações comerciais, reciprocamente interessantes, sobretudo agora que a guerra anormaliza o mercado mundial.

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Quem sabe quando uma potência européia há de ameaçar um estado americano? Quem poderá dizer se na presente guerra não veremos uma potência européia vir apoderar-se de território sul-americano? A guerra entre os Estados Unidos e um país da Europa é impossível? Uma aliança estreita entre a América do Norte e a do Sul redundaria em uma força formidável.

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Eu vos falei do comércio e da dificuldade do seu desenvolvimento, das facilidades de transporte e comunicações e do incremento das relações amistosas. Estou convencido que os obstáculos de tempo e distância serão removidos. As cidades exiladas da América do Sul entrarão em contato direto com o mundo de hoje. Os países distantes de encontrarão, apesar das barreiras de montanhas, rios e florestas. Os Estados Unidos e os países sul-americanos, se conhecerão tão bem como a Inglaterra e a França se conhecem. A distância entre Nova York as Rio de Janeiro, que é agora de mais de vinte dias de viagem por mar, será reduzida a 2 ou 3 dias. Anulados o tempo e a distância, as relações comerciais, por tanto tempo retardadas, se desenvolverão espontaneamente. Teremos facilidades para as comunicações rápidas. Chegaremos a um contato mais íntimo. Seremos mais fortes, nos nossos laços de compreensão e amizade.

Tudo isso, Srs., será realizado pelo aeroplano.

Não me parece muito longe o tempo em que se estabeleça o serviço de aeroplanos entre as cidades dos Estados Unidos e as capitais sul-americanas. Com um serviço postal em aeroplano e a comunicação entre os dois continentes se reduzirá de vinte para dois ou três dias. O transporte de passageiros entre Nova York e os mais longínquos pontos da América do Sul não é impossível. Creio, Srs., que o aeroplano, com pequenos aperfeiçoamentos, resolverá o problema por que tanto temos lutado.
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A possibilidade da navegação aérea entre os Estados Unidos e a América doSul, é mera especulação fantasiosa?

Intimamente creio que a navegação aérea será utilizada no transporte de correspondência e passageiros entre os dois continentes. Algum de vós demonstrará incredulidade e rirá desta predição.

Sem embargo, faz 12 anos que eu disse que as máquinas aéreas tomariam parte nas futuras guerras e todos, incrédulos, sorriram.

Em 14 de julho de 1903, voei sobre a revista militar de Longchamps. Nela tomavam parte 50.000 soldados e em seus arredores se acotovelavam 200.000 espectadores. Foi a primeira vez que a navegação aérea figurou em uma demonstração militar. Naquela época, predisse que a guerra aérea seria um dos aspectos mais interessantes das futuras campanhas militares. Minha predição foi ridicularizada por alguns militares; outros, entretanto, houve que, desde logo, alcançaram as futuras e imensas utilidades da navegação aérea. Dentre estes, é, para mim, grato recordar o nome do General André, então Ministro da Guerra da França, de quem recebi a seguinte carta:

MINISTÈRE DE LA GUERRE
Cabinet du Ministre

Paris, le 19 Juillet 1903

Monsieur,

Au cours de la revue du 14 Juillet, j'avais remarqué et admiré la facilité et la sureté avec les-quelles évoluait le ballon que vous dirigiez. Il était impossible de ne pas constater les progrès dont vouz avez doté la navigation aérienne. Il semble que, grace à vous, elle doive se prèter désormais à des applications pratiques, surtout au poin de vue militaire.

J'estime qu' à cet égard elle peut rendre des services très sèrieux en temps de guerre...

GENERAL ANDRÉ.

Consideremos, entretanto, os acontecimentos desde aquela época. Consideremos o valioso trabalho que o aeroplano tem produzido na atual guerra.

A aviação revolucionou a arte da guerra.

A cavalaria, que teve grande importância em momentos valiosos, deixou de existir.
.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

No meu livro "Dans l'Air", publicado em 1904, eu dizia:

"... Je ne puis toutefois abandonner ce suject sans faire allusion à un avantage maritìme unique de l'aéronef: je veux dire la faculté que possède le navigateur aérien d'apercevoir les corps en mouvement sous la surface des eaux. Croisant à bout de guide-rope sur la mer et se maintenant à la hauteur qui lui parait convenable, l'aéronef pròmene librement en tous sans le navigateur. Cependant, le sous-marin qui poursuit sa course furtive sous les vagues est parfaitement visible pour lui, quand, du pont d'un navire de guerre, il reste absolument invisible. C'est un fait d'observation et qui tient à certaines lois de l'optique. Ainsi, chose vraiment curieuse, l'aéronef du xxo siècle peut devenir, à son dèbut, le grand ennemi de cette autre merveille du xxo siècle, le sous-marin! Car tandis que le sous-marin est ímpuíssant contre l'aéronef, celui-ci, animé d'une vitesse double, peut croiser à sa recherche, suivre tous ses mouvements, les signaler aux navires qu'il menace. Et enfin, rien n'empêche l'aéronef de détruire le sous-marin en dirigeant contre luí des longs projectiles chargés de dynamite et capables de pénétrer sous les vagues à des profundeurs où l'artillerie ne peut atteindre du pont d'un cuírassè."
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Vemos que hoje se realiza, inteiramente, essa previsão, feita há doze anos, quando a Aeronáutica acabava de nascer.
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O aeroplano provou a sua importância suprema nos reconhecimentos.

De seu bordo, podem-se locar as trincheiras inimigas, observar os seus movimentos, o transporte de tropas, munições e canhões. De bordo do aeroplano, por meio de telegrafia sem fios, ou de sinais, pode-se dirigir o fogo das forças. Por meio de informações transmitidas pelo telégrafo sem fios, grandes peças de artilharia podem precisar seus tiros contra as trincheiras e baterias inimigas......... O avião é de maior valor na defesa das costas do que os cruzadores.
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A aviação demonstrou-se a mais eficaz arma de guerra tanto na ofensiva como na defensiva. Desde o início da guerra, os aperfeiçoamentos do aeroplano têm sido maravilhosos.

Quem, há cinco anos atrás, acreditaria na utilização de aeroplanos para atacar forças inimigas? Que os projéteis de canhões poderiam ser lançados com efeitos mortíferos de alturas inacessíveis ao inimigo?

Desde o começo da guerra, os aparelhos têm melhorado. Têm sido aumentados em dimensões e alguns, hoje, são feitos exclusivamente de aço. Os motores igualmente se têm aperfeiçoado. O mais espantoso acontecimento foi o desenvolvimento dos canhões para aeroplanos. A princípio, o recuo dos canhões, ao atirar, constituía a maior dificuldade relativa aos ataques aéreos. Os constantes e repetidos choques do contra-golpe do disparo mesmo de pequenos canhões, logo bambeavam as frágeis estruturas dos aeroplanos assim utilizados, pondo-os fora de uso. Este inconveniente já está sanado. Novos canhões foram inventados, que não produzem contra-choque. Consistem em um tubo do qual são expelidos dois projéteis, por uma única explosão. No momento de atirar, um dos projéteis, uma mortífera bala de aço, desce velozmente em direção ao inimigo, e o outro, de areia, é descarregado no sentido contrário; dessas duas descargas simultâneas resulta a ausência de contra-choque.

Imaginai o poder deste terrível fogo lançado de um aeroplano!

Se o aeroplano, Srs., se tem mostrado tão útil na guerra, quanto mais não o deverá ser em tempos de paz?

Há menos de dez anos o meu aparelho era considerado uma maravilha. Nele havia lugar para apenas uma pessoa; eu me utilizei de uma motor de menos de 20 hp. A princípio apenas consegui voar alguns meros, e pouco depois alguns quilômetros. Meu recorde foi de 20 quilômetros. Eu carregava gasolina suficiente para um vôo de 15 minutos. Naquela época o aeroplano era considerado um brinquedo. Ninguém acreditava que a aviação chegaria ao progresso de hoje. Nesses tempos voávamos apenas quando a atmosfera estava tranqüila, geralmente ao nascer do sol ou ao seu pôr.

Acreditava-se que um aeroplano só poderia voar quando não houvesse vento. Hoje fabricam-se aparelhos que podem transportar 30 passageiros, capazes de viajar nos ares durante horas, de percorrerem cerca de mil milhas sem tocar em terra, movido por motores num total de mais de mil cavalos. Um aeroplano já atingiu a altura de 26.200 pés, e já se manteve no ar durante 24 horas e 12 minutos, e entre o levantar e o pôr do sol, percorreram-se, em aeroplano, 2.100 quilômetros. Não tememos mais ventos nem temporais; o aparelho moderno de voar atreve-se em qualquer céu e atravessa tempestades de qualquer velocidade, e pode, ainda, elevar-se acima das regiões tempestuosas. Ainda agora o aeroplano está em sua infância. No espaço de dez anos ele progrediu mais rapidamente que o automóvel.
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Por meio do aeroplano, estamos hoje habilitados a viajar com velocidade superior a 130 milhas por hora. Para fins comerciais e comunicações internacionais, tanto as estradas de ferro como os automóveis, chegaram a um ponto em que a sua utilidade termina. Montanhas, florestas, rios e mares, entravam o seu progresso. Mas o ar fornece um caminho livre e rápido para o aeroplano; para ele não há empecilhos. A atmosfera é o nosso oceano e temos portos em toda a parte!...
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Eu, que tenho algo de sonhador, nunca imaginei o que tive ocasião de observar quando visitei uma enorme fábrica nos Estados Unidos. Vi milhares de hábeis mecânicos ocupados na construção de aeroplanos, produzidos diariamente em número de 12 a 18.

continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Soares de Passos (O Mendigo)

Nas torres soberbas da grande cidade
O sol desmaiado não tarda a morrer;
Recrescem as sombras: que importa? a vaidade
No manto das sombras envolve o prazer.

E u velho entretanto lá sobe a montanha,
Caminha, caminha, no cimo parou:
Em frígidas gotas o rosto lhe banha
Suor copioso, que à terra baixou.

Quis antes da morte, nas serras distantes
Fitar inda os olhos cansados da luz;
A aldeia da infância saudar por instantes,
Depois satisfeito depor sua cruz.

Olhou, e um suspiro de vaga saudade
Juntou a seus prantos em funda mudez;
Depois, ao volver-se, topando a cidade,
Que em ébrio tumulto folgava a seus pés:

«Mal hajas, cidade, que ao pobre faminto
«O pão da desgraça negaste cruel!
«Mal hajas, mal hajas, que a terra do extinto
«Talvez lhe negaras, à tumba infiel!»

E exausto e sem forças, caiu de joelhos;
E a fronte cansada firmou no bordão:
Passados instantes, os olhos vermelhos
Ao céu levantava, dizendo: perdão!

Caíam-lhe soltas no colo vergado
As longas madeixas em longos anéis:
Que nobre semblante de rugas sulcado,
Sulcado dos anos e mágoas cruéis!

«Perdão para as vozes que solta a desgraça!
«Perdão para o triste, perdão, ó meu Deus!
«Bem hajas, que aos lábios lhe roubas a taça
«De fel e amarguras, abrindo-lhe os céus.

«Já filhos não tenho, levou-mos a guerra;
«Esposa não tenho, finou-se de dor;
«Amigos não vejo na face da terra:
«Que faço eu no mundo? bem hajas, Senhor!

«Às portas do rico bati sem alento,
«Eu rico n'outrora, mendigo por fim:
«O rico sem alma negou-me o sustento,
«Aqueles que amava fugiram de mim.

«Vaguei pelo mundo, nas faces mirradas
«Colhendo os insultos que ao pobre se dão;
«Sem pão, sem abrigo, por noites geladas
«Pousei minha fronte nas lajes do chão.

«Que vezes a morte chamei sem alento
«Cansado dos anos, e fomes, e dor!
«A morte não veio: sofri meu tormento...
«Só hoje me ouviste! bem hajas, Senhor!

«Os homens e o mundo negaram-me os braços,
«Mas tu me recolhes, tu me abres os teus...
«Minha alma te busca, desprende-a dos laços...
«Perdão para todos, perdão, ó meu Deus!»

E um ai derradeiro soltou d'ansiedade,
Caindo por terra nas urzes do chão;
Ao longe, no seio da grande cidade,
Brilhava das festas nocturno clarão.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Jacqueline Aisenman (Varal do Brasil Informa)

Bom dia amigos!

Neva muito em Genebra neste mês de fevereiro! Se janeiro foi até clemente, fevereiro nos mostra bem que o inverno ainda não acabou!

Enquanto isto, ao sul do Equador, nas belas terras do Brasil, termina hoje o carnaval, a maior festa popular do mundo. E, com se diz brincando: começará finalmente o ano de 2013 por lá!

Brincadeiras e frio à parte, nós do Varal continuamos nossas atividades e gostaríamos de compartilhar com vocês como estão indo cada uma delas.

Sobre o Concurso:

- As inscrições para o I Prêmio Varal do Brasil de Literatura continuam abertas, temos recebido várias inscrições, o que nos deixa muito felizes. Se você ainda não se inscreveu, não perca tempo, não perca a oportunidade! Peça o regulamento através de nosso e-mail varaldobrasil@gmail.com e enviaremos todas as coordenadas.

Sobre o Salão do Livro de Genebra 2013:

- Infelizmente nos restam muito poucas vagas para autores que desejem vir autografar em Genebra. Para os que desejem apenas expor seus livros ainda temos vagas (também não muitas). Pediríamos que entrassem em contato conosco o mais breve possível para que a inscrição seja feita. Uma vez atingido o número adequado de autores e livros não acrescentaremos mais ninguém em respeito aos que já estiverem inscritos. Contato: varaldobrasil!@gmail.com

- A todos os inscritos que ainda não nos enviaram o material necessário por e-mail (fotos de capa em boa resolução (fotos pequenas não servem), fotos de rosto em boa resolução (fotos de corpo inteiro e fotos pequenas não servem), resenhas curtas dos livros e biografias curtas (resenhas longas e biografias longas – mais de dez linhas, não servem) pedimos que nos enviem no mais breve prazo, assim como também pedimos que enviem os livros. Os correios, quando os livros não são enviados por SEDEX, podem levar muito tempo para entregar os pacotes.

Sobre as revistas:

- Encerradas as inscrições para a revista de março (sobre o amor) que sairá no final deste mês. Contato: varaldobrasil!@gmail.com

 Até 10 de março estarão abertas as inscrições para a revista de abril com tema livre;

 Até 10 de abril estarão abertas as inscrições para a revista de maio com o tema SAUDADE (Parece que foi ontem...);

Até 10 de maio estarão abertas as inscrições para a revista de junho com o tema SEGREDOS E PECADOS;

Até 10 de junho estarão abertas as inscrições para a revista de julho/agosto com tema livre.

Cada edição encerrará as inscrições na data marcada, ou antes, caso atingirmos um número adequado de participantes.

Esperamos que para você que está aqui pela Europa o frio seja cada vez mais ameno e que a esperança da chegada da primavera no próximo mês anime o seu coração!

Esperamos que para você que está no Brasil o carnaval tenha sido (ou esteja sendo!) alegre e tenha trazido muitos bons momentos em sua vida!

Esperamos que para você que está nos outros países dos outros continentes onde também chegamos, que as boas coisas estejam fazendo parte da sua vida a cada instante!

Em nosso site, vejam as fotos de Kacianni Ferreira
http://www.varaldobrasil.ch/23264/317322.html e

Leni André: 
http://www.varaldobrasil.ch/23264/317343.html

Também as pinturas de Maria Lagranha
http://www.varaldobrasil.ch/23222/317364.html e

EstherRogessi 
http://www.varaldobrasil.ch/23222/301201.html

Um abraço sempre amigo,
 
Jacqueline Aisenman
Editora-Chefe
Varal do Brasil
http://www.varaldobrasil.com
http://varaldobrasil.blogspot.com
E-mail: varaldobrasil@gmail.com
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http://www.facebook.com/pages/VARAL-DO-BRASIL/107298649306743
www.coracional.com
www.certaslinhastortas.blogspot.com

Fonte:
E-mail enviado por Jacqueline

Fabrício Brandão (Diversos Afins, primeira edição de 2013)

Caro Leitor,

A Diversos Afins desfolha sua primeira edição de 2013. Entre palavras e imagens, destacamos:

- as incursões poéticas de Gil T. de Sousa, Daniela Delias, Jorge Vicente, Alexandra Vieira de Almeida, Lílian Maial e Alvaro Posselt

- os contos de Natércia Pontes, Bruna Mitrano e Eleonora Marino Duarte

- a multiplicidade de mundos nos desenhos de Luiza Maciel Nogueira

- uma conversa com a fotógrafa e poetisa Mercedes Lorenzo

- percursos de Bolívar Landi no mais novo filme de Quentin Tarantino

- as escutas de Larissa Mendes sobre o novo disco da Orquestra Imperial

Estes e outros caminhos em:
www.diversosafins.com.br

Saudações culturais,
Fabrício Brandão & Leila Andrade – LEVEIROS
twitter: @diversosafins
facebook: facebook.com/diversosafins

Fonte:
e-mail enviado por Fabrício Brandão

Bibliotecas de São Paulo (Agenda de Fevereiro)

Leitura da minha história

Com Anita Correa

Aproximar o público do projeto com as diferentes formas de leitura (leitura da palavra escrita, leitura visual, leitura artística) e construir individualmente a história de vida de cada um, usando um dos recursos utilizados durante as oficinas, para valorizar a história pessoal de cada participante e suas possibilidades de leitura de mundo e das letras.

Dias 6,13,20 e 27 de fevereiro (qua), das 15h às16h – Biblioteca Pública Pedro Nava

CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

Brincando de ler


Com Maria de Lourdes Jorge, Cecília Graner e Lucélia Silva
Tarde de dobraduras, histórias e tangram.

Dias 7 e 14 de fevereiro (qui), das 14h30 às 16h30 - Biblioteca Pública Paulo Duarte
================
Contar é preciso, ler é indispensável, brincar é fundamental
 
Com Antonia Andréa de Sousa.

Leitura e Narrativas de histórias e contos estimulam o potencial criativo e o prazer de ler. Público alvo: participantes de programas de incentivo à leitura. Inscrições pelo telefone: 5687-0408.

Dia 20 de fevereiro (qua), 10h e14h30 - Biblioteca Pública Belmonte
=============
Sarau líteromusical da Zona Norte

Organização: Tereza Rocha

Espaço onde as pessoas se reúnem para se expressarem ou se manifestarem artisticamente – dança, música, teatro, poesia, leitura de textos etc. Além disso, todo mês um escritor é homenageado, onde os participantes entraram em contato com as obras e biografia do escritor homenageado. Livre.

Dia 22 de fevereiro (sex), 14h – Biblioteca Pública Nuto Sant’anna

Fonte:
e-mail recebido de Secretaria Municipal de Bibliotecas de São Paulo

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 4

Creio interessante citar a opinião de algumas revistas sobre esses meus vôos, por elas amplamente apreciados. Não o faço por não ter à mão, pois nunca me preocupei em colecionar artigos que se referiam a mim. Dentre todas, porém, lembro-me que "L'Aerophile", a mais importante e antiga das revistas de Aeronáutica, considerou-os um acontecimento histórico.

"L'Illustration" e "La Nature", cujos números aqui encontrei, assim os consignaram:

"L'ILLUSTRATION"
SAMEDI 27 OCTOBRE 1906

M.Santos-Dumont, dèja vainqueur du prix Deutsch, de 100.000 fcs. grace à son dirigeable, vient de remporter aussi, mardi dernier, la Coupe Archdeacon, réservée aux appareils d'aviation. Monté sur cet appareil original, M. Santos-Dumont, a parcouru, l'autre matin, d'un breau vol, une distance de 60 mètres. La photographie que nous donnons ici est, croyons-nous, la seule qui ait été authentiquement prise au cours de cette passionnante expérience; elle montre que l'aéroplane ne s'est pas elevé à une bien grande hauteur audessus du sol: 2 mètres environ. La, d'ailleurs, n'était pas la question, et le grand intérêt de l'experience était de dèmontrer que l'on peut, sans le concours d'un support plus léger que l'air, réaliser le vol plane. Cette démonstration est aujourd'hui faite.


Eis aqui parte do artigo que publicou "L'Illustration" e, na página em frente, a fotografia que o acompanhava.

"La Nature" disse:

"La journée du 13 Septembre 1906 sera désormais historique, car, pour la prémiere fois, un homme s'est elevé dans l'air par ses propres moyens, Santos-Dumont, sans cesser ses travaux sur le "plus léger que l'air" fait aussi de três importantes études sur le "plus lourd que l'air", et c'est lui qui est parvenu à "voler" en ce jour mémorable, devant un public nombreux.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
... il rest un fait acquis, c'est qu'il s'est éléve dans l'espace, sans ballon, et c'est une victoire importante pour les partisans du "plus lourd que l'air".
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
C'est donc maintenant (23 Octobre) la victoire complète du "plus lourd que l'air; Santos-Dumont a démontré de façon indiscutable qu'il est possible de s'élever du sol par ses propres moyens et de se maintenir dans l'air."

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
* *

Um público numeroso assistiu aos primeiros vôos feitos por um homem, como tais, reconhecidos por todos os jornais do mundo inteiro. Basta abri-los, mesmo os dos Estados Unidos, para se constatar essa opinião geral.

Podia citar todos os jornais e revistas do mundo, todos foram, então, unânimes em glorificar "esse minuto memorável na história da navegação aérea".
* *

No ano seguinte o aeroplano Farman fez vôos que se tornaram célebres; foi esse inventor-aviador que primeiro conseguiu um vôo de ida e volta. Depois dele,veio Bleriot, e só dois anos mais tarde é que os irmãos Wright fazem os seus vôos. É verdade que eles dizem ter feito outros, porém às escondidas.

Eu não quero tirar em nada o mérito dos irmãos Wright, por quem tenho a maior admiração; mas é inegável que, só depois de nós, se apresentaram eles com um aparelho superior aos nossos, dizendo que era cópia de um que tinham construído antes dos nossos.

Logo depois dos irmãos Wright, aparece Levavassor com o aeroplano "Antoinette", superior a tudo quanto, então, existia; Levavassor havia já 20 anos que trabalhava em resolver o problema do vôo; poderia, pois, dizer que o seu aparelho era cópia de outro construído muitos anos antes. Mas não o fez.

O que diriam Edison, Graham Bell ou Marconi se, depois que apresentaram em público a lâmpada elétrica, o telefone e o telégrafo sem fios, um outro inventor se apresentasse com uma melhor lâmpada elétrica, telefone ou aparelho de telefonia sem fios dizendo que os tinha construído antes deles?!

A quem a humanidade deve a navegação aérea pelo mais pesado que o ar? Às experiências dos irmãos Wright, feitas às escondidas (eles são os próprios a dizer que fizeram todo o possível para que não transpirasse nada dos resultados de suas experiências) e que estavam tão ignoradas no mundo, que vemos todos qualificarem os meus 250 metros de "minuto memorável na história da aviação", ou é aos Farman, Bleriot e a mim que fizemos todas as nossas demonstrações diante de comissões científicas e em plena luz do sol?
* *

Nessa época, os aparelhos eram grandes, enormes, com pequenos motores, voavam devagar, uns 60 quilômetros por hora ou pouco mais. Mandei, então, construir um motor especial de minha invenção, desenhado especialmente para um aeroplano minúsculo.

Este motor possuía dois cilindros opostos, o que trás a inconveniência da dificuldade de lubrificação, mas, também, as vantagens consideráveis de um peso pequeno e um perfeito equilíbrio, não ultrapassado por qualquer outro motor.

Pesava 40 quilos e desenvolvia 35 HP.

Nunca se conseguiu um motor fixo, resfriado a água, e de peso insignificante, somente igualado, mais tarde, pelos motores rotativos, aos quais, entretanto, fui sempre contrário, desde o seu aparecimento. Hoje, 10 anos passados, parece-me, confirma-se esta minha apreciação, pois o motor fixo tem tido uma aceitação geral.

A "Demoiselle" media 10 metros quadrados de superfície de asas; era 8 vezes menor que o 14-bis! Com ela, durante um ano, fiz vôos todas as tardes e fui, mesmo, em certa ocasião, visitar um amigo em seu Castelo. Como era um aeroplano pequenino e transparente, deram-lhe o nome de "Libelule" ou "Demoiselle".

Este foi, de todos os meus aparelhos, o mais fácil de conduzir, e o que conseguiu maior popularidade.

Com ele obtive a "Carta de piloto" de monoplanos. Fiquei, pois, possuidor de todas as cartas da Federação Aeronáutica Internacional: — Piloto de balão livre, piloto de dirigível, piloto de biplano e piloto de monoplano.

Durante muitos anos, somente eu possuía todas essas cartas, e não sei mesmo se há já alguém que as possua.

Fui pois o único homem a ter verdadeiramente direito ao título de aeronauta, pois conduzia todos os aparelhos aéreos.

Para conseguir este resultado me foi necessário não só inventar, mas também experimentar, e nestas experiências tinha, durante dez anos, recebido os choques mais terríveis; sentia-me com os nervos cansados.

Anunciei a meus amigos a intenção de pôr fim à minha carreira de aeronauta, — tive a aprovação de todos.
* *

Tenho acompanhado, com o mais vivo interesse e admiração, o progresso fantástico da Aeronáutica. Bleriot atravessa a Mancha e obtém um sucesso digno de sua audácia. Os circuitos europeus se multiplicam; primeiro, de cidade a cidade; depois, percursos que abrangem várias províncias; depois, o "raid" de França à Inglaterra; depois, o "tour" da Europa.

Devo citar também o primeiro "meeting" de Reins que marcou, pode-se dizer, a entrada do aeroplano no domínio comercial.
* *

Entramos na época da vulgarização da aviação e, nessa empresa, brilha sobre todos, o nome de Garros.
Esse rapaz personificou a audácia; até então, só se voava em dias calmos, sem vento. Garros foi o primeiro a voar em plena tempestade. Logo depois, atravessou o Mediterrâneo.

O estado atual da aeronáutica todos nós o conhecemos, basta abrir os olhos e ler o que ela faz na Europa; e é com enternecido contentamento que eu acompanho o domínio dos ares pelo homem:

É meu sonho que se realiza.

––––––-
Continua… O Que Nós Veremos

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Soares de Passos (À Morte do meu Amigo Licínio F. C. de Carvalho)

Morreste, amigo, partiste
Desta mansão passageira!
Bem depressa da carreira
Tocaste a meta fatal!
Com a folhagem dos bosques
Gelou-te o vento do outono,
E dormes o longo sono
Do teu leito sepulcral!

Já tua mão extremosa
Não aperta a mão do amigo
Que tantas vezes contigo
Em sonhos vãos delirou.
No seio da fria terra
Já não me escutas nem falas,
Contando lutos ou gaias
Do teu viver que passou.

Oh! quantas vezes, imersos
Nesses íntimos enleios
Que fazem um de dois seios,
Sentimos horas fugir!
Quantas, sonhando horizontes
De poesia, amor, ou glória,
Numa expansão transitória
Criamos longo porvir!

E morto jazes, ai! morto,
Sem poder de teus anelos
Realizar os sonhos belos,
Cruzar a vasta amplidão?
Morto sem ter dito ao mundo
A palavra augusta e santa
Que a turba ansiosa espanta,
E que é do génio o condão?

Morto à luz da tua aurora
Sem que à luz da tua sesta
Pudesses, na hora funesta,
Sorrir ao passado teu?
Morto, ai, morto sem ter ganho
Mais lágrimas de saudade,
Tão doces à soledade
Daquele que já morreu!

Deus! se a vida é campo ameno
Onde se vem colher flores,
Porque, do sol aos fulgores,
Não se hão-de as flores colher?
Se é deserto ingrato e rude,
Onde não brota uma fonte,
Porque há-de em nosso horizonte
A luz do dia nascer?

Mas dorme, descansa, amigo,
Que a vida é o deserto às vezes...
Estrada de mil reveses,
E de voragens fatais...
E que é o poeta? o viajante
Que fere os pés nos abrolhos,
Enquanto levanta os olhos
Às regiões divinais.

Ave estrangeira que passa
Neste clima proceloso,
Com seu canto mavioso
Levando as turbas d'após;
Mas que chora de saudade
Por sua pátria querida,
Té que afinal abatida
Cai sem alento e sem voz.

Descansa! no frio leito
De teu eterno repouso
Não te irá o sol formoso
Cada manhã despertar;
Mas também, da aurora à noite,
Não calcarás os espinhos
Que em teus agrestes caminhos
Verias da flor a par.

Lá não irão festejar-te
Ruidosos ecos do mundo,
Que dizem, no som profundo,
Qual é do génio o poder;
Mas também tuas coroas
Não regarás com teu pranto,
Nem a inveja em negro manto
Tua estrela há-de envolver.

Descansa! que digo! surge!
Ergue-te à luz, ó poeta,
E revoa aonde inquieta
Te levava a inspiração!
Sonhaste mundos brilhantes,
Sonhaste amor e poesia:
No país do eterno dia
Vai colher teu galardão!

Vai! das plagas do desterro
Eis-te afinal resgatado:
Procura regenerado
A pátria que te sorri!
Lá terás as harmonias
Que soltam milhões d'esferas,
E florentes primaveras
Quais não terias aqui.

Lá goza! lá, sacudido
Sobre a terra o térreo manto,
Desprende teu novo encanto
De novos sóis ao fulgor!
E, se lá pode chegar-te
Esta nota de saudade,
Escuta a voz da amizade
Entre os mil hinos do amor!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Vicência Jaguaribe (O Samba, da Ficção à Realidade)

A trama da novela “Lado a Lado”, produzida pela Rede Globo e transmitida no horário das seis, ambienta-se no Rio de Janeiro, então capital da recém-proclamada república. O ambiente histórico-social é o do início do século XX, poucos anos após a abolição da escravatura, quando os negros, embora libertos, viviam ainda sob o tacão dos brancos.

Morando nos morros, em situações precárias, os ex-escravos, negros ou mulatos, não frequentavam os lugares frequentados pelos brancos nem tinham acesso ao estudo e ao trabalho bem remunerado. Viviam, pois, de biscates. Homens pobres, negros (e também brancos), que haviam ingressado na Marinha, eram humilhados e até recebiam castigos físicos, o que provocou a Revolta da Chibata, insurreição dos marinheiros da Marinha Brasileira, em cujo primeiro dia houve ameaça de bombardeamento da cidade do Rio de Janeiro, mas os revoltosos tiveram de se render. As mulheres viviam como criadas nas casas de famílias endinheiradas ou vendiam doces e outras comidas, cujas receitas vieram da terra de seus antepassados. Porém, principalmente, eram com frequência assediadas sexualmente pelos brancos, como se ainda vivessem na senzala.

Preservar as tradições de seus ancestrais trazidos contra a vontade da mãe África era a única maneira de construir uma identidade negra. Mas a sociedade dos brancos criava empecilho a esse desejo de individualidade coletiva, considerando ilegal a prática da capoeira e dos ritos religiosos africanos.

Focaliza-se, então, o momento em que surgiu o samba e a reação da sociedade branca àquele ritmo primitivo, de sensualidade explícita. E é esse o ponto mais interessante da novela: os brancos racistas e imunes às transformações e ao advento de uma nova era, lutando para ignorar o ritmo que nascia da musicalidade inerente aos negros e que acabou sendo adotado como o ritmo brasileiro por excelência.

É interessante pensar nessa luta — que acabou gloriosa — hoje, no ano de 2013, nestes dias de carnaval, momento da apoteose do samba e dos sambistas, muitos dos quais descendentes de escravos e herdeiros da genialidade e da coragem dos primeiros sambistas. Eles, os sambistas de hoje, que, em bom número, ainda moram nos morros do Rio de Janeiro e que são, pelo menos durante os dias de carnaval, respeitados e homenageados como os legítimos representantes da brasilidade.

Agora, saiamos um pouco do universo ficcional da novela e entremos na máquina do tempo. Tentemos reconstituir o mundo da realidade em que surgiu o samba.

Comecemos com a origem e o significado da palavra samba. Segundo consta nos variados estudos sobre o assunto, tem o vocábulo origem no termo africano semba, cujo significado é rejeitar, separar. Esse elemento lexical denominou uma dança, a “umbigada”: no centro de uma roda formada por homens e mulheres que batem palmas, fazem coro e tocam instrumentos de percussão, o dançarino solista, com requebros, dá uma umbigada em um companheiro da roda, que vai substituí-lo no centro. Outros instrumentos, importantes para o samba como hoje o conhecemos, foram sendo inseridos nessas manifestações de dança: o ganzá, a cuíca, o reco-reco, o pandeiro.

Mas, ao que parece, o samba cantado está diretamente relacionado às cantigas dos negros nas senzalas, associadas ao ritmo das umbigadas. Esse canto era marcado por uma estrofe solo, com um refrão fixo cantado em coral, como resposta. Essa é uma estrutura tipicamente africana.

Para que surgisse o samba propriamente dito, somou-se uma conjunção de influências: da umbigada, do lundum ou lundu e do maxixe, considerado uma versão nacional da polca, ritmo ao qual foram introduzidos passos sensuais.

Pode-se determinar o espaço físico do surgimento do samba: a cidade do Rio de Janeiro, em uma área conhecida na época como Pequena África — mais especificamente Cidade Nova —, território que compreendia o eixo que vai da Avenida Presidente Vargas ao canal do Mangue, cujos extremos eram a zona do porto, o Centro tradicional e o bairro do Estácio. Concomitantemente surgem, no Rio de Janeiro, os primeiros ranchos carnavalescos, oriundos dos ranchos baianos da Folia de Reis, uma manifestação, pois, da cultura tradicional baiana na cidade. A informação da inserção de elementos da tradição baiana no Rio de Janeiro é importante: os boêmios, músicos e cantores reuniam-se nas casas de mulheres baianas, que organizavam as festas e os desfiles carnavalescos da comunidade.

Essas baianas, chamadas tias, proporcionaram o ambiente para o surgimento do samba, gênero novo na música popular brasileira. Foi na casa de tia Dadá que o compositor carioca Caninha ficou conhecendo o samba-raiado, chamado depois samba de partido-alto, cuja característica era o improviso cantado em forma de desafio por dois ou mais solistas.

A mais famosa dessas baianas, no entanto, foi a tia Ciata — Hilária Batista de Almeida —, baiana de Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso e de Maria Bethânia. A casa de tia Ciata, em cujas festas rolava cachaça em excesso, era frequentada por figuras como Pixinguinha, João da Baiana, Sinhô e Donga. Aliás, uma versão dos fatos diz haver sido Donga o autor do primeiro samba brasileiro, Pelo telefone, composto em 1916, versão contestada pelos outros frequentadores da casa de tia Ciata, com o argumento de que o que se compunha ali era coletivo.

Mas a polêmica em torno do samba Pelo telefone vai além de sua autoria. Há mais de uma versão de sua letra. A versão gravada pela Casa Édison, em 1917, diz o seguinte: O chefe da folia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar. Outra versão, essa usada pelos que se sentiram lesados por Donga e afirmavam que a letra da música era coletiva, traz os seguintes versos: O chefe da polícia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que na Carioca / Tem uma roleta / Para se jogar. Como se vê, é a versão não oficial, isto é, a não gravada na época, a mais aceita hoje. Essa versão, inclusive, está apoiada pelo contexto da época: em maio de 1913, o jornal “A noite”, para denunciar a incapacidade da polícia do Rio de Janeiro, mandou instalar uma roleta no Largo da Carioca, 14, em frente à sua sede. Os repórteres convidavam os passantes a jogar. No dia seguinte, o próprio jornal publicou uma reportagem com o título “O jogo é livre”.

Donga, anos depois, reconheceu que o samba não fora composição sua. Ele simplesmente aproveitara versos das trovas populares.

Finda a visão histórica do nascimento do samba, voltemos ao universo ficcional da novela. Há no teleteatro em foco um casal que poderia muito bem haver existido na realidade: o negro Zé Maria e a mulata Izabel. Ele entrou na Marinha, foi humilhado e chicoteado. Revoltado, insurge-se contra o comandante do navio e participa da “Revolta da Chibata”. Zé Maria foi expulso da Marinha e preso.

Izabel, que no momento da revolta estava noiva de Zé Maria, sem saber que o noivo havia sido preso, sentiu-se abandonada. Desgostosa e carente, acabou seduzida pelo filho branco de um senador da República, e engravida. A esposa do senador fez tudo para separar o filho — um rapazote irresponsável e contumaz sedutor de mulatas — de Izabel, que, aliás, não o amava. A baronesa, como gostava de ser tratada, simulou, inclusive, a morte do neto.

Na época, apresentava-se, no Rio de Janeiro, uma dançarina francesa, que se interessou pelas manifestações artísticas do morro e convidou Izabel a ir com ela para a França divulgar o novo ritmo oriundo das danças e cantigas dos escravos. Izabel, sem notícias de Zé Maria e sofrendo com a perda do filho, acompanha a dançarina. Na França, é sucesso. Estava, assim, começando a internacionalizar-se o samba, ritmo rejeitado pelos  brasileiros da época, grande parte dos quais ex-proprietários de escravos. Não aceitavam os novos tempos e não admitiam que uma dança de movimentos lascivos e ritmo primitivo fosse aceita e aplaudida pela sociedade e representasse o Brasil no exterior.

Projetemos um episódio fantástico. Imaginemos que fosse dado à sociedade carioca, racista e conservadora do início do século XX assistir aos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Imaginemos aqueles senhores tradicionalistas e bem postos na vida, acreditando em uma origem puramente europeia, e aquelas senhoras compenetradas e cientes de sua condição e origem, vendo a apoteose do samba e dos sambistas, em uma festa cujos lugares de destaque são ocupados por negros e mulatos de várias tonalidades de pele; assistindo a uma festa cuja atração principal é a figura escultural e praticamente nua da mulata, aplaudida de pé por homens e mulheres brancos, brasileiros e estrangeiros vindos de todas as partes do mundo.

Que aconteceria às nossas personagens de ficção? Continuariam a comportar-se como escravocratas empedernidos, imunes às inovações socioculturais, ou mudariam de atitude, diante daquelas brônzeas estátuas vivas, dançando no ritmo sensual do samba?

Quem poderá responder a essas questões provenientes de uma situação surrealista? Ninguém, é claro. Mas que esse exercício de imaginação nos leve a refletir sobre a maneira como ainda é tratado em nossa sociedade esse povo que tanto contribuiu para o fortalecimento de nossa cultura e para a formação de uma identidade reconhecida lá fora como indiscutivelmente brasileira — própria do país do carnaval, que vive, nestes dias, mais um carnaval.

Fontes:
A Autora
Imagem = http://www.blogcartaobom.com.br/2012/11/dia-do-samba/

Mário Quintana (Data e Dedicatória)

Teus poemas, não os dates nunca...  Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho,
Se existe hora, é sempre a hora estrema
Quando o anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
Um poema é de sempre, Poeta:
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez ainda nem tenha nascido,
Dedica, pois, os teus poemas.
Não os dates, porém:
As almas não entendem disso...

Fontes:
"Baú de Espantos", 4ª ed., Editora Globo, SP
Imagem = http://www.tempodepoesia.name

Márcia Barbieri (O Homem do Terno de Vidro)

“O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros (...)
(Raduan Nassar - Lavoura Arcaica)”

Sentia o perfume indiscreto do concreto fresco da nossa casa. De fora, um cheiro forte de peixe me entupia as narinas. Era estranho, porque o mar estava tão longe dos nossos olhos faiscados de areia. Apenas um minúsculo aquário inabitado enfeitava meus pensamentos. A gordura mórbida da solidão. Morávamos numa ilha e jamais tivemos saudades ou necessidade do mar. O mundo ia e vinha, holístico, tão alheio a tudo... Indústrias fabricavam sonhos de novos amores e nós comíamos do pão mofado de cada dia. Vinte mil léguas submarinas. Não entendia as engrenagens engolindo monstros e crianças disformes, mas me dava por satisfeita por não ser devorada, faltavam somente alguns pedaços inúteis, que provavelmente não sentirei falta no futuro. Juntos, planejávamos viagens que nunca faríamos. Contabilizávamos filhos já perdidos nos labirintos ocos e fétidos do ventre. Não compreendia o motivo do nascimento se localizar tão a margem da lama. Bocas de lobo deságuam em mim. Encaramujo. Nas horas de monotonia crio larvas raras e até agora nenhuma se transformou em borboleta, serviram apenas para engolir nossos jardins, em seu tímido, porém grotesco gigantismo.

Olho-te. Côncavo. Um relógio de pendulo ameaça a paz das paredes caiadas. Tempo hemorrágico maculando meus olhos em andrajos de sangue e tédio. Palito os dentes e retiro restos de cadáveres. Venho me alimentando da vileza humana. Caranguejos esnobes de subúrbio.

Arrasto os pés pelos corredores ruidosos. Tudo que é velho range e dói, apenas nossos corpos se perdem num silêncio constrangedor e destrutivo. Rasgos. Você se foi. De repente. Entre os vãos. Deslizes. Não te culpo da ausência dessa paixão furta-cor. Mas peço que traga algo para estancar o sangue da minha garganta. Fisgadas. Ainda convulsiono pelo assalto ao eco das minhas palavras. Narcisos.

Torço os dedos e desfaço antigos nós. Você sempre fora forte. Viril. Um peixe grande. Observo, no entanto, a incoerência dos seus trajes. O homem do terno de vidro.
____
*Marcia Barbieri é paulista. Tem textos publicados nas revistas literárias Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas, O Bule, Meio Tom. É colunista das revistas literárias Caos e Letras e Sinestesia Cultural. Edita o blog: www.avidanaovaleumconto.blogspot.com.

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com.br/2011/02/o-homem-do-terno-de-vidro-marcia.html
Imagem = http://www.porcalhado.com