quarta-feira, 25 de abril de 2018

Augusto Gil (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.3) I

BALADA DA NEVE

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Verlaine

“A Vicente Arnoso”

Batem leve, levemente
Como quem chama por mim...
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente
E a chuva não bate assim...

É talvez a ventania;
Mas há pouco, há pouquinho,
Nem uma agulha bulia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho...

Quem bate assim levemente
Com tão estranha leveza
Que mal se ouve, mal se sente?...
Não é chuva, nem é gente,
Nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
Do azul cinzento do céu
Branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e quando passa
Os passos imprime e traça
Na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
Da pobre gente que avança
E noto, por entre os mais,
Os traços miniaturais
Duns pezinhos de criança...

E descalços, doloridos...
A neve deixa inda vê-los
Primeiro bem definidos,
-Depois em sulcos compridos,
Porque não podia ergue-los!...

Que quem já é pecador
Sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
Porque lhes dás tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza
Uma funda turvação
Entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza...
– E cai no meu coração.

TOADA PARA AS MÃES ACALENTAREM OS FILHOS

“À Bertha Cayolla Gil Vianna”, minha sobrinha

Oh Desgraça! vai-te embora,
Que esta linda criancinha
Andou no meu ventre e agora
Trago-a nos braços. É minha!...

Do berço, segue-me os passos;
Onde eu vou, seus olhos vão...
E quando a aperto nos braços
-Abraço o meu coração.

Quando o seu choro receio,
Embalo-a, faço que aceite
A alegria do meu seio
Na brancura do meu leite...

E quando assim não descansa,
Que tristezas me consomem!
– Mas antes chore em criança
Que depois, quando for homem...

Se ao da-lo ao mundo sofri
Tormentos, ânsias mortais,
Desgraça, vai-te d'aqui,
O que pretendes tu mais?!

Bate as asas, mas ao voares,
Não me apagues esta estrela.
Se alguém d'aqui precisares,
– Aqui me tens, em vez dela!

Tocam ás ave-marias.
Foi-se o sol. Não vem a lua.
Luzinha que me alumias,
Que sorte será a tua?...

Riquezas tenhas tão grandes,
E tal bondade também,
Que ao redor d'onde tu andes
Não fique pobre ninguém.

Que a todos chegue a ventura:
Toda a boca tenha pão,
Toda a nudez cobertura,
Toda a dor, consolação...

Mas se o ouro é mau caminho,
– Antes tu venhas a ser
O pobre mais pobrezinho
De quantos pobres houver.

Iremos por esses montes
Altos e azuis, como os céus...
Que onde há frutos e onde há fontes,
– Está a mesa de Deus!

E, quando a neve cair
E as seivas adormecerem,
Iremos então pedir...
(Aceitar o que nos derem!)

Andaremos á mercê
Dos gênios bons, e dos falsos,
Léguas e léguas a pé,
Rotinhos, magros, descalços...

E onde houver urzes e tojos*,
Pedras que rasgam a pele,
Porei o corpo de rojos**
– Passarás por cima dele!

Dorme, dorme, meu menino,
Foi-se o sol. Nasceu a lua.
Qual será o teu destino?
Que sorte será a tua?...

Se um crime tens de fazer,
Antes fique vago um trono,
Antes um palácio a arder,
– Do que uma enxada sem dono...

Se, porém, no teu destino,
Há tão cruentos sinais,
Dorme, dorme, meu menino,
– Não tornes a acordar mais!
______________________________
NOTA:
* Urzes e Tojos = tipos de arbustos
** Rojos = de rastos
___________________

O PASSEIO DE SANTO ANTÔNIO
“A Columbano”

     La fleur des traditions nationales est flétrie. Mais libre a tous
     de puiser, dans l'herbier cosmopolite des legendes, les admirables
     pretextes à fiction qu'il recèle.
    (Litterature à Tout á L'Heure.)

Saíra Santo Antônio do convento,
A dar o seu passeio acostumado
E a decorar, num tom rezado e lento,
Um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando...

E andando, andando, viu-se num outeiro,
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo...

O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica d'água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,*
Ele trazia... o coração no peito.

Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O menino, porém, ouviu e disse:
– Oh Frei Antônio, o que foi aquilo?...

O santo, erguendo a manga de burel**
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
– Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada...

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou com timbres d'ouro no caminho.
– Ouviste, Frei Antônio? Ouviste agora?
– Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho...

– Tu não estás com a cabeça boa...
Um passarinho a cantar assim!...
E o pobre Santo Antônio de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
– Se o Menino Jesus pergunta mais,
...Queixo-me á sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: Jesus,
São horas... -E abalaram pro convento.
________________
Nota:
* Cantarinha: espécie de cântaro bastante bojudo e com boca de grande diâmetro.
** Burel: tecido grosseiro de lã, geralmente pardo, marrom ou preto, usado na vestimenta de alguns religiosos.

Fonte:
Augusto Gil. Luar de Janeiro. Lisboa: A Lanterna, 1909

terça-feira, 24 de abril de 2018

Nemésio Prata (Reflexões sobre a vida...)


Arnaldo Forte (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 2) I

A VIDA É UMA VALSA...

Naquela valsa que dançamos, lenta e linda,
Num baile onde, ao acaso, um dia te encontrei,
Sem qu'rer, fiz-te chorar. Eu lembro-me ainda!
Foi toda a minha vida... a valsa que dancei!

Senti a tua alma entrar dentro da minha;
E ouvi teu coração falar muito baixinho.
E ainda pressenti que a tua alma tinha
Anseios de contar soluços de carinho.

Sentindo as tuas mãos nas minhas a queimar,
Eu disse-te orações... e ouvi-te murmurar
Palavras que de cor meu peito diz ainda!

Vejo-te assim; juntinha a mim, d'olhos fechados...
Eu sinto que nós dois andamos abraçados,
Dançando devagar, aquela valsa linda!

FRIA

Qu'importa o teu olhar seja tão lindo,
E tenha a cor da luz que tem o dia?
Qu'importa o teu sorriso doce, infindo,
Se és fria, como a pedra, fria, fria!

Qu'importa esse teu corpo, se não sente!?
A alvura do teu colo sempre a arfar,
Se não tem o calor que dá á gente,
A força p'ra viver e para amar?!

Amor, no teu olhar eu tenho lido aos poucos,
Anseios esquisitos, sonhos loucos...
E és fria como a lousa em cemitério!

Envolta nesse manto de Beleza,
Quando olho dos teus olhos a frieza,
Eu quedo-me a cismar nesse mistério!

TEUS OLHOS FALAM MÁGOAS...

Os teus olhos magoados dizem tanto!
Aos meus olhos, sem qu'rer, têm contado
As mágoas, os sorrisos, mais o pranto,
Que teus olhos magoados tem chorado.

Teus olhos magoados vão no berço
Do meu peito, e dormem de mansinho.
Teus olhos,-Padre-Nossos– são d'um terço,
Contas d'Amor, que eu rezo tão baixinho...

Teus olhos magoados são dois beijos.
São promessas, sonhos, são desejos...
E eu trago os olhos teus no coração.

São a luz da minh'alma entristecida;
Teus olhos magoados são a Vida,
E o sol da minha vida também são!

VIOLETAS ROXAS

Inda tenho as florzinhas inquietas,
Que beijaram teus seios pequeninos,
Através d'essas rendas indiscretas,
Sob entremeios brancos e tão finos!

Flor's que dos teus lábios coralinos
Ouviram confidências tão secretas,
E que teus dedos brancos, peregrinos,
Deitaram fora... Pobres Violetas!

Perdidas pela sala e desatadas,
Encontrei-as, as pobres, requeimadas,
Ainda cheias desse teu encanto!

Mas lá 'stão inquietas e viçosas,
As que olharam teus seios vergonhosas...
Reviveram nas águas do meu pranto.

A MINHA ALMA JÁ MORREU...

Eu não te disse, Amor? Minh'alma já morreu
Cansada de esperar teus olhos num anseio!
Cansada de rezar baixinho o nome teu.
A noite era tão linda! E o teu olhar não veio!

E o teu olhar não trouxe a sombra dum carinho
Á minha pobre alma exausta de sofrer!
Luar! Tanto Luar havia no caminho...
E a luz do teu olhar não quis vê-la morrer!

O teu olhar matou-a! E não quiseste vir
Trazer-lhe uma grinalda branca do teu rir.
Ao menos murmurar baixinho uma oração!

Amor, sempre julguei que as tuas mãos pequenas,
Branquinhas como duas açucenas,
Viessem ajeitar minh'alma no caixão!

VENDIDA

Vendeste a tua boca, aquela que beijara
Purinha e a sorrir, meus versos a chorar.
Vendeste as tuas mãos, febris que eu apertara,
E outr'ora já por mim se ergueram a rezar.

Vendeste o teu olhar, e o corpo airoso e lindo,
Enlevo do meu sonho, a luz do meu viver.
Vendeste o teu sorrir, sorriso doce, infindo...
Que fora para mim alívio de sofrer!

E nem sequer tens pena! És d'el' que te comprou!
Vender's a tua boca, aquela que beijou
Meus versos a chorar por ti n'uma paixão!

És minha? És d'ele? És minha á luz do sentimento!
Tu vives d'este amor. É meu teu pensamento.
És minha! Não vendeste ainda o coração.

UM PECADO

Silhuete do Amor, corpinho d'anfora, esguia!
Olhar sonhando a rir, promessas e desejos.
Brasa a queimar, a arder, acesa á luz do dia...
Boca tão linda... e boca virgem dos meus beijos!

És a esfinge da Graça! O sonho do Noivado!
Uma oração trazida á Terra, pela Virgem!
E és também ainda um misto do Pecado...
A figura do Amor na tela da Vertigem!

Tu sabes quem eu sou; e crê, quando te vejo,
Eu tenho a impressão do que seria um beijo,
Em frente do Senhor, á luz do coração!

Mas tu, sorris, e ris... e eu quedo-me a cismar,
Como seria bela a vida a recordar,
Um longo beijo teu – Pecado, e Oração!

Fonte:
Arnaldo Forte. 13 Sonetos. Lisboa: Edição do Autor, 1921

Contos e Lendas do Mundo (Europa: Os Compadres Corcundas)

Era uma vez, dois compadres corcundas, um Rico outro Pobre. O povo do lugar vivia zombando da corcunda Pobre e não reparava no Rico. A situação do Pobre andava preta, e ele era caçador. 

Certo dia, sem conseguir caçar nada, já tardinha, sem querer voltar para casa, resolveu dormir ali mesmo no mato. Quando já ia pegando no sono ouviu uma cantiga ao longe, como se muita gente cantasse ao mesmo tempo. Saiu andando, andando, no rumo da cantiga que não parava. Depois de muito andar, chegou numa clareira iluminada pelo luar, e viu uma roda de gente esquisita, vestida de diamantes que brilhavam com a lua. Velhos, rapazes, meninos, todos cantavam e dançavam de mãos dadas, o mesmo verso, sem mudar: 

Segunda, Terça-feira, Vai, vem! 
Segunda, Terça-feira, Vai, vem! 

Tremendo de medo, escondeu-se numa moita e ficou assistindo aquela cantoria que era sempre a mesma, durante horas. Depois ficou mais calmo e foi se animando, e como era metido a improvisador, entrou no meio da cantoria entoando: 

Segunda, Terça-feira, Vai, vem! 
E quarta e quinta-feira, Meu, bem! 

Calou-se tudo imediatamente e aquele povo espalhou-se procurando quem havia falado. Pegaram o corcunda e o levaram para o meio da roda. Um velho então perguntou com voz delicada: 

– Foi você quem cantou o verso novo da cantiga? 

– Fui eu, sim Senhor! 

– Quer vender o verso? – perguntou então o Velho. 

– Caro senhor, não vendo não, mas dou de presente porque gostei demais do baile animado. 

O Velho achou graça e todo aquele povo esquisito riu também. 

– Pois bem – disse o Velho – uma mão lava a outra. Em troca do verso eu te tiro essa corcunda e esse povo te dá um casaco novo! 

Passou a mão nas costas do caçador e a corcunda sumiu. Lhe deram um casaco novo e disseram que só o abrisse quando o sol nascesse. 

O Caçador meteu-se na estrada e foi embora. Assim que o sol nasceu abriu o casaco e o encontrou cheio de pedras preciosas e moedas de ouro. No outro dia comprou uma casa com todos os móveis, comprou uma roupa nova e foi à missa porque era domingo. 

Lá na igreja encontrou o compadre rico, também corcunda. Este quase caiu de costas, assombrado com a mudança. Mais espantado ficou quando o compadre, antes pobre e agora rico, contou tudo que aconteceu ao compadre rico. Então cheio de ganância, o rico resolveu arranjar ainda mais dinheiro e livrar-se da corcunda nas costas. Esperou uns dias e depois largou-se no mato. Tanto fez que ouviu a cantoria e foi na direção da toada. Achou o povo esquisito dançando numa roda e cantando: 

Segunda, Terça-feira, Vai, vem! 
Quarta e quinta-feira, Meu, bem! 

O Rico não se conteve. Abriu o par de queixos e foi logo berrando: 

Sexta, Sábado e Domingo, Também! 

Calou-se tudo novamente. O povo esquisito voou para cima do atrevido e o levaram para o meio da roda onde estava o velho. Esse gritou, furioso: 

– Quem mandou se meter onde não é chamado, seu corcunda besta? Você não sabe que gente encantada não quer saber de Sexta-feira, dia em que morreu o filho do alto; sábado, dia em que morreu o filho do pecado, e domingo, dia em que ressuscitou quem nunca morre? Não sabia? Pois fique sabendo! E para que não se esqueça da lição, leve a corcunda que deixaram aqui e suma-se da minha vista senão acabo com seu couro! 

O Velho passou a mão no peito do corcunda e deixou ali a corcunda do compadre pobre. Depois deram uma carreira no homem, que ele não sabe como chegou em casa. E assim viveu o resto da sua vida, rico, mas com duas corcundas, uma na frente e outra atrás, para não ser ambicioso. 

Fonte:

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Trova 294 - Maria Zilnete de Moraes Gomes (Campos dos Goytacazes/RJ)

Fonte: Facebook (Bonde Trova)

Antonio Florêncio Ferreira (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.1) I

I

Vês aquele enterro humilde,
sem padre, sem cruz, sem nada?
Vês aquel'outro, pomposo,
do templo a frente enlutada?

O primeiro é d'um honrado;
talvez o do outro o não seja...
Mas ambos, de igual doutrina,
são filhos da mesma igreja.

O que me admira e me assombra
é o afeto desta mãe,
que ao rico dispensa afagos
e ao pobre atira o desdém!

II

Moram aqui uns vizinhos
que sabem quanto fazemos;
são capazes de informar-nos
se nos devem, se devemos...

Em vindo qualquer pessoa
Nossas tensões inquirir,
Manda-se lá... inteirada
Por certo que há de sair!

III

Dizer que Deus dá Castigos
eternos, que não têm fim,
é a maior das blasfêmias,
heresia, quanto a mim...

Se os homens, por maus que sejam,
tal não podem legislar,
porque a Morte aos criminosos
vem da pena libertar,

Querer que Deus os exceda
no rancor e na secura
é de embrenhar nosso espirito
nuns abismos de amargura!

IV

Deixemos, Amor, deixemos
questões de filosofia;
Pode nelas haver ciência,
mas não podem ter poesia.

V

Não são vossos meus cantares,
mulheres que festejei;
Vistes o amor em quimeras?
Nunca iludir-vos pensei!

De que servem esses gabos,
Essa ideia presunçosa?
Esquecestes esta màxima:
«Sê modesta, não vaidosa.»
______
Nota: 
Gabos – pessoas excêntricas, que se acham melhor que as outras.
__________
VI

Peregrina luz da lua,
como é velho o teu palor!
Mas, como tu, sempre encanta,
velha embora, a luz do amor!

VII

Oh! consente-me num sono
dormido ao terno embalar
da poesia que se evola
do teu mimoso afagar!

No calor do teu regaço
que sonhos devera ter!
Nos braços de huris, de fadas
mais gôzo não pode haver!
________________
Nota:
Huris: São as virgens do paraíso que, de acordo com a crença islâmica, receberão os homens que foram bons na Terra após a morte.

VIII

Meu coração foi sangrado;
já se não usa a sangria...
Por isso, caso hoje raro,
ele sangra noite e dia.

Foi operante... quem amo;
A lanceta... o seu olhar;
A ligadura... seus beijos,
Que não tardei a furtar.

E assim ele está gemente,
o meu pobre coração,
à espera de que mais beijos
o estanquem e ponham são!

Fontes:
Antonio Florencio Ferreira. Trovas: canções de amor. 
Lisboa: Imprensa de Libanio Silva, 1906

Contos e Lendas do Mundo (Ursinho Peralta)

Baseado em uma fábula de Leonardo da Vinci

O ursinho era dos mais peraltas, coisa natural nas crianças porque nessa fase da vida a curiosidade fala mais alto que as recomendações maternas. Por isso aquele filhote da mamãe ursa logo esquecia as instruções que ela lhe dava, maravilhado que ficava com as descobertas que fazia durante suas pequenas caminhadas pela floresta.

Um dia o ursinho percebeu que em certa árvore à  sua frente havia um buraco relativamente grande, e que nele as abelhas entravam e saíam a todo instante, numa movimentação incessante. Intrigado, ele foi verificar mais de perto o que era aquilo, e percebeu que no tal buraco, além do constante entra-e-sai das abelhas, algumas delas permaneciam paradas em sua entrada, como se a estivessem guardando.

Cada vez mais interessado o ursinho se pôs de pé nas patas traseiras, encostou o focinho no buraco, aspirou uma, duas, três vezes, e o cheiro que sentiu fê-lo enfiar uma das patas dianteiras lá dentro. Quando a retirou, ela estava lambuzada de mel que o ursinho tratou de lamber na maior euforia porque acabara de descobrir um manjar extremamente gostoso para o seu paladar. Ao repetir o gesto que fizera da primeira vez, novamente sua pata saiu toda melada de dentro da árvore, e o filhote da mamãe urso exultou com isso porque além da gula ser um procedimento indescritivelmente delicioso, dela ninguém se cansa.

Foi nesse exato momento que um enxame de abelhas furiosas saiu de dentro do buraco para revidar a invasão sofrida, e elas passaram a ferroar as mãos do ursinho, sua cabeça, seus pés, e todas as partes do seu corpo não suficientemente protegidas pela pelagem grossa e abundante. Bem que o pequeno animal tentou defender-se da forma como podia, mas ele não conseguia acertar nenhuma das atacantes porque enquanto batia em si mesmo de um lado, elas investiam do outro, castigando o ladrão de mel sem dó nem piedade, até que desesperado o ursinho deitou-se e rolou pelo chão durante alguns segundos, mas logo depois se pôs de pé e saiu em carreira desabalada, chorando, em busca da proteção materna. Satisfeitas com a vingança executada, as abelhas retornaram à  colmeia.

*Moral da história*: O desrespeito à propriedade alheia pode provocar diversas reações. Portanto, não faça aos outros aquilo que não deseja que eles façam consigo.

domingo, 22 de abril de 2018

Errata de Ontem (Carolina Ramos: Poesias Esparsas)

Aos assinantes do blog, que receberam esta manhã as postagens de ontem (aqui no blog eu já corrigi hoje):

No soneto “A Orquídea”, de Carolina Ramos, no primeiro quarteto, 3º verso, em vez de "pasmam os colírios, e se extasiam" , o certo é "pasmam os colibris, e se extasiam".

Falha de digitação. Desculpe.

Lourdes Gutbrod (Trovas Seletas)


1
Amor que não se revela,
aprisionando carinhos,
é como a rosa, tão bela,
mas guardada por espinhos!
2
A vida - sempre tão cheia
de labutas e batalhas -
para alguns é bela ceia,
para muitos... só migalhas!...
3
Como noiva prometida,
lírios na fronte e na mão,
eu te esperei toda a vida
no altar da minha ilusão!...
4
Com teu ar de indiferença
foste um vento, em minha vida,
que entrou sem pedir licença
e saiu sem despedida!...
5
Coragem!... Se Deus nos testa,
também nos cura as mazelas,
e a Vida é linda seresta
para quem abre as janelas!!!
6
Ele a “embroma”: nova data!...
E o casamento é adiado.
Vão fazer bodas de prata
pelo tempo de noivado!
7
Em cada vã tentativa
de arrancar-te da memória,
tua imagem mais se aviva
nas cenas da minha história!... 
8
É quando tu ficas mudo,
e assumes um ar lascivo,
que teu corpo fala tudo
do modo mais expressivo...
9
Felizes os que despendem
seu tempo com a educação:
esculpem almas e acendem
luzeiros na escuridão!
10
Gostava desta ousadia:
amar sem rédeas nem laços.
E acabei, por ironia,
prisioneira, nos teus braços… 
11
Grite, revele o que pensa,
com ira ou mesmo agressão!
Suporto a mais dura ofensa,
mas esse desprezo... não!
12
Já fui tua… foste meu…
Não faz mal se hoje padeço:
– Quem um grande amor viveu
acha justo qualquer preço.
13
Juras de amor… Uma rosa…
Recomeça tudo, enfim!
E, nessa hora venturosa,
já não sou dona de mim!…
14
Liberdade!... Infelizmente
muitos a buscam no vício,
forjando a própria corrente
que os arrasta ao precipício!
15
Mentir era tão frequente
- por brincadeira, vaidade… -
que a mentira, finalmente,
tornou-se a minha verdade.
16
Na minha vida sombria,
que só conhece empecilhos,
sou um trem sem serventia,
parado... fora dos trilhos!...
17
Não julgue, ao perder a calma,
que o mundo é uma grande arena
e, abrindo as janelas d’alma,
diga à vida: - Vale a pena!
18
Não sabes... não adivinhas,
lendo as cartas que te escrevo,
que digo, nas entrelinhas,
tudo aquilo que não devo...
19
Nas vãs promessas que fazes
não suponhas que acredito:
Queres prazeres fugazes...
e eu busco amor infinito!
20
Navegante sem destino,
ante um naufrágio medonho,
eu me agarro, em desatino,
aos destroços do meu sonho!...
21
No espaço, além, fui buscar-Te
sem que, ó Deus, Te revelasses...
e estavas em toda parte
sob as mais diversas faces.
22
Passam céleres as horas,
tudo é mutável e obscuro...
O tempo engole os agoras
e tem fome de futuro!
23
Passo momentos felizes
vivendo só de ilusão,
pois as mentiras que dizes
são, na verdade, meu pão.
24
Pedes perdão... e eu, vencida,
com teus beijos me deleito,
e ouço a música da vida
tocar de novo em meu peito!
25
Qual de nós dois nesta trama
é mais falso ou desonesto:
– Você... ao dizer que me ama?
Eu... ao gritar que o detesto?
26
Quando a volúpia me invade,
eu me entrego em cada gesto...
Perco o nome, a identidade.
Sou tua! Que importa o resto?...
27
Quando eu partir, não precisa
louvar-me... expor-me em retratos:
lembre, só, que fui poetisa
e apaixonada por gatos!!!
28
Quando voltas, não te acanhas:
pedes desculpa e me agradas...
E eu me rendo às artimanhas
dessas conversas fiadas!...
29
Quantas cenas de ternura,
se estamos juntos, a sós!
Sem timidez nem censura,
em nosso palco... só nós!
30
Que importa se me sorrís,
às vezes, por compaixão?
Prêmios me fazem feliz,
mesmo os de consolação.
31
Quem conhece o desencanto
e os desgostos por que morro
percebe sempre, em meu canto,
muitos gritos de socorro!
32
Quem diz ter sabedoria
e os seus talentos exalta,
revela, por ironia,
justamente o que lhe falta!
33
Quis arrancar brutalmente
do meu passado as raízes,
mas você está presente
mesmo em minhas cicatrizes!...
34
Se aos infelizes dás sobras
com desdém, indiferença,
há, decerto, nessas obras,
não bondade... mas ofensa.
35
Sem me curvar à derrota,
nenhum desalento esboço.
E à esperança mais remota
respondo bem alto: Eu posso!!!
36
Se o homem romper a grade
que o fecha em seu egoísmo,
será a Fraternidade
uma ponte sobre o abismo.
37
Sou um verbo transitivo
que nunca encontrou objeto,
condenado, sem motivo,
a ser assim: incompleto...
38
Tamanha paixão eu tinha,
e há tanto que te aguardava
que, ao me elegeres raínha,
eu me entreguei como escrava!
39
Tu chegas...e, em vez de paz,
trazes dúvida e aflição,
pois sei que é o pouso fugaz
de uma ave de arribação...
40
Tu chegaste sem rodeio,
fingindo paixão por mim...
E eu apenas fui um meio
para atingires teu fim.
41
Tu vens, ardoroso e amante...
e sempre partes, ligeiro.
Qual relâmpago, és vibrante,
mas de fulgor passageiro.
42
Um mundo humano e decente
eu sempre buscava a esmo...
até saber que era urgente
mudar, primeiro, a mim mesmo!
43
Usas, para conquistar-me,
fogoso e avassalador,
uma máscara de charme
e os ardis de um sedutor!
44
Vendo-te à luz da Razão,
com a máscara caída,
descubro o grande vilão
que encarnaste em minha vida!
45
Voltar para mim?… Não tente,
tudo está morto e enterrado.
Rompi, de vez, a corrente
que me prendia ao Passado!…
46
Voltas… e, ouvindo os teus passos,
cheia de amor e esperança,
eu, de novo, te abro os braços,
sem condições nem cobrança!