quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Anthero de Quental (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 8) II



A FADA NEGRA

Uma velha de olhar mudo e frio,
De olhos sem cor, de lábios glaciais,
Tomou-me nos seus braços sepulcrais.
Tomou-me sobre o seio ermo e vazio.

E beijou-me em silêncio, longamente,
Longamente me uniu à face fria...
Oh! como a minha alma se estorcia
Sob os seus beijos, dolorosamente!

Onde os lábios pousou, a carne logo
Mirrou-se e encaneceu-se-me o cabelo,
Meus ossos confrangeram-se. O gelo
Do seu bafo secava mais que o fogo.

Com seu olhar sem cor, que me fitava,
A Fada negra me coalhou o sangue.
Dentro em meu coração inerte e exangue
Um silencio de morte se engolfava.

E volvendo em redor olhos absortos,
O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de névoa, de ilusão,
E a luz do sol como um luar de mortos...

Como o espectro dum mundo já defunto,
Um farrapo de mundo, nevoento,
Ruína aérea que sacode o vento,
Sem cor, sem consistência, sem conjunto...

E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cair,
Inerte e já da cor dum moribundo.

Dentro em meu coração, nesse momento,
Fez-se um buraco enorme – e nesse abismo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento...

Razão! Velha de olhar agudo e cru
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bendita sejas tu!

Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral daquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!

Pelo pranto e as torturas benfazejas
Do desengano... pela paz austera
Dum morto coração, que nada espera,
Nem deseja também... bendita sejas!

IGNOTO DEO

Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que refletes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande – e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro... nua e velha...

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos...

Pura essência das lagrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, ao céu ao menos!

LAMENTO

Um diluvio de luz cai da montanha:
Eis o dia! eis o sol! O esposo amado!
Onde ha por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?

Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alivio o céu não tenha?

Deus é Pai! Pai de toda a criatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado...

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
Nesta hora santa... e eu só posso ser triste...
Serei filho, mas filho abandonado!

A M.C. (I)

Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fala o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «Vai, filha, sê formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste neste solo angustiado,
Estrela envolta num clarão sagrado,
Do teu límpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! O que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais... a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

A SANTOS VALENTE

Estreita é do prazer na vida a taça:
Largo, como o oceano é largo e fundo,
E como ele em venturas infecundo,
O cálix amargoso da desgraça.

E contudo nossa alma, quando passa
incerta peregrina, pelo mundo,
Prazer só pede à vida, amor fecundo,
É com essa esperança que se abraça.

É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impôs à vida.
E manda buscar luz e dá-nos treva!

Ah! se Deus acendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria... ou porque a leva?

TORMENTO DO IDEAL

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.

ASPIRAÇÃO

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém do pressentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!

A FLORIDO TELLES

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si têm oculto o dano,
Com aquele outro afeto soberano,
Que amor se diz e é luz de pura chama,

Vejo que são bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vão prazer deixa quem ama.

Nasce do orgulho aquele estéril gozo
E a gloria dele é cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso
E das paixões também some-o a tormenta...
Mas a glória do amor... essa vem d'alma!

SALMO

Esperemos em Deus! Ele ha tomado
Em suas mãos a massa inerte e fria
Da matéria impotente e, num só dia,
Luz, movimento, ação, tudo lhe ha dado.

Ele, ao mais pobre de alma, ha tributado
Desvelo e amor: ele conduz á via
Segura quem lhe foge e se extravia,
Quem pela noite andava desgarrado.

E a mim, que aspiro a ele, a mim, que o amo,
Que anseio por mais vida e maior brilho.
Há de negar-me o termo deste anseio?

Buscou quem o não quis; e a mim, que o chamo,
Há de fugir-me, como a ingrato filho?
Ó Deus, meu Pai e abrigo! Espero!... eu creio!

A M.C. (II)

No Céu, se existe um céu para quem chora.
Céu, para as magoas de quem sofre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que não devora...

No céu, se uma alma nesse espaço mora.
Que a prece escuta e encharca o nosso pranto...
Se há Pai, que estenda sobre nós o manto
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...

No céu, ó virgem! Findarão meus males:
Hei de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo.
Para não mais findar, nossos amores.

A JOÃO DE DEUS

Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha... o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino.

Fonte:
Anthero de Quental. Sonetos Completos.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Malba Tahan (Os Pastéis de Alcassim)


O velho Abdo Alcassim, pasteleiro em Kufa, homem generoso e bom, chamou um dia seu filho Elias e disse-lhe, apontando para uma cesta repleta de deliciosos pastéis:

— Aqui tens, nesta cesta, tão bem arrumada, trinta e dois pastéis de leite e canela. Estão saborosos. Seriam dignos da esposa do Sultão. Leva-os ao nosso honrado cadi Ragi Zattar, que tão amável e correto tem sido para mim.

— Escuto e obedeço, meu pai — respondeu o jovem.

E partiu, no mesmo instante, para a casa do prestigioso magistrado, levando o apetitoso presente.

Em meio do caminho, ao passar pela mesquita, o rapaz parou, colocou a cesta no chão, olhou demoradamente para os pastéis e disse de si para consigo:

— Logo que entregar estes trinta e dois belíssimos pastéis de leite e canela ao honrado cadi Ragi Zattar, ele, de acordo com a velha e delicada praxe, fará questão absoluta de me dar a metade. Sim, é isso mesmo, a metade. Ora, qual é a metade de trinta e dois? Qualquer mestre-escola diria logo: a metade de trinta e dois é dezesseis! É certo, portanto, que, destes trinta e dois pastéis, dezesseis serão forçosamente meus. Não há mal, portanto, que os coma agora mesmo.

E, tendo raciocinado deste modo, comeu dezesseis dos pastéis, deixando os outros no fundo da cesta.

Depois de caminhar mais algum tempo, o jovem parou novamente, colocou a cesta sobre um pedaço de muro em ruínas e assim refletiu:

— Levo agora dezesseis magníficos pastéis de leite e canela, feitos por meu pai, ao honrado cadi Zattar (que Allah, o Muito Alto, o cubra de incontáveis benefícios!). Logo que fizer a entrega da cesta, serei, por ele próprio, obrigado a aceitar a metade do conteúdo. O cadi, sendo um homem de bem, não deixará de cumprir com essa velha praxe. E qual é a metade de dezesseis? Ora, a metade de dezesseis (qualquer burriqueiro do deserto não o ignora) é oito! Logo, destes dezesseis belos pastéis, oito serão forçosamente meus. Não vejo inconveniente em comê-los desde já.

E, firmado nessa maneira de raciocinar, devorou, o insaciável Elias, mais oito dos pastéis destinados ao cadi.

Logo adiante, graças a um raciocínio aritmeticamente idêntico aos anteriores, e sempre firmado na velha e delicada praxe, achou-se o peralvilho com o direito de comer mais quatro pastéis. E assim, de cada vez, comia metade dos pastéis que haviam ficado na cesta.

Quando chegou à casa do justo cadi Ragi Zattar, o magnífico presente do velho paste-leiro Alcassim estava reduzido a meio pastel.

—  Que é isso? — perguntou o cadi, intrigado, ao receber a cesta, no fundo da qual aparecia um pedaço de pastel.

—  É um presente de meu pai! — respondeu o pândego com a maior naturalidade. — É um presente do velho pasteleiro Abdo Alcassim ao seu amigo, o honrado cadi Ragi Zattar.

E contou, com a maior desfaçatez e sem-cerimônia, o raciocínio que várias vezes fizera para satisfazer sua gula nos pastéis destinados ao cadi.

Ao ouvir o minucioso relato da façanha, observou com serenidade o juiz de Kufa:

— Por Allah, meu jovem amigo! Sempre fui otimista na vida. Graças a tua maneira de proceder, inspirada na velha e delicada praxe, ainda ganhei meio pastel e vou saboreá-lo. Certo estou de que se fosse outro o mensageiro desse presente (que em boa hora me enviou o bondoso Alcassim) nem uma simples migalha chegaria às minhas mãos.

E já ia o cadi provar o meio pastel restante, quando o jovem protestou com um risinho petulante:

— Perdão, ó honrado cadi! Pelo nome do Profeta! Desse meio pastel, que ficou na cesta, segundo a velha e delicada praxe, eu tenho pleno direito à metade. Não é assim?

— Iallah! — concordou, prontamente, o juiz — A tua observação é muito justa. Que distração a minha! Devo seguir, ainda desta vez, a velha e delicada praxe. Dentro das regras da perfeita fidalguia tens, realmente, direito à metade desta mísera metade!

E, dividindo ao meio o pequeno quinhão que recebera, entregou uma das partes ao velhaco, comendo a parte restante.

Depois de saborear, em silêncio, aquela minúscula metade da metade, o cadi assim falou com voz muito séria:

—  Esse caso dos trinta e dois pastéis, meu amigo, vai ter um desfecho muito triste.

— Muito triste? Como assim?

— É fácil explicar — volveu o cadi, num tom vitorioso. — Teu pai, o velho Alcassim, deve ser severamente castigado. Castigado pela leviandade que praticou enviando, ao juiz de Kufa, um presente por um portador que não merecia confiança. Zombou da autoridade e, por esse crime, deve ser punido. Punido severamente!

— O honrado cadi vai castigar meu pai? — perguntou o birbante com ares de abstração palerma.

— Sim — confirmou com serenidade o cadi, elevando intencionalmente a voz. — Vou castigá-lo, como já disse. E castigá-lo com trinta e duas chibatadas.

E, depois de ligeira pausa, desfechou num gesto largo, secamente:

— E serás tu mesmo, meu caro Elias, o portador destas trinta e duas chibatadas. Ora, é claro, é evidente, que podemos repetir, para as trinta e duas chibatadas (que envio a teu pai), o mesmo e perfeito raciocínio que fizeste (como portador) para os trinta e dois pastéis de leite e canela que teu pai a mim me enviou... E, sendo assim (de acordo com a velha e delicada praxe), terás direito a trinta e uma chibatadas e meia! E no fim, terás, ainda, a metade da metade! Não é assim? Mas como, na Aritmética das Punições, não é possível calcular meia chibatada, vais receber, no lombo, agora mesmo, as trinta e duas chibatadas que eu resolvi, por plena justiça, enviar, por teu intermédio, a teu pai!

E o honrado cadi, no mesmo instante, chamou dois guardas (dos mais violentos que estavam a seu serviço) e mandou aplicar uma surra impiedosa, de trinta e duas chibatadas, no filho do pasteleiro.

Bem diz o provérbio que os beduínos repetem todos os dias:
“O castigo de Deus está mais perto do pecador do que as pálpebras estão dos olhos”. Uassalam
_________________
Nota:
Cadi - Juiz. Magistrado.

Fonte:
Malba Tahan. O Gato do cheique e outras lendas.

Antonio Brás Constante (Aprisionados, ou melhor... casados)


O casamento é a prisão perfeita, pois faz com que o próprio apenado decida se entregar, construindo sua cela em um terreno financiado por ele mesmo, providenciando o seu sustento e de sua carcereira. Tudo feito por atos espontâneos, motivados pela sociedade, que convence o candidato a prisioneiro com promessas de
felicidade eterna.

A pena para quem casa é de prisão perpétua, pois o juiz, ou melhor, o padre sempre finaliza a sentença dizendo: “até que a morte os separe”. A única forma conhecida de se libertar dessa prisão é por mau comportamento. O casamento é um regime onde
o prisioneiro cumpre sua pena em regime semiaberto. Saindo durante o dia para trabalhar como qualquer homem livre e solteiro, e voltando ao seu cárcere ao anoitecer.

Para que o homem não se sinta tentado a “pular o muro” em busca de alguma louca aventura fora de sua cela, existem dispositivos extremamente eficientes para monitorá-lo, intitulados de “vizinhos” e “parentes”, que conseguem rastrear suas atividades, impedindo qualquer desvio de sua conduta.

Uma das curiosidades sobre o casamento é que o homem (por se achar muito esperto) resolve em um dado momento que pode roubar a sua noiva dos pais dela, mas esquece que fazendo isto é ele quem acabará preso. Aliás, o casamento é o único sistema penal onde o prisioneiro pode abertamente ter relações íntimas com sua carcereira, tendo inclusive filhos com ela, que podem ser futuros prisioneiros ou futuras carcereiras. Como o aprisionado dispõe dessa liberdade com a carcereira, fica proibido de ter outras visitas íntimas.

As punições por seus erros de conduta vão desde a falta de um jantar até algumas noites dormindo no “solitário” (também conhecido como sofá), que é uma versão doméstica da solitária. É nesse lugar que o pobre marido tem de se sujeitar a ficar em eventuais brigas conjugais. Ao invés de algemas, o apenado recebe uma aliança, que deve permanecer em seu dedo enquanto viver. A retirada ou perda dessa joia é recebida com sessões de tortura, que começam nos ouvidos e terminam com a ameaça da vinda de sua sogra para morar com eles em sua cela.

Nos finais de semana, os prisioneiros têm direito a banhos de sol, desde que façam os mesmos segurando uma enxada, que será utilizada para capinar o pátio. O prédio da prisão onde o apenado reside serve para duas situações: garantir o conforto de sua carcereira e prole, bem como facilitar a localização do mesmo para o recebimento dos impostos vindos pelo correio, onde é cobrado pelo governo por estar preso.

O homem, quando se deixa enfeitiçar pelos encantos de uma mulher, fica cego de amor e logo vai entregando a chave de seu coração, esquecendo-se de que o resto do corpo também faz parte do pacote. Em algumas dessas prisões chamadas de lares, as carcereiras efetuam revistas nos prisioneiros quando estes retornam do trabalho, procurando em seus corpos e bolsos marcas ou bilhetes que sirvam de prova contra os réus.

Algumas normas devem ser obedecidas na prisão: Não “roubar” doces da geladeira. Não ficar atirado no sofá da sala “matando” tempo. E principalmente não “desviar” olhares para outras mulheres.

Enfim, o casamento é uma prisão dentro de outra prisão chamada vida, e, apesar de todas as reclamações que possam surgir, ainda é um lugar maravilhoso, seguro e aconchegante, pelo qual vale a pena cumprir integralmente a sua pena. Case-se, e saberá se estou dizendo a verdade ou apenas lhe pregando uma peça.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 7


AS DUAS MÃES

MOTE:

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da Virgem Maria,
era uma santa escutando
o que outra santa dizia.
(Barreto Coutinho)

GLOSA:

Eu vi minha mãe rezando
numa prece doce e pura;
por todos estava orando,
com grande amor e ternura!

A minha mãe, ajoelhada,
aos pés da Virgem Maria,
parecia a madrugada
ao romper de um novo dia!

Como um sol que vem raiando
vislumbrei com emoção:
era uma santa escutando
da outra santa, a oração!

Unidas, no mesmo amor,
a mãe de Jesus, ouvia,
com carinho e com fervor
o que outra santa dizia.
_____________________

CANIÇO DE TROVAS

MOTE:

No imenso "mar da ternura",
eu fiz pescarias novas:
Cheguei a pescar ventura,
com meu caniço de trovas!
(Delcy Canalles)

GLOSA:

No imenso "mar da ternura",
eu navego com carinho
e a paz, na minha procura,
eu encontro em meu caminho!

E nesse mar de poesias,
eu fiz pescarias novas:
pesquei muitas alegrias...
Os meus versos são as provas.

Eu afoguei a amargura!
Dei vida ao contentamento!
Cheguei a pescar ventura,
naquele exato momento!

Multipliquei, eu bem sei,
na piracema, em desovas,
os peixes que, então, pesquei,
com meu caniço de trovas!
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SILÊNCIO E LÁGRIMA

MOTE:

A lágrima silenciosa
ninguém lhe presta atenção,
por isso é mais dolorosa
quando inunda o coração!
(Fernando dos Santos)

GLOSA:

A lágrima silenciosa
abre sulcos em nossa alma,
ela é sutil, misteriosa
e nos tira toda a calma.

Por ser assim. sorrateira,
ninguém lhe presta atenção,
rola e se esconde, ligeira
num grande mar de emoção.

É uma lágrima teimosa
que machuca de verdade,
por isso é mais dolorosa
e causa infelicidade.

Sofremos intensamente
na maré da solidão,
com essa lágrima dolente
quando inunda o coração!
__________________
NOVO ACALENTO

MOTE:

Ao sentir falta dos laços
de um amor, mesmo bisonho,
eu me acalento em teus braços
no horizonte do meu sonho!
(Florestan Japiassú Maia)

GLOSA:

Ao sentir falta dos laços
do amor que a nós dois unia,
eu preencho meus espaços
com lembranças: noite e dia!

Sinto saudade do amor,
de um amor, mesmo bisonho,
mas sonhando com fervor
a minha angústia transponho!

Diminuindo meus cansaços,
na minha imaginação,
eu me acalento em teus braços
e vivo nova emoção!

E nesse novo acalento
eu me faço bem risonho,
um sonho novo, eu invento,
no horizonte do meu sonho!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas VI. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. 
http://www.portalcen.org. abril de 2003.

Concurso Internacional de Poesia do Clube da Simpatia (Classificação Final)

O Clube da Simpatia envia muitos Parabéns aos poetas que foram premiados no “Concurso Internacional de Poesia/2018” e agradece, com muito carinho, a todos os que nele participaram.

“POESIA LIVRE”

VENCEDORES

1º PRÊMIO 
Jorge Ferro Rosa (Portugal)
Título: “Olhar Trespassado”

2º PRÊMIO 
Isidoro Cavaco (Portugal)
Título: “Recordando”

3º PRÊMIO 
Maria Helena Ramos (Portugal)
Título: “Não Sabemos Amar”

MENÇÕES HONROSAS

Donzília Martins (Portugal)
Título: “Desencontro”

Natália Vale (Portugal)
Título: “Pintando Um Retrato”

Mifori (Brasil)
Título: “Jornadas”

Leonilda Yvonneti Spina (Brasil)
Título “Juventude”

Alfredo Nogueira Pereira (Brasil)
Título “Um Anjo Voou Ao Céu”

"QUADRAS (TROVAS)"

VENCEDORES

1º PRÊMIO 
Isidoro Cavaco (Portugal)

2º PRÊMIO 
António Augusto de Assis (Brasil)

3º PRÊMIO  
Joel Hirenaldo Barbieri (Brasil)

MENÇÕES HONROSAS

Domingos Freire Cardoso (Portugal)

Natália Vale (Portugal)

Lóla Prata (Brasil)

Nadir Nogueira Giovanelli (Brasil)

Fontes:
- A. A. de Assis

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Franz Kafka (O Vizinho)

Meu negócio descansa inteiramente sobre os meus ombros. Duas senhoritas com suas máquinas de escrever e seus livros comerciais no primeiro quarto, e uma escrivaninha, caixa, mesa de informações, cadeiras de braços e telefone no meu, constituem todo meu aparelhamento de trabalho. É muito fácil controlar isso com uma vista de olhos, e dirigi-lo. Sou muito jovem e os negócios se acumulam aos meus pés. Não me queixo, não me queixo. 

Desde o Ano Novo, um jovem alugou sem hesitar a sala contígua, pequena e desocupada, que por tanto tempo titubeei, estupidamente, em tomar para mim. Trata-se de um quarto com antecâmara e, além do mais, uma cozinha. Tivesse podido utilizar o quarto e a antecâmara - minhas duas empregadas sentiram-se mais uma vez sobrecarregadas em suas tarefas -, mas, para que me teria servido a cozinha? Esta pequena hesitação foi a causa de permitir que me tirassem a sala. Nela está instalado, pois, esse jovem. Chama-se Harras. Com exatidão não sei o que faz ali. Sobre a porta lê-se: "Harras, escritório". Pedi informações, comunicaram-me que se trataria de um negócio idêntico ao meu. Na realidade, não vem ao caso dificultar-lhe a concessão de crédito, pois se trata de um homem jovem e de aspirações, cujas atividades tenham talvez futuro, mas não se poderia, contudo, aconselhar que se lhe outorgue crédito, pois atualmente, segundo todas as presunções, careceria de fundos. Quer dizer, a informação que se dá habitualmente quando não se sabe de nada. 

Às vezes encontro Harras na escada, deve ter sempre uma pressa extraordinária, pois se escapuliu diante de mim. Nem mesmo pude vê-lo bem ainda, e já tem pronta na mão a chave do escritório. Num instante abre a porta, e antes que o observe bem já deslizou para dentro como a cauda de uma rata e aí tenho outra vez à minha frente o cartaz "Harras, escritório", que li muitas mais vezes do que o merece. 

A miserável finura das paredes, que denunciam o homem eternamente ativo, ocultam porém o desonesto. O telefone está pendurado à parede que me separa do quarto de meu vizinho. 

Não obstante, destaco-o apenas como constatação particularmente irônica. Mesmo quando pendesse da parede oposta, ouvir-se-ia tudo da sala vizinha. Evitei o meu costume de pronunciar ao telefone o nome de meus clientes. Mas não é necessária muita astúcia para adivinhar os nomes através de característicos mas inevitáveis torneiros da conversação. Às vezes, aguilhoado pela inquietação, sapateio nas pontas dos pés em volta do aparelho, com o receptor no ouvido, mas não posso impedir que se revelem segredos.

 Naturalmente, as resoluções de caráter comercial se tornam assim inseguras e minhas voz, trêmula. Que faz Harras enquanto telefono? Se quisesse exagerar muito - o que é preciso fazer com frequência para ver claro -, poderia dizer: Harras não precisa telefone, usa o meu, colocou o sofá contra a parede e escuta; eu, em troca, quando o telefone toca, devo ir atender, tomar nota dos desejos do cliente, adotar resoluções graves, sustentar conversações de grandes proporções, porém, antes de tudo, proporcionar a Harras informações involuntárias, através da parede. 

Ou antes, nem mesmo espera o fim da conversação, porém que se ergue depois da passagem que lhe informa suficientemente sobre o caso, atira-se, segundo o seu costume, através da cidade e, antes de eu ter pendurado o receptor, está talvez trabalhando já contra mim.

Fonte:
Franz Kafka. Contos.