quinta-feira, 17 de abril de 2014

Machado de Assis (Conto Alexandrino)

Capítulo I

No mar — O quê, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro.

— Em primeiro lugar, Pítias, tu omites uma condição: — é que o rato deve expirar debaixo do escalpelo, para que o sangue traga o seu princípio. Essa condição é essencial.

Em segundo lugar, uma vez que me apontas o exemplo do rato, fica sabendo que já fiz com ele uma experiência, e cheguei a produzir um ladrão...

— Ladrão autêntico? — Levou-me o manto, ao cabo de trinta dias, mas deixou-me a maior alegria do mundo: — a realidade da minha doutrina. Que perdi eu? um pouco de tecido grosso; e que lucrou o universo? a verdade imortal. Sim, meu caro Pítias; esta é a eterna verdade. Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia...

— Os do sábio na coruja, interrompeu Pítias sorrindo.

— Não; a coruja é apenas um emblema; mas a aranha, se pudéssemos transferi-la a um homem, daria a esse homem os rudimentos da geometria e o sentimento musical. Com um bando de cegonhas, andorinhas ou grous, faço-te de um caseiro um viajeiro. O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da enfatuação no dos pavões... Em suma, os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe.

Esta é a minha filosofia recente; esta é a que vou divulgar na corte do grande Ptolomeu.

Pítias sacudiu a cabeça, e fixou os olhos no mar. O navio singrava, em direto a Alexandria, com essa carga preciosa de dois filósofos, que iam levar àquele regaço do saber os frutos da razão esclarecida. Eram amigos, viúvos e quinquagenários. Cultivavam especialmente a metafísica, mas conheciam a física, a química, a medicina e a música; um deles, Stroibus, chegara a ser excelente anatomista, tendo lido muitas vezes os tratados do mestre Herófilo. Chipre era a pátria de ambos; mas, tão certo é que ninguém é profeta em sua terra, Chipre não dava o merecido respeito aos dois filósofos. Ao contrário, desdenhava-os; os garotos tocavam ao extremo de rir deles. Não foi esse, entretanto, o motivo que os levou a deixar a pátria. Um dia, Pítias, voltando de uma viagem, propôs ao amigo irem para Alexandria, onde as artes e as ciências eram grandemente honradas.

Stroibus aderiu, e embarcaram. Só agora, depois de embarcados, é que o inventor da nova doutrina expô-la ao amigo, com todas as suas recentes cogitações e experiências.

— Está feito, disse Pítias, levantando a cabeça, não afirmo nem nego nada. Vou estudar a doutrina, e se a achar verdadeira, proponho-me a desenvolvê-la e divulgá-la.

— Viva Hélios! exclamou Stroibus. Posso contar que és meu discípulo.

Capítulo II


Experiência Os garotos alexandrinos não trataram os dois sábios com o escárnio dos garotos cipriotas. A terra era grave como a íbis pousada numa só pata, pensativa como a esfinge, circunspecta como as múmias, dura como as pirâmides; não tinha tempo nem maneira de rir. Cidade e corte, que desde muito tinham notícia dos nossos dois amigos, fizeram-lhes um recebimento régio, mostraram conhecer os seus escritos, discutiram as suas idéias, mandaram-lhes muitos presentes, papiros, crocodilos, zebras, púrpuras. Eles, porém, recusaram tudo, com simplicidade, dizendo que a filosofia bastava ao filósofo, e que o supérfluo era um dissolvente. Tão nobre resposta encheu de admiração tanto aos sábios como aos principais e à mesma plebe. E aliás, diziam os mais sagazes, que outra coisa se podia esperar de dois homens tão sublimes, que em seus magníficos tratados...

— Temos coisa melhor do que esses tratados, interrompia Stroibus. Trago uma doutrina, que, em pouco, vai dominar o universo; cuido nada menos que em reconstituir os homens e os Estados, distribuindo os talentos e as virtudes.

— Não é esse o ofício dos deuses? objetava um.

— Eu violei o segredo dos deuses, acudia Stroibus. O homem é a sintaxe da natureza, eu descobri as leis da gramática divina...

— Explica-te.

— Mais tarde; deixa-me experimentar primeiro. Quando minha doutrina estiver completa, divulgá-la-ei como a maior riqueza que os homens jamais poderão receber de um homem.

Imaginem a expectativa pública e a curiosidade dos outros filósofos, embora incrédulos de que a verdade recente viesse aposentar as que eles mesmos possuíam.

Entretanto, esperavam todos. Os dois hóspedes eram apontados na rua até pelas crianças.

Um filho meditava trocar a avareza do pai, um pai a prodigalidade do filho, uma dama a frieza de um varão, um varão os desvarios de uma dama, porque o Egito, desde os Faraós até aos Lágides, era a terra de Putifar, da mulher de Putifar, da capa de José, e do resto.

Stroibus tornou-se a esperança da cidade e do mundo.

Pítias, tendo estudado a doutrina, foi ter com Stroibus, e disse-lhe: — Metafisicamente, a tua doutrina é um despropósito; mas estou pronto a admitir uma experiência, contando que seja decisiva. Para isto, meu caro Stroibus, há só um meio.

Tu e eu, tanto pelo cultivo de razão como pela rigidez do caráter, somos o que há mais oposto ao vício do furto. Pois bem, se conseguires incutir-nos esse vício, não será preciso mais; se não conseguires nada (e pode crê-lo, porque é um absurdo) recuarás de semelhante doutrina, e tornarás às nossas velhas meditações.

Stroibus aceitou a proposta.

— O meu sacrifício é o mais penoso, disse ele, pois estou certo do resultado; mas que não merece a verdade? A verdade é imortal; o homem é um breve momento...

Os ratos egípcios, se pudessem saber de um tal acordo, teriam imitado os primitivos hebreus, aceitando a fuga para o deserto, antes do que a nova filosofia. E podemos crer que seria um desastre. A ciência, como a guerra, tem necessidades imperiosas; e desde que a ignorância dos ratos, a sua fraqueza, a superioridade mental e física dos dois filósofos eram outras tantas vantagens na experiência que ia começar, cumpria não perder tão boa ocasião de saber se efetivamente o princípio das paixões e das virtudes humanas estava distribuído pelas várias espécies de animais, e se era possível transmiti-lo.

Stroibus engaiolava os ratos; depois, um a um, ia-os sujeitando ao ferro. Primeiro, atava uma tira de pano no focinho do paciente; em seguida, os pés, finalmente, cingia com um cordel as pernas e o pescoço do animal à tábua da operação. Isto feito, dava o primeiro talho no peito, com vagar, e com vagar ia enterrando o ferro até tocar o coração, porque era opinião dele que a morte instantânea corrompia o sangue e retirava-lhe o princípio. Hábil anatomista, operava com uma firmeza digna do propósito científico. Outro, menos destro, interromperia muita vez a tarefa, porque as contorções de dor e de agonia tornavam difícil o meneio do escalpelo; mas essa era justamente a superioridade de Stroibus: tinha o pulso magistral e prático.

Ao lado dele, Pítias aparava o sangue e ajudava a obra, já contendo os movimentos convulsivos do paciente, já espiando-lhe nos olhos o progresso da agonia. As observações que ambos faziam eram notadas em folhas de papiro; e assim ganhava a ciência de duas maneiras. Às vezes, por divergência de apreciação, eram obrigados a escalpelar maior número de ratos do que o necessário; mas não perdiam com isso, porque o sangue dos excedentes era conservado e ingerido depois. Um só desses casos mostrará a consciência com que eles procediam. Pítias observara que a retina do rato agonizante mudava de cor até chegar ao azul claro, ao passo que a observação de Stroibus dava a cor de canela como o tom final da morte. Estavam na última operação do dia; mas o ponto valia a pena, e, não obstante o cansaço, fizeram sucessivamente dezenove experiências sem resultado definitivo; Pítias insistia pela cor azul, e Stroibus pela cor de canela. O vigésimo rato esteve prestes a pô-los de acordo, mas Stroibus advertiu, com muita sagacidade, que a sua posição era agora diferente, retificou-a e escalpelaram mais vinte e cinco. Destes, o primeiro ainda os deixou em dúvida; mas os outros vinte e quatro provaram-lhes que a cor final não era canela nem azul, mas um lírio roxo, tirando a claro.

A descrição exagerada das experimentações deu rebate à porção sentimental da cidade, e excitou a eloquência de alguns sofistas; mas o grave Stroibus (com brandura, para não agravar uma disposição própria da alma humana) respondeu que a verdade valia todos os ratos do universo, e não só os ratos, como os pavões, as cabras, os cães, os rouxinóis, etc.; que, em relação aos ratos, além de ganhar a ciência, ganhava a cidade, vendo diminuída a praga de um animal tão daninho; e, se a mesma consideração não se dava com outros animais, como, por exemplo, as rolas e os cães, que eles iam escalpelar daí a tempos, nem por isso os direitos da verdade eram menos imprescritíveis. A natureza não há de ser só a mesa de jantar, concluía em forma de aforismo, mas também a mesa da ciência.

E continuavam a extrair o sangue e a bebê-lo. Não o bebiam puro, mas diluído em um cozimento de cinamomo, suco de acácia e bálsamo, que lhe tirava todo o sabor primitivo. As doses eram diárias e diminutas; tinham, portanto, de aguardar um longo prazo antes de produzido o efeito. Pítias, impaciente e incrédulo, mofava do amigo.

— Então? nada? — Espera, dizia o outro, espera. Não se incute um vício como se cose um par de sandálias.

Capítulo III

Vitória Enfim, venceu Stroibus! A experiência provou a doutrina. E Pítias foi o primeiro que deu mostras da realidade do efeito, atribuindo-se umas três ideias ouvidas ao próprio Stroibus; este, em compensação, furtou-lhe quatro comparações e uma teoria dos ventos.

Nada mais científico do que essas estréias. As ideias alheias, por isso mesmo que não foram compradas na esquina, trazem um certo ar comum; e é muito natural começar por elas antes de passar aos livros emprestados, às galinhas, aos papéis falsos, às províncias, etc. A própria denominação de plágio é um indício de que os homens compreendem a dificuldade de confundir esse embrião da ladroeira com a ladroeira formal.

Duro é dizê-lo; mas a verdade é que eles deitaram ao Nilo a bagagem metafísica, e dentro de pouco estavam larápios acabados. Concertavam-se de véspera, e iam aos mantos, aos bronzes, às ânforas de vinho, às mercadorias do porto, às boas dracmas. Como furtassem sem estrépito, ninguém dava por eles; mas, ainda mesmo que os suspeitassem, como fazê-lo crer aos outros? Já então Ptolomeu coligira na biblioteca muitas riquezas e raridades; e, porque conviesse ordená-las, designou para isso cinco gramáticos e cinco filósofos, entre estes os nossos dois amigos. Estes últimos trabalharam com singular ardor, sendo os primeiros que entravam e os últimos que saíam, e ficando ali muitas noites, ao clarão da lâmpada, decifrando, coligindo, classificando. Ptolomeu, entusiasmado, meditava para eles os mais altos destinos.

Ao cabo de algum tempo, começaram a notar-se faltas graves: — um exemplar de Homero, três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos, uma soberba coleção de cartas originais de Alexandre, cópias de leis atenienses, o 2º e o 3º livros da República de Platão, etc., etc. A autoridade pôs-se à espreita; mas a esperteza do rato, transferida a um organismo superior, era naturalmente maior, e os dois ilustres gatunos zombavam de espias e guardas. Chegaram ao ponto de estabelecer este preceito filosófico de não sair dali com as mãos vazias; traziam sempre alguma coisa, uma fábula, quando menos. Enfim, estando a sair um navio para Chipre, pediram licença a Ptolomeu, com promessa de voltar, coseram os livros dentro de couros de hipopótamo, puseram-lhes rótulos falsos, e trataram de fugir.

Mas a inveja de outros filósofos não dormia; deu rebate às suspeitas dos magistrados, e descobriu-se o roubo. Stroibus e Pítias foram tidos por aventureiros, mascarados com os nomes daqueles dois varões ilustres; Ptolomeu entregou-os à justiça com ordem de os passar logo ao carrasco. Foi então que interveio Herófilo, inventor da anatomia.

Capítulo IV

Plus Ultra! — Senhor, disse ele a Ptolomeu, tenho-me limitado até agora escalpelar cadáveres.

Mas o cadáver dá-me a estrutura, não me dá a vida; dá-me os órgãos, não me dá as funções.

Eu preciso das funções e da vida.

— Que me dizes? redarguiu Ptolomeu. Queres estripar os ratos de Stroibus? — Não, senhor; não quero estripar os ratos.

— Os cães? os gansos? as lebres?...

— Nada; peço alguns homens vivos.

— Vivos? não é possível...

— Vou demonstrar que não só é possível, mas até legítimo e necessário. As prisões egípcias estão cheias de criminosos, e os criminosos ocupam, na escala humana, um grau muito inferior. Já não são cidadãos, nem mesmo se podem dizer homens, porque a razão e a virtude, que são os dois principais característicos humanos, eles os perderam, infringindo a lei e a moral. Além disso, uma vez que têm de expiar com a morte os seus crimes, não é justo que prestem algum serviço à verdade e à ciência? A verdade é imortal; ela vale não só todos os ratos, como todos os delinquentes do universo.

Ptolomeu achou o raciocínio exato, e ordenou que os criminosos fossem entregues a Herófilo e seus discípulos. O grande anatomista agradeceu tão insigne obséquio, e começou a escalpelar os réus. Grande foi o assombro do povo; mas, salvo alguns pedidos verbais, não houve nenhuma manifestação contra a medida. Herófilo repetia o que dissera a Ptolomeu, acrescentando que a sujeição dos réus à experiência anatômica era até um modo indireto de servir à moral, visto que o terror do escalpelo impediria a prática de muitos crimes.

Nenhum dos criminosos, ao deixar a prisão, suspeitava o destino científico que o esperava. Saíam um por um; às vezes dois a dois, ou três a três. Muitos deles, estendidos e atados à mesa da operação, não chegavam a desconfiar nada; imaginavam que era um novo gênero de execução sumária. Só quando os anatomistas definiam o objeto do estudo do dia, alçavam os ferros e davam os primeiros talhos, é que os desgraçados adquiriam a consciência da situação. Os que se lembravam de ter visto as experiências dos ratos, padeciam em dobro, porque a imaginação juntava à dor presente o espetáculo passado.

Para conciliar os interesses da ciência com os impulsos da piedade, os réus não eram escalpelados à vista uns dos outros, mas sucessivamente. Quando vinham aos dois ou aos três, não ficavam em lugar donde os que esperavam pudessem ouvir os gritos do paciente, embora os gritos fossem muitas vezes abafados por meio de aparelhos; mas se eram abafados, não eram suprimidos, e em certos casos, o próprio objeto da experiência exigia que a emissão da voz fosse franca. Às vezes as operações eram simultâneas; mas então faziam-se em lugares distanciados.

Tinham sido escalpelados cerca de cinquenta réus, quando chegou a vez de Stroibus e Pítias. Vieram buscá-los; eles supuseram que era para a morte judiciária, e encomendaram-se aos deuses. De caminho, furtaram uns figos, e explicaram o caso alegando que era um impulso da fome; adiante, porém, subtraíram uma flauta, e essa outra ação não a puderam explicar satisfatoriamente. Todavia, a astúcia do larápio é infinita, e Stroibus, para justificar a ação, tentou extrair algumas notas do instrumento, enchendo de compaixão as pessoas que os viam passar, e não ignoravam a sorte que iam ter. A notícia desses dois novos delitos foi narrada por Herófilo, e abalou a todos os seus discípulos.

— Realmente, disse o mestre, é um caso extraordinário, um caso lindíssimo. Antes do principal, examinemos aqui o outro ponto...

O ponto era saber se o nervo do latrocínio residia na palma da mão ou na extremidade dos dedos; problema esse sugerido por um dos discípulos. Stroibus foi o primeiro sujeito à operação. Compreendeu tudo, desde que entrou na sala; e, como a natureza humana tem uma parte ínfima, pediu-lhes humildemente que poupassem a vida a um filósofo. Mas Herófilo, com um grande poder de dialética, disse-lhe mais ou menos isto: — Ou és um aventureiro ou o verdadeiro Stroibus; no primeiro caso, tens aqui o único meio para resgatar o crime de iludir a um príncipe esclarecido, presta-te ao escalpelo; no segundo caso, não deves ignorar que a obrigação do filósofo é servir à filosofia, e que o corpo é nada em comparação com o entendimento.

Dito isto, começaram pela experiência das mãos, que produziu ótimos resultados, coligidos em livros, que se perderam com a queda dos Ptolomeus. Também as mãos de Pítias foram rasgadas e minuciosamente examinadas. Os infelizes berravam, choravam, suplicavam; mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias. No terceiro dia arrancaram-lhes os olhos, para desmentir praticamente uma teoria sobre a conformação interior do órgão. Não falo da extração do estômago de ambos, por se tratar de problemas relativamente secundários, e em todo caso estudados e resolvidos em cinco ou seis indivíduos escalpelados antes deles.

Diziam os alexandrinos que os ratos celebraram esse caso aflitivo e doloroso com danças e festas, a que convidaram alguns cães, rolas, pavões e outros animais ameaçados de igual destino, e outrossim, que nenhum dos convidados aceitou o convite, por sugestão de um cachorro, que lhes disse melancolicamente: — "Século virá em que a mesma coisa nos aconteça". Ao que retorquiu um rato: "Mas até lá, riamos!"

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

A Natureza em Versos V

LÚCIA PÉRISSÉ

Chuva


Olhei na janela;
A chuva lá fora
Cai mansa, dengosa,
espalhando carinho na terra molhada...

E a grama a recebe de braços abertos;
e as plantas sorriem, cantando, dançando,
com a doce cantiga que a chuva ensinou...

Olhei para o alto
e os pingos caíram
molhando meu rosto...
São olhos do céu
chorando de amor...

Pra mim essa chuva é
como uma lágrima
que a nuvem derrama
só de saudade...;

Saudade do amor,
saudade da vida,
da vida que é linda
porque ela é amor...

E eu olho pra chuva,
que cai de mansinho.
molenga, dengosa...
espalhando carinho,
abraços, sorrisos
na terra molhada.

ADRIANA APARECIDA DE OLIVEIRA PAVANI

Bendita seja a água


Bendita seja a água!
Que cai do céu e molha a terra.
Fecunda a árvore e brota na nascente.
Que apazigua a guerra,
desperta o coração dormente,
e lava a alma de quem erra.

Bendita seja a água!
Que liga um ponto a outro na Terra.
Que conduz o barco e transporta o viajante,
Que o Sol aquece
E ao céu torna, ternamente.

Bendita seja a água!
Que dá sustento ao sobrevivente.
Que está dentro e fora da gente,
Que abriga humildemente,
dentro da mãe que vive na Terra,
a humana semente.

TEREZINHA TEIXEIRA SANTOS

O rio da minha infância


Do meu tempo de infância
Com saudades eu me lembro,
Do rio da Casa Velha
E das chuvas de dezembro.

O rio ganhava cheia
Num bravo desafio
As águas corriam e invadiam
As terras do baixio.

No meu tempo de criança
O rio corria noite e dia;
A chuva caia,
A natureza florescia,
E o homem colhia.

Hoje, procurei e não vi
O rio da Casa Velha;
Vi a natureza chorando,
As queimadas aflorando,
Os animais em extinção;
Vi matas se transformando
Em celeiros de carvão.

Procurei pelo rio da Casa Velha,
Ninguém sabe.
Ninguém viu!
O homem destruiu
A chuva não caiu
A água secou
O rio sumiu.

Fonte:
Troféu Literatura da Natureza, in http://www.reinodosconcursos.com.br

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Poemas do Ensino Superior)

GREICY KELY CARLA DOS SANTOS
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – Campus Avançado Mucuri

Saudade...


Só, sem ti, senti...
Saudade,
múltiplas,
Dos sorrisos.

Só risos com lágrimas
De tantos momentos
Apagados no tempo
E que o coração resgata;
Dói sem explicação
Aquela recordação
Do que se foi e não volta.

Passou um minuto
E já me faz falta o segundo
Que eu perdi sem querer
Tentando esquecer
Quem também me falta;
Entre partidas e encontros,
Distâncias...
Que alongam os braços
E abraçam as lembranças;
Entre perdas e ganhos
Fico desejando a velha infância.
Lembro que esqueci
Que na verdade
Ninguém morre de sentir
Saudade da saudade.

ANDRÉ FERRARI
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – Campus Avançado Mucuri

As dores dos Santos


Toda vez que na sua beira eu passo
Vejo os santos se lamentarem
O rio que não tem água doce
Tem agora desgosto, o esgoto e um odor doentio.

Antítese de um rio tão raso
É a tristeza tão profunda
O cheiro é insuportável
Sinônimo de coisa imunda.

Preto, roxo ou marrom.
Tem sempre um tom de descaso
Quando chove, o rio respira, mas em seguida chora.
Está fadado ao fracasso.

Ao seu lado o povo corre, caminha e passa;
Nem reparam que o rio grita socorro
Cada latinha que lá está jogada
Deixa a mãe natureza envergonhada.

Vejo ainda pequenas esperanças
Nas orações dos santos daquele rio
Pedem um olhar mais inteligente
O futuro nas mãos das crianças.

ABEL DE MATOS LOPES
Universidade Presidente Antônio Carlos UNIPAC – Campus Teófilo Otoni

Natureza


És mãe de toda as belezas
Da flor, dos pássaros e do mar.
De tudo que toco e que vejo
Das águas, do sol e do ar.

Na fauna, riqueza de espécies,
Da doce preguiça à onça fera.
Na flora encantos e surpresas,
Em cada planta ou flor da primavera.

Mas cada um de nós é parte,
Desta imensa obra da criação.
Se tu foste criada por Deus,
O homem também é teu irmão.

Que o Senhor Criador do universo,
Conserve pra nós esta beleza;
Mas se cada um fizer sua parte,
Poderemos salvar–te oh! natureza!!!

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Augusto dos Anjos (Santuário de Poesias) 4

VENCIDO

No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo: o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.

Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!

Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
A vontade do vômito plebeu...

E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.

O CORRUPIÃO

Escaveirado corrupião idiota,
Olha a atmosfera livre, o amplo éter belo,
E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo,
Que do fundo do chão todo o ano brota!

Mas a ânsia de alto voar, de à antiga rota
Voar, não tens mais! E pois, preto e amarelo,
Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebelo
A gargalhada da última derrota!

A gaiola aboliu tua vontade.
Tu nunca mais verás a liberdade!...
Ah! Tu somente ainda és igual a mim.

Continua a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola que te pôs assim!

NOITE DE UM VISIONÁRIO
 

Número cento e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liquefeita!

— “Que esta alucinação tátil não cresça!”
— Dizia; e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos,
Com a rebeldia acérrima dos nervos
Minha atormentadíssima cabeça.

É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Minh’alma — este sombrio personagem
Do drama panteístico da treva!

Depois de dezesseis anos de estudo
Generalizações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na compreensão monística de tudo.

Mas a aguadilha pútrida o ombro inerme
Me aspergia, banhava minhas tíbias
E a ela se aliava o ardor das sirtes líbias,
Cortando o melanismo da epiderme.

Arimânico gênio destrutivo
Desconjuntava minha autônoma alma
Esbandalhando essa unidade calma,
Que forma a coerência do ser vivo.

E eu saí a tremer com a língua grossa
E a volição no cúmulo do exício,
Como quem é levado para o hospício
Aos trambolhões, num canto de carroça!

Perante o inexorável céu aceso
Agregações abióticas espúrias,
Como uma cara, recebendo injúrias,
Recebiam os cuspos do desprezo.

A essa hora, nas telúrias reservas,
O reino mineral americano
Dormia, sob os pés do orgulho humano,
E a cimalha minúscula das ervas.

E não haver quem, íntegra, lhe entregue,
Com os ligamentos glóticos precisos,
A liberdade de vingar em risos
A angústia milenária que o persegue!

Bolia nos obscuros labirintos
Da fértil terra gorda, úmida e fresca,
A ínfima fauna abscôndita e grotesca
Da família bastarda dos helmintos.

As vegetalidades subalternas
Que os serenos noturnos orvalhavam,
Pela alta frieza intrínseca, lembravam
Toalhas molhadas sobre as minhas pernas.

E no estrume fresquíssimo da gleba
Formigavam, com a símplice sarcode,
O vibrião, o ancilóstomo, o colpode
E outros irmãos legítimos da ameba!

E todas essas formas que Deus lança
No Cosmos, me pediam, com o ar horrível,
Um pedaço de língua disponível
Para a filogenética vingança!

A cidade exalava um podre báfio:
Os anúncios das casas de comércio,
Mais tristes que as elégias* de Propércio,
Pareciam talvez meu epitáfio.

O motor teleológico da Vida
Parara! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de matéria dissolvida.

A química feroz do cemitério
Transformava porções de átomos juntos
No óleo malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundância de um geyser deletério.

Dedos denunciadores escreviam
Na lúgubre extensão da rua preta
Todo o destino negro do planeta,
Onde minhas moléculas sofriam.

Um necrófilo mau forçava as lousas
E eu — coetâneo do horrendo cataclismo —
Era puxado para aquele abismo
No redemoinho universal das cousas!

ALUCINAÇÃO À BEIRA-MAR

Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros, me assombrava!

Mas a alga usufrutuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,

No eterno horror das convulsões marítimas,
Pareciam também corpos de vítimas
Condenadas à Morte, assim como eu!

VANDALISMO
 

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandido as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

VERSOS ÍNTIMOS

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

VENCEDOR

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem..
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

MATER
 

Como a crisálida emergindo do ovo
Para que o campo flórido a concentre,
Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Ser, entre dores, te emergiu do ventre!

E puseste-lhe, haurindo amplo deleite,
No lábio róseo a grande teta farta
— Fecunda fonte desse mesmo leite
Que amamentou os éfebos de Esparta. —

Com que avidez ele essa fonte suga!
Ninguém mais com a Beleza está de acordo,
Do que essa pequenina sanguessuga,
Bebendo a vida no teu seio gordo!

Pois, quanto a mim, sem pretensões, comparo,
Essas humanas coisas pequeninas
A um biscuit de quilate muito raro
Exposto aí, à amostra, nas vitrinas.

Mas o ramo fragílimo e venusto
Que hoje nas débeis gêmulas se esboça,
Há de crescer, há de tornar-se arbusto
E álamo altivo de ramagem grossa.

Clara, a atmosfera se encherá de aromas,
O Sol virá das épocas sadias...
E o antigo leão, que te esgotou as pomas,
Há de beijar-te as mãos todos os dias!

Quando chegar depois tua velhice
Batida pelos bárbaros invernos,
Relembrarás chorando o que eu te disse,
À sombra dos sicômoros eternos!

Fonte:
Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias.

Marcelo Spalding (Clichê: o que é, como evitar, quando usar)

   
Não há fórmulas para a escrita, considerada em si uma arte. Evidentemente, porém, qualquer arte é resultado de séculos de convenção social, então há alguns elementos que são desejáveis e outros que são inaceitáveis num bom texto. Vamos falar aqui de um dos “pecados” da escrita: o clichê.

    Clichê é uma construção utilizada à exaustão em determinada cultura, como o desenho do coração ou do cupido. Exatamente por essa repetição, ela é uma construção desgastada.

    Quando se fala de textos criativos, devemos fugir do clichê como se foge de uma praga, dizem os mestres. E o clichê é, realmente, como um inseto que está em nossas frases, em nossas cenas, em nossas metáforas, em nossos personagens, em nosso desfecho, enfim, pode-se ter um texto todo clichê, o que é desastroso, quando não é intencional, ou apenas frases e construções clichês. Vejamos alguns exemplos:

    Abriu com chave de ouro.
    Aquela era a mulher mais linda que conheci.
    O futebol é uma caixinha de surpresas.

    O professor Luiz Antonio de Assis Brasil costuma dizer que um personagem ir para a janela ou ver uma fotografia são cenas absolutamente clichês. Assim como começar um conto escrevendo "era uma noite escura e chuvosa".

    Claro que o conceito de clichê varia de acordo com o público para o qual se escreve, pois a experiência de leitura é fundamental para determinar onde começa o clichê. É importante, porém, entender que a fuga do lugar-comum vai além do todo, chegando a suas partes, a suas metáforas, a suas frases.

    O problema do clichê é que ele não acrescenta ao leitor. Basta lembrarmos de uma novela da Globo, uma dessas quaisquer, repleta de clichês. Elas podem até nos distrair por algumas horas, mas as esquecemos quase completamente tão logo desligamos a TV (e aquelas que permanecem em nossa memória, um "Irmãos Coragem", "Pecado Capital", "Vale Tudo", é porque souberam inovar e não ficaram repetindo-se em clichês).

    Quando usar o clichê

    O clichê pode ser muito útil para a comédia, como dito anteriormente, e também para a criação de personagens estereotipadas. Cuide, porém, a funcionalidade de uma personagem estereotipada em sua narrativa caso não se trate de uma comédia: o crente religioso, o guarda de trânsito intransigente, o bandido, etc. Embora nem todas as personagens precisem ser esféricas, é importante que cada personagem seja necessário para a narrativa.

    Uma técnica para evitar o clichê

    Uma técnica para usar o clichê é desculpar-se pelo clichê, de forma direta ou indireta. Por exemplo: "Como diria o poeta, beleza é fundamental" ou "Como diriam os mais velhos, o futebol é uma caixinha de surpresa" ou "Com o perdão do clichê, era a mulher mais linda que já conheci". Tal técnica funciona muito bem em textos dissertativos, quando se pode lançar mão de ditos populares.

    Um exemplo célebre dessa técnica de esquiva está em "O caçador de pipas":

    Um professor de redação literária que tive na San Jose State sempre dizia, referindo-se aos clichês: "Tratem de evitá-los como se evita uma praga." E ria da própria piada. A turma toda ria junto com ele, mas sempre achei que aquilo era uma tremenda injustiça. Porque, muitas vezes, eles são de uma precisão impressionante. O problema é que a adequação das expressões-clichê é ofuscada pela natureza da expressão enquanto clichê. Por exemplo, aquela história do "esqueleto no armário". Nada melhor para descrever os momentos iniciais do meu encontro com Rahim Khan. (O caçador de pipas, Khaled Hosseini, cap XV)

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/3971/cliche-o-que-e-como-evitar-quando-usar

terça-feira, 15 de abril de 2014

Nilto Maciel (Arte e Inutilidade)

Pintura de Eustache Le Sueur
Impaciente, corri três vezes até o portão. Na quarta, quando ia encostar a venta no alumínio e vasculhar a rua, avistei aquela carinha linda do lado de fora. Para não demonstrar ansiedade, deixei-a acionar a campainha duas vezes. E, então, como se acabasse de me aproximar do portão, gritei: Já vai. Quem é? Sou eu. Eu quem? Janete. Meti a chave na fechadura, puxei a folha com chave e tudo e abri os braços. Desculpasse o suor: acabara de chegar do shopping. Ela me deu abraço muito sutil e entramos na casa, a mentir pelos poros.

Depois de cinco minutos nessa lengalenga, iniciamos a aula. Peguei Ar de arestas (São Paulo: Escrituras, 2013), de Iacyr Anderson Freitas, e me pus a tagarelar: Tenho acompanhado a trajetória literária (ou editorial) de Iacyr, desde os vagidos iniciais. Não me lembro do primeiro contato. Terá sido em 1982, ano de publicação de Verso e palavra? Recentemente (dezembro de 2010) referi-me a ele no artigo “A obra poética de Iacyr Anderson Freitas”.

A mocinha examinava minha euforia: O senhor tem demonstrado admiração por ele. Concordo com suas palavras.

Pedi silêncio e me entreguei à parolagem: Em Ar de arestas verifiquei umas singularidades (não fosse o impresso agradável aos olhos e ao tato, pela capa dura, pelas fotografias de Ozias Filho, pelo tipo do papel e pelo formato menos comum): o poema (ou são vários?) é constituído apenas de quartetos, em rimas alternadas, quase todas dos tipos “ricas”, “agudas” e “graves”. O metro é sempre o de sete sílabas, a chamada redondilha maior. Janete Clair me fez calar: Será mesmo importante referir-se a isso? Possivelmente não. Entretanto, sempre é tempo de lembrar certas normas aos jovens. O senhor vê em Iacyr pura imitação de Drummond? Não, talvez nem se aproximem um do outro. Vejo mais semelhanças com João Cabral.

Reli alguns cantos em voz alta. Impus breve pausa e ela se aproveitou disso: Ele se refere às arestas da poesia? Pediu o objeto e se pôs a ler: ‘Surpreende-se a serpente / em cada naco de frase. / Ora, vagando, urgente, / ora fixa em sua base’. Li estas linhas e fiquei com a pulga atrás da orelha. A serpente seria o quê? Até me lembrei de Jorge de Lima.

Pego de surpresa pela astúcia (pode-se falar em inteligência?) da menina, tentei parecer mestre: Tudo é possível captar nos livros. Solicitei o volume e lecionei: Como na pintura abstrata. Na verdade, pressenti antes de tudo a dor humana cantada e chorada: ‘um vazio de nascença’, ‘ter por dentro essa falta’, ‘em si mesmo soterrado’.

Senti necessidade de passear ao redor de mim mesmo. Ao voltar ao sofá, ela disparou: É de alto nível? Não titubeei: Sim, de alto nível, embora o leitor menos experiente também possa alcançar o seu significado. Janete queria me irritar mesmo: Então o analfabeto não pode ler boa poesia? Ou a frase informal não tem qualidade? Deixe de preconceito, professor. Quase tive ataque apoplético: Acalme-se, jovem. Nunca me senti próximo do entendimento segundo o qual poesia de alto nível seja aquela entendida apenas pelos homens letrados ou intelectuais. Na verdade, nem pintura nem música carecem de entendimento. Basta senti-las. Porém, não restam dúvidas: há uma arte cerebral e outra dos sentidos. Às vezes, se confundem, são a mesma coisa. Música clássica é assim.

Minha secretária apareceu. Entendi ter chegado a hora de dar trabalho à garganta. Vamos tomar suco, Janete? À mesa, dedicamo-nos apenas a trivialidades: doce de mamão, chuva por vir, calor de trinta graus. E comemos e bebemos feito dois irmãos.

De novo acomodado no sofá, agarrei Bazar do Braz: Poemas & Anzóis (Goiânia: Kelps, 2012). Dediquei-me a manifestar admiração pela figura humana e pelo escritor Valdivino Braz. Conheço este poeta há quase meio século. Antes mesmo de me ir pra Brasília, já me correspondia com ele. Entretanto, só estivemos frente a frente em 1978, não sei se na capital do país, se na de Goiás. Foram abraços, cervejas, risadas, publicações. Janete me interrompeu algumas vezes: E continua essa amizade? Sim. Vez por outra, trocamos cartas, como antigamente. Os livros ainda circulam pelos ares.

Iniciei breve apresentação do Bazar. A moça quis saber minha opinião: Parece brincadeira? Sim, é galhofa pura. Valdivino é sujeito alegre, expansivo, como se dizia. Fala alto e grosso, irradia luz, embora seja pequenino e magro. Ultrapassei cinco minutos em elogio ardente ao poeta goiano, até ouvir reclamação: Não vai comentar o conteúdo? Sorri: O subtítulo dá início aos gracejos: ‘poemas & anzóis’. Pensei em pesca de pessoas. A sapeca opinou de novo: Quiçá não dê um passo além do humor. Não, ele nos leva a pensar e conversar. Não tem aquela seriedade ou sisudez de Iacyr. Também não se torna carnavalesco. Como em “Casa do Mané”, homenagem a Manoel Coutinho Carneiro, natural de Piripiri, Piauí, dono de casa de pasto (misto de bar e restaurante), no qual se oferecem, aos clientes, “típicos petiscos e pratos / de estilo caseiro, / tempero com esmero”. A menina é sabida: Lembra os repentistas. Corrigi-a: Não na medida do verso e na rima soante. A danada não se deixou abalar: Há nele textos em prosa muito debochados, na esteira do modernismo de 22, especialmente Oswald. Aproveitei a deixa: Tudo misturado, como convém ao modernista exemplar. A garota completou: Valdivino zomba dos tipos urbanos, em descrições minuciosas, caricaturas dignas de Gregório de Matos.

Deixei-a a resmungar e iniciei passeio pelos corredores. Sempre ajo assim, quando me sinto incomodado por visitas. De regresso à sala, vinha com a ideia de ler duas ou mais composições de meu amigo. Agora permaneça caladinha e ouça: “Um poliglota, o Hipólito. O hipopótamo. Cheio de línguas. Latim. Grego. Um esnobe. Uma íngua. Um chato de galocha. Etílicos, inchados, os olhos-bulbos. Um sábio com a boca cheia de vocábulos. Por mares nunca dantes navegados. Hipólito Sanchez, a pança. Ordenança de Quixote, citando Oscar Wilde: ‘Toda arte é absolutamente inútil’. Dose pra elefante”.

A estudante não me deixou ir adiante: Isso é poesia? E se for apenas inutilidade? Assustei-me. Tivesse cuidado com a língua. O senhor agora tem cara e modos de pastor evangélico.

Fortaleza, 17/18 de fevereiro de 2014.

Fonte:
Nilto Maciel in Literatura Sem Fronteiras

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 4


Machado de Assis (O Caso da Vara)

DAMIÃO fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano, foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava, finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil.

Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor: Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.

— Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom.

A verdadeira grandeza é chã. Moço...

Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou: — Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...

Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas ideias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.

— Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada.

Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho.

Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.

— Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui! Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.

— Descanse; e explique-se.

— Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro, mas espere.

Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas ern volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado.

Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.

— Como assim? Não posso nada.

— Pode, querendo.

— Não, replicou ela abanando a cabeça, não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado! Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.

— Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.

Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não nada, nunca! redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos, e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.

— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...

— Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não...

Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.

— Anda, moleque.

Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo: — Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.

Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a: — Lucrécia, olha a vara! A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.

Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.

— Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.

— Não afianço nada, não creio que seja possível...

— Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...

— Mas, minha senhora...

—Vá, vá.

João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse, mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: "digo-lhe que ele não volta". Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra coisa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.

— Então? insistiu Sinhá Rita.

Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três setes.

Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos esperando, sem solução apoplética.

— Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.

Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinha Rita puxou-lhe desta vez o queixo.

— Ande jantar, deixe-se de melancolias.

— A senhora crê que ele alcance alguma coisa? — Há de alcançar tudo, redarguiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.

Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho.

Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. A sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.

— Hão de ser as moças.

Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.

As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento, mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.

— Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.

Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.

Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite . Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dois negros, foi à polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos, correu ao quintal e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Shlhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.

— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.

Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita.

O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na prisão. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha, mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a casa dele.

Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de salvação, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos".

Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação.

Disse-lhe que sossegasse, que aquele negócio era agora dela.

— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras! Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os, todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.

— Ah! malandra! — Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.

— Malandra! Nossa Senhora não protege vadias! Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.

— Anda cá! — Minha senhora, me perdoe! — Não perdoo, não.

E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.

— Onde está a vara? A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista.

— Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor? Damião ficou frio. . . Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha Jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...

— Dê-me a vara, Sr. Damião! Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor.. .

— Me acuda, meu sinhô moço! Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Augusto dos Anjos (Santuário de Poesias) 3

ASA DE CORVO

Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...

É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte — a costureira funerária —
Cose para o homem a última camisa!

UMA NOITE NO CAIRO

Noite no Egito. O céu claro e profundo
Fulgura. A rua é triste. A Lua Cheia
Está sinistra, e sobre a paz do mundo
A alma dos Faraós anda e vagueia.

Os mastins negros vão ladrando à lua...
O Cairo é de uma formosura arcaica.
No ângulo mais recôndito da rua
Passa cantando uma mulher hebraica.

O Egito é sempre assim quando anoitece!
Às vezes, das pirâmides o quedo
E atro perfil, exposto ao luar, parece
Uma sombria interjeição de medo!

Como um contraste àqueles misereres,
Num quiosque em festa alegre turba grita
E dentro dançam homens e mulheres
Numa aglomeração cosmopolita.

Tonto de vinho, um saltimbanco da Ásia,
Convulso e roto, no apogeu da fúria,
Executando evoluções de razzia
Solta um brado epilético de injúria!

Em derredor duma ampla mesa preta
Última nota do conúbio infando —
Vêem-se dez jogadores de roleta
Fumando, discutindo, conversando.

Resplandece a celeste superfície.
Dorme soturna a natureza sábia...
Embaixo, na mais próxima planície,
Pasta um cavalo esplêndido da Arábia.

Vaga no espaço um silfo solitário.
Troam kinnors! Depois tudo é tranqüilo...
Apenas como um velho estradivário,
Soluça toda a noite a água do Nilo!

O MARTÍRIO DO ARTISTA

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Idéia! A Inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!

DUAS ESTROFES

            (À memória de João de Deus)

Ah! ciechi! il tanto affaticar che giova?
Tutti torniano alla gran madre antica
E il nostro nome appena si ritrova.
            Petrarca


A queda do teu lírico arrabil
De um sentimento português ignoto
Lembra Lisboa, bela como um brinco,
Que um dia no ano trágico de mil
E setecentos e cinqüenta e cinco,
Foi abalada por um terremoto!

A água quieta do Tejo te abençoa.
Tu representas toda essa Lisboa
De glórias quase sobrenaturais,
Apenas com uma diferença triste,
Com a diferença que Lisboa existe
E tu, amigo, não existes mais!

RECORDAÇÃO DA MINHA JUVENTUDE

A minha ama-de-leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidades de menina:
“— Não, não fora ela!”  — E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha...

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!

VOZES DE UM TÚMULO

Morri! E a Terra — a mãe comum — o brilho
Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!

Por que para este cemitério vim?!
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!

No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou

A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!

VERSOS DE AMOR

            A um poeta erótico

Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a... ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Marsias — o inventor da flauta —
Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d’alma!
   
    SONETOS

            A meu Pai doente
I
Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!

Que coisa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!

Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!

— Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!

            II

            A meu Pai morto

Madrugada de Treze de Janeiro.
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!

E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o”! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!

E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...

Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!

        III

Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Microrganismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.

Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!...

Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...

Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!

Fonte:
Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias.

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Contos) III

YASMINE CUNHA FARIAS
Ensino Médio da Escola Particular Pequeno Príncipe

A faceta da natureza


Na formação do Reino Azul existia apenas água, como o reino estava sem graça, o criador enviou algumas espécies para abrilhantar a sua obra, cujo nome foi natureza.

O cenário era esplêndido e harmonioso. Até que uma das espécies “descobriu o seu poder” de racionalizar, e ganhou a natureza para si.

Ao tê-la como sua, o ser humano agiu de forma incoerente, explorou o natural para compor o “artificial”, o que impulsionou a sua evolução.

Desta forma, nosso habitar natural é alvo dos “seres pensantes”, o que conseguintemente gera o desequilíbrio do ecossistema.

A cada instante, esses seres evoluem, escorando no “Cajado Natura”, e assim deixam como sobra a poluição, o desmatamento, a extinção e o mais imprescindível, uma mãe natureza que chora sem escoar nenhuma lágrima, já que a seca transparece em seu semblante.

Essencial seria se a humanidade usasse a sabedoria; pra plantar uma árvore quando desmatada, aprender a reciclar ao invés de jogar fora, e evitar o desperdício. Cuidar hoje é sinônimo de bons frutos amanhã!

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

domingo, 13 de abril de 2014

Trova 269 - Olympio Coutinho (MG)


Machado de Assis (Cantiga Velha)

CAPÍTULO I

Conversávamos de cantigas populares. Entre o jantar e o chá, quatro pessoas tão somente, longe do voltarete e da polca, confessem que era uma boa e rara fortuna. Polca e voltarete são dois organismos vivos que estão destruindo a nossa alma; é indispensável que nos vacinem com a espadilha e duas ou três oitavas do Caia no beco ou qualquer outro título da mesma farinha. Éramos quatro e tínhamos a mesma idade. Eu e mais dois pouco sabíamos da matéria; tão-somente algumas reminiscências da infância ou da adolescência. O quarto era grande ledor de tais estudos, e não só possuía alguma coisa do nosso cancioneiro, como do de outras partes. Confessem que era um regalo de príncipes.

Esquecia-me dizer que o jantar fora copioso; notícia indispensável à narração, porque um homem antes de jantar não é o mesmo que depois do jantar, e pode-se dizer que a discrição é muitas vezes um momento gastronômico. Homem haverá reservado durante a sopa, que à sobremesa põe o coração no prato, e dá-o em fatias aos convivas. Toda a questão é que o jantar seja abundante, esquisito e fino, os vinhos frios e quentes, de mistura, e uma boa xícara de café por cima, e para os que fumam um havana de cruzado.

Reconhecido que isto é uma lei universal, admiremos os diplomatas que, na vida contínua de jantares, sabem guardar consigo os segredos dos governos. Evidentemente são organizações superiores.

O dono da casa dera-nos um bom jantar. Fomos os quatro, no fim para junto de uma janela, que abria para um dos lados da chácara. Posto estivéssemos no verão, corria um ventozinho fresco, e a temperatura parecia impregnada das últimas águas. Na sala de frente, dançava-se a polca; noutra sala jogava-se o voltarete. Nós, como digo, falávamos de cantigas populares.

— Vou dar-lhes uma das mais galantes estrofes que tenho ouvido, disse um de nós.

Morava na Rua da Carioca, e um dia de manhã ouvi do lado dos fundos esta quadrinha: Coitadinho, como é tolo Em cuidar que eu o adoro Por me ver andar chorando...

Sabe Deus por quem eu choro! O ledor de cancioneiros pegou da quadra para esmerilhá-la com certa pontinha de pedantismo, mas outro ouvinte, o dr. Veríssimo, pareceu inquieto; perguntou ao primeiro o número da casa em que morara; ele respondeu rindo que uma tal pergunta só se podia explicar da parte de um governo tirânico; os números das casas deixam-se nas casas.

Como recordá-los alguns anos depois? Podia dizer-lhe em que ponto da rua ficava a casa; era perto do Largo da Carioca, à esquerda de quem desce, e foi nos anos de 1864 e 1865.

— Isso mesmo, disse ele.

— Isso mesmo, quê? — Nunca viu a pessoa que cantava? — Nunca. Ouvi dizer que era uma costureira, mas não indaguei mais nada. Depois, ainda ouvi cantar pela mesma voz a mesma quadrinha. Creio que não sabia outra. A repetição fê-la monótona, e...

— Se soubessem que essa quadrinha era comigo! disse ele sacudindo a cinza do charuto.

E como lhe perguntássemos se ele era o aludido do último verso — Sabe Deus por quem eu choro, respondeu-nos que não. Eu sou o tolo do princípio da quadra. A diferença é que não cuidava, como na trova, que ela me adorasse; sabia bem que não. Menos essa circunstância, a quadra é comigo. Pode ser que fosse outra pessoa que cantasse; mas o tempo, o lugar da rua, a qualidade de costureira, tudo combina.

— Vamos ver se combina, disse o ex-morador da Rua da Carioca piscando-me o olho.

Chamava-se Luísa? — Não; chamava-se Henriqueta.

— Alta? — Alta. Conheceu-a? — Não; mas então essa Henriqueta era alguma princesa incógnita, que...

— Era uma costureira, retorquiu o Veríssimo. Nesse tempo era eu estudante. Tinha chegado do Sul poucos meses antes. Pouco depois de chegado... Olhem, vou contar-lhes uma cousa muito particular. Minha mulher sabe do caso, contei-lhe tudo, menos que a tal Henriqueta foi a maior paixão da minha vida... Mas foi; digo-lhe que foi uma grande paixão. A cousa passou-se assim...

CAPÍTULO II

A coisa passou-se assim. Vim do Sul, e fui alojar-me em casa de uma viúva Beltrão. O marido desta senhora perecera na guerra contra o Rosas; ela vivia do meio soldo e de algumas costuras. Estando no Sul, em 1850, deu-se muito com a minha família; foi por isso, que minha mãe não quis que eu viesse para outra casa. Tinha medo do Rio de Janeiro; entendia que a viúva Beltrão desempenharia o seu papel de mãe, e recomendou-me a ela.

D. Cora recebeu-me um pouco acanhada. Creio que era por causa das duas filhas que tinha, moças de dezesseis e dezoito anos, e pela margem que isto podia dar à maledicência. Talvez fosse também a pobreza da casa. Eu supus que a razão era tão somente a segunda, e tratei de lhe tirar escrúpulos mostrando-me alegre e satisfeito.

Ajustamos a mesada. Deu-me um quarto, separado, no quintal. A casa era em Mataporcos.

Eu palmilhava, desde casa até à Escola de Medicina, sem fadiga, voltando à tarde, tão fresco como de manhã.

As duas filhas eram bonitinhas; mas a mais velha, Henriqueta, era ainda mais bonita que a outra. Nos primeiros tempos mostraram-se muito reservadas comigo. Eu, que só fui alegre, no primeiro dia, por cálculo, tornei ao que costumava ser; e, depois do almoço ou do jantar, metia-me comigo mesmo e os livros, deixando à viúva e às filhas toda a liberdade. A mãe, que queria o meu respeito, mas não exigia a total abstenção, chamou-me um dia bicho-do-mato.

— Olhe que estudar é bom, e sua mãe quer isso mesmo, disse-me ela; mas parece que o senhor estuda demais. Venha conversar com a gente.

Fui conversar com elas algumas vezes. D. Cora era alegre, as filhas não tanto, mas em todo caso muito sociáveis. Duas ou três pessoas da vizinhança iam ali passar algumas horas, de quando em quando. As reuniões e palestras repetiram-se naturalmente, sem nenhum sucesso extraordinário, ou mesmo curioso, e assim se foram dous meses.

No fim de dois meses, Henriqueta adoeceu, e eu prestei à família muito bons serviços, que a mãe agradeceu-me de todos os modos, até ao enfado. D. Cora estimava-me, realmente, e desde então foi como uma segunda mãe. Quanto a Henriqueta, não me agradeceu menos; tinha, porém, as reservas da idade, e naturalmente não foi tão expansiva. Eu confesso que, ao vê-la depois, convalescente, muito pálida, senti crescer a simpatia que me ligava a ela, sem perguntar a mim mesmo se uma tal simpatia não começava a ser outra coisa. Henriqueta tinha uma figura e um rosto que se prestavam às atitudes moles da convalescença, e a palidez desta não fazia mais do que acentuar a nota de distinção da sua fisionomia. Ninguém diria ao vê-la, fora, que era uma mulher de trabalho.

Apareceu por esse tempo um candidato à mão de Henriqueta. Era um oficial de secretaria, rapaz de vinte e oito anos, sossegado e avaro. Esta era a fama que ele tinha no bairro; diziam que não gastava mais de uma quarta parte dos vencimentos, emprestava a juros outra quarta parte, e aferrolhava o resto. A mãe possuía uma casa: era um bom casamento para Henriqueta. Ela, porém, recusou; deu como razão que não simpatizava com o pretendente, e era isso mesmo. A mãe disse-lhe que a simpatia viria depois; e, uma vez que ele não lhe repugnava, podia casar. Conselhos vãos; Henriqueta declarou que só casaria com quem lhe merecesse. O candidato ficou triste, e foi verter a melancolia no seio da irmã de Henriqueta, que não só acolheu a melancolia, como principalmente o melancólico, e os dois casaram-se no fim de três meses.

— Então? dizia Henriqueta rindo. O casamento e a mortalha... Eu, pela minha parte, fiquei contente com a recusa da moça; mas, ainda assim, não atinei se era isto uma sensação de amor. Vieram as férias, e fui para o Sul.

No ano seguinte, tornei à casa de D. Cora. Já então a outra filha estava casada, e ela morava só com Henriqueta. A ausência tinha feito adormecer em mim o sentimento mal expresso do ano anterior, mas a vista da moça acendeu-o outra vez, e então não tive dúvida, conheci o meu estado, e deixei-me ir.

Henriqueta, porém, estava mudada. Ela era alegre, muito alegre, tão alegre como a mãe.

Vivia cantando; quando não cantava, espalhava tanta vida em volta de si, que era como se a casa estivesse cheia de gente. Achei-a outra; não triste, não silenciosa, mas com intervalos de preocupação e cisma. Achei-a, digo mal; no momento da chegada apenas tive uma impressão leve e rápida de mudança; o meu próprio sentimento encheu o ar ambiente, e não me permitiu fazer logo a comparação e a análise.

Continuamos a vida de outro tempo. Eu ia conversar com elas, à noite, às vezes os três sós, outras vezes com alguma pessoa conhecida da vizinhança. No quarto ou quinto dia, vi ali um personagem novo. Era um homem de trinta anos, mais ou menos, bem-parecido.

Era dono de uma farmácia do Engenho Velho, e chamava-se Fausto. Éramos os únicos homens, e não só não nos vimos com prazer, mas até estou que nos repugnamos intimamente um ao outro.

Henriqueta não me pareceu que o tratasse de um modo especial. Ouvia-o com prazer, acho eu; mas não me ouvia com desgosto ou aborrecimento, e a igualdade das maneiras tranquilizou-me nos primeiros dias. No fim de uma semana, notei alguma coisa mais. Os olhos de ambos procuravam-se, demoravam-se ou fugiam, tudo de um modo suspeito.

Era claro que, ou já se queriam, ou caminhavam para lá.

Fiquei desesperado. Chamei-me todos os nomes feios: tolo, parvo, maricas, tudo.

Gostava de Henriqueta, desde o ano anterior, vivia perto dela, não lhe disse nada; éramos como estranhos. Vem um homem estranho, que nunca a vira provavelmente, e fez-se ousado. Compreendi que a resolução era tudo, ou quase tudo. Entretanto, refleti que ainda podia ser tempo de resgatar o perdido, e tratei, como se diz vulgarmente, de deitar barro à parede. Fiz-me assíduo, busquei-a, cortejei-a. Henriqueta pareceu não entender, e não me tratou mal; quando, porém, a insistência da minha parte foi mais forte, retraiu-se um pouco, outro pouco, até chegar ao estritamente necessário nas nossas relações.

Um dia, pude alcançá-la no quintal da casa, e perguntei-lhe se queria que me fosse embora.

— Embora? repetiu ela.

— Sim, diga se quer que eu vá embora.

— Mas como é que hei de querer que o senhor se vá embora? — Sabe como, disse-lhe eu dando à voz um tom particular. Henriqueta quis retirar-se; eu peguei-lhe na mão; ela olhou espantada para as casas vizinhas.

— Vamos, decida? — Deixe-me, deixe-me, respondeu ela. Puxou a mão e foi para dentro. Eu fiquei sozinho.

Compreendi que ela pertencia ao outro, ou pelo menos, não me pertencia absolutamente nada. Resolvi mudar-me; à noite fui dizê-lo à mãe, que olhou espantada para mim e perguntou-me se me tinham feito algum mal.

— Nenhum mal.

— Mas então...

— Preciso mudar-me, disse eu.

D. Cora ficou abatida e triste. Não podia atinar com a causa; e pediu-me que esperasse até o fim do mês; disse-lhe que sim. Henriqueta não estava presente, e eu pouco depois saí. Não as vi durante três dias. No quarto dia, achei Henriqueta sozinha na sala; ela veio para mim, e perguntou-me por que motivo ia sair da casa. Calei-me.

— Sei que é por mim, disse ela.

Não lhe disse nada.

— Mas que culpa tenho eu se...

— Não diga o resto! Que culpa tem de não gostar de mim? Na verdade, nenhuma culpa; mas, se eu gosto da senhora, também não tenho culpa, e, nesse caso, para que castigar-me com a sua presença forçada? Henriqueta ficou alguns minutos calada, olhando para o chão. Tive a ingenuidade de supor que ela ia aceitar-me, só para não ver-me ir; acreditei ter vencido o outro, e iludia-me.

Henriqueta pensava no melhor modo de me dizer uma coisa difícil; e afinal, achou-o, e foi o modo natural, sem reticências nem alegorias. Pediu-me que ficasse, porque era um modo de ajudar as despesas da mãe; prometia-me, entretanto, que apareceria o menos que pudesse. Confesso-lhes que fiquei profundamente comovido. Não achei nada que responder; não podia teimar, não queria aceitar, e, sem olhar para ela, sentia que faltava pouco para que as lágrimas lhe saltassem dos olhos. A mãe entrou; e foi uma fortuna.

CAPÍTULO III

Veríssimo interrompeu a narração, porque algumas moças entraram a buscá-la. Faltavam pares; não admitiam demora.

— Dez minutos, ao menos? — Nem dez.

— Cinco? — Cinco apenas.

Elas saíram; ele concluiu a história.

— Retirado ao meu quarto, meditei cerca de uma hora no que me cumpria fazer. Era duro ficar, e eu chegava a achar até humilhante; mas custava-me desamparar a mãe, desprezando o pedido da filha. Achei um meio-termo; ficava pensionista como era; mas passaria fora a maior parte do tempo. Evitaria a combustão.

D. Cora sentiu naturalmente a mudança, ao cabo de quinze dias; imaginou que eu tinha algumas queixas, rodeou-me de grandes cuidados, até que me interrogou diretamente.

Respondi-lhe o que me veio à cabeça, dando à palavra um tom livre e alegre, mas calculadamente alegre, quero dizer com a intenção visível de fingir. Era um modo de pô-la no caminho da verdade, e ver se ela intercedia em meu favor.

D. Cora, porém, não entendeu nada.

Quanto ao Fausto, continuou a frequentar a casa, e o namoro de Henriqueta acentuou-se mais. Candinha, a irmã dela, é que me contava tudo — o que sabia, ao menos, — porque eu na minha raiva de preterido, indagava muito, tanto a respeito de Henriqueta como a respeito do boticário. Assim é que soube que Henriqueta gostava cada vez mais dele, e ele parece que dela, mas não se comunicavam claramente. Candinha ignorava os meus sentimentos, ou fingia ignorá-los; pode ser mesmo que tivesse o plano de substituir a irmã. Não afianço nada, porque não me sobrava muita penetração e frieza de espírito.

Sabia o principal, e o principal era bastante para eliminar o resto.

O que soube dele é que era viúvo, mas tinha uma amante e dois filhos desta, um de peito, outro três anos. Contaram-me mesmo alguns pormenores acerca dessa família improvisada, que não repito por não serem precisos, e porque as moças estão esperando na sala. O importante é que a tal família existia.

Assim se passaram dois longos meses. No fim desse tempo, ou mais, quase três meses — D. Cora veio ter comigo muito alegre; tinha uma notícia para dar-me, muito importante, e queria que eu adivinhasse o que era — um casamento.

Creio que empalideci. D. Cora, em todo caso, olhou para mim admirada, e, durante alguns segundos, fez-se entre nós o mais profundo silêncio. Perguntei-lhe afinal o nome dos noivos; ela disse-me a custo que a filha Candinha ia casar com um amanuense de secretaria. Creio que respirei; ela olhou para mim ainda mais espantada.

A boa viúva desconfiou a verdade. Nunca pude saber se ela interrogou a filha; mas é provável que sim, que a sondasse, antes de fazer o que fez daí a três semanas. Um dia, vem ter comigo, quando eu: estudava no meu quarto; e, depois de algumas perguntas indiferentes, variadas e remotas, pediu-me que lhe dissesse o que tinha. Respondi-lhe naturalmente que não tinha nada.

— Deixe-se de histórias, atalhou ela. Diga-me o que tem.

— Mas o que é que tenho? — Você é meu filho; sua mãe autorizou-me a tratá-lo como tal. Diga-me tudo; você tem alguma paixão, algum...

Fiz um gesto de ignorância.

— Tem, tem, continuou ela, e há de me dizer o que tem. Talvez tudo se esclareça se alguém falar, mas não falando, ninguém...

Houve e não houve cálculo nestas palavras de D. Cora; ou, para ser mais claro, ela estava mais convencida do que dizia. Eu supunha-lhe, porém, a convicção inteira, e caí no laço. A esperança de poder arranjar tudo, mediante uma confissão à mãe, que me não custava muito, porque a idade era própria das revelações, deu asas às minhas palavras, e dentro de poucos minutos, contava eu a natureza dos meus sentimentos, sua data, suas tristezas e desânimos. Cheguei mesmo a contar a conversação que tivera com Henriqueta, e o pedido desta. D. Cora não pôde reter as lágrimas. Ela ria e chorava com igual facilidade; mas naquele caso a ideia de que a filha pensara nela, e pedira um sacrifício por ela, comoveu-a naturalmente. Henriqueta era a sua principal querida.

— Não se precipite, disse-me ela no fim: eu não creio no casamento com o Fausto; tenho ouvido umas coisas... bom moço, muito respeitado, trabalhador e honesto. Digo-lhe que me honraria com um genro assim; e a não ser você, preferia a ele. Mas parece que o homem tem umas prisões...

Calou-se, à espera que eu confirmasse a notícia; mas não respondi nada. Cheguei mesmo a dizer-lhe que não achava prudente indagar mais nada, nem exigir. Eu no fim do ano tinha de retirar-me; e lá passaria o tempo. Provavelmente disse ainda outras coisas, mas não me lembro.

A paixão dos dous continuou, creio que mais forte, mas singular da parte dele. Não lhe dizia nada, não lhe pedia nada; parece mesmo que não lhe escrevia nada. Gostava dela; ia lá com frequência, quase todos os dias.

D. Cora interveio um dia francamente, em meu favor. A filha não lhe disse coisa diferente do que me dissera, nem com outra hesitação. Respondeu que não se pertencia, e, quando a mãe exigiu mais, disse que amava ao Fausto, e casaria com ele, se ele a pedisse, e nenhum outro, ao menos por enquanto. Ele não a pedia, não a soltava; toda a gente supunha que a razão verdadeira do silêncio e da reserva era a família de empréstimo. Vieram as férias; fui para o Rio Grande, voltei no ano seguinte, e não tornei a morar com D. Cora.

Esta adoeceu gravemente e morreu. Cândida, já casada, foi quem a enterrou; Henriqueta foi morar com ela. A paixão era a mesma, o silêncio o mesmo, e a razão provavelmente não era outra, senão a mesma. D. Cora pediu a Henriqueta, na véspera de expirar, que casasse comigo. Foi Henriqueta mesma quem me contou o pedido, acrescentando que lhe respondeu negativamente.

— Mas que espera a senhora? disse-lhe eu.

— Espero em Deus.

O tempo foi passando, e os dois amavam-se do mesmo modo. Candinha brigou com a irmã. Esta fez-se costureira na tal casa da Rua da Carioca, honesta, séria, laboriosa, amando sempre, sem adiantar nada, desprezando o amor e a abastança que eu lhe dava, por uma ventura fugitiva que não tinha... Tal qual como na trova popular...

— Qual trova! nem meia trova! interromperam as moças invadindo o gabinete. Vamos dançar.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 3


Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Contos) II

MALU GODOY TORRES ALVES PEREIRA
Ensino Médio da Escola Particular Pequeno Príncipe

Além de um sonho


Pedro tentou olhar a sua volta mas nada via, além de tudo queimado...

Será? – choramingava – será que o mundo foi todo mesmo por água abaixo?

Num instante Pedro começou a olhar a sua volta, árvores queimadas, bichos mortos com seus corpos jogados ao chão, o lago próximo a sua casa coberto por cinzas, o chão estava preto pela quantidade de material queimado. As plantas da cidade todas mortas carbonizadas...

Pedro chorava cada vez mais forte... Sua casa estava queimada, seu quarto com toda sua coleção de figurinhas. Tudo queimado. Incendiaram a floresta, incendiaram a cidade... Por um instante ele pensou em gritar e gritar e clamar por socorro, mas não seria possível, pois se ele estivesse mesmo sozinho ninguém o escutaria!

– E se eu nunca encontrar a mamãe e o papai? E os meus primos? Meus amigos? Quero o meu mundo de volta!

Num segundo ele pensou em vir correndo a sua escola e assim fez, correu e correu mas ao chegar lá viu tudo queimado, os livros, cadernos e não havia ninguém...

– Como pode todos terem me abandonado?

– Mamãe, papai, meus primos – o garoto saiu gritando pela vila!

Ao passar pela floresta viu o maior desastre da sua vida, a floresta simplesmente não era mais aquela linda floresta, a mata estava toda queimada.

Pedro chorou e gritou desesperadamente...

– Pedro, acorda – gritou sua mãe – você disse que descansaria depois do almoço, dormiu a tarde toda e agora está tendo um pesadelo, meu filho, o que está acontecendo? Eu e seu pai estamos ouvindo você chorar lá da sala...

– Mãe, eu sonhei que a nossa vila estava toda queimada, nossa casa, minha coleção de figurinhas, a escola e a floresta, mamãe.

– Calma meu filho, foi apenas um pesadelo, já passou!

– Não mamãe, preciso reunir os meus amigos e correr até lá, vamos percorrer toda a floresta e ver se encontramos alguma coisa.

Pedro correu na casa do seu vizinho Lucas, do seu primo Gabriel, do seu outro colega João e em meia hora juntou todos os seus amigos e contou–lhes o sonho!

Decididos, partiram para a floresta em busca de algo que talvez pudesse tornar o drástico sonho de Pedrinho em realidade!

Eles andaram e quando estavam quase desistindo de procurar, Gabriel gritou:

– Vejam... quem são eles? E o que eles estão tentando fazer com aquela tocha de fogo?

– Vamos ligar para os bombeiros, se eles começarem a queimar, o sonho do Pedro pode se tornar realidade – disse Lucas.

Ligaram correndo e denunciaram os homens aos bombeiros. Em menos de 10 minutos chegaram, pouco tempo depois a polícia chegou e capturou os dois criminosos. Junto a eles havia araras e micos presos em gaiolas. Eles roubariam os bichos e incendiariam a floresta para que assim não restasse nenhum vestígio de que eles estiveram por lá!

– Obrigado meninos – agradeceu um dos policiais.

– Devemos tudo isso ao pesadelo do Pedro – disse João.

Depois de tudo os meninos foram para casa de Pedro e resolveram escrever a história e divulgar pela vila para que assim as pessoas pudessem ajudar a vigiar e preservar cada vez mais o meio ambiente!

Pedro ficou conhecido como o guardião da floresta, o menino que se não fosse por ele não existiria mais a floresta que é a essência da vila.

Depois disso, todos juntos começaram a dar apoio e cuidar da floresta como nunca. Ela ganhou vários vigias e os animais o amor dos moradores que sempre estavam a brincar e cuidar deles.

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Contos) I

SARA MENDES ROCHA
Ensino Médio da Escola  Particular Pequeno Príncipe

Troca natural

Hoje acordei sem pauta, sem mundo, sem cor, sem nada! Estava fincada na terra, sujando meu tênis de marca preferida, não conseguia sair, estava preso. Tentei aclamar para os meus pais, mas ninguém apareceu para me socorrer. Não sentia fome nem frio e muito menos minhas pernas. Quando parei para olhar ao meu redor, percebi estar no meio de uma floresta humana, uma floresta má, reclamona e barulhenta. Uma floresta que se recusava a produzir oxigênio para as árvores respirarem.

As árvores humanas não se importavam com ninguém, só queriam saber delas, quem era mais bela, vistosa e exuberante. Aos pés dessas maldosas, estavam árvores afetuosas, bondosas e inocentes, que com toda a bondade do mundo, cuidavam dos maldosos sem reclamar. Esse não era o objetivo delas, mas mesmo assim elas o faziam com amor. A que encontrei aos meus pés a me regar, tomei minha petulância e ousei perguntar:

– Com licença boa senhora! Mas, que fazes aqui a me regar e a adubar minhas raízes?

– Formosa princesa! Encontro–me aqui à disposição daqueles que prezam pela minha sobrevivência! Trato com carinho e amor aqueles que, seu trabalho apenas por nós realiza. É infelizmente a única maneira que tenho de agradecer, pois se houvesse outra, a faria, nem que custasse minha vida, pois sei que aqueles da nova geração seriam gratos! Deixaríamos para eles um mundo melhor do que aqueles que encontramos! – Disse senhora árvore indignada com a minha pergunta, mas com a mais doce voz por mim antes já ouvida.

– Mas senhora – Disse ainda indignada com a atitude da boa árvore – Se já é de teu conhecimento a falta de piedade dos humanos, ainda persistes em fazer o bem, para quem não te faz nem o necessário?

– Mas, linda! – disse ela com voz meio sarcástica – e como é que sobreviverei sem saber o que teria acontecido se tivesse ao menos tentado lutar pela sobrevivência de meus ancestrais? Quem serei se não ousar ser quem eu quero ser? Ou seja, a diferença, que parte do coração de cada um de nós a atos que se tornam grandes e transformam o planeta? – Ela concluiu com uma pena lastimável a minha juventude à flor da pele e à falta de iniciativa presa em mim.

Ela me olhava agora, pronta para responder mais uma de minhas perguntas indesejáveis, mas intrigantes para ela, para que assim possa quem sabe convencer–me a produzir sua fonte de vida. Olhando para o chão e tentando refletir a respeito de sua resposta, ousei–me a indagar mais uma vez:

– Dona árvore, mas como é que se pode produzir tão bem assim sem aproveitar os recursos que o mundo lhe oferece? Se são eles os mais produtivos?

– E quem disse que não aproveito? – Disse ela sorridente – eu os respiro, os como, bebo e ainda me divirto com eles, que mais posso eu apenas uma árvore satisfeita querer? Eu desenvolvo como que o meu mundo bondoso me oferece, destruição nunca foi e nunca será sinônimo de desenvolvimento. Desenvolvimento é conciliar o que podemos consumir com nossa grandiosa inteligência que nos é dada. Somos todos bons e sustentáveis, pois somos produtos desse meio que possui essas mesmas características, se não, quem nós há de ser? – Terminou gargalhando.

– Mas senhor... Retruquei confusa.

– Meu trabalho não é fácil,mas não desisto. Tenha um bom dia, e não se esqueça que terei apenas um bom amanhã se com sua ajuda puder contar! – e já cansada de minha voz inconveniente, saiu ela contarolando.

Eu olhava ao redor com a mente mais confusa do mundo. Refletia nas palavras da boa árvore. E imaginava inúmeras soluções para o caos que o mundo em que vivemos se encontrava. Projetos e iniciativas sustentáveis invadiram e persuadiram todo o meu minúsculo ser.Eu estava pronta para seguir os conselhos daquela senhora, tinha agora uma sede insaciável de imitá–la, ser a diferença que o mundo quer ver.

Eu estava pensando em como seria se de repente todas as plantas se recusassem a produzir oxigênio, o que seria de nós: eu não as culparia por essa atitude, elas teriam razão, quem somos nós para destruir aquilo que foi concedido a todos nós seres vivos? Isso não estava certo, eu tinha uma necessidade gigante de reverter essa situação.

Quando de repente parei e olhei ao meu redor, estava num mar de sangue e mortandades, consegui apenas ver destruição e ao avistar uma placa perto de mim, pude ler 21/09/2500. Não sabia como o cenário tinha mudado tão drasticamente. Meus olhos se sujaram com situações que não desejaria ver!

Estava no ponto máximo do inferno, e contava os segundos para ser libertada daquele lugar, desejando com todas as minhas forças poder estar em casa com minha família. Quando em um pulo acordei suada e ofegante em minha cama, eu tinha sonhado com uma lição de vida que jamais esqueceria.

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 2