terça-feira, 8 de dezembro de 2020

A Árvore em Versos - 1

Organização por Sammis Reachers
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As árvores representam sentinelas da defesa e segurança, propiciando beleza e utilidade a todos, que não as podem dispensar, sob pena de anularem a própria existência sobre a face da terra.
Maria Thereza Cavalheiro
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Augusto dos Anjos

A ÁRVORE DA SERRA

" – As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

– Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs alma nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minha alma!...

– Disse – e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!"
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Florbela Espanca

ÁRVORES DO ALENTEJO

Horas mortas? Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido? e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A ouro e giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
– Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água.
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Jorge Sousa Braga

RAÍZES

Quem me dera ter raízes,
Que me prendessem ao chão.
Que não me deixassem dar
Um passo que fosse em vão.

Que não me deixassem crescer
Silencioso e ereto,
Como um pinheiro de riga,
Uma faia ou um abeto.

Quem me dera ter raízes
Raízes em vez de pés.
Como o lódão, o aloendro,
O ácer e o aloés.

Sentir a copa vergar,
Quando passasse um tufão.
E ficar bem agarrado,
Pelas raízes ao chão.
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Olavo Bilac

VELHAS ÁRVORES

Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas;
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas…

O homem, a fera, e o inseto à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem;

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!
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Oliveira Ribeiro Neto

ÀS ÁRVORES NOVAS

– Árvores pequenas que inda não crescestes,
Que doçura imensa existe em vossas sombras
Fracas e indecisas, sobre a terra quente!

Árvores pequenas, vós lembrais crianças
Esboçando gestos de bondade ingênua
Mas vosso destino como é diferente!

Quando vós crescerdes, dareis sombra e frutos,
E dareis aos homens, no verão candente,
Sonhos de fartura e flores aromais.

Mas os pequeninos não terão mais gestos
De bondade pura, de ternura ingênua...
Quando eles crescerem, serão meus iguais.
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Sophia de Mello Breyner Andresen

ÁRVORES

Árvores negras que falais ao meu ouvido,
Folhas que não dormis, cheias de febre,
Que adeus é este adeus que me despede
E este pedido sem fim que o vento perde
E esta voz que implora, implora sempre
Sem que ninguém lhe tenha respondido?

Fonte:
Sammis Reachers (organizador). Árvore: uma antologia poética. São Gonçalo/RJ, 2018. e-book.

Eduardo Affonso (Direito e Avesso)


O universo não se dividia, então, em luzes e sombras ou entre o Bem e o Mal, mas nos domínios do masculino e do feminino, representados pela máquina de escrever e a máquina de costura.

A primeira comandava o escritório do meu pai; a segunda, o quarto da minha mãe. Uma cercada de livros e silêncio; outra, de retalhos coloridos, música e risos.

Escrever, com os indicadores catando milho nas teclas da Remington, exigia concentração – ali, no âmbito das leis, não éramos bem-vindos. Nosso lugar era no chão, de tesoura da mão, recortando figuras das revistas de moda, aos pés da Singer.

Cada um desses mundos tinha seu vocabulário próprio, seu dialeto. Cerzir e sursis, corpetes e habeas corpus, evasês e evasões – palavras que se aproximavam, sem jamais se tocar.

Junto ao pedal da máquina de costura, imperava aquilo que mais tarde soube chamar-se francês: godê, plissê, cotelê, croqui. Nos raros momentos sob a escrivaninha, prevalecia o que desde sempre se chamou latim: animus, caput, data vênia, de cujus, pari passu, causa mortis, sine die.

Havia uma palpável hierarquia entre a matéria – o pano, a pence, o pesponto – e o espírito. Entre o braçal da carretilha, da agulha e do dedal, e o reino da autoridade intelectual, da retórica, da persuasão.

Essa divisão era ancestral: minha avó regia a roupa no varal, a labuta na cozinha, e meu avô, as conversas no salão, a posse do dicionário, as palavras cruzadas no jornal.

Um desses espaços era mais sentimental e mais lúdico: o do soutache, do ilhós, da passamanaria. Do cós, do viés, da sianinha, da lapela, do vivo, do gavião. Das revistas coloridas (o outro mundo não tinha figuras). Da tesoura que fazia ziguezague – da própria palavra ziguezague.

O outro mundo não oferecia grandes diversões além do perfurador, com o qual se podia fazer confete: não era permitido tocar a caneta-tinteiro, a carimbeira, o mata-borrão.

O mundo do papel manilha era melhor que o do papel almaço. A Burda, mais agradável de folhear que qualquer processo.

O quarto de costura era nosso quintal; o escritório, a sala de visita. Este, o território do não; aquele, o do sim. Um, o dos livros fora do alcance, na estante – o outro, o de sentar no chão, entre cortes de cambraia, retalhos de feltro, amostras de cetim.

Apesar de estar lá a cultura, de lá ficarem as letras, foi no lado de cá que se deu a descoberta de que cada palavra tem sua textura, seu caimento.

Assim o morim, a chita e o riscado, tão distantes da organza, do tafetá, do organdi – não só ao tato, mas também ao ouvido. Assim o linho e a flanela (ele, ríspido; ela, suave), o impecável poliéster e o suscetível algodão.

O mundo do Direito e o do avesso, o das Cortes e o da costura, o das Leis e o das linhas acabaram por se coser num só, este em que se pode chulear as frases, rematar sentenças e nelas ir alinhavando ideias e pregando as palavras como quem prega botão.

(publicado originalmente em 11 de abril de 2018)

Fonte:
https://eduardoaffonso.com/2019/06/23/direito-e-avesso/

O Soneto – Parte 4

Texto de José Roberto Gullino

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Quando se estuda música ou pintura, inicia-se pelos clássicos, para depois, cada um seguir o caminho que melhor vislumbrar. Na poesia também deveria caminhar na mesma sequência, porém, como está atrelada ao aprendizado da língua escrita, as pessoas não se preocupam em estudar suas origens.

Particularmente, com o soneto, não basta absorver suas regras e normas, simplesmente – há inúmeros detalhes que o poeta tem que se ater para não tirar o valor de seu trabalho, além da métrica e da acentuação. É a rima – um dos quesitos primordiais, que deve ser sempre apurada, mas não sofisticada, procurando fazê-la entre verbos, substantivos e adjetivos para não perder seu sabor auditivo e evitar o abuso de verbos no infinitivo, principalmente os da 1ª conjugação, que provocam uma sonoridade cansativa e da mesma maneira não se deve rimar singular com plural, nem cometer o pecado de utilizar rimas iguais, que quebram um pouco a musicalidade. Há poetas que procuram se sofisticar com palavras diferentes – possivelmente para mostrar intelectualidade ou por falta de rimas – isto poderia ser usual no passado quando o vocabulário era mais requintado, já que hoje os bons dicionários de rimas nos livram de tal necessidade, como bem nos alerta Mello Nóbrega em seu livro. Atualmente, o que dá beleza ao poema é a simplicidade de linguagem, propiciando uma fácil assimilação e compreensão, pois o que pesa num poema é seu conteúdo, sua essência, o desenvolver do tema abordado – seu efeito.

Tratando-se de soneto, o maior expoente no assunto, entre nós, foi o poeta Vasco de Castro Lima (1904/2002?) com o livro “O mundo maravilhoso do soneto”, quando penetrou com tanta profundidade em suas reentrâncias, ao longo de mais de 1.000 páginas. Geir Campos também deu uma grande contribuição com o “Pequeno Dicionário de Arte Poética”. Edgard Rezende participou com seus exemplos em “Os mais belos sonetos brasileiros”, que reproduz pequenos dados sobre cada poeta e J. G. de Araújo Jorge completou com a coletânea “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”, em quatro volumes, abrangendo trabalhos de todos os cantos do mundo. São detalhes importantes para os que querem seguir os meandros do soneto e cujos livros já estão desaparecidos (só conseguidos raramente nos sebos) e que, se vivêssemos num país realmente preocupado com a cultura, reeditariam tais obras para satisfação e incentivo dos cultivadores do segmento poético, pois são textos que não saem de moda mas que também não são de vendagem imediata, como é desejo das editoras, porém, bem poderiam ser editados pela Biblioteca Nacional. Outros trabalhos, ainda, deveriam ser revividos como “Tratado de versificação”, de Bilac e Guimarães Passos e “Rima e Poesia” de Mello Nóbrega (embora com conteúdo mais amplo, exemplificando em vários idiomas), além de muitos outros que vão sumindo da lembrança de todos. Hoje não há mais necessidade de se seguir regras nem de um poeta se nortear – “todos são poetas”.

Quanto à metrificação, por ser um assunto mais complexo, trataremos mais adiante com minúcias de detalhes, mas um item importante e que já ressaltei, é o final do último verso – a dita “chave de ouro” – que deve ser observada nos sonetos aqui apresentados, detalhes que os valoriza e enaltece.

Existem trabalhos que, por sua beleza, depois de lidos, nos deixa invejosos – no bom sentido – por não termos tido tal inspiração. Assim é o trabalho de Vasco de Castro Lima, que morreu quase centenário (1905/2002?), referido lá na frente, que trilhou A ESTRADA DO SONHO :

Cada dia em que o sol se abre, risonho,
e desfralda o seu leque de esplendores,
eu saio pela Estrada Azul do Sonho,
pisando espinhos e plantando flores…

E vou contente. Nos meus passos, ponho
a luminosidade dos alvores.
Sigo a Estrada. E é sorrindo que a transponho
eu, o mais sonhador dos sonhadores…

Sim, quero ter, na noite da velhice,
o mesmo coração da meninice –
um ninho de alvoradas luminosas –

para ser, no jardim dos desenganos,
uma alegre roseira de cem anos,
ardendo em sonhos, florescendo em rosas!


Da mesma maneira, outro dos nossos patronos, Décio Duarte Ennes (1926/1982), nos brinda com a beleza de uma CARTA :

Escrevo-te, querida, a última carta,
e nela envio o meu saudoso adeus
com o qual seguirão os dias meus,
que de viver minha alma já esta farta !

Tudo de mim agora já se aparta,
e o próprio Amor – este menino-deus –
já me renega e põe-me entre os ateus,
a mim, cuja existência quis eu dar-ta !

Poucas palavras restam-me, bem poucas,
( talvez, até as julgues tu bem loucas… ) :
Ofereci-te o amor – e o recusaste !

Ofereci-te a vida – e a não quiseste !
Agora eu te devolvo o que me deste :
– Os versos de um poeta que inspiraste !


E Romildes de Meirelles, do Rio de Janeiro – um dos idealizadores da ABRASSO – Academia Brasileira do Soneto, extremamente melancólico, se sentiu SÓ!…

Estou completamente só… O dia
acaba, a tarde morre docemente
e eu estou só em meio a tanta gente,
nesta tarde chuvosa, cinza e fria…

A solidão da tarde me angustia,
deixa-me imerso em um torpor dolente
e eu vejo o tempo ir-se lentamente
de gota em gota, em triste nostalgia.

A chuva aumenta a minha ansiedade,
enchendo-me de mística saudade,
numa tristeza atroz que o olhar me embaça.

E vejo tudo qual se fosse um sonho,
onde o tempo se escoa tão tristonho
na cadência da chuva na vidraça.
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continua...
 
Fonte:
Texto de José Roberto Gullino disponível na Casa Raul de Leoni, http://rauldeleoni.com.br/soneto/

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 7 –

 


A. A. de Assis (A Grande Gincana)


Durante muitos anos Lucilla e eu participamos de uma equipe que promovia encontros de preparação de noivos para o casamento. Um dos momentos mais bonitos era quando o Dr. João Batista Leonardo falava sobre a maravilha que é o nascimento de uma criança.

Todos nós – dizia ele – iniciamos nossa existência disputando uma fantástica gincana. No ápice de um ato de amor, o homem transfere para a mulher cerca de trezentos milhões de espermatozoides, ou seja, trezentos milhões de candidatos à vida, dentre os quais apenas um sobrevive: o que chega em primeiro lugar ao óvulo que o aguarda na tuba uterina. Os demais perdem a chance de existir, a não ser nos raros casos em que nascem gêmeos.

Você, eu, Pelé, a rainha da Inglaterra, aquela moça que ontem o atendeu na loja, todos passamos um dia pela grande gincana. Para que pudéssemos estar aqui agora, trezentos milhões de irmãos nossos foram privados da graça de vir à luz. Fascinante mistério.

Toda vez que penso nisso me dá um arrepio. Um privilegiadíssimo espermatozoide se une a um privilegiadíssimo óvulo e juntos possibilitam a geração de uma nova vida, que por sua vez será uma mistura de genes – metade do pai, metade da mãe.

Mas por que justamente aquele espermatozoide? Por que justamente aquele óvulo?

E por que razão teria sido justo você o campeão da gincana? Decerto você não venceu por acaso, nem por ser o mais formoso, nem por qualquer outro mérito desse tipo. Você foi o eleito porque lhe estava reservado algum papel muito especial.

Cada um de nós é chamado a cumprir determinada missão na história do nosso tempo, no lugar onde existimos. Somos atletas do time de Deus, e ele nos escala para atuar nessa ou naquela posição, confiando-nos para tal os necessários talentos.

Vale repetir: por que nasci? Por que você nasceu? Por que justamente você e eu e não outro daqueles trezentos milhões de irmãos que conosco disputaram a graça da vida? A responsabilidade é muito grande.

Sei lá... Não dá para imaginar como será a prestação de contas ao final de nossa passagem por este planeta. Mas na porta da eternidade, diante de Deus e de nossa consciência, teremos que justificar de algum modo a enorme confiança que em nós foi depositada.

Acredito que os pecadinhos e outras travessuras da gente nem serão contabilizados. Não será por eles que perderemos pontos na carteira. O que vai contar mesmo será o que tivermos feito, ou não, dos talentos postos à nossa disposição quando aqui chegamos.

Cada um de nós entrou na vida equipado para fazer algo de bom pela humanidade: produzir alimentos, construir pontes, alfabetizar crianças, propagar a fé, pilotar veículos, curar doentes, defender as leis, lidar com números, governar, tocar piano, escrever poesia, jogar futebol, costurar, cantar, pintar, fazer rir. Seja lá o que for, penso que pecado realmente grave será não ter feito, e da melhor maneira possível, o que nascemos para fazer.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 19-11-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 6


EU VI UMA ROSA

Eu vi uma rosa

- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua.

Sozinha no mundo.

Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia,
Toda a natureza
Em toda formas e cores
E sons esplendia.

Tudo isso era excesso.
A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.

Sozinha no tempo.
Tão pura e modesta,
Tão perto do chão,
Tão longe da glória
Da mística altura.
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.
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IMPROVISO

Cecília, és libérrima e exata
Como a concha.
Mas a concha é excessiva matéria,
E a matéria mata.

Cecília, és tão forte e tão frágil
Como a onda ao termo da luta.
Mas a onda é água que afoga:
Tu, não, és enxuta.

Cecília, és, como o ar,
Diáfana, diáfana.
Mas o ar tem limites:
Tu, quem te pode limitar?

Definição:
Concha, mas de orelha:
Água, mas de lágrima;
Ar com sentimento.
- Brisa, viração
Da asa de uma abelha
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LETRA PARA UMA VALSA ROMÂNTICA

A tarde agoniza
Ao santo acalanto
Da noturna brisa.
E eu, que também morro,
Morro sem consolo,
Se não vens, Elisa!

Ai nem te humaniza
O pranto que tanto
Nas faces desliza
Do amante que pede
Suplicantemente
Teu amor, Elisa!

Ri, desdenha, pisa!
Meu canto, no entanto,
Mais te diviniza,
Mulher diferente,
Tão indiferente,
Desumana Elisa!
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MADRIGAL MELANCÓLICO

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
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MASCARADA

Você me conhece?
(Frase dos mascarados de antigamente)

Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores...
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.

Se eu falava, um mundo
Irreal se abria
à tua visão!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia...
Era a minha fala
Canto e persuasão...
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.

Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!

Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?

- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição.

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa". 1967.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 29) Tarja com Caveira


O EUFRATES ESTAVA PRA LÁ DE CONTENTE. Havia arranjado um serviço de última hora em São Paulo e não via chegar o dia para se apresentar no escritório da empresa e começar a trabalhar. Procurava uma ocupação há meses e pensava até em desistir e não sair mais da casa materna, em Catingal, a sua cidade natal incrustada no interior bem escondido da Bahia. O novo batente prometia salário mínimo na carteira, vale transporte e refeição, cesta básica, plano de saúde e uma pequena ajuda de custo. Não muita coisa, mas, de imediato, ajudaria a sair da pindaíba na qual estava metido até os cafundós do pescoço.

Fora conversando praticamente todos os dias por telefone com um amigo que fora antes para a capital dos paulistas, o Rochê, que trabalhava na dita empresa havia anos e, ao saber da vaga, indicara seu nome:

— Eufrates, pra quebrar o galho, você deve pegar. Depois aparece coisa melhor...

— ‘Cê sabe’ qual vai ser a minha função?

— Pelo que me passou a Umbelina, alguma coisa ligada à preservação de espécies.

— Quem é Umbelina?

— A secretária linda e maravilhosa do Doutor Bepantol.

— Doutor o quê?

— Bepantol. Marquei a sua entrevista com ele, para segunda-feira, às dez horas em ponto. Mandei dinheiro suficiente na conta da sua mãe, para você comprar a passagem e comer alguma coisa na estrada. Procure chegar um pouco mais cedo. No Tietê você pega um táxi, mostra o endereço para o motorista. É pertinho...  

— Preservação de espécies, você disse?

— É. Pelo menos foi o que me passou a secretária, quando nos esbarramos, muito rápido, no refeitório, na hora do lanche.

— Rochê, estou me sentindo um nadador solitário dando braçadas em águas turbulentas. Ao meu redor, percebo que os peixes estão inquietos...

— Impressão sua. Vai dar tudo certo. Confia. Passa os cinco dedos em você, embarca no primeiro buzão e se manda pra cá.

— Quanto ao mar ou aos peixes...

—... Deixe de filosofar, Eufrates. Aproveita o resto do dia de hoje, faça a barba, corte os cabelos, engraxe os sapatos, ponha a sua melhor roupa e siga em frente. Não me decepcione. Até segunda feira, você tem pela frente, a seu favor, quase cinco dias.

— Certo. Voltando a tal da preservação...

— O que você quer saber exatamente?

— Não tem como me adiantar alguns detalhes?

— Fora de cogitação, cara.

— E por quê?

— Porque eu trabalho num setor e a Umbelina e o doutor Bepantol em outro. Existe um imenso corredor cheio de portas com cartões magnéticos nos separando. Soube da disponibilidade da vaga por mero acaso.

— Rochê, e se você levasse um papinho com a tal da Umbelina?

— Não tenho intimidades para isso, meu amigo. A gente só se vê, de vez em quando, no refeitório, no horário de almoço ou no lanche da tarde. Fora do expediente é quase impossível.

— Bem, se é assim, na segunda-feira estarei marcando presença  no pedaço.

— Não perca a oportunidade. Se abolete num quarenta janelinhas e queima o chão.  No mais, Fé em Deus e pé na tábua.

Na segunda-feira, um pouco antes das seis horas, o Eufrates depois de uma viagem esmagadoramente estafante, apeava no Terminal Tietê. No Terminal Tietê pegou um táxi e se mandou para o endereço onde ficava o seu futuro promissor.

Compenetradamente sentado na recepção que antecedia à sala do doutor Bepantol, cheio de malas e bolsas, o infeliz olhava cheio de curiosidade para as pernas roliças da apetitosa e inimitável Umbelina.

Nas mãos trêmulas trazia (num envelope comprado às pressas) o currículo básico, com uma foto de terno e gravata tirada no ano passado — na verdade, um pequeno histórico da sua profissionalidade feito por Rochê — meio que às carreiras (e enviado para Catingal via WhatsApp), contendo os dados essenciais, experiências profissionais, essas coisas que geralmente as pessoas colocam para encherem linguiça e chamarem a atenção e impressionarem os futuros patrões.

Na prática, as pérolas pinçadas geralmente da imaginação dos candidatos não colam. Os entrevistadores estão carecas de saber que cinquenta por cento das experiências apresentadas são meras balelas, ou seja, um punhado de quesitos elencados onde o candidato, às vezes, não têm a mínima noção ou ideia do que é e para que serve. O caso de Eufrates, não ia muito além desta dura realidade.

Da vasta experiência profissional que apresentava, de verdade mesmo, sabia apenas lavar garfos, facas e colheres e  enxugar pratos e copos em restaurantes de sua querida e pacata Catingal, além de cuidar de pequenos serviços, como desentupir vasos sanitários e lavatórios, trocar lâmpadas queimadas, varrer corredores das casas dos ricos, cuidar de jardins e armazenar sacolas de lixos tóxicos dos hospitais da região em carrocerias nos caminhões de coletas.

No mais, digitação, cursos disso e daquilo, idiomas, redação própria, etc. etc. “neca de pitibiriba”. Eufrates passava quilômetros de distância dessas preciosidades. Não deu outra. Na hora em que ficou frente a frente com a estrepitosidade da Umbelina e pior, com o chefe sisudo e de pouca conversa dela, o doutor Bepantol, o cenário se fez mais infeliz e desanimativo. Após uma série de testes psicológicos, preenchimentos de fichas, prova disto e daquilo, sem falar nos exames médicos, os pré-adicionais exigidos, o cidadão foi admitido.

A função, enfim descoberta: auxiliar de serviços gerais: abreviando a história do Eufrates. Cuidar de um bando de animais sarnentos,  abandonados e recolhidos das ruas pelas carrocinhas da prefeitura. A empresa onde o Rochê trabalhava dispunha de um imenso galpão na Freguesia do Ó  e se dedicava, entre outras coisas, a este seguimento de cunho social, objetivando tirar das ruas cachorros e gatos famintos e doentes, deixados, na maioria das vezes por seus donos, aos reveses da má sorte e as intempéries do destino.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza, pela Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro.
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis)


Análise pelo Me. Fernando Marinho


“Memórias póstumas de Brás Cubas”, publicado em 1881, é uma das principais obras do escritor Machado de Assis. A publicação desse romance é considerada o marco inicial do Realismo no Brasil,  e seu autor, por consequência, é reconhecido como o pai de tal movimento em terras brasileiras.

CARACTERÍSTICAS DE MACHADO DE ASSIS

O autor criticou vários valores burgueses por meio de ironias e metalinguagens. Precedendo não só o próprio realismo, instaurou o realismo psicológico, claramente visto em seus romances por fazer diálogos diretos com o leitor e também por conta de pensamentos pontuais que surgem ao longo da narrativa como uma reflexão sobre os acontecimentos que se passam no romance, similar à quebra da quarta parede no teatro, quando o ator cria um diálogo direto com o espectador.

Machado tratava com frequência sobre a ascensão social e a manutenção das aparências sociais por meio de críticas à burguesia, dando luz ao realismo brasileiro. Suas obras, recheadas de ironias, abordam o que o autor observava na sociedade da época. O Rio de Janeiro do Brasil passava por uma transição da falta de infraestrutura, ganhando planejamento baseado no urbanismo de Paris, na França: sofisticação para satisfazer a proeminente parcela burguesa da população da época. Estima-se que de 200 mil cidadãos cariocas, 100 mil eram escravos e, desse total, apenas 20% eram letrados, configurando uma população em que 80% eram analfabetos.

Sua carreira pode ser dividida em duas fases, sendo a primeira caracteristicamente mais romântica, predominando obras como seu primeiro romance, ‘Ressurreição’; sua primeira peça, ‘Queda que as mulheres têm pelos tolos’; e o livro de poesias ‘Crisálidas’. A fase romântica perdurou entre 1864 e meados de 1878.

Sua segunda fase teve início com a publicação do livro ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’, livro escrito logo após ser internado devido ao seu quadro de epilepsia, que o forçava a tomar remédios fortes, que lhe desgastavam a saúde. Ainda internado, chegou a enviar alguns capítulos do romance à sua esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais. Como um marco entre uma fase e outra, percebe-se que, nessa nova fase, Machado apresenta fortes traços de pessimismo e ironia, que se tornam grandes características da obra do autor, acompanhando-o até seus últimos dias.

RESUMO DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

Trata-se de uma narrativa feita em primeira pessoa, com o inusitado de o narrador já ter morrido quando começou a escrever;

Narra-se, de maneira breve, a infância do protagonista;

São contados os diversos amores de Brás Cubas, protagonista da história;

Descreve-se a vida adulta de Cubas, suas diversas tentativas de trabalho e de invenção (tal qual o emplasto);

Por fim, o narrador descreve sua vida como um conjunto de negativas que acabam com um único saldo positivo: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

CONTEXTO

O contexto histórico que dialoga com o romance Memórias póstumas de Brás Cubas é o de um Brasil construindo sua urbanidade, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, capital nacional no período. De modo geral, a obra de Machado de Assis retrata os tipos e cenas comuns dessa sociedade carioca.

 A libertação dos escravos , em 1888, e seus efeitos na vida urbana, assim como a reestruturação política brasileira a partir da Proclamação da República, em 1889, são alguns dos fatos históricos que permeiam o livro machadiano.

Veja, a seguir, um trecho do romance em que o narrador retrata sua relação com os escravos na infância:

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô!” — ao que eu retorquia: — “Cala a boca, besta!”

ANÁLISE DA OBRA


O romance Memórias póstumas de Brás Cubas é uma obra complexa, e os diversos detalhes presentes no seu enredo só podem ser apreendidos a partir da leitura, na íntegra, do livro de Machado de Assis. Não obstante, a seguir descrevemos alguns dos pontos fundamentais para a compreensão da narrativa.

NARRADOR: DEFUNTO AUTOR

O romance machadiano é narrado em primeira pessoa, possuindo, portanto, um narrador em primeira pessoa e, nessa estruturação, há duas questões fundamentais:

Primeiramente, essa escolha afasta a obra das narrativas realistas europeias – ali se usava o narrador onisciente para transferir à obra maior grau de objetividade;

Em segundo lugar, para além do uso de um personagem narrando sua vida a partir de uma visão particular – e subjetiva, portanto –, Brás Cubas, antes de começar a contar sua história, morre. Nesse sentido, a personagem intitula-se não um autor defunto, mas sim um defunto autor – haja vista que a morte ocorre antes da escrita de suas memórias póstumas.

INFÂNCIA

A infância de Brás Cubas é contada brevemente nos primeiros capítulos do romance. Ali, percebemos a representação de uma infância não idealizada e, em muitos casos, até cruel – conforme se pode ver na descrição da relação entre o narrador e um escravo, transcrita anteriormente.

Feito dessa forma, o retrato dos anos de criança afasta o romance de Machado de Assis do Romantismo, movimento em que a mocidade é vista como ideal e motivo de saudade.

AMORES

O amor é outro elemento que afasta o romance Memórias póstumas de Brás Cubas da estética romântica  – movimento que foi sucedido pelo Realismo.

Para os românticos, tais quais José de Alencar  e Álvares de Azevedo , o sentimento amoroso era representado como maior meta da vida e, em muitos casos, inatingível. Além disso, a figura da amada era idealizada e única.

No romance de Machado de Assis, entretanto, não há idealização do amor ou da mulher. De fato, Brás Cubas tem uma grande paixão na vida, a personagem Virgília. Entretanto, ela nem é única e tampouco completamente correspondida e eterna. Outros amores do protagonista são Marcela, Eugênia e Nhã-Loló.      

Trecho do romance em que Brás Cubas descreve seu maior amor, Virgília:

Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois?... A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que ia lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, — devoção, ou talvez medo; creio que medo.

EMPLASTO BRÁS CUBAS

Já no final da vida, Brás Cubas assume para si a responsabilidade de criar um medicamento capaz de curar todas as doenças do mundo. Tal projeto, obviamente, não dá certo e torna-se mais uma das frustrações do narrador.

Leia, a seguir, o momento em que o narrador conta da ideia do remédio, intitulado “Emplasto Brás Cubas”:

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.

Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.


O CAPÍTULO DAS NEGATIVAS

O último capítulo do romance tornou-se célebre por resumir a ironia e o pessimismo típicos da escrita de Machado de Assis. Nele, Brás Cubas faz uma espécie da ponderação acerca da própria vida, que, segundo ele, pode ser resumida como uma sucessão de negativas. Não obstante, um saldo positivo acaba restando para o narrador, conforme se lê a seguir:

    Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

PERSONAGENS

O romance Memórias póstumas de Brás Cubas é longo – conta-se toda a vida e morte do protagonista. Por isso, não é curta a lista de personagens presentes na obra. Não obstante, alguns deles são de fundamental importância e vale a lembrança:

Brás Cubas, protagonista da história;

Virgília, maior paixão de Brás Cubas;

Lobo Neves, marido de Virgília e político;

Marcela, prostituta e primeiro amor de Brás Cubas;

Eugênia, segundo amor do narrador;

Nhã-Loló, que se casaria com Brás Cubas, mas falece vitimada pela febre amarela;

Quincas Borba, amigo de infância de Brás Cubas. Esse específico personagem teve seu próprio romance também publicado por Machado de Assis.

Fonte:
MARINHO, Fernando. "Memórias póstumas de Brás Cubas". Disponível em Brasil Escola:  Acesso em 07 de dezembro de 2020.

domingo, 6 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 6 –

 

Otto Lara Resende (A Chave do Mistério)


Anos atrás andei com a mania de estudar o fenômeno da coincidência. O Carlos Lacerda também. Tanto que até traduziu, com Maria Thereza Correia de Mello, “As razões da coincidência”, de Arthur Koestler (desculpem, mas sou obrigado a abrir este parêntese. No momento em que escrevi estas primeiras linhas, desabou da minha estante um quadro e na queda arrastou o quê? O livro do Koestler). Ninguém é, porém, mais obcecado com o tema do que o Luís Edgar de Andrade.

Obcecado e entendido. A partir daí, as coincidências com ele se sucedem. Ele documenta e põe tudo no computador. Outro dia, estava lendo a história de um trem que caiu na baía de Newark e, no dia seguinte, deu na loteria de Nova York o número do último vagão. Neste exato instante, o Luís Edgar viu na televisão uma locomotiva que bateu num ônibus, no Rio. Anotou o número da locomotiva, que no dia seguinte saiu na foto do acidente. E bem visível: 3384.

Vejam a centena que deu na loteria federal: 384. O Luís Edgar não jogou no bicho, porque não sabe. Nem parece brasileiro. À tarde, na extração da Paratodos, deu o milhar 3384. Qual a relação entre desastre ferroviário e sorteio de loteria? A pergunta do Luís Edgar antigamente me tiraria o sono. O Jung estudou o mistério da coincidência a partir da sincronicidade. Matemáticos mergulham na análise combinatória e na serialidade. Filósofos especulam. A literatura é farta. O Luís Edgar está agora lendo os alemães.

Como muita gente, posso contar coincidências que aconteceram comigo. Andei com essa ideia fixa e passei à parapsicologia. Quase fui parar numa clínica de repouso. Nada como um eufemismo. Até que um dia, aliás uma noite, descobri tudo. Parti da própria palavra coincidência, que quer dizer encontro de duas ou mais incidências. Incidere no latim é cair em ou sobre, acontecer, sobrevir.

Eis a chave do enigma: tudo é coincidência, desde a criação do mundo, qualquer que seja a sua teoria ou crença. A vida é isto: incidências simultâneas que obedecem a uma ordem. Também a morte. Chame essa ordem de primeiro motor, ou providência. Ou Deus. Já não há mistério nem enigma. O Brasil é uma coincidência. Um dia explico. Mas você chegou até aqui por quê? Eu escrevi e você leu ‒ que bruta coincidência!

Fonte:
Folha de São Paulo. 28 julho 1991.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 7

. . . . . . . . . . .

além alma
(uma grama depois)


Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?
****************************************

arte do chá

ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo

ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo
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desencontrários

Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.
****************************************

o par que me parece

Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
aquela língua sem fim
feita de ais e de aquis.
Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
alguma coisa de hitita,
praia do mar de Java.
Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
Gritos eram os únicos.
O resto ia pro lixo.
Dois leos em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.
****************************************

plena pausa

Lugar onde se faz
o que já foi feito,
branco da página,
soma de todos os textos,
foi-se o tempo
quando, escrevendo,
era preciso
uma folha isenta.
Nenhuma página
jamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.
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signo ascendente

Nem todo espelho
reflita este hieroglifo.
Nem todo olho
decifre esse ideograma.
Se tudo existe
para acabar num livro,
se tudo enigma
a alma de quem ama!

Fonte:
Paulo Leminski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.
Livro enviado pelo autor.

Ivan Lessa (Cães e camelôs)


O sujeito vai andando pela avenida às três horas da tarde sem um só amigo no mundo mas com duas notas de cinco mil na carteira e várias promissórias na praça. Vai a caminho do Cineac fazer sua hora de trinta minutos com torpezas de Chicago e nus ousados. Seu humor não é grande coisa: acaba de insultar uma senhora que tentava impingir-lhe um bilhete de loteria. Faz calor e ele se sente mal dentro do terno de brim. Se pudesse daria um soco em nossa cara, não podendo passa o lenço pelo rosto como se o quisesse arrancar fora torcer o suor e botar para secar. Vai pela avenida fraco de vida. E vê, na esquina, o camelô. Para, escuta e sossega. Não é o espetáculo que o acalmou, mas sim, o desafio. Um camelô, para ele, é um teste, alguém com quem pode pôr à prova sua argúcia. Instantaneamente seco e bem passado, rosto esperto de quem sabe alguma coisa que todos desconhecem, fica num canto mais exposto à espera que a atenção do vendedor caia sobre ele. E se retesa em negação: é o homem que não compra, que não cai no conto, que não é bobo: nele não passam a perna. Sorri de suas alturas, nota com superioridade que o camelô tem um certo jeito para a coisa, olha com desdém os mais crentes na assistência, vai dar de cara com o “esparro” a apalpar e aprovar o descascador de batata, o cola-tudo, o limpador de metais, o quebra-cabeças. Olha em torno, certificando-se que o “rapa” não está por perto (se estivesse seria o primeiro a dar o aviso, é um homem com fair-play). Com a terceira venda retoma seu caminho com a moral um pouco mais alta. Mais uma vez ele ganhou. Não vai na conversa de ninguém. Ele é fogo, ele é cem por cento.
*

Com respeito à arquitetura do Leme, uma coisa me ficou clara: os cachorros preferem as esquinas. Nunca vi uma esquina com tanto cachorro. Hoje de manhã contei seis. Seis cachorros quietos, uns deitados, outros com aquela cara estúpida de olhos fechados para o sol e a seis segundos de um bocejo. Deve ser a hora: O sol bate ali, eles o procuram, acham e deitam. São uns cachorros gordos de dono de padaria e açougue, não aborrecem, não dão atenção a assobios, nem correm atrás de carro e criança. O pelo desses cachorros oferece brilho singular, deve ser a maresia e a refeição na hora. Mas estão quietos demais para cachorros. Falta alguma coisa. Não dão impressão de liberdade ou irresponsabilidade. Há gravidade nos espaços que deixam entre um e outro. E não se olham, não se farejam, não se estranham. Estão ali como também poderiam não o estar. Tanto faz ser seis ou quatro, ou dois. Estão unidos por um movimento secreto que faz em um todo, uma coisa só. Cães improváveis: súcia, malta, bando. Um coletivo é isso: todos feitos um só. Num homem, está certo, num cachorro, não. Deve ser porque é de manhã. Vai ver de tarde, quando estou pela cidade, eles pulam para cima e para baixo, chateando os outros, latindo para os aviões, fazendo suas cachorradas. E quem sabe como me veem? Quem sabe como nos veem a todos, estes seis cachorros? Parados, sem graça, cheios de movimentos previsíveis, andando e mudando de cara, todos à uma distância respeitosa, uns dos outros, com medo, uns dos outros ‒ e por isso ‒ a se meter na vida sossegada dos cães na esquina.  

Fonte:
Diário Carioca. RJ. Coluna Rosa-dos-ventos. 4 dez 1965.

O Soneto – Parte 3


Em 2000, no Rio de Janeiro, um grupo de reconhecidos poetas se reuniu para fundar uma academia exclusivamente dedicada ao soneto e ali foi criada a Academia Brasileira do Soneto – a ABRASSO. Uma ideia, lapidar que tinha tudo para dar certo, organizada, entre outros, pelo falecido poeta Dario de Sá, com a finalidade de preservar o soneto em sua integridade física, só admitindo como válidos os heroicos e alexandrinos. Após sua implantação, fui convidado e a ela me juntei.

Quando se fala em soneto, a referência é sempre ao heroico e ao alexandrino, mas na minha opinião, mesmo com toda rigidez de concepção, não acho que devamos chegar a tais extremos, pois acredito ser preferível incluir-lhes os estilos desde o sonetilho até o dodecassílabo (diferente do alexandrino) – obviamente, respeitando suas regras básicas quanto à métrica, rima e acentuação sem agredi-lo – do que permitir que seja mutilado entre versos brancos e pés quebrados, como sempre vemos tal heresia ser cometida. Assim acredito e defendo serem incluídos, também, os seguintes estilos, embora raramente usados :

05 sílabas – a redondilha menor, comumente chamado de sonetilho;

06 sílabas – o heroico quebrado, também sonetilho;

07 sílabas – a redondilha maior , ainda sonetilho;

08 sílabas – o sáfico de pé quebrado;

09 sílabas – o gregoriano ou jâmbico;

10 sílabas – o heróico, sáfico ou moinheira;

11 sílabas – o hendecassílabo – soneto de o arte maior

12 sílabas – o alexandrino com dois hemistíquios e

12 sílabas – o dodecassílabo, diferente na acentuação.

Os sonetilhos (termo ignorado por Geir Campos) são denominados de “arte menor” e a partir do sáfico até o dodecassílabo, são os de “arte maior”. Tratando-se de soneto, não é permitido a existência de versos acima de 12 sílabas métricas. E as acentuações a serem respeitadas, para os diversos tipos, são :

05 sílabas – nas 2ª e 5ª sílabas

06 sílabas – nas 4ª e 6ª Sílabas

07 sílabas – nas 2ª, 3ª ou 4ª.e na 7ª sílabas

08 sílabas – nas 4ª e 8ª sílabas

09 sílabas – 3ª, 6ª e 9ª sílabas

10 silabas – para o heroico, 6ª e 10ª sílabas

para o sáfico – 4ª, 8ª e 10ª sílabas

para o moinheira – 5ª e 10ª sílabas

11 sílabas – 3ª, 5ª, 8ª e 10ª.sílabas

12 sílabas – alexandrino – 6ª e 12ª sílabas, separando os hemistíquios, porém, Roger Feraudy ensinava que deveriam ser nas 3ª, 6ª, 9ª e 12ª sílabas, para melhor cadência, mas marcação não obrigatória – só questão de gosto.

12 sílabas – dodecassílabo – entre as várias combinações, a mais usada é acentuação nas 4ª, 8ª e 12ª sílabas.

Reafirmo aqui que tais variações de tipos são dentro da minha concepção particular, sem querer extrapolar as regras do soneto clássico, mas uma conclusão a que cheguei para minimizar as constantes agressões ao estilo e que acredito, com lógica, embora os mais utilizados sejam, sem sombra de dúvida, o heroico e o alexandrino. No máximo, o que alguns poetas se permitem é a mistura, num mesmo soneto, de versos heroicos e sáficos, em termos de acentuação.

HEMÍSTÍQUIOS:
são as duas partes de seis sílabas que compõem o verso alexandrino, observando-se que o verso do primeiro só poderá terminar com palavra oxítona ou paroxítona. Se oxítona, o segundo hemistíquio pode começar com vogal ou consoante. Se paroxítona, a palavra sempre terá que terminar em vogal e a seguinte iniciar com vogal para permitir a elisão.

Portanto, esse é o complexo mundo do soneto, talvez difícil para as novas gerações, mas não impossível de entendê-lo e absorvê-lo – como já constatei no trabalho de alguns jovens. Como podem deduzir na comparação com os versos livres, é um estilo totalmente diferente e especial, tanto que o poeta, pintor e trovador Noel Bergamini, assim se expressou :

“O soneto, queiram ou não, é indiscutivelmente, a base da poesia, a sua estrutura máxima, o seu alicerce ponderável e indestrutível, por ser imortal como as conquistas imperecíveis da ciência; quanto às leis imutáveis da Natureza; quanto o brilho solene dos astros e a beleza magnética das estrelas! Ninguém destrói as glórias do passado; os vultos que vivem na lembrança dos que prezam a cultura, exortam a sabedoria e sublimam a inteligência. Todos eles serviram, servem e servirão de exemplo a todas as gerações como fonte permanente de inspiração!”

E para exemplificar o que disse acima sobre o soneto de 11 sílabas, transcrevo um do poeta Roger Feraudy (1923/2006), escrito em ´95, para mostrar sua sonoridade nos TEMPOS MODERNOS ( ao genial Charles Chaplin ) :

No meu desalento procuro entender,
se passo na vida, ou a vida é que passa !
Eu devo estar velho, ou cansei de viver,
e agora não sei realmente o que faça !

E vejo confuso o probo hoje ser
aquele que honesto serviu de chalaça,
por ser virtuoso cumprir seu dever.
Só vence quem usa da fraude, a trapaça !

Na música o som meus ouvidos tortura,
no verso, na prosa e até na pintura,
se exalta o vulgar com incenso e louvor.

Nos tempos modernos – é regra geral,
porque sem critério, no mundo atual,
mudou-se o conceito, inverteu-se o valor !


E Atos Fernandes, lá da cidade de Itaperuna/RJ, falecido em ´79 nos mostrou a súplica dos PEDINTES :

O pobre pede pão. O nobre pede o trono.
O santo pede o altar, o crente pede a missa,
e quem das leis sociais sofre amargo abandono
ergue as mãos para o Céu, pedindo por justiça.

Quem ama pede amor. O insone pede o sono.
O mártir pede a cruz, e pede o herói a liça.
Pede o inverno o verão; a primavera o outono,
e o sábio pede a luz da verdade castiça!

Quem luta pede a paz. O enfermo pede a cura.
O verme pede a terra e a águia pede a altura,
e quem sofre a opressão pede a mão que o redima.

E o Poeta, também, seguindo a mesma norma,
é um mendigo a pedir a pureza da Forma,
a beleza da Ideia e a riqueza da Rima!

________________________
continua…

Fonte:
Texto de José Roberto Gullino disponível na Casa Raul de Leoni (http://rauldeleoni.com.br/soneto/
)

sábado, 5 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 5 –

 

Contos e Lendas do Mundo (A Dor Alheia)

Ao voltar de um exaustivo dia de caça, trazendo segura nos dentes uma pequena corça, a onça encontrou sua toca vazia.

Imaginando que os filhotes estivessem nas imediações, pôs-se a procurá-los com diligência. Olhou e examinou cada canto, sem encontrá-los. Preocupada com a demora que se tornava séria, desesperou-se e tomada de pânico esgoelou-se em urros que encheram de espanto toda a floresta.

Uma anta decidiu indagar a respeito da ocorrência. Chegando junto da toca, viu a onça desatinada e então, jeitosamente, procurou saber dela sobre o que estava acontecendo.

- Devoraram-me os filhotes! - gemeu a onça - infames caçadores cometeram friamente o maior de todos os crimes: mataram os meus filhos.

A anta conciliadora, porém franca, não deixou que a oportunidade se passasse sem que ela dissesse à onça certas verdades que embora dolorosas, careciam ser ouvidas por ela naquele momento. Então falou-lhe:

- Mas senhora onça, se analisar bem o fato, há de convir que suas acusações não procedem. Perdoe-me a franqueza, nessa hora de desespero. Respeito a sua dor, mas devo dizer-lhe que fizeram uma vez aquilo que a senhora pratica todos os dias. Não pode negar que vive sempre a comer os filhotes dos outros, não é verdade? Ainda agora acabou de abater uma corçazinha.

Tomada de indignação, a onça arregalou os olhos como que espantada pela coragem e atrevimento da anta, falando com um ódio mortal:

- Oh, estúpida criatura! É isso que você tem a dizer para consolar o meu coração ferido pela dor? Com que direito você se atreve em comparar os meus filhos com os filhotes dos outros? E como pode comparar o meu sofrimento e desolação ao dos demais? É preciso considerar primeiro a minha posição, em relação à dos outros animais, para depois pesar a situação.

Foi nesse momento que um velho macaco, que bem do alto do seu galho assistia ao diálogo, falou como quem está revestido de autoridade:

- Amiga onça, é sempre assim: A dor alheia só atinge aos altruístas, mas jamais ao egoísta.

Fonte:
Universo das Fábulas

Prof. Garcia (Pantuns) IV


PANTUN DA VIDA CIRCENSE

Trova tema:
No picadeiro da vida
às vezes somos palhaços:
com atitude fingida
maquiamos os fracassos.

(Hélio Pedro – RN)


Às vezes somos palhaços:
E nesse circo sem pano,
maquiamos os fracassos
ante a incerteza e o engano.

E nesse circo sem pano,
com tanta banalidade,
ante a incerteza e o engano,
as marcas vis da maldade.

Cora tanta banalidade,
vê-se em qualquer direção,
as marcas vis da maldade
moldando as marcas no chão.

Vê-se em qualquer direção,
a maldade desmedida,
moldando as marcas no chão
no picadeiro da vida.
****************************************

PANTUN DO FALSO ARREMEDO

Trova tema:
Nenhum ourives se atreve
a imitar - nem de arremedo
as filigranas de neve
dos galhos nus do arvoredo!

(Madalena Ferreira – RJ)


A imitar - nem de arremedo...
O que Deus fez e pintou
dos galhos nus do arvoredo
artista nenhum tentou.

O que Deus fez e pintou
com tinta de amor infindo,
artista nenhum tentou
pintar um quadro tão lindo.

Com tinta de amor infindo,
mas sem usar qualquer tinta,
pintar um quadro tão lindo
ninguém tentou ninguém pinta.

Mas sem usar qualquer tinta,
pintar galhos cor de neve,
ninguém tentou ninguém pinta,
nenhum ourives se atreve.
****************************************

PANTUN DO FRATERNO ABRAÇO

Trova tema:
O abraço meigo e fraterno,
refletindo nitidez,
no retrato fez eterno
tudo o que o tempo desfez.

(Hélio Alexandre – RN)


Refletindo nitidez,
guardo ainda por lembrança,
tudo o que o tempo desfez
nesta foto de criança,

Guardo ainda por lembrança,
a paz dos nossos perfis,
nesta foto de criança
que tanto nos fez feliz.

A paz dos nossos perfis,
está na fotografia
que tanto nos fez feliz
nas marcas de cada dia.

Está na fotografia,
a expressão do amor eterno,
nas marcas de cada dia,
o abraço meigo e fraterno,
****************************************

PANTUN DO TEU CORPO AUSENTE

Trova tema:
Levada por fantasia
de um desejo inconsciente,
eu beijo na cama fria
as formas de um corpo ausente!

(Rita Mourão – SP)


De um desejo inconsciente,
surge na luz da paixão
as formas de um corpo ausente,
presente nessa ilusão.

Surge na luz da paixão,
Tudo que o sonho permite
presente nessa ilusão,
nesse sonho sem limite.

Tudo que o sonho permite
Eu tento manter a calma,
nesse sonho sem limite
nos limites de minha alma.

Eu tento manter a calma,
na loucura que me guia,
nos limites de minha alma
levada por fantasia.
****************************************

PANTUN DO VELHO EGOÍSMO

Trova tema:
Por egoísmo e ganância
a Terra está dividida.
Tanto poder e arrogância,
ante a pobreza sofrida.

(Edy Soares – ES)


A terra está dividida.
Fome, morte, sonhos vãos;
ante a pobreza sofrida
poderes lavando as mãos,

Fome, morte, sonhos vãos;
miséria batendo às portas,
poderes lavando as mãos
da exclusão das almas mortas.

Miséria batendo às portas,
lamentando a crueldade,
da exclusão das almas mortas
em meio a tanta maldade.

Lamentando a crueldade
é triste essa mendicância
em meio a tanta maldade,
por egoísmo e ganância.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Arthur de Azevedo (Sova Bem Merecida)


Numa das ruas de uma das estações dos subúrbios vivia, não há muito tempo, numa casa térrea, edificada no meio de um terreno bem plantado, uma família composta de uma senhora quarentona e três rapazes, seus filhos.

A senhora, que se chamava D. Eulália, e era conhecida no bairro pela sua extrema bondade, passava por viúva, mas a verdade é que tinha marido vivo, o Araújo, o maior desordenado que Deus deitou ao mundo.

Durante os cinco primeiros anos de casado, o Araújo, apesar de jogador, foi um marido como outro qualquer - cumpria satisfatoriamente as obrigações conjugais e não dava à esposa motivo para grandes queixas, mas depois do quinto ano, quando já lhe haviam nascido dois rapazes e estava para nascer o terceiro, enrabichou-se por uma atriz de terceira ordem, desapareceu de casa de família e nunca mais lá voltou.

Por mais estranho que pareça ao leitor habituado à tranquilidade e boa harmonia do lar, o caso é que se passaram vinte anos sem que esse extraordinário marido tornasse a ver mulher e filhos.

Os rapazes cresceram e se empregaram sem conhecer o pai senão de nome. Felizmente eram bons filhos: moravam todos três com D. Eulália, a quem nada faltava.

Releva dizer que o marido - justiça se lhe faça! - desde que desapareceu de casa mandava à família todos os meses dinheiro pelo correio, estivesse onde estivesse, e lá uma vez por outra, quando o jogo lhe proporcionava uma boa boiada, lá ia mais uma lambuja.

Jogador de profissão, o Araújo percorria o Brasil inteiro, de norte a sul, bancando ou apontando, perdendo aqui para ganhar acolá, ora, muito por cima, ora muito por baixo, mas sempre ativo, alegre e sadio, como se lhe não doesse nada na consciência.

De vez em quando aparecia com uma nova mulher ao seu lado. A atriz pela qual desprezara a esposa tinha sido cem vezes substituída.

Entretanto, aconteceu-lhe o mesmo que o Aretino: apaixonou-se deveras pela ultima das suas amantes, e teve um sério desgosto quando, entrando em casa uma noite, não a encontrou, mas uma carta em que ela lhe comunicava que, estando farta da companhia de um jogador tresnoitado, tinha encontrado outro amante menos anormal.

O Araújo, que, aliás, tinha ganho alguns contos de réis aquela noite, julgou enlouquecer, e teve um acesso de lágrimas. Todavia, passada a crise, serenou, e veio-lhe à lembrança, aguilhando-o pela primeira vez como um remorso, a família que abandonara havia vinte anos.

Não sei que resolução se passou então na alma daquele homem, o que sei é que ele resolveu ir ter, mesmo àquela hora, com a sua infeliz mulher e pedir-lhe perdão de todos os seus erros.

Saiu de casa, tomou um tilburi, que o fez chegar à estação da central a tempo de apanhar o último trem dos subúrbios.

Na estação ficou embaraçado por não saber onde era a casa. Encontrou, porém, um polícia que o orientou, depois de interrogá-lo com desconfiança.

- Eu sou o marido de D. Eulália.

- D. Eulália é viúva.

- Todos assim pensam. É casada comigo, mas não nos vemos há vinte anos!

- O senhor chegou de viagem?

- Cheguei. Cheguei de uma longa viagem.

- Então desculpe, mas como andam muitos ladrões aqui no bairro... Da própria casa de D. Eulália roubaram uma noite destas não sei quantas galinhas.

E o rondante ensinou ao Araújo onde era a casa de D. Eulália.

O marido entrou com precaução, mas quando ia no meio do terreno, entre o portão e a casa, saltaram-lhe lá de dentro os três rapazes, armados de cacetes, e deram-lhe uma sova tremenda.

- Eu sou o marido de D. Eulália - gritava o desgraçado.

Felizmente D. Eulália, reconhecendo-lhe a voz, gritou aos rapazes:

- Basta, meninos, basta! É vosso pai!.

Cessou a pancadaria, mas o Araújo estava prostrado no chão, descadeirado, sem se poder levantar.

Os rapazes, pedindo-lhe muitas desculpas de o haverem tomado por ladrão, carregaram-no a pulso para dentro de casa, onde o deitaram na cama de um deles.

Ora, aí está como o Araújo voltou à casa depois de uma ausência de vinte anos.

É verdade que desta vez ficou.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 4 –

 


Rachel de Queiroz (Amor de acidentado)


ACONTECEU ultimamente um caso que tem chamado atenção. Estava um moço noivo, de casamento marcado para daí a poucos dias, quando de repente, ao atravessar aquela avenida de mau agouro a que por isso mesmo teimam em chamar Getúlio Vargas, caiu-lhe em cima um automóvel desabrido, desses que não procuram saber se o cristão à sua frente é noivo ou é nada – querem é passante jeitoso para derrubar, como de fato este o derrubou. O mundo não é assim mesmo, incerto e enganoso? De nada vale um homem alimentar no seu coração qualquer espécie de sonhos preciosos ou de esperanças; nem vale o alto juízo que ele faça de si ou sequer o juízo que dele façam os outros; o destino está aí na sua frente, de boca aberta e dentes afiados, na figura de um automóvel, de um micróbio, de uma onda de mar, e tanto vai para o buraco o sonhador rico de promessas como o pobre desesperado para o qual a morte já chegou tarde.

Felizmente o nosso moço não chegou a ir para o buraco. Andou perto nas primeiras horas, rebentou muito osso e deitou muito sangue – mas foi socorrido a tempo, e parece que com bastante gaze, gesso e paciência acaba ficando tão perfeito ou quase tão perfeito quanto antes do desastre.

E agora chegando à parte que chama atenção e que todo mundo acha bonito: segundo foi dito antes, estava a vítima de casamento justo, juiz apalavrado, padre tratado. A noiva de vestido feito, os doces no forno e o champanha na geladeira. Em vista disso, achou o noivo que, acidentado ou não acidentado, não seria um simples capricho do chofer que iria inutilizar tantos preparativos. E pois não desdisse nada, não adiou os convites: apenas transferiu a cerimônia para a enfermaria do hospital, e em torno do seu leito de dores se procedeu ao enlace, completo e sem atraso de um minuto.

Bem fazem os que se admiram e acham bonito, porque nestes tempos cínicos e desesperados um caso assim é um sinal tangível de que o amor ainda existe no mundo na sua forma mais pura, e passados nove séculos sobre os túmulos de Abelardo e Heloísa, ainda os encontramos reencarnados na mesma fortaleza de paixão e na mesma integridade de sentimento.

Porque diante daquele homem incógnito, enfaixado, todo revestido de gesso, a moça não hesitou em encontrar o seu amado, o seu escolhido, o único que lhe serve e lhe apela à alma no meio dos bilhões de seres do planeta. Afinal, com isso se prova que o que ela amava não era o simples corpo que o automóvel massacrou – não eram aquelas pernas agora entaladas, aquelas costelas em colete de gesso, o rosto, os lábios, os olhos que a gaze está encobrindo, e que ela não pode jurar que sairão os mesmos da aventura. De tudo que havia dentro ou fora daquele corpo e desse corpo fazendo parte, é evidente que ela amava especialmente o escondido coração dentro do peito, ou a flama imortal e imponderável que sob o nome de alma costumamos dizer que mora dentro do coração.

Ele, por seu lado, ninguém pode dizer que amasse menos. Porque um indivíduo que sofreu tal subversão corpórea, mesmo que retorne à vida sem aparente alteração no seu aspecto físico, não é possível que ressurja para a vida com as mesmas disposições de espírito que costumava usar antes. O lógico é que o rapaz atrevido que caiu debaixo das quatro rodas assassinas saia do hospital um senhor morigerado, que olha duas vezes para cada esquina antes de a atravessar. E no entanto esse homem novo está pronto a endossar os compromissos do homem antigo, e não hesita e corre para o que deseja, sem faixa ou tala que o prenda – por quê? Só porque ama, porque acima da dor, e do receio físico e da preocupação com o conserto que lhe estão fazendo os doutores no triste corpo, estão as necessidades, as exigências da alma.

Vivemos em terra de muitos acidentes, e pois o problema do amor com acidentado deve estar entre nós constantemente se propondo; por isso damos publicidade ao caso do casamento no hospital e o apresentamos à meditação dos interessados. Todos nós poderemos, mais cedo ou mais tarde, estar na situação do moço ou da moça da história: e se a meditação não nos ajudar a fugir da sanha matadora do automóvel desconhecido, pelo menos nos ensinará a não perder as esperanças, e até – quem sabe – no meio da desilusão e da tristeza, de repente ver brotar um milagre.

Fonte:
O Cruzeiro. RJ. 23 abril 1949.

Francisco Pessoa (Décimas do Pessoa) II


ADELINA MESQUITA


Ser avó é ser mãe indo e voltando
É chorar duas vezes de alegria
Ser chamada Maria de Maria
Não querer trocar fralda e já trocando
Caducar sem dizer: - tô caducando
Abafar qualquer choro com carícia
Afirmar "dormir pouco, uma delícia"
É mentira de vó, é muito apego
Eu queria ver uma, sem chamego,
Se tivesse uma neta qual ALÍCIA!
****************************************

AMOR PROIBIDO

Meu sentimento vaga na poesia,
Meu cantar tomou forma do meu pranto
Pois chorar se por ti, fez-se acalanto
Saber tudo do nada que eu sabia
E sentir que sentindo não sentia
O prazer, se é prazer tudo que sinto
E o amar, se é amor, amo e não minto
Um sei lá!... Posto quando a ti me achego
Na impossibilidade de um chamego
Sonho louco, num louco labirinto...

"Sentindo que sentir eu não sentia
O prazer qual prazer não me aprazia".
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AOS POETAS DE CAICÓ

Eu queria escrever meu sentimento
Mas não sai, a não ser este prospecto
Ou sou eu um carente de intelecto
Em mostrar o meu agradecimento
Pode ser até falta de talento
Pra exprimir o que sinto por vocês
Aturando o Pessoa uma outra vez
Nessa nossa querida Caicó
A rainha de todo Seridó
Quem me dera voltar no outro mês!!!
****************************************

INCLUSÃO SOCIAL

Desde os primos vagidos deste mundo
Quando o sopro divino se fez luz,
O saber é a estrada que conduz.
Ao píncaro e ao abismo mais profundo
Caminho, onde caminho e me confundo
Pela vil dualidade do caminho,
Ora cova tristonha, ora ninho
És palco vivo de uma nova vida
O saber faz da rua uma avenida
Porém, pode calçá-la com espinho.
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NO MEU LAR SOU EU QUEM MANDA
QUANDO A PATROA VIAJA!


Sou chefe até do meu chefe
Sou o grito que calou
Se você pensa quem sou
Me beije e eu lhe dou tabefe.
No carteado sou blefe
Dentre as cobras sou a naja,
Quer me ver doido? Reaja...
Mais brabo que urso panda,
No meu lar sou eu quem manda
Quando a patroa viaja!
****************************************

PARODIANDO OTACÍLIO BATISTA

o Evangelho nos guia nos conforta
Nos momentos da vida tão cruéis
Que nos tornam pequenos, infiéis,
Sendo a crença o que menos nos importa.
Quando Cristo bateu à minha porta
Convidei-O a entrar: — Faça o favor,
Abençoe-me pois sou um pecador...
Fez-se ouvir sua voz doce, maviosa:
"A mensagem bonita e carinhosa
Faz o homem temer sem sentir dor!"
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QUEM TANTO CANTOU SAUDADE
DEIXOU SAUDADE NA GENTE


Tristeza em toda cidade
Choram nobres e plebeus
Pois se foi sem dar adeus
Quem tanto cantou saudade
Em busca da eternidade
Resolveu partir na frente
Foi seu último repente
Sua única derrota
Grande mestre Chico Mota
Deixou saudade na gente.

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

O Soneto – Parte 2

Para exemplificar sua qualidade – totalmente diferente da poesia livre – cada uma tem sua maneira de ser e de desenvolver o tema abordado. Assim vamos transcrever um soneto de nosso patrono Raul de Leoni (1895 – 1926) – sonetista por excelência:

INGRATIDÃO

Nunca mais me esqueci!… Era criança
e em meu velho quintal, ao sol-nascente,
plantei, com minha mão ingênua e mansa,
uma linda amendoeira adolescente.

Era a mais rútila e íntima esperança…
cresceu… cresceu… e, aos poucos, suavemente,
pendeu os ramos sobre um muro em frente
e foi frutificar na vizinhança…

Daí por diante, pela vida inteira,
todas as grandes árvores que em minhas
terras, num sonho esplêndido semeio,

como aquela magnífica amendoeira,
eflorescem nas chácaras vizinhas
e vão dar frutos no pomar alheio…

 
Do poeta Bastos Tigre (1882 – 1957):

ENVELHECER :

Entre pela velhice com cuidado,
pé ante pé, sem provocar rumores
que despertem lembranças do passado,
sonhos de glória e de ilusões de amores.

Do que houveres no teu pomar plantado,
apanha os frutos e recolhe as flores,
mas lavra ainda e cuida o teu eirado –
outros virão colher quando te fores.

Não faças da velhice enfermidade,
alimenta no espírito a saúde,
luta contra as tibiezas da vontade.

Que a neve caia, que o ardor não mude,
mantém-te jovem, não importa a idade :
tem cada idade a sua juventude…


II

Estou sempre a procurar, na internet, novos adeptos do soneto – mas que tristeza! A maioria confunde e fala em soneto como se fosse sinônimo de poesia. Aliás, poesia não se fala nem se escreve, sente-se. Qualquer demonstração escrita em versos é um poema, seja em que estilo for – livre, concreto, metrificado, soneto, trova, etc – tudo é poema. Corriqueiramente, especifica-se um texto em versos como poesia e este hábito é quase impossível de corrigir-se no linguajar do povo e dos versejadores. Tal vício pode ser equiparado ao verbete “agilizar” que foi oficializado por vício de linguagem quando o correto “era” agilitar. Assim, este detalhe tornou-se, também, um vício, por isto, vamos falar de soneto.

Para mim é redundância falar-se em soneto “clássico” ou “tradicional” pois, para ser soneto, tem que ser clássico, isto é, obedecer as exigências de suas regras seculares, rígidas, amarradas em seus quartetos e tercetos, com rimas, métrica e acentuação, o que lhe dá a cadência e a melodia necessária. O soneto tem suas regras presas e algemadas como são nossas leis que regem o comportamento de cada cidadão.

Portanto, um soneto é um poema de 14 versos dividido em dois quartetos e dois tercetos, rimando sempre entre si os dois quartetos, geralmente, no sistema ABBA+ABBA ou ABAB+ABAB e os dois tercetos com duas ou três rimas sempre diferentes dos quartetos, nos esquemas variáveis de infindáveis combinações como CDC+DCD, CDE+CDE; CEC+DED ou CCE+DDE. Muitos contrariam tais regras utilizando três ou quatro rimas nos quartetos, o que esbarra no que determina a tradição, prejudicando, às vezes, sua sonoridade.

Obviamente, as regras rígidas do soneto tem por objetivo, embora camuflado, de dificultar sua montagem como um perfeito quebra-cabeça – o que muitos não entenderam até hoje. E a maioria dos poetas sonetistas sempre aceitaram tal desafio, tanto que, Gonçalves Crespo, poeta brasileiro radicado em Portugal (1846/1883) dizia: “O soneto pode ser, quando muito, um animal bravio que um bom domador, realmente poeta, pode perfeitamente domesticar – basta que tenha longa e íntima convivência com suas normas”. Já outro poeta brasileiro, Amadeu Amaral (1875/1929) era mais radical ao afirmar que “muita gente ainda supõe que o poeta tortura suas ideias na grelha do soneto – tal coisa só se dá com os maus poetas”. Portanto, o soneto é um desafio para qualquer poeta, como um alpinista que sempre procura o caminho mais difícil para chegar ao topo da montanha.

Outro detalhe imprescindível na montagem de um soneto, é o último terceto que terá que, forçosamente, ter o último verso carregado de impacto, de emoção ou de enlevo para fechá-lo com ênfase e que dá todo o efeito ao tema abordado, valorizando-o – é a chamada “chave de ouro”. A ausência de tal detalhe, na maioria das vezes, rouba todo o valor do trabalho, aliás, detalhe que deve estar sempre presente em qualquer texto, em prosa ou verso, tradicional ou moderno. É uma necessidade para indicar-lhe o fecho, impedindo que viremos a página para procurar a continuação do trabalho, como ocorre muito amiúde.

A beleza do soneto sempre foi cantada em prosa e verso – como estou fazendo agora, em prosa – e como muitos fizeram em versos, pois o soneto é eterno, dentro de seu estilo peculiar, sua forma diferente, sua estrutura única e seu conteúdo límpido como cristal, de fácil e imediata assimilação e enlevo.

Muitos foram os poetas que o enalteceram em seus quatorze versos, transformando-os em “um rocal de gemas” como bem o definiu o poeta luso-brasileiro Filinto de Almeida, (1857/1945) um dos fundadores da ABL. Mas apesar de tantos, um dos mais belos do gênero é do poeta J. G. de Araujo Jorge (1914/1987) organizador de uma das mais completas coletâneas de sonetos de vários países, em quatro volumes, “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”. Ei-lo :

Fino frasco de forma nobre e pura,
e, ao mesmo tempo, taça de cristal,
onde a vida, em beleza se emoldura
e vibra como um órgão musical.

Em transe, o poeta sempre te procura
para desabafar, sentimental,
seu pobre coração que se amargura
ou seu canto de amor, belo e triunfal!

Cabe em ti tudo quanto em nós palpita,
tudo quanto se sonha ou se concebe:
– a finita emoção, a alma infinita…

Vinho da uva da vida que se pisa,
– és, a um só tempo, a taça em que se bebe,
e o frasco em que a beleza se eterniza.


E se muitos poetas declararam sua idolatria pelo soneto, um sem número de outros enalteceram a beleza da mulher, mas parece que só um salientou a deficiência de tal predicado. E foi nosso saudoso confrade, Roger Feraudy, (1923/2006) – autor de nosso hino – que a entronizou no soneto “ A MOÇA FEIA” :

Não tinha graça, não tinha beleza…
Quando passava, andar desajeitado,
eu a pensar ficava – a natureza
deve num instante ter se descuidado…

No seu semblante havia uma tristeza,
sempre ansiosa, um ar preocupado;
sem atrativos, não era surpresa
quando afastava alguém interessado.

Jamais teve um amante, um amor um dia;
no solitário quarto imaginava
romances que não teve e que queria…

A moça amarga sem nenhum encanto;
a moça triste que ninguém olhava;
a moça feia… que eu amava tanto !


E do poeta P. de Petrus (1920/-) um sonetilho – JANGADEIRO

A aurora, calma e silente,
áurea luz, no céu, espraia:
vitória do sol nascente,
sobre a noite que desmaia.

Vai, jangadeiro valente,
no mar, distante na praia,
e vence a enorme torrente
sobre espumas de cambraia!

De olhos postos no infinito,
esquece as penas da lida,
que o teu lavor é bendito.

Canta e reza à tua sorte:
cantando – enfrentas a vida;
rezando – enfrentas a morte.

- - - - - –
continua…

Fonte:
Texto de José Roberto Gullino disponível na Casa Raul de Leoni (http://rauldeleoni.com.br/soneto/
)