sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Contos e Lendas do Mundo (A Discussão dos Talheres)


Garfo, faca e colher estavam numa gaveta discutindo um assunto sério: quem era o melhor e o mais útil no mundo dos homens.

A faca, vaidosa, dizia:

- Eu facilito a vida do homem. Corto coisas enormes que ele jamais poderia utilizar ou comer sem a minha ajuda.

O garfo, muito metido, disse com empáfia:

- Sem mim os homens teriam de usar os dedos para levarem os alimentos à boca, e como esquecem de lavar as mãos engoliriam tanta bactéria que teriam indigestão bacteriana.

- Você sabe por que o homem comia com os dedos?

- Não. – disse o garfo.

- Porque achavam que o alimento era sagrado e por isso devia ser comido com os dedos.

- Mas sem lavar as mãos, não é, dona faca? Eu continuo dizendo que sou a ferramenta indispensável na mesa dos humanos.

A faca, nervosa, retrucou:

- Deixa de ser burro, garfo tonto. Garfo sem faca é o mesmo que relógio sem ponteiro, um não funciona sem o outro. Eu sou o talher mais antigo da história! Fui feita de pedra e servia para a caça e defesa. Depois passei a ser feita de bronze, isso numa outra época.

- Eu sei, seu bobo enxerido, que o homem oriental usava pauzinho a guisa de garfo, feito de bambu e tinha um nome engraçado, hashi. Isso você não sabia. Sabia? Sei, também, que apesar de você ser antigo só chegou ao mundo ocidental no século XI, na Itália. Você foi criado pelos gregos e adotado no século VII pelo Império Bizantino. Na Inglaterra, até o início do século XVII você era considerado utensílio efeminado.

- Não fale assim de mim, dona faca! – choramingou o garfo - Eu não sou efeminado. Eu nasci para facilitar, não para complicar. Eu sei tudo isso que você falou. Sei que ainda hoje, entre os orientais, permanece o uso dos pauzinhos. Com os pauzinhos o homem demorava muito tempo para comer. Cada vez que ele pegava uma porção para levar à boca, caía tudo de volta para o prato. Comigo não. Ele me enche de comida e eu entulho a sua boca.

- Você, seu garfo, é malvado porque incita o homem a comer demais e muito rápido. O costume de comer muito e rápido é prejudicial à saúde. Os pauzinhos são uma forma de disciplinar a alimentação. Aos poucos e devagar. Com eles não se pode pegar um bolão de comida.

- Não adianta, dona faca, sem esse garfinho aqui o homem é nada vezes nada.

- Ora, não seja convencido! - exclamou a faca – às vezes você machuca a boca das pessoas.

- Ah, é!? E você que corta os dedos das crianças?

- Só das crianças desobedientes. Eu ouço sempre as mães dizendo: “- Crianças não brinquem com facas...”

E o garfo exultante acrescentou:

- Viu, viu como eu sou mais útil do que você? Eu nunca ouvi uma mãe dizer: “- Não peguem o garfo, crianças!” Ah, ah, ah, eu sou bom demais!!!

- Pode rir seu bobo. – disse a faca amuada – O seu deboche não me atinge, porque eu sei que você também é perigoso nas mãos das crianças.

E a discussão continuou. A colher, que estava quietinha lá no seu cantinho, numa das divisões do porta-talher, interferiu:

- Dá licença!

- Pois não, dona colher – disse o garfo.

- Vocês estão nessa discussão boba de quem é melhor, quem é mais útil sem pensar que somos um conjunto. Deus permitiu que o homem tivesse a inspiração para nos criar e fazer de nós o pai, o filho e o espírito santo das cozinhas. Somos a tríade que facilita o trabalho de preparar e ingerir os alimentos. A minha história é meio nebulosa. Foram encontrados, em escavações, objetos semelhantes a mim, provavelmente, com mais de vinte mil anos. Sei que os gregos antigos utilizavam a colher de pau para preparar e comer os alimentos. Como vocês podem ver a minha história não é tão interessante quanto as suas. O que tenho certeza é que já fomos objetos rústicos, hoje somos mais modernos. Somos feitos de metal, plástico e madeira. Somos até joias feitas em ouro e prata. Mas a nossa função é a mesma, desde que surgimos na civilização: ajudar o homem na sua alimentação.

Nós somos a união, e a união faz a força. Lembrem-se que um é complemento do outro. E se é para se gabar de utilidade, eu quero fazer uma pergunta:

- Diante de um fumegante prato de sopa, quem é o mais útil? Ah, ah, ah, ah, peguei vocês.

Fonte:
Maria Hilda de Jesus Alão, in Contar e Encantar

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 4


ARTE E MISTÉRIO


Um olhar misterioso...
No palco: palmas, sapateado
Num ritmo intenso e belo!
No olhar da Dançarina Flamenca
Cintilam sonhos, espelhos,
Ao som encantado das castanholas, despede-se...
Palmas!
****************************************

CENTAURO DE CRISTAL

Veloz, ele passeia em meus sonhos
Sedutor, brinca de esconde – esconde...
Disfarça-se nas poesias
Cobre- se  de folhas...
Quase, desisto de tocá-lo,
Mas, o vento Cupido aproxima-nos…
****************************************

CUMPLICIDADE

Há uma cumplicidade linda,
Entre o claro e o escuro;
O dia e a noite,
O certo e o errado e,
Entre meus pensamentos
e a companhia do por-do-sol…
****************************************

JANELA ENTREABERTA

Noite de novembro
Janela entreaberta:
Aos poucos, a poesia abre a janela
Meus pensamentos seguem meus sonhos,
E escapam  buscando encontrar você…
****************************************

JANELAS AZUIS

Nas paredes brancas
Desabrocham flores...
Nas antigas  janelas azuis
Lembranças e poesias…
****************************************

MADRUGADA

Cessam os toques...
Descansam as teclas do computador
Teu rosto tão distante,
Silêncio…
****************************************

MÁGICO ESPELHO

Noite fria
Envolve o silêncio...
A saudade cintila
Desenha teu rosto
No espelho…
****************************************

NOITE DE PRIMAVERA

Noite de primavera
Janela aberta...
Na quietude do jardim
Desabrocham as rosas,
O  vento  suave passeia nas pétalas
Enquanto a saudade envolve-me…
****************************************

SAUDADE E RETICÊNCIAS...

A saudade transborda em lágrimas
E amor intenso deságua nas páginas em branco
Em forma de poesias e reticências…
****************************************

SONS DO ESPELHO

No espelho caem gotas d’água
Deslizam pequenos retratos,
Reflexos,  rostos e versos
Sussurram um nome…
****************************************

TULIPAS E PORTA-RETRATOS

Das tulipas vermelhas
Algumas gotas d'água deslizam
no porta-retratos
Breves lágrimas…
****************************************

VENTO...

 Fim de tarde
 A suavidade do vento
 desperta lembranças
 tece sonhos…

Fonte:
Recanto das Letras da Poetisa

Fernando Sabino (Macacos me Mordam)


Morador de uma cidade do interior de Minas me deu conhecimento do fato: diz ele que há tempos um cientista local passou telegrama para outro cientista, amigo seu, residente em Manaus:

“Obséquio providenciar remessa um ou dois macacos”.

Necessitava ele de fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado na localidade. Um belo dia, já esquecido da encomenda, recebeu resposta:

“Providenciada remessa 600 restante seguirá oportunamente”.

Não entendeu bem: o amigo lhe arranjara apenas um macaco, por seiscentos cruzeiros? Ficou aguardando, e só foi entender quando o chefe da estação veio comunicar-lhe:

– Professor, chegou sua encomenda. Aqui está o conhecimento para o senhor assinar. Foi preciso trem especial.

E acrescentou:

– É macaco que não acaba mais!

Ficou aterrado: o telégrafo errara ao transmitir “um ou dois macacos”, transmitira “1.002 macacos”! E na estação, para começar, nada menos que 600 macacos engaiolados aguardavam desembaraço. Telegrafou imediatamente ao amigo:

“Pelo amor de Santa Maria Virgem, suspenda remessa restante!”

Ia para a estação, mas a população local, surpreendida pelo acontecimento, já se concentrava ali, curiosa, entusiasmada, apreensiva:

– O que será que o professor pretende com tanto macaco?

E a macacada, impaciente e faminta, aguardava destino, empilhada em gaiolas na plataforma da estação, divertindo a todos com suas macaquices. O professor não teve coragem de aproximar-se: fugiu correndo, foi se esconder no fundo de sua casa. À noite, porém, o agente da estação veio desentocá-lo:

– Professor, pelo amor de Deus vem dar um jeito naquilo.

O professor pediu tempo para pensar. O homem coçava a cabeça, perplexo:

– Professor, nós todos temos muita estima e muito respeito pelo senhor, mas tenha paciência: se o senhor não der um jeito eu vou mandar trazer a macacada para sua casa.

– Para minha casa? Você está maluco?

O impasse prolongou-se ao longo de todo o dia seguinte. Na cidade não se comentava outra coisa, e os ditos espirituosos circulavam:

– Macacos me mordam!

– Macaco, olha o teu rabo.

À noite, como o professor não se mexesse, o chefe da estação convocou as pessoas graduadas do lugar: o prefeito, o delegado, o juiz.

– Mandar de volta por conta da Prefeitura?

– A Prefeitura não tem dinheiro para gastar com macacos.

– O professor muito menos.

– Já estão famintos, não sei o que fazer.

– Matar? Mas isso seria uma carnificina!

– Nada disso – ponderou o delegado: – Dizem que macaco guisado é um bom prato...
*

Ao fim do segundo dia, o agente da estação, por conta própria, não tendo outra alternativa, apelou para o último recurso – o trágico, o espantoso recurso da pátria em perigo: soltar os macacos. E como os habitantes de Leide durante o cerco espanhol, soltando os diques do Mar do Norte para salvar a honra da Holanda, mandou soltar os macacos. E os macacos foram soltos! E o Mar do Norte, alegre e sinistro, saltou para a terra com a braveza dos touros que saltam para a arena quando se lhes abre o curral – ou como macacos saltam para a cidade quando se lhes abre a gaiola. Porque a macacada, alegre e sinistra, imediatamente invadiu a cidade em pânico. Naquela noite ninguém teve sossego. Quando a mocinha distraída se despia para dormir, um macaco estendeu o braço da janela e arrebatou-lhe a camisola. No botequim, os fregueses da cerveja habitual deram com seu lugar ocupado por macacos. A bilheteira do cinema, horrorizada, desmaiara, ante o braço cabeludo que se estendeu através das grades para adquirir uma entrada.

A partida de sinuca foi interrompida porque de súbito despregou-se do teto ao pano verde um macaco e fugiu com a bola sete. Ai de quem descascasse preguiçosamente uma banana! Antes de levá-la à boca um braço de macaco saído não se sabia de onde a surrupiava. No barbeiro, houve um momento em que não restava uma só cadeira vaga: todas ocupadas com macacos. E houve também o célebre macaco em casa de louças, nem um só pires restou intacto. A noite passou assim, em polvorosa. Caçadores improvisados se dispuseram a acabar com a praga – e mais de um esquivo notívago correu risco de levar um tiro nas suas esquivanças, confundido com macaco dentro da noite.
*

No dia seguinte a situação perdurava: não houve aula na escola pública, porque os macacos foram os primeiros a chegar. O sino da igreja badalava freneticamente desde cedo, apinhado de macacos, ainda que o vigário houvesse por bem suspender a missa naquela manhã, porque havia macaco escondido até na sacristia.

Depois, com o correr dos dias e dos macacos, eles foram escasseando. Alguns morreram de fome ou caçados implacavelmente. Outros fugiram para a floresta, outros acabaram mesmo comidos ao jantar, guisados como sugerira o delegado, nas mesas mais pobres. Um ou outro surgia ainda de vez em quando num telhado, esquálido, assustado, com bandeirinha branca pedindo paz à molecada que o perseguia com pedras. Durante muito tempo, porém, sua presença perturbadora pairou no ar da cidade. O professor não chegou a servir-se de nenhum para suas experiências.

Caíra doente, nunca mais pusera os pés na rua, embora durante algum tempo muitos insistissem em visitá-lo pela janela.

Vai um dia, a cidade já em paz, o professor recebe outro telegrama de seu amigo em Manaus:

“Seguiu resto encomenda”.

Não teve dúvidas: assim mesmo doente, saiu de casa imediatamente, direto para a estação, abandonou a cidade para sempre, e nunca mais se ouviu falar nele.

Fonte:
Fernando Sabino. O Homem Nu. RJ: Record, 1984.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) Segundo Conto

AS QUATRO PENAS BRANCAS


Ambiente:
Rio de Janeiro, Niterói, bares/ uma fazenda, um hotel. Época atual.

Foco narrativo:
Terceira Pessoa.

Personagens:

Rubem e Pedro: Amigos do cotidiano.

Colombo: Alguém que Rubem conhece como vendedor de amendoim.

Bulhões: amigo de Colombo.

Alice: ex-esposa de Rubem com quem tem quatro filhos.

RESUMO:

São dois amigos: Rubem e Pedro. Pedro pega o amigo à porta do jornal onde Rubem deixara o artigo para o dia seguinte. Diz que vai com Rubem parar Niterói para que ele não fuja do Rio de Janeiro. A mulher do Rubem exige a pensão atrasada, dos quatro filhos dos dois. Em Niterói o pai empresta o dinheiro. Mas adverte que é só um empréstimo Admoesta o filho, chama-o à responsabilidade Rubem reage. Quer dividir responsabilidade e culpa com os pais que queriam netos, então acha que eles têm que ajudar a pagar a pensão deles. Acaba reconhecendo a própria culpa.

Rubem toma a barca para voltar ao Rio. Senta-se ao lado de um vendedor de amendoim. Puxa conversa. O homem diz que já fora rico, de ir em "boate grã-fina e dar gorjeta". Rubem interrompe-o. A vida do outro é melhor que a sua. Rubem pede-lhe que comece de novo. “O homem amarrou a cara. Escuta aqui, quem organiza a narrativa sou eu, escolho a porta por onde entrar e a janela por que sair. Quem não está satisfeito com o volume e a posição das palavras, abandona a sala.”

Colombo conta-lhes sua estranha e obsessiva amizade por Bulhões. O tempo que moraram juntos e sua vida na fazenda comprada por Colombo no tempo em que era rico. Após a separação dos amigos, Colombo vai à falência e passa a viver da venda de amendoins na barca Rio-Niterói.

Rubem apalpa o dinheiro no bolso. Tem que entregá-lo à mulher. Considera aquilo um roubo. Sua vingança consiste em saber que a mulher ter que cuidar dos quatro filhos e que ninguém a quer com a criançada.

Aceita um amendoim. Pergunta o nome do outro, Colombo, como o descobridor da América.

Enfim, após muita conversa, os quatro decidem ir beber umas cervejas. Num bar escuro, os três conversam quando, de repente chega Bulhões. Os quatro, então gastam todo o dinheiro da pensão dos filhos de Rubem.

COMENTÁRIO:


Penas soltas são leves e costumam ser levadas ao sabor do vento. Penas brancas são referências aos quatro amigos. Que não pisam em terra firme. Vivem o hoje, mas são despreocupados, não encaram a vida, deixam-se levar por ela. É como diz Colombo: "Eu só sabia viver a vida de modo confuso.

Nayoka significa a ilusão atrás da qual Rubem parte. A vida com Alice não correspondera à ilusão. Rubem nem sabe explicar porque se separou dela e sente até saudade de sua comida. O amanhecer significa a volta à realidade da vida, quando reconhecem; "as máscaras somos nós, e elas agora se derreteram, foram feitas de cera.”

Fontes:
Análise pela Profª Sônia Targa, in OBRAS DA UEM - 2012 – 2013.
Trecho do resumo por Manuel Comellas Coimbra em Algo Sobre

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 461

 


Carlos Eduardo Novaes (Kni e Giv)


Desde que a nave espacial Viking amartissou (é isso mesmo?) Juvenal Ouriço e o Boca não descolam o ouvido do rádio. Parecem dois paraíbas de obra depois do expediente.  Juvenal aguarda com a maior ansiedade a notícia de que há vida em Marte. E afirma que quando a informação chegar vai dar uma festa. Causa-lhe uma profunda ansiedade a ideia de que ”nós, terráqueos, somos os únicos seres viventes em trânsito pela Via-Láctea”.

- Já imaginou a sensação de solidão universal? – diz arregalando os olhos. - Eu já não gosto de me sentir só nem em casa, que dirá no planeta?

Haverá vida em Marte? Tudo indica que sim, pois ao mesmo tempo que enviamos daqui a Viking, os marcianos mandavam de lá a nave Gnikiv, movidos pela mesma curiosidade: haverá vida na Terra? As duas naves, por sinal, se cruzaram ali pelo quilômetro 46 milhões 578 mil 300 da estrada do Sol. A Viking viaja por instrumentos. A Gnikiv, porém, traz dois cosmonautas a bordo: Kni e Giv. Quando Kni olhou pela escotilha e viu a nossa nave passando, berrou para o companheiro: ”Ei, Giv, olhe. Que é aquilo? Um disco voador?

- Disco voador o quê, rapaz! Que mania a sua de pensar que todo objeto que se move no espaço é disco voador. Disco voador não existe.

- Pra mim existe. E lhe digo mais: é tripulado por seres da Terra.

- Duvido muito.

- Duvida por quê? Você não acha possível que exista uma civilização adiantada na Terra?

- Não sei nem se há vida na Terra.

- Claro que há. Pode não ser muito antiga, mas há. Alguns cientistas suspeitam de que a vida na Terra começou em 1945. Foi a partir dessa época que eles passaram a observar a formação de gigantescos cogumelos luminosos.

- Deixa de bobagem. Aquilo eram explosões provocadas pelo choque de meteoritos com a superfície do planeta.

- Então esse negócio que passou por aí veio de onde?

- Sei lá. Olha aí no mapa. Qual é a outra estação depois da Terra?

- Vênus.

- Vênus não deve ser. Tem outra?

- Tem Mercúrio, uma estaçãozinha pequena.

- Também não creio que seja de lá. E depois? Vem o quê?

- Depois acaba. Mercúrio é o fim da linha.

Os dois ainda discutiam a procedência da Viking quando a Gnikiv trepidou um pouco, perdeu altura e surgiu sobre o céu do Rio de Janeiro. Kni observou lá de cima e comentou com Giv: ”Creio que nos distraímos e saímos da rota”.

- É mesmo? Por que você diz isso?

- Está cheio de crateras lá em baixo. Acho que estamos sobrevoando a Lua.

Os dois tornaram a consultar os mapas, refizeram os cálculos e constataram surpresos que estavam realmente sobre a Terra. ”Engraçado” - disse Kni - ”os nossos mapas estão todos errados, eu nunca soube que havia tanta cratera na Terra”.

- Quem sabe não são erupções vulcânicas que ocorreram após nossa saída de Marte?

- Não creio. Não daria tempo. É muita erupção pra pouca viagem.  Você se esquece de que viemos praticamente ali da esquina. Foram apenas 384 milhões de quilômetros.

O módulo da Viking amartissou, auxiliado por três foguetes e um pára-quedas em 3h20min. A Gnikiv demorou menos. Pouco mais de meia hora. Bem verdade que já nos movimentos finais a nave foi auxiliada em terra por dois crioulos que orientavam as manobras: ”Dá ré, agora vira tudo pra direita, isso, chega um pouquinho à frente, tá bom aí”. Os marcianos saltaram e um dos crioulos logo perguntou:

 ”Posso tomar conta?”

A nave desceu num local ermo, próximo à Favela da Rocinha. Ao botar os pés na Terra, Giv farejou o ar, respirou  fundo e observou: ”Estou sentindo um cheirinho de nitrogênio”.

- Eu também - disse Kni puxando ar - mas pra mim está misturado com oxigênio. E se você respirar na direção do vento ainda vai sentir um leve aroma de argônio. Sentiu?

- Senti. Acho que com essa composição é muito difícil haver vida na Terra.

A atmosfera em Marte é quase toda composta de anidrido carbônico. Sua temperatura é mais baixa que a nossa. Os marcianos estranharam o calor. Um crioulo ao lado sorriu e disse: ”Os senhores não são os primeiros, tudo quanto é gringo reclama do nosso calor”.

Kni virou-se para o crioulo e foi direto ao assunto: ”Será que você pode nos informar se existe vida na Terra?” O crioulo pensou alguns segundos, encavalou o lábio inferior no superior e balançou a cabeça negativamente: ”Não sei não senhor”.

- Ele não sabe de nada - aparteou o outro crioulo - é completamente analfabeto.

- E você sabe? Sabe se existe vida na Terra?

- Eu? - perguntou o outro crioulo que era meio folgado. - Eu acho que não tem não, mas não posso dar certeza.

Explicou que estava começando o Mobral agora, mas ”se os senhores quiserem a gente pode perguntar ao meu irmão que tem algum estudo”. Os três iniciaram então uma caminhada pelo atalho (o outro crioulo ficou tomando conta da nave) até o barraco. Enquanto andavam, Kni e Giv assediavam o crioulo com perguntas: ”Você sabe se há mais alguma coisa no ar, aqui, além de nitrogênio, oxigênio e argônio?

- Não sei dizer, não senhor. Dizem que há muita poluição mas eu mesmo nunca vi.

- E de que é a camada que cobre a superfície da Terra?

- De que é? De asfalto.

- Isso que nós estamos pisando é asfalto?

- Não senhor. Aqui é terra.

- Que é a Terra eu sei. Vocês são quantos aqui?   .

- Na Rocinha?

- Não. Na Terra.

- Toda? - perguntou o crioulo fazendo uma bola com os braços. - Não sei não senhor, mas deve ser mais de 2 milhões.

Os três chegaram ao barraco. O crioulo apresentou aquelas figuras (cada um imagina o seu marciano como quiser) ao irmão explicando antes que ”estes senhores acabaram  de chegar de . . de onde mesmo? Nevoer quê?

- Não. Nós viemos de Marte.

- Pois é - prosseguiu o crioulo na maior tranquilidade, provavelmente  imaginando que Marte ficasse ali depois de Nova  Iguaçu - esses senhores chegaram de Marte e estão querendo saber se existe vida na Terra. Eu não soube responder. Você sabe?

- Bem - disse o irmão do crioulo meio indeciso – eu acho que existe.

- De que forma? - perguntou Kni. - São moléculas?

- Isso eu não sei.

- Claro que são - intrometeu-se o crioulo folgado.

- Eu me lembro de quando era garoto as pessoas chegavam pra mim e diziam: ”Não faça isso, seu molécula”.

Kni e Giv se entreolharam e cheios de dúvidas pediram maiores explicações ao irmão do crioulo. Os quatro sentaram-se  em volta de uma mesa (uma mesa de dois pés). O irmão do crioulo, então, foi desfiando toda a sua existência, desde o dia em que nasceu naquele mesmo barraco.

Ao terminar, Kni, incrédulo, perguntou-lhe: ”Isso que você acabou de contar: é essa a vida que existe na Terra?” O irmão do crioulo disse que sim.

- Não. Não é possível - disse Kni. - Você está brincando. Isso não é vida.

Os dois saíram. Voltaram à nave e de lá informaram a Marte que não havia vida na Terra.

Fonte:
Carlos Eduardo Novaes. O Quiabo Comunista. RJ: Nórdica, 1977.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 7


MINHA GRANDE TERNURA


Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.

Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.

Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.

Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.
****************************************

NATAL SEM SINOS

No pátio a noite é sem silêncio.
E que é a noite sem o silêncio?
A noite é sem silêncio e no entanto onde os sinos
Do meu Natal sem sinos?

Ali meninos sinos
De quando eu menino!

Sinos da Boa Vista e de Santo Antônio.
Sinos do Poço, do Monteiro e da igrejinha de Boa Viagem.

Outros sinos
Sinos
Quantos sinos!

No noturno pátio
Sem silêncio, o sinos
De quando eu menino.
Bimbalhai meninos,
Pelos sinos (sinos
Que não ouço), os sinos de
Santa Luzia.
****************************************

NATAL

Penso em Natal. No teu Natal. Para a bondade
A minh’alma se volta. Uma grande saudade
Cresce em todo o meu ser magoado pela ausência.
Tudo é saudade... A voz dos sinos... A cadência
Do rio... E esta saudade é boa como um sonho!
E esta saudade é um sonho... Evoco-te... Componho
O ambiente cuja luz os teus cabelos douram.
Figuro os olhos teus, tristes como eles foram
No momento final de nossa despedida...
O teu busto pendeu como um lírio sem vida,
E tu sonhas, na paz divina do Natal...
Ó minha amiga, aceita a carícia filial
De minh’alma a teus pés humilhada de rastos.
Seca o pranto feliz sobre os meus olhos castos...
Ampara a minha fronte, e que a minha ternura
Se torne insexual, mais do que humana - pura
Como aquela fervente e benfazeja luz
****************************************

NEOLOGISMO

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
E mais quotidiana.
inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo
Teadoro, Teodora.
****************************************

NOITE MORTA

Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.
Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.
No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras
Sobras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.
O córrego chora.
A voz da noite...
(Não desta noite, mas de outra maior.)
****************************************

NOVA POÉTICA

Vou lançar a teoria do poeta sórdido
Poeta sórdido:
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim
muito bem engomada,
e na primeira esquina passa um caminhão,
salpica-lhe o paletó de uma nódoa de lama:
É a vida.
O poeta deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas,
as estrelas alfas,
as virgens cem por cento
e as amadas que envelheceram sem maldade.
****************************************

O ANEL DE VIDRO

Aquele pequenino anel que tu me deste,
- Ai de mim - era vidro e logo se quebrou
Assim também o eterno amor que prometeste,
- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, -
Aquele pequenino anel que tu me deste,
- Ai de mim - era vidro e logo se quebrou

Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo no peito a saudade celeste
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste.

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa. 1967.

A. A. de Assis (O Sofrido Natal de Mário)


Eram os anos 1950, Maringá uma cidade nascendo. Mário, solteiro, português recém-chegado da pátria, morava em hotel, comia em restaurantes, nenhum parente no Brasil.

Naquela véspera de Natal, saiu às ruas pensando em como passar o tempo. A missa do galo seria às 20h. Mário acompanhou os passantes, foi rezar também. Terminada a celebração, a cidade esvaziou-se, as famílias recolhidas para o aconchego em torno da ceia.

Rodou à procura de um lugar onde pudesse afogar a tristeza numa taça de vinho, num jarro de chope. Nenhum restaurante aberto, sequer um botequim. Em ocasiões assim a dor do imigrante solitário é terrível. Mário recordava as festas de Natal em sua aldeia. A árvore enfeitada. A troca de presentes. O presépio. A grande mesa reunindo pais, avós, irmãos, vizinhos. Menestréis gorjeando nas esquinas. Sinos alegres saudando a vinda de Jesus.

Caminhando pelas ruas poeirentas, ele ouvia a felicidade que brotava de dentro das casas. O hotel só dava dormida, não servia refeições, e estava sem hóspedes naquele Natal. Mário não tinha nem mesmo uma namorada aqui, só pensava na noivinha que deixara à sua espera na Europa. Tinha alguns conhecidos na cidade, porém não queria incomodá-los: estariam reunidos em família, alguns teriam viajado. Retornando ao hotel, trancou-se no quarto, chorou. Tão fortes os soluços, que a proprietária ouviu, bateu à porta: “O que houve, meu jovem? Está sentindo alguma coisa? Quer que lhe chame um médico?

Ora, médico! Não existe injeção para saudade. A dona do hotel logo compreendeu, trouxe um copo d’água, emprestou o ouvido ao moço para que ele desabafasse. Ao percebê-lo mais calmo, convidou: “Você vai cear conosco. Estamos em casa somente eu, meu marido e um filho; gostaríamos muito de ter a sua companhia”.

Vieram-lhe à lembrança histórias que seus pais contavam. A angústia de Maria e José hospedados numa estrebaria para o Menino nascer. Aquelas palavras do Mestre: “Fui estrangeiro e você me acolheu”. Ele ali sentindo fundo o drama do imigrante solitário, e ao mesmo tempo conhecendo a graça de encontrar amigos numa terra tão distante da sua. A mesa farta, a família feliz, as orações. Ele jamais agradecera a Deus com tamanha emoção.

Tudo isso borbulhava forte no coração de Mário. Trabalhou muito, fez seu pé-de-meia, mandou vir da pátria os irmãos, foi lá, voltou casado, nunca mais passou um Natal sozinho. Ficou, porém, a marca. Pensou nas crianças abandonadas. Como seria o Natal dos órfãos? Como se sentiriam os meninos sem lar?

Aquela simpática dona de hotel talvez jamais viesse a saber que Mário, ao longo da vida, retribuiria a generosidade dela diminuindo as aflições de centenas de crianças pobres. Fez do amparo a elas uma razão de existir. Tanto quanto estivesse a seu alcance, não deixaria ninguém chorar de solidão como chorou ele naquele sofrido Natal em Maringá.
================================================
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 17-12-2020)

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) Primeiro Conto

O JARDIM DAS OLIVEIRAS


Ambiente:
Rio de Janeiro nos tempos da ditadura militar. E a consciência do personagem- autor do monólogo.

Foco narrativo:
Primeira Pessoa.

Personagens:
O autor da carta: Alguém que sofreu a tiranias da ditadura.

Zé: O destinatário da carta. Alguém que pode ser um amigo ou um conhecido ou alguém necessário para desabafar o que explode no coração do autor da carta.

Sequestrador: "Tinha olhar de vidro e nariz...ligeiramente adunco."

"Um crioulo, um mulato e um branco, etnia carioca": algozes ou companheiros do autor da carta.

Antônio: Alguém que morreu após ser torturado.

Luíza: Namorada do autor da carta.

Resumo:
Ele escreve uma carta, urgente para o Zé. ......

Começa contando como foi levado para a tortura. Uma pessoa trava-o pelo braço quando sai de casa. Essa pessoa, da qual não consegue ler o semblante, lembra-lhe a humanidade.

"Ah, Zé, como a alma é uma gruta sem luz.”

Os dois caminham furtivamente. Ninguém os nota...Ele é jogado no banco traseiro do carro onde já estão seus algozes: "Um crioulo, um mulato e um branco, etnia carioca". Levam-no a um local, uma sala com apenas três cadeiras.

Ele sente medo, sente-se asfixiado, tem ânsia e vontade de vomitar; Já havia sido torturado antes. Sente-se covarde, “a desesperança de saber que a dignidade dependia de um corpo miserável a serviço da força alheia". O Zé não lhe compreende os sentimentos. Ele já fora herói. Agora não mais consegue sê-lo.

O branco ameaça, quer saber do Antônio. Ele diz que não sabe. Já confessara tudo nove anos antes. O interrogador insiste em saber do Antônio embora todos saibam que Antônio já está morto. Estilete no peito. Ele sente medo e remorso por ter dado as pistas para a prisão de Antônio. Sente vergonha e ódio.

Eu era as palavras arrancadas à força, era a covardia que eles souberam despertar em mim, e antes me fora desconhecida”. E era ainda a vida que eu descobrira preciosa entre os suplícios infligidos.

Não desistem. Querem saber do Antônio, Torturadores com mãos como as de qualquer pessoa, aparentemente limpas. Mãos que enterraram Antônio.

Ele diz que não tem visto Antônio. Quer voltar à vida. Diz que Antônio desapareceu. O mulato assume. Ele se lembra de que vira Antônio, no ano passado, na saída do cinema. Gritara por ele que não ouviu e desapareceu. Estava mais gordo e com bigode. Surge um novo Antônio. É um jogo que lhe custa suor, vida e honra.

"Eu sei que a vida prova-se com a palavra, mas quando nos é ela extraída à força e ainda assim, a vida nos fica, não é a vida o único tesouro com que se recomeça a viver?"

Antônio está na sala, "Vivo, ardente, combatendo o mundo em tudo igual ao que havia deixado antes de partir.”

O branco diz que Antônio é um assassino de mulheres e crianças, que precisa ser levado à justiça. Sai da sala. Ele é levado para uma ceia. Pensa no suplício da manhã seguinte, ou da semana, ou de mês... Pegam-no de madrugada, colocam-no no carro, jogam-no perto de casa. Nem uma palavra.

Acalentavam o sangue e o suor de um país com o torniquete da naturalidade e da supremacia”.

Advirto-o assim, Zé, que temos Antônio de volta.”

Mas Antônio não dá notícias a ninguém. Menos a quem lhe facilitara a captura. Mas ele lhe deve a vida. Não o mataram.

"Terá sido desonroso reviver Antônio? O poder não fragiliza apenas a quem domina. O poder educa para que não esqueçamos as suas lições. Mas, como será quando a lição passar a ser aplicada por nós, povo pálido e submisso?"

Luíza não o recebe. Ele vai para casa. A vida de sempre. A espera do carrasco, um dia. O que se pode esperar de uma criatura fiel ao Estado a cobrar-lhe obediência como meio de assegurar a coletividade uma existência feliz? E que expulsa do seu corpo social todo e qualquer organismo infectado de pus, palavra e ação rebeldes? Ele se perfuma "moderado e elegante". Pequenas atenções conseguem mesmo. Acomodação à vida possível.

“ah, Zé, quantos capítulos são diariamente redigidos numa infindável série de resignações?

Nada de paz, de sossego. Perplexidades. Sono difícil. Ele se sente culpado. Não crê na própria inocência.

E com que direito protesto, fortaleceu-me quem tinha a arma na mão, dei-lhe a munição que escasseava.”

Mas ele não quer sofrer. Reconhece a própria fragilidade. Reclama da autoridade, mas, no intimo, quer ser autoridade, ter domínio, poder.

Até Luiza desconfia de Zé. O Zé fala bem, mas não se comove. Luiza não gosta de seu olhar crítico. Ela é cheia de pudor. “Onde esteja, sua linguagem é impecável. Sua ordem mental alija a paixão. Não sei onde se abriga o coração daquela mulher.

COMENTÁRIO:

O Jardim das Oliveiras foi o local onde Jesus Cristo sofreu grande agonia antes de ser crucificado. . “O jardim das oliveiras”, de Nélida Piñon, as personagens principais evocam seu passado e expõem suas dores e seus medos, demonstrando uma relação tensa das personagens com o mundo. Nesses contos, ganham mais relevo a vida emocional das personagens e as sensações provocadas pelos acontecimentos do que os acontecimentos em si.

A autora usa esse título para demonstrar que o texto trata de uma grande agonia interior, de alguém que foi preso e torturado nos porões da ditadura militar. E um texto altamente filosófico, emaranhado de pensamentos que se sucedem numa tentativa dolorosa de explicar a própria vida que foge ao controle do personagem. O personagem é torturado física e psicologicamente. Sofre tanto que desiste de ser idealista. Faltam-lhe forças para isso. Encolhe-se em si mesmo para não sofrer. “Quer ter a ilusão de ser livre embora” sinta-se "como um polvo embaralhado nas 'próprias pernas". Descobre que o próprio amor que sente por Luíza não passa de egoísmo. Ela é a sua tábua de salvação. Descrição exata de uma vida sem fé. Vida que se transforma, para o personagem, numa luta desesperada para preservá-la, pois descobre o quanto é preciosa, Quem é o Zé? O dominador? O rico? O poderoso? A elite cultural? O amigo? Ou todos? Em todo caso, é o interlocutor do personagem a quem ele se desvenda.

Fonte:
Análise pela Profª Sônia Targa, in OBRAS DA UEM - 2012 – 2013.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 18 –

 


Figueiredo Pimentel (A Corda do Diabo)


Sinfrônio era um homem riquíssimo, dono de inúmeras propriedades e dispondo de fabulosas somas em ouro. Metendo-se, porém, em maus negócios, empobreceu de repente.

Vendo-se na mais completa miséria, resolveu sair do seu país, procurar uma terra onde não fosse conhecido, e ver se conseguia recuperar a fortuna perdida.

Um dia, atravessando uma planície, encontrou o diabo, a quem não reconheceu, todavia.

— Que tens? perguntou-lhe Satanás, conquanto soubesse perfeitamente bem a causa da tristeza de Sinfrônío.

— Para que dizer-te? — respondeu este. — Não me poderás dar remédio...

— Isso é que não sabes; e, desde já, obrigo-me a tirar-te do embaraço, se te obrigares a fazer tudo quanto eu disser.

Em seguida, vendo que Sinfrõnio estava espantado com aquela proposta, deu-se a conhecer.

O pobre homem não sabia que fazer, mas como se achava desesperado da vida, completamente pobre, resolveu aceitar a proteção de Satanás.

Prometeu ficar-lhe pertencendo, com a condição de enriquecer de novo.

— Pois bem, disse o demônio concluindo o pacto, de hoje em diante sair-te-ás bem de todos os negócios em que te envolveres. Se, entretanto, te achares alguma vez em perigo, bastará dizer “Dom Martinho, socorre-me!” e eu te aparecerei.

O capataz do inferno sumiu-se.

Sinfrônio, continuando viagem, chegou pelo meio da noite, a uma cidade.

Aí, certo de que triunfaria, resolveu roubar.

Em todas as casas que pretendia entrar, mal chegava, as portas abriam-se de par em par, encontrava os moradores profundamente adormecidos, e via à mão objetos preciosos.

Então meteu-se em altas empresas, e tornou-se um bandido célebre, terror de toda a região, saqueando viajantes.

Um dia foi preso.

Mal se viu na prisão, lembrou-se do seu protetor e exclamou:

— Dom Martinho, socorre-me!

O diabo apareceu logo e libertou-o.

Vendo-se livre, Sinfrônio recomeçou na sua antiga existência, cometendo toda a sorte de rapinagens.

Novamente foi preso, mas, como da primeira vez, invocou Satanás.

— Dom Martinho, socorre-me!

O demônio veio, mas Sinfrônio reparou que se demorara um pouco.

— Por que não vieste mais depressa?

— Estava ocupado, limitou-se o diabo a dizer laconicamente.

Mais tarde, depois de novos crimes e terríveis façanhas, o nosso herói caiu nas mãos da justiça.

Do fundo da sua prisão chamou Satanás que não veio.

Passaram-se dias, o processo já estava muito adiantado, e só faltava a sentença, quando finalmente mestre Lúcifer veio libertar o amigo.

Posto em liberdade, o bandido continuou ainda na sua horrível existência de rapinagem, com mais afã que nunca, em vez de se emendar.

Pela quarta vez foi preso, encerrado numa masmorra forte, e guardado por sentinelas.

Sem se inquietar muito, Sinfrônio gritou pelo demônio, segundo haviam combinado.

— Dom Martinho, socorre-me!

Decorreram semanas e semanas, até que, enfim, o juiz pronunciou a sentença, condenando-o à morte.

Marcou-se a data para a execução da sentença. Satanás, faltando à palavra, não acudiu à chamada.

Sinfrônio, escoltado pelo carrasco, e por soldados, caminhou para a praça e subiu à forca.

Foi só então que o capataz do inferno apareceu.

— Toma esta bolsa, disse-lhe ele. Aí, dentro estão vinte contos de réis. Dá-os ao juiz que ele te libertará.

O condenado, chamando o juiz, como que para lhe dizer as suas últimas vontades e confissões, fez-lhe a proposta.

O juiz, magistrado desonesto e avarento, escondeu a corda e disse para o povo:

Cidadãos: acaba de suceder um fato extraordinário, que pela primeira vez acontece: esquecemos de trazer a corda para enforcar o condenado. A execução fica pois, suspensa. Quem sabe se Deus não quis, por esse modo, mostrar a inocência do réu? Vai rever-se a sentença mas a justiça será feita.

Prepararam-se os executores para reenviar Sinfrônio para a cadeia.

Nesse intervalo o magistrado abriu a bolsa, mas só encontrou uma corda nova, em lugar dos vinte contos de réis.

Voltou-se indignado, exclamando:

— Cidadãos: acaba de aparecer uma. Foi Deus quem a enviou. Este homem é na verdade um bandido. Enforquem-no!

Passaram o laço no pescoço de Sinfrônio, que vendo-se estrangulado, bradou:

— Dom Martinho, socorre-me!

— Ah! disse o demônio aparecendo, eu não posso fazer nada, quando os meus amigos já estão com a corda no pescoço.

É assim que o diabo, fingindo querer salvar-nos, acaba sempre por trazer a corda para nos enforcar.

Fonte:
Figueiredo Pimentel. Histórias da baratinha. RJ; BH: Garnier, 1994.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 2 –


A dor das ondas e as minhas,
são ante as queixas do mar,
consolo das ladainhas
que a noite vive a cantar!
- - - - - –
Ante os teus ciúmes loucos
e a loucura desmedida;
o amor, vai sentindo aos poucos,
os desencantos da vida!
- - - - - -
Caicó - a idade avança,
mas no meu imaginário...
És linda moça criança
no teu sesquicentenário!
- - - - - -
Coração - cofre sagrado,
és o mais secreto cofre.
Só tu sabes do passado
das ilusões de quem sofre!
- - - - - -
É quando a mágoa me açoita
que busco em meus alfarrábios,
a resposta que se amoita
no silêncio de teus lábios!
- - - - - -
É tarde!... Em tua moldura,
logo assim que o sol se esconde;
uma saudade murmura,
por outra, que não responde!
- - - - - -
Fecho a janela, abro as portas
aos sonhos sentimentais...
Não quero esperanças mortas,
presas aos meus madrigais!
- - - - - -
Foto antiga!... E, pelos gestos,
por culpa de um neto ingrato...
Há cupins, comendo os restos,
do resto do teu retrato!
- - - - - -
Meu sabiá, tão contente,
cantas, fingindo o teu pranto;
nem vês que o pranto da gente
é triste quanto o teu canto!
- - - - - -
Meu versinho é uma criança,
que sozinho me insinua...
A levar paz e esperança
onde faltar paz na rua!
- - - - - -
O silêncio mais profundo,
me inspira e nele eu medito.
Ouço as torturas do mundo
no silêncio do infinito!
- - - - - -
Ostentação, nada diz.
Pobre e feio, também ama...
O sapo é pobre e feliz
mantendo os pés sobre a lama!
- - - - - -
Ouço um canto, me arrepio
e, aquela voz diferente,
vem da cascata de um rio
pranteando as mágoas da gente!
- - - - - -
Passando sem percebê-los,
os anos, de forma ingrata,
deixam-me a cor dos cabelos,
branquinhos, da cor de prata!
- - - - - -
Passo a passo e, sem alarde,
prossegue o pobre velhinho...
Tão perto do fim da tarde,
tão longe do velho ninho!
- - - - - -
Percebo que as mãos do outono
pintam na dor do poente,
cores das tardes sem dono,
donas das tardes da gente!
- - - - - -
Pobres cabelos grisalhos,
encanecidos, tão velhos;
fibras de tantos retalhos
que tecem meus evangelhos!
- - - - - -
Por teu amor, me proponho
a ser fiel ante a dor!...
Quem vive de amor e sonho,
vive as neuroses do amor!
- - - - - -
Qualquer adeus, nesta vida,
deixa um sabor tão cruel...
Que o gosto da despedida
amarga mais do que fel!
- - - - - -
Revivendo os sonhos vãos,
pelo tempo, envelhecidos;
trocamos beijos pagãos
por beijos prostituídos!
- - - - - -
Se amas a luz do luar,
te encantas, com tanto brilho;
vê quanto brilho, há no olhar,
da mãe que amamenta o filho!
- - - - - -
Se nossas almas se enlaçam,
ouço fingidos rumores,
entre corpos- que se abraçam
nos braços de outros amores!
- - - - - -
Toda tarde, em meus cansaços
ouço os teus conselhos belos,
na cantiga de teus passos,
no estalo de teus chinelos!
- - - - - -
Um grande amor não fenece,
resiste ao tempo que passa;
quanto mais ele envelhece,
mais tem ternura e tem graça!
- - - - - –
Vida dura!... Mil percalços,
e, essa ausência, inesperada,
me deixa de pés descalços
no meio da caminhada!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Nilto Maciel (As Irreversíveis Lavas do Vesúvio)


Nunca consegui esquecer essa mulher que se grudou em meus olhos feito uma cegueira e tomou o lugar de todas as outras. De minha mãe, das santas de papel e gesso, das mocinhas fugidias, das heroínas dos compêndios de História, das personagens de ro­mances, das vedetes do cinema, das cantoras mortas, daquela com quem vivi quase uma vida. Dentro de mim, essa mulher ora me acalanta, ora me espreita, ora me sufoca. Doutras feitas, ora se mostra engrandecida, ora se faz sofrida, ora se enche de vida. Mais além é mero fulgor de sons, quando não me reclama ou não me espanta.

Depois de tanto tempo, agora, é como se eu e ela fôssemos o mito eterno e incriado de uma dor indefinível frente ao deses­pero ilimitado. No sonho, na vigília, na dimensão incompreen­dida da recriação.

Examinei-lhe o cadáver e persiste ainda em mim a vaga noção de tê-la viva – a mesma criatura daquele único, passageiro e casual encontro. Como se nos víssemos para além da vida e da morte – mitificados.

Seu corpo desfigurado pelo fogo me apavorou sempre, naquele dia, depois, agora. A mim, acostumado a conviver com mortos vindos das mais variadas formas de morrer. Não por re­encontrá-la defunta, semicarbonizada, mas por tê-la conhecido.

Desvendei-lhe a vida, do embrião à sepultura, numa investigação de celerado. Como se chamava, onde e com quem vivia, o que fazia e deixava de fazer, seus brinquedos, suas manias, seu jeito. Anos e anos dedicado a uma criatura sem biografia. E nada daquilo importava, a não ser para rebuscá-la inutilmente. Qual a importância de seu relacionamento com aqueles cabe­ludos que vagavam por ruas e estradas? Que significado tem a sua pouca fala sobre paz e amor, os hindus, Sidarta?

De tudo, talvez só o seu diário valha a pena ser preservado. E, para mim, hoje, quem sabe apenas a última anotação:

“Não sei onde anda o meu amigo, nem onde dormiu. Pode estar morto a estas horas, ou preso mais uma vez.”

Sua derradeira referência ao rapaz com quem andava, seu irmão de solidão, de quem eu nunca soube o paradeiro.

“De manhã vendi meu isqueiro a um desconhecido. To­quei-lhe o braço e fiz a oferta. Disse-me que não fumava e tra­tou de desvencilhar-se de mim. Tive ódio e comigo mesma cha­mei-o de porco, cachorro, miserável. Procurava com os olhos alguém que me ajudasse, quando ele voltou e perguntou por que eu queria vender o isqueiro. Olhava para mim com curiosi­dade, como se eu fosse um bicho estranho. Durou alguns mi­nutos nossa conversa e pude observar como se vestia bem, todo de branco, parecendo ser médico ou enfermeiro. Roupa lim­pa, corpo limpo, cheiroso. Senti desejo de abraçá-lo, beijá-lo. E ri de mim mesma, de minha tolice.

Falei de minha fome, da necessidade de dinheiro para com­prar comida. Não pensasse besteiras, podia confiar em mim, o isqueiro me pertencia de verdade, não costumava roubar. Meu lema era só paz e amor. Disse ainda uma porção de coisas, en­quanto ele apenas ouvia, metia as mãos nos bolsos, perguntava quanto eu queria pelo isqueiro. Notei sua pressa e tratei de fe­char o negócio. Pedi muito, esperando uma reação dele. Para minha surpresa, no entanto, ele me passou o dinheiro pedido, recebeu o isqueiro, disse adeus e retirou-se.

Ainda agora estou pensando no desconhecido. E também no dinheiro que ele trocou por um isqueiro. Nada mais me res­tou, porque o dinheiro eu o dei aos mendigos. E a fome passou. Quero só pensar em mim mesma.”

Termina aí o diário. E não há qualquer explicação para o suicídio, ocorrido ao escurecer.

Cabe a mim completar a história – essa pequena história vivida por ela e por mim.

Ao deixá-la, guardei o isqueiro no bolso e, enquanto caminhava para o carro, por uns dois minutos ainda me lembrei dela.

Ao chegar ao instituto, desfiz-me do maldito isqueiro. Ofe­reci-o a uma colega. Um mal-estar qualquer me indicava ser preciso apagar do espírito as imagens daquela menina.

Depois de jantar, informaram-me que me aguardava “um caso estúpido”. Lembro-me de ter perguntado se havia algum caso delicado naquela porcaria. “Uma garota se matou, tocou fogo às roupas”, completaram. Nem me passou pela cabeça a moça do isqueiro. Porém, ao ver o cadáver, tomei um susto. Seu ros­to, sua cara apavorada, parecia me dizer: “Cidadão, quer com­prar este isqueiro?”

Enquanto examinava a defunta, recordei o encontro da ma­nhã. Eu me havia compadecido daquela pobre criatura e em ne­nhum momento olhei para ela com olhos de cupidez. Pareceu­-me muito infeliz, não por andar suja, despenteada, faminta, mas por vender um isqueiro, como se vendesse o próprio corpo, para matar a fome.

Não tive palavras de conforto, de ajuda, de socorro, embo­ra haja pensado em falar das injustiças sociais, do desamparo à infância, à juventude, às pessoas em geral, fazer um discurso ético e político. Depois,  achei por bem apenas ouvi-la e aceitar a sua oferta.

Em determinados momentos senti que ela desejava uma aproximação maior, vender-me seu corpo, em vez do isqueiro, tal como está no diário. Ou simplesmente oferecê-lo de graça, tanta me pareceu sua solidão. Seu olhar transmitia isso. Eu, no entan­to, nenhum desejo senti, não por repugnância ao estado de seu corpo ou qualquer outro escrúpulo, mas por estar cheio de outros sentimentos.

Ao constatar o vazio de seu estômago, tive ímpetos de chorar, gritar, acordá-la, dar-lhe vida. E me senti impotente, inú­til, frágil, como se eu mesmo estivesse morto.

A partir daquele dia, ela não mais me deixou e, onde quer que eu esteja, ela me acompanha, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia. Aquele último dia dela cai sobre mim feito o Vesúvio – lavas irreversíveis.

Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon)


A obra O calor das coisas, de Nélida Piñon, é um livro de contos que tratam de circunstâncias presentes no cotidiano das pessoas. São treze histórias nas quais é fácil perceber as mesmas preocupações da autora: a importância da palavra e a manipulação política da linguagem. Desta vez, porém, há uma grande carga de humor. De fina ironia e construção complexa para desvendar os mais recônditos cantões da alma de seus personagens.

Nélida utiliza imagens belas e delicadas para tratar das paixões humanas. Seus enredos, sempre originais, muitas vezes confundem-se com o discurso. Nélida alterna poesia e crítica, racionalidade e erotismo em páginas de leitura voraz e provocadora.

A obra de Piñon é instigante e envolvente. Ela traz em sua estrutura temática o desdobrar e o atualizar em cada publicação, seja de romances, de contos ou de ensaios. Reflete em sua obra a preocupação constante com questões referentes à criação do texto, à linguagem, à religião (panteísta ou cristã), ao mito, ao amor associado aos questionamentos do cristianismo, à paixão, à solidão humana e, entre outras, à realização feminina

Nesta obra têm-se personagens do mundo contemporâneo vivendo momentos significativos – mas não necessariamente excepcionais – e historicamente marcados.

A multiplicidade das histórias deixa ver um certo número de temas recorrentes, que se espelham entre si e se desenvolvem uns aos outros. Tem-se assim, por exemplo, o tema fantástico da união (im)possível de espécies diferentes e o da mutação humana, o do incesto e o da homossexualidade. Em todos os casos tem-se o homem infrator, ora por sua ação, ora pela inação que, nesses contos, não significa jamais fraqueza mas escolha e assunção de força. Esse homem infrator exige, limpa, ordena, organiza, que tais são os verbos recorrentes na gramática nelidiana.

Nas histórias que nesse livro se conta, não há reorganização (construção) do mundo destruído pelos personagens, pelas circunstâncias, pela narração. Quando ocorre, a auto-organização do protagonista implica a desvalorização de seu contexto, que só lhe interessa como cenário, palco de experiências próprias e não partilháveis.

De fato, tem-se nesses contos, em vários níveis e em vários matizes, a mesma narrativa de solidão, em que toda relação interpessoal é vista como radicalmente impossível e na qual é lesiva toda tentativa nesse sentido.

É por isso que não se pode, a rigor, falar da existência de diálogos nesses textos. Entre os personagens só há monólogos e o preenchimento do silêncio pelo pastiche do lugar-comum, falas que apontam o vazio de que são feitas.

Os contos “O calor das coisas”e “A sombra da caça” destacam-se na composição do livro de que participa. O primeiro por dar nome à coletânea de que faz parte, o outro por ocupar o significativo lugar de último conto do livro, como a indicar que nele se poderia buscar (como nos romances policiais) a chave para o(s) mistério(s) de sentido que se teriam enovelado até então.

Se, quando apreciados tematicamente, vê-se atravessar tais textos o sentimento de erosão, este também se exprime na linguagem. Assim, já à primeira abordagem, a dicção destes contos se mostra provocadora, elaborando uma narrativa densa, que exige toda a atenção do leitor para a percepção do seu sentido. Pode-se mesmo dizer que o discurso nelidiano revela-se uma experiência sobre as possibilidades de expressão da tensão pensamento/linguagem fora da norma linguística e que daí advém a dificuldade que oferece a seu leitor.

Nesse discurso pode-se também identificar a presença de alguns aspectos da retórica do “carnaval”, tais como o estilo grotesco como em “O calor das coisas” e “O sorvete é um palácio”.

É a presença do mecanismo da paródia que melhor caracteriza a estruturação dos mais significativos textos do livro em questão. Através de tal procedimento perpassam os mais bem sucedidos nesses contos, narrativas advindas de lugares tão variados quanto a Bíblia em “O jardim das oliveiras”; o repertório artístico popular brasileiro em “Disse um campônio a sua amada”; um determinado corpus de valores e padrões de comportamento em “I love my husband” ou “Tarzan e Beijinho”. Esses textos básicos (e considera-se como texto também o conjunto de valores e padrões de comportamento vigentes a partir dos anos 60 do século XX) constituem o indispensável pano de fundo do conto nelidiano, que os relativiza sem jamais os anular.

Estão, assim, sempre presentes, indicando o quanto o discurso da autora deles se serviu e o quanto deles se afastou e assinalando, dessa maneira, a tonalidade irônica desse discurso. Assim, por exemplo, a agonia de Cristo é convocada na expressão da angústia daquele que renega seus antigos valores, em “O jardim das oliveiras”, primeiro conto da obra. Este conto narra, em primeira pessoa, a história de um preso que não suporta ser torturado, que examina os horrores da ditadura e a covardia moral dos seres humanos. Assim como Pedro nega Cristo, o protagonista desta história pretende negar
a si mesmo.
___________________________
continua: análise dos contos .

Fonte:
Elvia Bezerra para o Passeiweb.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 460

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 14


É verão. Chuvas aguaceiras. Fugazes, ligeiras, logo vão. Parecem arremedar o tempo e o vento e a vida - passageiros. Mas não! Estes têm a constância do efêmero. As chuvinhas caem aqui, ali e acolá. Logo desaparecem.

E o tempo? Fala-se tanto do tempo. Tempo é o senhor. Tempo sobra. Tempo é remédio. Tempo falta. Tempo é linimento.

" Tempo é o que existe, inexistindo ", escreveu o poeta. O tempo dá voltas, volteios, volteadas. E assim chegamos a outro cruzeiro na convenção humana do tempo. Mudamos de ano, Mas o cruzeiro segue.
 
Refletir sobre o que passou. Benefícios. Malefícios. Mas essencialmente seguir abrindo portas, buscando caminhos e alternativas - como a água - desviando os obstáculos. Lembrando da interdependência e de que tudo é impermanente. Desavenças, tristezas, bem-estar, alegrias, doenças, morte, tudo é Devir. Tudo vem a ser, acontece e passa.

Essa é a trilha da vida. Seguir sempre, nos adaptando, harmonizando com seres e Natureza - partículas que somos do cosmo. Como escreveu o pensador, " O essencial é o caminhar - a alegria não está no final do caminho, ela é o caminho ".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Mário Quintana em Prosa e Verso 11


A RUA DOS CATAVENTOS

I


Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando.
****************************************

II

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos...

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...
****************************************

III

Quando os meus olhos de manhã se abriram,
Fecharam-se de novo, deslumbrados:
Uns peixes, em reflexos dourados,
Voavam na luz: dentro da luz sumiram-se...

Rua em rua, acenderam-se os telhados.
Num claro riso as tabuletas riram.
E até no canto onde os deixei guardados
Os meus sapatos velhos refloriram.

Quase que eu saio voando céu em fora!
Evitemos, Senhor, esse prodígio...
As famílias, que haviam de dizer?

Nenhum milagre é permitido agora...
E lá se iria o resto de prestígio
Que no meu bairro eu inda possa ter!...
****************************************

IV

Minha rua está cheia de pregões.
Parece que estou vendo com os ouvidos:
"Couves! Abacaxis! Caquis! Melões!"
Eu vou sair pro Carnaval dos ruídos,

Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões
Horrorizado as mãos em teus ouvidos?
Anda: escutemos esses palavrões
Que trocam dois gavroches* atrevidos!

Pra que viver assim num Outro plano?
Entremos no bulício quotidiano...
O ritmo da rua nos convida.

Vem! Vamos cair na multidão!
Não é poesia socialista... Não,
Meu pobre Anjo... É.. simplesmente... a Vida!...
****************************************

V

Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda*,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...
****************************************

VI

Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o Sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...

Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente…
****************************************
* Esbarronda – desmorona.
* Gavroches – moleques.


Fonte:
Mário Quintana. A Rua dos Cataventos. Publicado em 1940.

Estante de Livros (A Falecida, de Nelson Rodrigues)


análise pela Profa. Sônia Targa.


A Falecida, 1ª tragédia carioca, foi considerada um marco na obra de Nelson Rodrigues. Pela primeira vez o autor aproveitou sua experiência na coluna de contos A vida como ela é… para retratar o típico subúrbio carioca, com suas gírias e discussões existenciais. Os cenários passaram do “qualquer lugar, qualquer tempo” das peças míticas, para a Zona Norte carioca dos anos 50. Os personagens não representam mais arquétipos nem revelam alguma parte escusa da alma dos brasileiros. O que Nelson Rodrigues mostra agora é o cotidiano vulgar dos brasileiros. A falta de dinheiro, as doenças, o dedo no nariz das crianças, as pernas cabeludas de uma mulher, as cartomantes picaretas e o lado mais grosseiro da vida serão presenças constantes em suas peças daqui para frente.

A linguagem coloquial e repleta de gírias assustou a plateia do Teatro Municipal, afinal ninguém imaginaria colocar longos vestidos de veludo para assistir a uma peça onde o protagonista fala sobre futebol. Passado o estranhamento inicial da plateia com o “carioca way of life”, Nelson Rodrigues faz as pazes com o seu sucesso comercial. Talvez porque suas tragédias, quando viradas do avesso, comportem-se como comédias, preferência brasileira nos anos dourados.

Escrita em 26 dias, A Falecida foi encenada pela Companhia Dramática Nacional e recebeu direção do quase estreante José Maria Monteiro. Nos bastidores, Nelson Rodrigues apaixonou-se perdidamente por Sônia Oiticica, intérprete da protagonista feminina Zulmira. Apesar de se sentir lisonjeada com os galanteios do famoso dramaturgo, Sônia não lhe deu bola e, educadamente, deu a entender que era muito bem casada. A delicadeza, entretanto, não conseguiu evitar que o coração do dramaturgo se partisse pela primeira vez depois do fim do casamento com Elsa.

A Falecida conta a história de uma mulher frustrada do subúrbio carioca, a tuberculosa Zulmira, que não vê mais expectativas na vida. Pobre e doente, sua única ambição é um enterro luxuoso. Quer se vingar da sociedade abastada e, principalmente de Glorinha, sua prima e vizinha que não lhe cumprimenta mais. Zulmira tem uma relação de competição com a prima, chegando até mesmo a ficar feliz quando sabe que a seriedade da prima provém de um seio arrancado pelo câncer.

O marido, Tuninho, está desempregado e gasta as sobras da indenização jogando sinuca e discutindo futebol. Um pouco antes da hemoptise fatal, Zulmira manda Tuninho procurar o milionário Pimentel para que pague o enterro de 35 mil contos (o sepultamente normal, na época, não chegava a um conto!). Zulmira não dá maiores explicações nem diz como conhece o empresário milionário. Pede apenas para que o marido se apresente como seu primo.

Tuninho vai até a mansão de Pimentel e acaba descobrindo que ele e Zulmira foram amantes. Toma-lhe o dinheiro e, depois de ameaçar contar tudo a um jornal inimigo de Pimentel, consegue lhe arrancar mais ainda, supostamente para a missa de sétimo dia. Tuninho dá um enterro “de cachorro” à Zulmira e aposta o dinheiro todo num jogo do Vasco no Maracanã.

Como definir A Falecida? Tragédia, drama, farsa, comédia? Valeria a pena criar o gênero arbitrário de ‘tragédia carioca’? É, convenhamos, uma peça que se individualiza, acima de tudo, pela tristeza irredutível. Pode até fazer rir. Mas se transmite uma mensagem triste, que ninguém pode ignorar. Os personagens, os incidentes, a história, tudo parece exprimir um pessimismo surdo e vital. Dir-se-ia que o autor faz questão de uma tristeza intransigente, como se a alegria fosse uma leviandade atroz”.

A Falecida revolucionou o teatro brasileiro da época ao abordar uma temática extremamente carioca. Foi a primeira de muitas peças onde Nelson Rodrigues colocou suburbanos frustrados e fracassados como protagonistas. Suas tragédias cariocas são mais simples que suas peças míticas, não há tantos símbolos e poesia. Em contrapartida, foi graças a elas que o brasileiro pôde se reconhecer no palco. O sucesso comercial foi muito grande e essas foram as peças mais assistidas de Nelson Rodrigues.

Para retratar fielmente o suburbano e sofrido carioca, Nelson Rodrigues trocou a poesia e as metáforas pela linguagem coloquial. As personagens conversam sobre temas triviais, comentam assuntos populares e usam muitas gírias. O autor foi muito feliz na escolha delas, já que a grande maioria transfere o leitor contemporâneo diretamente para a década de 50. Com faro para descartar modismos, Nelson Rodrigues usou em A Falecida expressões como “a polícia não é sopa”, “pintar o sete”, “pernas de pau”, “cabeça inchada”, “é batata!”, etc. Tem espaço até mesmo para as abreviações da linguagem falada, como “té logo!”, e estrangeirismos, como “all right” e “bye, bye”.

A ironia e o deboche são as características mais marcantes em A Falecida. A visão do autor é extremamente pessimista, como se no final tudo sempre estivesse predestinado a dar errado. A cartomante consultada por Zulmira numa das primeiras cenas perde o sotaque afrancesado assim que recebe o dinheiro. O filho da cartomante passa toda a consulta com o dedo no nariz, plantado ao lado da mãe. O médico, cujo nome é Borborema, diz que Zulmira não tem tuberculose, é apenas uma gripe.

Aliás, nenhum médico consultado pela protagonista lhe deu o diagnóstico certo. Determinada hora, Tuninho é mandado embora do jogo de sinuca por uma dor de barriga violenta. Assim que chega em casa, corre para o banheiro, mas está ocupado por Zulmira. Uma cena antológica acontece quando Tuninho consegue sentar no vaso e, com a mão no queixo, simula a atitude de O Pensador, escultura de Rodin.

Para conseguir mostrar com mais profundidade a realidade dura do subúrbio, Nelson Rodrigues apela para o vulgar e o grotesco.

Belos cavalos de enterros chiques são odiados porque soltam fezes pelo caminho. A mãe de Zulmira fica sabendo da morte da filha enquanto “coça as pernas cabeludas”. A prima da protagonista, Glorinha, é loira, mas oxigenada. Foge da praia não por timidez do maiô, como acreditava Zulmira, mas sim porque o câncer lhe extirpou um dos seios. Zulmira, por sua vez, tinha um cheirinho de suor que agradava o amante. O ódio que Zulmira sente do marido vem desde a lua de mel, quando ele lavou as mãos depois do ato sexual.

A falta de ilusão e o pessimismo feroz do autor mostram à plateia uma Zulmira enganada até mesmo na hora da morte, quando ela é enterrada no caixão mais barato da funerária – contrariando a regra da cultura ocidental de que o último pedido de um moribundo é lei. As personagens são mostradas em situação nada glamourosas, como espremendo cravos nas costas, fazendo necessidades no banheiro, etc.

Às avessas, A falecida é uma comédia das mais rasgadas. O dramático aparece em muitas cenas como digno de risadas. Determinada momento do 2° ato, o autor coloca na rubrica da cena em que Tuninho está viajando de táxi: “Luz sobre o táxi, em que viaja Tuninho. Táxi, evidentemente, imaginário. O único dado real do automóvel é uma buzina, gênero ‘fon-fon’, que o chofer usa, de vez em quanto. A ideia física do táxi está sugerida da seguinte forma: uma cadeira, atrás da outra. Na cadeira da frente vai o chofer, atrás, Tuninho. O chofer simula dirigir, fazendo curvas espetaculares”. Em outro momento, discute-se as razões que levaram Zulmira a se recusar a beijar o marido na boca:

“Tuninho – Afinal de contas, eu sou o marido. E se eu, por acaso, insisto, que faz minha mulher? Fecha a boca!

Cunhado – Muito curioso!

Tuninho – Mas como? – perguntei eu à minha mulher – você tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo e disse assim mesmo: ‘Tuninho, se você me beijar na boca, eu vomito, Tuninho, vomito!’

Sogra – Ora veja!

Cunhado (de óculos e livro debaixo do braço) – Caso de psicanálise!

Outro – De quê?

Cunhado – Psicanálise.

Outro (feroz e polêmico) – Freud era um vigarista!”


Esta cena serve também para ilustrar o cuidado de Nelson Rodrigues com a caracterização das personagens de A Falecida. A personalidade tanto dos protagonistas quanto das personagens secundárias é revelada, muitas vezes, em apenas uma única frase. Às vezes, como no caso retratado acima, basta uma aparição no palco para a plateia se dar conta do tipo de pessoa. Primeira heroína frustrada de Nelson Rodrigues, Zulmira trai porque não vê muita motivação no seu mundinho.

Não tem dinheiro, não tem divertimento e não tem mais esperança de que sua vida possa mudar. Por isso concentra-se na sua morte, ou seja, em planejar nos mínimos detalhes o seu enterro de luxo. Seu marido Tuninho também é frustrado e infeliz. Não se acha capaz de conseguir um novo emprego e, por isso, resolve passar o tempo com os amigos, na praia, jogando sinuca ou falando sobre futebol. Todos têm em comum o fato de não terem o destino da vida nas mãos.

A grande inovação estrutural de Nelson Rodrigues em A Falecida está na troca de protagonistas que acontece no 3° ato. Zulmira tem a ação nas mãos nos dois primeiros atos, quando pesquisa preços para o seu enterro e visita médicos para se certificar de que está mesmo com tuberculose.

No final do 2° ato, a suburbana morre e passará o comando da peça para o marido, Tuninho. A partir daí, ele vai atrás de Pimentel para conseguir o dinheiro do enterro e descobre a traição de sua mulher. O foco narrativo muda, portanto, no meio da peça.

Mas Zulmira também tem aparições esporádicas no 3° ato, principalmente para elucidar aspectos ainda nebulosos de sua personalidade. Na cena em que Pimentel está revelando a infidelidade de Zulmira, Tuninho arrasta a sua cadeira e se coloca diante do quadro, na mesma posição de um observador da plateia. Aparece então Zulmira, que reproduz com Pimentel o contexto da traição.

O corte do flashback acontece com um grito de Tuninho, histérico com a “coragem” da mulher em traí-lo no banheiro de uma lanchonete enquanto ele esperava na mesa. Voltar no tempo para contar a traição de Zulmira foi uma solução bastante eficiente encontrada por Nelson Rodrigues. Se a história fosse apenas contada por Pimentel a Tuninho, a cena ficaria monótona e perderia parte de seu conteúdo dramático.

Outra novidade presente em A Falecida é a multiplicidade de cenários. Zulmira vai à cartomante, ao banheiro, ao quarto, à Igreja, à casa dos pais, à funerária e ao consultório, até morrer de hemoptise. Tuninho aparece num táxi, numa sinuca, na mansão do empresário Pimentel e até mesmo no Maracanã. Para poder abarcar tantas mudanças, o espaço é vazio e o único objeto fixo são as cortinas. Ao contrário do que possa parecer, a peça não ficou fragmentada e o resultado saiu original.

Frases

“A solução do Brasil é o jogo do bicho! E, minha palavra de honra, eu, se fosse presidente da República, punha o Anacleto (bicheiro) como ministro da Fazenda”.
Timbira, funcionário da funerária

Estou com uma pena danada do Tuninho… A mulher morre na véspera do Vasco X Fluminense… O enterro é amanhã… Quer dizer que ele não vai poder assistir ao jogo… Isso é o que eu chamo de peso tenebroso!…”.
Oromar

Mas como? – perguntei eu a minha mulher – você tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo e disse assim mesmo: ‘Tuninho, se você me beijar na boca, eu vomito, Tuninho, vomito!'”.
Tuninho

A mulher de maiô está nua. Compreendeu? Nua no meio da rua, nua no meio dos homens!”.
Zulmira

Fonte:
Jayro Luna.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 17 –

 


Gregório Duvivier (Abraço Caudaloso)


Amizade entre cronistas é um perigo: todo papo esbarra em crônica, já que toda crônica é uma espécie de papo. Foi numa conversa com o Antonio Prata, meu ex-amigo-platônico
“ex” não por não ser mais amigo mas por não ser mais platônico – que a bola começou a quicar. “Isso dá uma crônica”, ele disse. Mas nenhum dos dois escreveu, por escrúpulos de estar roubando a ideia do outro. Eu, que tenho menos escrúpulos e menos ideias, resolvi escrever.

Palavras, percebemos, são pessoas. Algumas são sozinhas: Abracadabra. Eureca. Bingo. Outras são promíscuas (embora prefiram a palavra “gregária”): estão sempre cercadas de muitas outras: Que. De. Por.

Algumas palavras são casadas. A palavra caudaloso, por exemplo, tem união estável com a palavra rio – você dificilmente verá caudaloso andando por aí acompanhada de outra pessoa. O mesmo vale para frondosa, que está sempre com a árvore. Perdidamente, coitado, é um advérbio que só adverbia o adjetivo apaixonado. Nada é ledo a não ser o engano, assim como nada é crasso a não ser o erro. Ensejo é uma palavra que só serve para ser aproveitada. Algumas palavras estão numa situação pior, como calculista, que vive em constante ménage, sempre acompanhada de assassino, frio e e.

Algumas palavras dependem de outras, embora não sejam grudadas por um hífen – quando têm hífen elas não são casadas, são siamesas. Casamento acontece quando se está junto por algum mistério. Alguns dirão que é amor, outros dirão que é afinidade, carência, preguiça e outros sentimentos menos nobres (a palavra engano, por exemplo, só está com ledo por pena – sabe que ledo, essa palavra moribunda, não iria encontrar mais nada a essa altura do campeonato).

Esse é o problema do casamento entre as palavras, que por acaso é o mesmo do casamento entre pessoas. Tem sempre uma palavra que ama mais. A palavra árvore anda com várias palavras além de frondosa. O casamento é aberto, mas para um lado só. A palavra rio sai com várias outras palavras na calada da noite: grande, comprido, branco, vermelho – e caudaloso fica lá, sozinho, em casa, esperando o rio chegar, a comida esfriando no prato.

Um dia, caudaloso cansou de ser maltratado e resolveu sair com outras palavras. Esbarrou com o abraço que, por sua vez, estava farto de sair com grande, essa palavra tão gasta. O abraço caudaloso deu tão certo que ficaram perdidamente inseparáveis. Foi em Manoel de Barros. Talvez pra isso sirva a poesia, pra desfazer ledos enganos em prol de encontros mais frondosos.

Fonte:
Blog da Língua Portuguesa

Ronnaldo de Andrade (Caderno de Trovas)


Abraça-me com ternura,
dá-me um pouquinho de amor,
afasta minha amargura
e apazigua a minha dor.
- - - - - -
Acorda, amor! Veja o sol,
à porta, chamando a gente,
para ver seu arrebol
na casa do sol nascente.
- - - - - -
Acredito ser verdade,
este amor que por mim sente.
Mas vivamos da saudade
do que foi o amor da gente.
- - - - - -
Agora você me diz:
“Por favor, não se acostume...
Não lhe quero, nunca quis;
eu só quis fazer ciúme...”
- - - - - -
Amanhã pode ser tarde,
pra entregar seu coração,
a este alguém que hoje arde,
chora e sofre de paixão.
- - - - - -
As flores do meu jardim
morreram todas depois
que você fugiu de mim,
levando junto nós dois!
- - - - - -
Banhado por seu olhar,
ao som do seu violão,
eu me ponho a passear
nos jardins do coração.
- - - - - -
Chego a perder o sentido
quando me encontro em seus braços,
e fico muito esquecido
no calor dos seus abraços.
- - - - - -
Cheguei ao fundo do poço,
quando você me deixou,
e ao voltar, ainda moço,
a esqueci, você passou!
- - - - - -
Com esta caneta escrevo
esta trova de saudade
para você... mas eu devo
alertar que é de amizade.
- - - - - -
Cuidaste tão bem de mim,
que eu hoje me sinto mal,
por ter te falado assim:
“Acabou, ponto final!”.
- - - - - -
De modo muito singelo
nosso amor galgou vitória...
É grande o nosso castelo,
mas sobressai nossa história!
- - - - - -
Deus lhe pôs no meu caminho,
pra não me ver sofrer mais.
Você, Rosa sem espinho,
calou todos os meus ais.
- - - - - -
Eu chego a perder o sono,
pensando em ti, minha flor.
Não quero ser o seu dono,
e sim o seu beija-flor.
- - - - - -
Fazendo os dias amenos,
acalmo minha agonia,
de quando, dos sonhos plenos,
acordo – a cama vazia!
- - - - - -
Foi o tempo, um adversário,
em meu cenário de amor,
truculento, sanguinário;
mas eu saí vencedor.
- - - - - -
Fui em sua vida um nada,
e nada serei... Assim,
ao me encontrar pela estrada,
vê se não olha pra mim.
- - - - - -
Não sai de minha memória
a nossa história de amor;
você, sua trajetória,
seu desejo abrasador...
- - - - - -
Na tela do meu cinema
você foi e ainda é,
o filme do meu dilema:
amor, angústias e fé!
- - - - - -
Neste poema humilde e breve,
eu choro a perda de alguém,
que esta boca não se atreve
falar seu nome a ninguém.
- - - - - -
Nos palcos de minha vida,
você foi minha Iracema;
a poesia transmitida
na tela do meu cinema!
- - - - - -
Nosso amor é muito lindo
e gostoso de se ver,
que nem mesmo, Amor, fingindo,
conseguirei esquecer.
- - - - - -
Nunca chega o amanhecer,
quando o coração padece
de tanto amor, de querer
alguém que não nos merece!
- - - - - -
Olhe bem para o jardim,
veja como está feliz.
Eu só quero ser assim,
com você, ó flor-de-lis!   
- - - - - –
O nosso amor não é lenda
e nem um conto de fada.
Talvez eu lhe surpreenda:
ele é só amor e mais nada!
- - - - - -
Os sonhos que sonho são
delírios desta minh’alma
que, se entregando à paixão,
perdeu a razão e a calma.
- - - - - -
Percebo que lhe perdi,
mas não deixo de lhe amar.
Foi ótimo o que vivi
com você, meu Céu, meu Mar.
- - - - - -
Perdoe-me se fui covarde,
Não era a minha intenção
dizer a você bem tarde:
– Não me dê seu coração!
- - - - - -
Por causa do teu ciúme
me afastei, fiquei distante;
porém isso não resume
quanto me foste importante.
- - - - - -
Quando você põe em mim
seus lindos olhos azuis,
minha tristeza tem fim
e os meus enche-se de luz.
- - - - - -
Queria ser uma abelha,
pra pousar nessa boquinha
aveludada e vermelha,
que parece uma florzinha.
- - - - - -
Seus olhos são diamantes,
valiosos, minha querida.
São raros, são fascinantes,
por eles dou minha vida.
- - - - - -
Seus olhos têm um feitiço
que me prende e me domina;
eles me fazem submisso
a você, mulher menina.
- - - - - -
Sim, todas estas poesias
e as lágrimas que derramo,
lembram-me todos os dias,
que é você que ainda eu amo.
- - - - - –
Sinto faltar um pedaço
de tudo que existe em mim.
Sou planeta sem espaço
sem você, meu Querubim.
- - - - - -
Sofreu sem fazer alarde,
a dor dum amor desfeito.
Hoje sei bem o quanto arde,
pois sofro do mesmo jeito.
- - - - - -
Sofro de amor, de paixão,
nessa minha vida inglória.
Por não ter mais ilusão,
ponho um ponto nessa história!
- - - - - -
"Trilha amarga. Que desgosto"
sentir o gosto da dor,
e ver em todo meu rosto
as marcas do dissabor! .
- - - - - -
Vá-se embora! Tem razão...
Mas, por favor, não se queixe
se na maré de... ilusão
nunca mais encontrar peixe.
- - - - - -
Vê se acorda, coração,
vive sonhando profundo...
Saiba que o amor é ilusão:
a pior de todo o mundo.

Fonte:
Trovas enviadas pelo trovador.