quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Eduardo Affonso (O pior leitor é aquele que não quer ler)

Toda mulher quer ser amada, disse a Rita Lee.
Todo homem, também.

Ser amado é fácil. Basta encontrar alguém que não nos conheça a fundo.

Quem escreve quer mais que ser amado: quer ser compreendido.

Quer dizer “A” e ter a ilusão não apenas de que o leitor entenda “A”, mas que “A” signifique para quem lê algo parecido com o que significa para ele, que escreve.

Por isso é que, mais que inspiração e domínio do idioma, o escritor precisa de bons leitores.

Pode parecer uma paulocoelhice, mas o bom leitor é aquele que lê.

A maioria das pessoas não lê. Apenas foi alfabetizada – seja pelo método fonético do Ivo viu a uva ou pela pedagogia do oprimido, na qual é o patrão explorador de Ivo quem vê, vende ou devora a uva, e Ivo fica a ver navios.

O verbo “ler” vem de “legere”, que significava, originalmente, “colher, escolher”, selecionar os melhores frutos no pé, na parreira.

Ivo não só viu a uva. Ao ler a palavra “uva”, Ivo a colheu.

Assim como “cultura”, que era apenas o ato de cultivar plantas (cultura de café, cultura de cana de açúcar) e adquiriu depois o sentido de cultivar o intelecto (cultura artística, cultura geral), o verbo “ler” passou a designar o que se colhe com os olhos, o que se percebe através das letras, das palavras.

De uns tempos para cá, “ler” começou a ser uma colheita seletiva às avessas – não dos melhores frutos, mas dos bichados, bicados, imaturos, apodrecidos. Lê-se o que se quer ler, não o que se quis dizer ou o que está dito. Lê-se por meio de falácias, de silogismos. Nas entrelinhas, nas entreletras, pelo avesso.

Ler deveria ser uma forma de aprender (trazer para junto de si, levar para a memória), não de aprisionar.

Ambos – aprender e aprisionar – vêm do verbo “prehendere” (agarrar, prender), que também (como “ler” e “cultura”) tem origem rural: “prae” (à frente) + “hedera” (hera) = a trepadeira que se agarra às paredes para crescer.

Quem escreve quer ser lido (colhido), compreendido (acolhido) e amado (de “amare”, verbo que gerou amor, amigo, mãe). Talvez porque escrever (do latim “scribere”) seja, lá na sua gênese, o mesmo que cortar, fazer uma incisão.

Ao escrever, o escritor se abre. É preciso ter olhos amorosos (de mãe, de amigo, de amante) para ler (colher) os melhores frutos dessa vinha, dessa ferida.

Ler o que está fora de nós, e que o outro nos trouxe, é compreensão, aprendizado.

Ler no que o outro escreveu o que já trazemos dentro é uma forma de prisão.

Fonte:
Blog do Autor

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 464

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 15


Pois amanheci pensando na vida, no viver, nas vivências. Buscamos as transcendências que às vezes nem imaginamos. Costuramos sonhos, labutas e vilegiaturas que fazem crescer o caldo dos dias. Caldos doces, alguns, amargos, outros. Alguns, insípidos. Muitos, deliciosos.

Vamos transformando os dias numa crônica que acaba virando um
romanção. Cada um escreve o seu romance - páginas e páginas de vida que são narrativas boas ou más, neste mundo de dualidades, onde nos acostumamos a viver dando arras aos pendores e convicções, misturando fainas com os momentos de merecido lazer e - lá na frente - deixaremos um calhamaço de bons ou maus exemplos que fizeram a nossa história.

Oxalá o livro da caminhada de cada um seja uma constante de bons momentos mesclados com o remelexo do dia a dia.
 
Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Izo Goldman (Trovas Humorísticas) - 1 -


A mini saia amarela
da professora, eu bendigo...
pois, em frente à mesa dela
é que eu fiquei de castigo!...
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A noiva esconde a... "cintura"...
com as dobras do vestido;
e, na igreja, alguém murmura:
– Casório... pré concebido...
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Ao galo meio inibido,
diz a pata sem recato:
–  Não tenha medo, querido,
meu marido é mesmo um... pato!!!
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Ao ver um vulto suspeito,
o ciumento não poupa:
dá dois tiros bem no peito
do espelho do guarda-roupa…
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Cara cheia... Perna bamba,
ele mesmo se conforta,
olha a rua e diz: – "Caramba!"
Nunca vi rua mais torta!..."
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"Casamento... – alguém já disse –
é chegar à encruzilhada
onde acaba a criancice
e começa a criançada..."
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"Causa mortis" de um otário:
alergia ou resfriado.
Espirrou dentro do armário,
e o marido estava armado!
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Da vaidade ela se exime,
é gorda mas não se importa.
Em vez de fazer regime,
mandou aumentar a porta!
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Diz o Zezinho, zangado,
do zero que recebeu:
– Não acho que escreva errado,
se escrevo, o "pobrema" é meu!...
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É tão magro que de frente,
parece que está de lado,
e de lado, simplesmente,
nem pode ser avistado...
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Explicava, minha amiga,
os muitos filhos que tem:
– "De dia o marido briga,
de noite... fica de bem..."
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Ficou rico o Zé Maria
na seca do Juazeiro,
vendendo "fotografia
de chuva"... por "dois cruzeiro"…
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Na briga que o meu cabelo
e a careca estão travando,
lamento ter dizê-lo,
a careca está ganhando...
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No paraquedas, fechado,
uma etiqueta dizia:
– "Se falhar ao ser usado,
reclame. Tem garantia..."
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No seu discurso que cansa,
o candidato ao Congresso
me lembra que "a inguinorança"
é que "astravanca o pogresso"...
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O pai da moça, que é mau,
chega em casa e acaba o "baile"...
É que o Zé, "cara-de-pau",
tava namorando em... "braile"!!!
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O parafuso anda cheio,
pois tem o corpo enrolado,
cabeça partida ao meio
e vive sendo apertado...
--------------
Pergunta o padre ao noivinho:
– "É de espontânea vontade?"
e ele respondeu baixinho:
– "Não senhor... necessidade!..."
--------------
Quando abraço mulher feia
que não seja minha amiga,
ou estou de "cara cheia"
ou separa... porque é briga…
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Quando pergunta o burrinho,
diz a mula, envergonhada:
– "Tu nasceste, meu filhinho,
por causa de uma... burrada!..."
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Sai do museu, braço dado
com sua sogra, o Sinfrônio;
e o guarda grita, alarmado:
"Tão roubando o patrimônio!"
--------------
Se ao telefone um amigo
me pede "algum" emprestado,
eu disfarço a voz e digo:
– Senhorrr ligarrr enganado!...
--------------
Tenho medo de mulher
com marido, e mesmo sem...       
– da solteira, porque quer...
– da casada, porque tem...
--------------
Todo "barbeiro" sustenta
que a batida foi assim:
– Veio um poste a mais de oitenta,
na contra-mão, contra mim!...
--------------
Vendo alguém varrer o chão,
ele deita de comprido
e dá logo a explicação:
"Quero ser... doido varrido..."

Fonte:
Izo Goldman. Trovas de quem ama a trova.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) 6. Conto – Tarzan e Beijinho

TARZAN E BEIJINHO


Ambiente:
Rio de Janeiro, Malibu, a vida de exilados.

Foco narrativo:
Primeira pessoa.

Personagens:

Tarzan e Beijinho: homem e mulher brasileiros que tentam desvendar o seu país.
 
Narrador: 
Espectador da vida de Tarzan e Beijinho.

Beijinho e Tarzan, irmãos que são sobrinhos de Tia Gênia, uma exímia contadora de histórias. Juntos com seus amigos (inclusive o "descrente" Baguinho), eles criam as mais diversas fantasias: até um barco!

Conheci Tarzan e Beíjinho em Malibu, antes de se transferirem para o Leblon, uma praia que havia tragado o coração de almirantes batavos e sereias, litorâneas. Viviam em Malibu como se ainda pisassem as araras de Cabo Frio. Para tanto recorrendo a símbolos nacionais, desde o azeite de dendê, até à flâmula rubro-negra. E quando uma pergunta lhes soava particularmente delicada, respondiam em português, teimando em apelidar de João a Mr. Blackmur. A nostalgia do exílio, longe de debilitá-los, poupava-os de qualquer desgosto. Assim, sempre que lhes falavam de Copacabana, como um sonho distante no horizonte. - Beijinho dizia, para eu traduzir:

— Ah, a invernada de Olaria.

Eu não sabia explicar a frase a Mr. Blackmur. Havia um país a preservar. E nós éramos o país deixado atrás à altura do Rio de Janeiro. Tratava-se sim de uma festa móvel, celebrada em qualquer estação do ano, e para a qual a população era convocada. Todo o morro descia para o espetáculo. Cabia ao destino indicar os protagonistas de um festejo a que jamais faltavam bebidas, sangue e alegria.

—E quem separa a alegria da tristeza! - disse Tarzan, para que o aplaudíssemos. Beijinho prontamente condenou-lhe a antinomia em desuso, criada com intenção de ferir a uma das raças mais nobres do hemisfério.

— E a que raça ofende sem querer?

— Os ciganos. Eles choram privados de qualquer critério. Nunca sabem se é de alegria ou de tristeza. Por favor, Tarzan, não me venha mais com metáforas. Como pode ser um homem do mundo se ainda recorre às heranças deixadas no chão e pisoteadas por todos.

Induzido por Beijinho, que recém tingira o cabelo de louro, Tarzan compreendeu que deviam regressar à pátria. Mais econômico seria fingir no Rio que estavam em Malibu. O cargueiro holandês cuidou em trazê-los junto à coleção de conchas, búzios, cavalos-marinhos, o pinguim empalhado, toda a imensa concentração de salitre e mineral que Tarzan e Beijinho haviam recolhido do fundo do mar. Certa vez, eles me confessaram, no fundo do mar encontram-se nossos corações, é preciso ir ( bem fundo para ouvir-lhes as pulsações. Teria sido: um convite para eu fugir deles, me .censurariam o modo de olhá-los? Ou simplesmente suplicavam que fosse visitá-los com o aqualung até o fundo mar. Sobretudo Beijinho retraía-se sempre que tocada. Mesmo diante do gesto que tivesse como desfecho abrir-lhe o zíper do collant vermelho. O seu pudor, obrigavam e a pedir-lhe desculpas pelas uvas roubadas do seu prato em nome da minha fome. Sua vingança nestes casos era corrigir- me, dizia meu nome duas vezes: sabendo que a força dele estava em pronunciá-lo de um só fôlego. Sempre me esvaí quando o repetiam com ociosidade.

COMENTÁRIO:

Tarzan fala de força, de intrepidez, de masculinidade: refere-se ao homem. Beijinho fala de doçura, de carinho, de feminilidade: refere-se à mulher. Tarzan fora exilado da selva onde vivia. Foi acompanhado pela mulher: Beijinho. A selva é o Brasil. Malibu é o lugar do exílio. “A nostalgia do exílio, longe de debilitá-los, poupava-os de qualquer desgosto”. “Quando retornam ao Brasil, tentam descobri-lo, disfarçados de turistas, isto é, não querendo ser reconhecidos”. Na verdade, eles não se reconhecem no próprio país de origem o qual tentam decifrar e compreender. O narrador é o espectador que acompanha a trajetória de Tarzan e Beijinho.

Fonte:
– Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 21 –

 


Humberto de Campos (O Gato e o Passarinho)


A encantadora Palmirinha Camargo havia concluído o seu curso de datilografia na Escola Remington, quando, uma tarde, participou, contente, a Dona Brasília:

- Sabe, mamãe, arranjei um emprego excelente. O ordenado é de trezentos mil réis!

A bondosa senhora deixou a costura, endireitou os óculos, e, chamando a filha para perto de si, ordenou:

- Senta aí. E onde é esse emprego?

A moça, risonha e inocente, explicou:

- É no escritório do Dr. Alexandre.

- E quem é esse Dr. Alexandre? É aquele que esteve, outro dia, no baile da Violeta?

Palmirinha confirmou, ingênua, e Dona Brasília, tomando-lhe as, mãos, retorquiu, sensata:

- Queres que te fale com franqueza, minha filha? Esse emprego não te convém.

A menina fixou com os seus grandes olhos claros e puros a doçura do rosto materno, e a boa senhora continuou:

- Tu és uma jovem inexperiente, um anjo que não conhece os espinhos do mundo. O Dr. Alexandre é um moço esperto, um homem habituado a lidar com as fraquezas alheias. Se se tratasse de um escritório grande, de uma casa em que trabalhassem outras moças ou outros advogados, eu não teria receio; mas, assim, com ele e tu, sozinhos, no escritório, o meu coração não poderia ficar descansado.

- Oh, mamãe! - estranhou a moça, corando. - A senhora não tem confiança em mim?

Dona Brasília compreendeu a ofensa que fizera àquele pedaço do seu coração, e, para não insistir, atalhou:

- Tenho, minha filha, tenho toda a confiança em ti.

E concordou, beijando-a nos olhos:

- Está bem, vai. Amanhã, podes ir para o teu novo emprego.

A moça pulou, contente, beijando sofregamente a testa, a cabeça, a face, a boca e os olhos maternos, e, à noite, ia recolher-se, quando D. Brasília chamou:

- Palmira?

- Senhora! - acudiu a, mocinha.

Bondosa e grave, a digna senhora pediu:

- Traze daí a gaiola do teu canário.

A moça foi à copa, e voltou com a gaiola, onde um canarinho dormia, sossegado, muito encolhido, muito amarelo.

D. Brasília abriu a portinhola daquele carcerezinho de ouro, e, indo à cozinha, voltou com o gato na mão.

- Para que é isso, mamãe? - indagou a moça, espantada.

Para meter na gaiola, com o canário.

- Oh, mamãe! - gemeu a mocinha, horrorizada.

- Que mal faz? - indagou D. Brasília, sorrindo significativamente para a filha. Tu não tens confiança no teu canário?

Palmirinha compreendeu o alcance da lição, e atirou-se nos braços maternos, prometendo, entre soluços:

- Eu não irei, minha mãezinha; deixe estar, eu não irei!

E não foi. No dia seguinte, contrariando as esperanças do gato, o canário amanheceu feliz e simples, cantando na sua gaiola…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

Isabel Furini (Poemas Avulsos) II


ÀS 3 HORAS


Nada a declarar - além da ferrugem
mastigando meus pés de metal

na garganta guardo um silo de palavras
que também foram atingidas pela ferrugem
das noites de insônia
quando a solidão avança sobre os párpados*
e invade as retinas
e conspira contra o relaxamento de meus ombros
e não me deixa dormir

são 3 horas da madrugada – momento de escuridão  
é nefasto esse horário de desamor e solidão.
_____________
* Párpados - pálpebras.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

CERCEAR

quero purificar o meu passado
- cercear
os bicos e as asas
desse corvo-fantasma
que  crocita ao anoitecer
e enquanto crocita
multiplica
as sombras do ontem
e ao dançar na desajeitada memória
acorda os terrores noturnos.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

DONS

a poesia possui dons ocultos
:
transforma ideias contaminadas em água pura
e ajuda
a exorcizar os fantasmas do passado
que dormem no precipício das paixões.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

PALAVRAS NECESSÁRIAS

Não cantarás
    usando palavras vãs
não jogarás
    palavras ao mar
    nem ao vento
- só ao fogo
    pois consome as vaidades.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

POEMA TORTO

quase morto e com os pés tortos
o poema enfrentou o desconforto
da análise

rebelde
e com teimosia
o poema gritou
que não era um ser mimético
ele era dialético
magnético
e frenético
e queria ouvir
alguma conclusão derivada
da vertigem instaurada entre a tese e a antítese

nos anais filosóficos
o poeta vislumbrou as águas do rio de Heráclito
onde a vida e a morte se encontram
e se abraçam
e bebem a ambrosia dos deuses Olímpicos
e angústias e alegrias
e provocam a catarse da poesia.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Isabel Furini é escritora, poeta, palestrante  e educadora. Natural da Argentina, radicada em Curitiba/PR. Autora de 35 livros, entre eles, “Os Corvos de Van Gogh” (poemas). Seus poemas foram premiados no Brasil, Espanha e Portugal; é criadora do Projeto Poetizar o Mundo; membro da Academia de Letras do Brasil/Paraná; membro da AVIPAF (Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia), coeditora da Revista Carlos Zemek de Arte e Cultura; recebeu Comenda Ordem de Figueiró, Artes e Cultura do Brasil em Rio de Janeiro; foi nomeada Embaixadora da Palavra pela Fundação Cesar Egido Serrano (Espanha, 2017); Participou de Antologias poéticas em Portugal, Argentina e Chile; Foi convidada para palestrar sobre a arte de escrever, na Feira Internacional do Livro de Foz de Iguaçu, na Feira do Livro e da Leitura de Campo Mourão/PR, e na Felima (Festival Literário Internacional de Machadinho/RS); Realizou recitais poéticos na 36a. Semana Literária do SESC & XV Feira do livro da UFPR, em 2017, e um Recital Poético na Biblioteca Pública de Burlingame, Califórnia, USA, em 2018. Seus poemas foram premiados no Brasil, Espanha e Portugal.

Fonte:
Versos e biografia enviados pela poetisa.

Arthur de Azevedo (Poverina)


Era naquele tempo o Salazar uma das figuras mais salientes do nosso diletantismo literário. Os seus artigos de critica, os seus versos, os seus contos, as suas fantasias estavam ao alcance de todas as inteligências, e eram lidos, senão com avidez, ao menos com simpatia.

Ele tornara-se conhecido, quase célebre, e não atravessava a Rua do Ouvidor sem ouvir estas e outras frases que o enchiam de orgulho: - Lá vai o Salazar! - Olha o Salazar! - O Salazar é aquele!

Pouco a pouco essas manifestações da admiração indígena o foram empanturrando de desvanecimento e vanglória, e não tardou muito que ele se julgasse, coitado! superior a quantos o cercavam, fazendo sentir a sua superioridade com uma importância ridícula.

O toleirão era casado, e a primeira vítima da transformação do seu caráter foi a própria esposa, excelente rapariga, bem educada, inteligente, muito inteligente, mas tímida, daquela timidez peculiar às moças brasileiras que não perderam noites em festas e bailes.

Estavam casados havia três anos, mas o literato nunca estudara nem compreendera sua mulher. Volvido o período da intitulada lua-de-mel, todo de brutalidade e egoísmo, e começando a aura do publicista, ele afastou-se da esposa tanto quanto uma pessoa pode afastar-se de outra com quem almoça e janta quase todos os dias, e com quem vive debaixo das mesmas telhas.

Não tinham filhos; faltava-lhes esse traço de união, que talvez os tivesse aproximado.

Entretanto, ela não se queixou nunca da indiferença do marido; sendo, aliás, bonita, muito bonita, mostrou uma resignação que ele seria o primeiro a admirar, se todo o tempo não lhe fosse preciso para admirar-se a si próprio.

Aquela frieza, aquela sobranceria, aqueles ares de semideus ainda mais se acentuaram quando o Salazar, um dia, recebeu, pelo correio, longa carta em que uma desconhecida, sob o pseudônimo de Poverina, manifestava pela sua interessante pessoa uma simpatia e uma admiração excepcionais.

O que mais o impressionou nessa missiva anônima foi o primor da forma. A desconhecida revelava cultura intelectual superior à dele, e dizendo-se, aliás, sua discípula, mostrava notáveis qualidades de estilista, que o outro não possuía.

A princípio supôs Salazar que a correspondência fosse de algum marmanjo, desejoso de se divertir à custa dele; mas outras e sucessivas cartas o convenceram do contrário. Quem quer que fosse tinha delicadezas femininas de que nenhum homem seria capaz.

Colocando-se, sempre com encantadora modéstia, num plano subalterno, a escritora aconselhava-o com muita discrição e habilidade, a corrigir-se de uns tantos defeitos; apontava-lhe contradições, incongruências, descuidos gramaticais, ligeiros solecismos indignos da pena de um escritor reputado; mas atribuía tudo à precipitação com que ele escrevia, e nem por sombras aludia à sua ignorância, muitas vezes apanhada em flagrante. Um homem não seria tão generoso.

Demais, essas observações e conselhos eram acompanhados de confissões gravíssimas. Ela declarava que o seu maior prazer seria, se pudesse, estar perto dele no seu gabinete de trabalho, auxiliando-o, passando a limpo os seus escritos, procurando um termo no dicionário, caçando um sinônimo, verificando um trecho em qualquer obra citada, corrigindo aqui um descuido, preenchendo ali um claro, mudando as penas, enchendo o tinteiro, cortando o papel em tiras, etc. "Enfim, dizia ela, quisera ser a tua secretária, uma secretária a quem, terminado o trabalho, remunerasses, não com dinheiro, mas com beijos e carícias.

"Mas para isso, continuava a desconhecida, seria preciso que um e outro fôssemos livres, e somos ambos casados; nem meu marido nem tua mulher merecem que os enganemos.”

O Salazar respondia a todas essas cartas, e, escusado é dizer, empregava súplicas, argumentos, razões, para que a Poverina se desvendasse.

Ela resistia energicamente. "Não procures saber quem sou; nunca o saberás. O encanto das nossas relações é esta abstração, este delicioso platonismo. Imagina que somos Heloísa e Abelardo, e que estamos separados por uma fatalidade psicológica…”
* * *

Durante um ano a correspondência continuou assídua de parte a parte. O Salazar recebia pelo correio as cartas de Poverina, e respondia-as pela posta-restante.

Pediu-lhe um dia que não lhe dissesse o seu nome, mas lhe mandasse ao menos o seu retrato. "Não, respondeu ela; mandar-te o meu retrato seria o mesmo que te dizer quem sou. Não suponhas que deixo de satisfazer o teu pedido pelo receio de me achares velha ou feia. Sou muito mais nova que tu, e de feia nada tenho. Digo-te mais: pelo interesse, pela insistência com que olhaste para mim certa vez em que nos encontramos na rua, creio que me achaste bonita... Não calculas como nessa ocasião tive ímpetos de me atirar nos teus braços, dizendo: - Poverina sou eu..."

O Salazar estava, por fim, radicalmente apaixonado, e, a proporção que esse amor desesperançado e extravagante o ia absorvendo e exacerbando, ele mais indiferente se mostrava para com a infeliz esposa, cada vez mais resignada, mais conformada com a sua triste sorte de mulher posta a um canto.
* * *

Mais seis meses de correspondência, e o caso tomou uma gravidade terrível. O Salazar estava obcecado por aquela mulher, por aquele fantasma, por aquele mistério! Já não produzia nada, limitando-se apenas à sua tarefa epistolar, que lhe monopolizava o espírito, como se fosse uma obra de fôlego, um trabalho de grande transcendência filosófica.

Um dia escreveu a Poverina, dizendo que não lhe era possível continuar a viver naquele desespero. Se ela não lhe proporcionasse ocasião de vê-la, de estar ao seu lado, gozando o benefício divino da sua presença, ele procuraria no cano de um revólver a tranquilidade que lhe fugira.

Depois de três ameaças idênticas, formuladas em termos decisivos, Poverina cedeu, marcando a Salazar uma entrevista a noite, no Largo do Machado, naquele tempo mais sombrio e menos frequentado que hoje.

Calcule-se a impaciência com que o literato contou as horas!
* * *

Cinco minutos antes do momento aprazado, ele entrou no jardim, e viu, de longe, uma mulher de preto, com o rosto coberto por um véu, sentada no banco indicado na carta de Poverina.

O coração do mísero saltava, as suas mãos estavam geladas, todo ele tremia...

Foi nesse estado que o Salazar se aproximou daquele vulto de mulher.

Ela convidou-o com um gesto a sentar-se.

Ele sentou-se.

- Aqui me tem! disse Poverina, erguendo o véu.

O publicista ficou estupefato: era a sua própria esposa!

- Tu?... que é isto... Eu... Tu... Eras tu que...?

- Sim, era eu que...

- Não é possível!

- Tenho em casa todas as minutas das cartas de Poverina. Podes encontrar.
* * *

Dali por diante aquele desalmado, que nem sequer conhecia a letra de sua mulher, foi o modelo dos maridos, e ela o modelo das secretárias.

Diziam até as más línguas que o secretário era ele. Não sei: já morreram ambos e a coisa ficou em família.

(Correio da Manhã, 22 de janeiro de 1905)

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) 5. Conto – Finisterre

FINISTERRE


Cabo Finisterre (Cabo Fisterra na língua galega): Península no oeste da Galícia, Espanha. Cidade distante 80 km de Santiago de Compostela, a noroeste da Península Ibérica, na Espanha.

Ambiente:
Casa do Padrinho, numa ilha em Finisterre, no litoral da Espanha, terra dos antepassados da autora. Os fatos passam-se durante uma visita ao Padrinho já idoso.

Foco narrativo:
Primeira Pessoa.

Personagens:

Padrinho: Padrinho de batismo da autora.
Afilhada: A própria autora, Nélida Piñon.
Maruxa: Parente? Empregada da casa da avó?
Avó
Irmã do Padrinho
Amigos do Padrinho

É um texto emotivo de encontros e despedidas. O padrinho de 70 anos, morador da ilha, que é visitado pela sobrinha. O conto é um passeio pela gastronomia galega.

A protagonista da narrativa cruza o Atlântico para encontrar o padrinho de 60 anos, que vive em uma ilha galega. Tal mudança de espaços transborda significados. Por um lado, a viagem acena para a personagem com gestos confortadores, ao representar uma imersão em um núcleo originário:

“Olhei-o firme, fique tranquilo, padrinho, hei de salvar-me à custa dos próprios escombros. Por isso vim à ilha, recolher força e origem, terei então vida por tempo ilimitado”.

Por outro lado, o deslocamento assusta com ameaças de desintegração:

“Cabia-lhe, pois, cuidar que eu levasse de volta ao Brasil os mesmos olhos com que chegara. Sem perder a nacionalidade, este cravo espetado no coração. Padrinho, sou uma brasileira aflita com as trilhas do mundo. Assim, até um centolho ameaça o meu futuro, força-me à vigília, ensina-me a honra e a incerteza ao mesmo tempo.”

É a novidade da experiência representada pela mudança de espaço que lhe atravessa o corpo como uma adaga, sacudindo-lhe a identidade que, ameaçada, tenta se recompor novamente.

Não há dúvida – a identidade do ser se molda no contato com os espaços que ele habita e percorre. Mas, na escrita pessoal de Nélida Piñon, a conquista discursiva do espaço, além de se integrar na apresentação identitária da protagonista, vai além, assumindo uma simbologia marcante, essencial para a apresentação de si mesma que a escritora constrói, como as análises que se seguem pretendem mostrar.

Ambos são galegos, raça forte e emotiva. O almoço e o passeio são cheios de imagens de carinho e ternura do padrinho. Enfim a narradora se despede como quem nunca mais vai voltar a ver as pessoas queridas que deixa na ilha.

O título do texto Finisterre tem a ver com a lenda local que diz ser ali o lugar onde o "o Homem ia se confrontar com o Fim, com o seu fim, com a Morte”.

O texto coloca como personagem principal o padrinho, um velho que se aproxima da morte. Entre os povos ibéricos é profunda a relação entre padrinho e afilhado,visto que os padrinhos dos filhos são escolhidos cuidadosamente entre os amigos e parentes com os quais se tenham fortes laços afetivos.

Fontes:
– Cecília de Macedo Garcez. Cartografias Identitárias na Escrita Pessoal de Nélida Piñon. Niterói: UFF, 2013. Tese de doutorado.
– Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 463

 

Contos e Lendas do Mundo (A Floresta de Lata)


Era uma vez um lugar amplo, varrido pelo vento e quase esquecido, que estava cheio de coisas que ninguém queria.

Mesmo no centro desse lugar, e exposta ao mau tempo, encontrava-se uma pequena casa, de janelas igualmente pequenas, com vista para o lixo que outros haviam feito.

Nessa casa vivia um velho.

Todos os dias, o homem tentava livrar-se do lixo, apartando e escolhendo, queimando e enterrando.

E, todas as noites, o homem sonhava.

Sonhava que vivia numa floresta cheia de animais selvagens, na qual havia aves coloridas, árvores tropicais, flores exóticas, tucanos, rãs-de-árvore e tigres.

Contudo, sempre que acordava, o mundo que via continuava igual.

Certo dia, algo chamou-lhe a atenção e uma ideia ganhou forma na sua cabeça.

Uma ideia que ganhou raízes e germinou.

Que ganhou folhas, alimentando-se do lixo.

Que ganhou ramos cada vez maiores.

Então, uma floresta inteira emergiu das mãos daquele homem.

Uma floresta feita de lixo. Uma floresta feita de lata. Não era a floresta dos seus sonhos, mas era, ainda assim, uma floresta.

Um dia, o vento trouxe consigo um pequeno pássaro para a planície deserta. O homem deitou no chão algumas migalhas que o pássaro logo comeu, empoleirando-se depois no ramo de uma árvore de lata. No dia seguinte, a ave partiu, e o velho ficou sozinho a vaguear pelo silêncio, com o coração a doer de vazio.

Nessa mesma noite, ao luar, o homem formulou um desejo…

No dia seguinte, acordou com o canto de pássaros. O seu visitante tinha voltado e trazia consigo um companheiro. Nos bicos, transportavam sementes, que largaram no solo árido. Em breve, havia rebentos por toda a terra.

O canto dos pássaros misturou-se com o zumbido dos insetos e o sussurrar da folhagem.

O tempo foi passando.

E foram surgindo pequenos animais, a rastejar por entre a floresta de árvores. Apareceram animais selvagens, que deslizavam por entre as sombras verdes.

Era uma vez uma floresta e quase esquecida, que agora estava cheia de coisas que todos queriam.

No meio dela, havia uma pequena casa, de janelas igualmente pequenas. Nessa casa, vivia um velho homem que nunca tinha deixado de sonhar…

Fonte:
Tradução e adaptação de Helen Ward; Wayne Anderson. The Tin Forest
New York, Puffin Books, 2003. Disponível em Contar e Encantar.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) 5


Ah, pobre palhaço!
O teu sorriso é pintado
E tua alma de criança
Chora soluçando em silêncio.
=================================

Ansiedade.

Às vezes
É preciso acrescentar
A letra C na palavra alma
E calmamente
Deixar os sonhos ronronando feito um gato
Nas tardes envelhecidas.
====================================

Busquei estrelas
Mas as do céu da tua boca
Tinham gosto de inocência
Sabor de quero mais.
===================================

Chovia...
A janela do meu eu lacrimejava
E a solidão,
Essa velha louca
Adormecida no porão da minh'alma,
Amanheceu resmungando
E arrastando os seus chinelos pela casa.
======================================

Ela era dissimulada,
Tipo "olhos de Capitu"
Até que um dia
"Caiu a máscara"
E o beijo deslizou
Pelo corpo nu.
===================================

Gratidão
É uma caixinha de veludo
Onde se guarda o que é eterno.
PS.: Guardei você!
=================================

Na fotografia
A poesia se revela
Cheia de poses
Espelhada
Com muitas caras e bocas
Se veste de fantasias
Tão coloridas
Mas às vezes doída
Se desnuda em pranto
Em preto e branco
Sem início
Sem fim

* Homenagem aos meus amigos fotógrafos
=====================================

No entardecer de mais um ano
As meninas dos meus olhos
Se vestem de esperança.
As roupas usadas, amassadas e manchadas nos 365 dias
Vão ficando esquecidas nos varais.
Ah, meninas teimosas!
Algumas vezes se cansam
Mas não desistem de cada dia se reinventar.
Na dor, brincam de esconde-esconde
Nadam em lágrimas,
Mas não se deixam afogar.
Ah, meninas preciosas!
Na alegria, sorriem sem disfarçar.
Apaixonadas pela vida,
Sonham, sofrem, mas logo trocam de roupas
E voltam brilhantes
Quando surge uma nova chance para amar.
Que no amanhecer do Novo Ano
As meninas dos meus e dos teus olhos
Brinquem felizes
Sem ver a tristeza
Que às vezes morre num olhar.
===================================

Nos olhos do menino
Madrugavam sonhos.
Sem entender direito o que era fé
Esperava pelo sol
Mesmo diante das "chuvas de nãos"
Que tentavam borrar o seu sorriso.
======================================

Que sorte
Quando por ti
Perdi o meu norte
Foi que eu me encontrei.
===================================

Tu dizes
Que em ti
Fiquei plantado
Como uma boa lembrança.
Mas em mim,
Tu ainda floresces
Independentemente da estação.

Fonte:
Academia Facebookiana de Letras e das Artes

Rubem Braga (As Teixeiras e o Futebol)


Com os Andradas tínhamos feito uma espécie de pacto; a gente não jogava bola na rua defronte a casa deles, mas um pouco para cima, onde havia um muro que dava para o quintal da casa; em compensação, eles deixavam a gente pular o muro e apanhar a bola quando caía lá. Mas o muro não era bastante comprido, e assim o nosso campo abrangia, como eu ia dizendo, algumas janelas das Teixeiras. As quais, eu também já disse, não apreciavam o futebol.

Quando a gritaria na rua era maior, uma das Teixeiras costumava nos passar um pito da janela, mandando a gente embora. O jogo parava um instante, ficávamos quietos, de cara no chão – e logo que ele saía da janela a peleja continuava. Às vezes aquela ou outra Teixeira voltava a gritar conosco – começavam por nos chamar de “meninos desobedientes” e acabavam nos chamando de “moleques”, o que nos ofendia muito (“Moleque é a senhora!” – gritou Chico uma vez), mas de modo algum nos impedia de finalizar a pugna.

Uma das Teixeiras era mais cordial, chamava um de nós pelo nome, dizia que éramos meninos inteligentes, filhos de gente boa, portanto poderíamos compreender que a bola poderia quebrar uma vidraça. “Não quebra não senhora! Não quebra não senhora!” – gritávamos com absoluta convicção, e tratávamos de tocar o jogo para frente para não ouvir novas observações.

Um dia ela nos propôs jogar mais para baixo, então o Juquinha foi genial: “Não, senhora, lá não podemos porque tem a Dona Constança doente”, desculpa notável e prova de bom coração do nosso time.

“Então por que vocês não jogam mais para cima? – propôs ela com certa astúcia, e falando um pouco baixo, como se temesse que os vizinhos de cima ouvissem: “Ah, não, lá o campo não presta!”, argumento, aliás sincero, de ordem técnica, e portanto irrespondível.

“Eu vou falar com papai! Quando ele chegar vocês vão ver” – gritou certa vez uma das Teixeiras mais antipáticas. Pois naquele momento o coronel de bigodes brancos ia chegando, o jogo parou, ele perguntou à filha o que era, ela disse “esses meninos fazendo algazarra aí, é um inferno, qualquer hora quebram uma vidraça” – mas o velho ouviu calado e entrou calado, sem sequer nos olhar, nem dar qualquer importância ao fato. Sentimos que o velho, sim, era uma pessoa realmente importante e um homem direito, e superior, e continuamos a nossa partida.

As queixas que algumas Teixeiras faziam em nossa casa eram bem recebidas por mamãe, que lhes dava toda razão – “esses meninos estão mesmo impossíveis” -, e uma ou duas vezes nos transmitiu essas queixas sem convicção. De outra feita, como a conversa lá em casa versasse sobre as Teixeiras, ouvimo-la dizer que fulana ou sicrana (duas das irmãs) eram muito boazinhas, muito simpáticas, mas beltrana, coitada, era tão enjoada, tão antipática, “ainda ontem esteve aqui fazendo queixas de meus filhos”.

Mamãe era a favor de nosso time; mamãe, no fundo, e papai também (hoje, que o time e eles dois morreram, esta súbita certeza, ao meditar no distante passado, tem um poder absurdo, inesperado de me comover, até sentir um ardor de lágrimas nos olhos) – eles sempre foram a favor do nosso time!

E nosso caso com as Teixeiras foi se agravando.

Fonte:
Rubem Braga. 200 crônicas escolhidas.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) 4. Conto – O Ilustre Menezes


O ILUSTRE MENEZES


Ambiente:
cidade do Rio de Janeiro nos fins dos anos 1800. Residência da família Menezes.

Foco narrativo:
Primeira Pessoa.

Personagens:
Menezes: Homem de meia idade, "escrivão bem situado" de certas posses que lhe ficaram da primeira esposa, casado pela segunda vez com Conceição.

Conceição: Atual esposa de Menezes.

D. Inácia: Sogra de Menezes.

Amélia: Primeira esposa de Menezes, já falecida.

Pastora: Amante de Menezes.

Nogueira: Jovem primo da primeira esposa de Menezes que veio ao Rio para estudar.

RESUMO:
"Bem sei que já não sou o mesmo. Ainda que eu atrase o relógio, que trago sempre atado à presilha da calça, passa-me o tempo com demasiada pressa. E qual não é o meu espanto ao já não mais ver-me em 1860, mas já a pisar, e sem a firmeza de outrora, o chão de 1862. Eis dois anos decorridos sem a minha cumplicidade, deles sequer dei-me conta."

O narrador, Menezes, é casado com Conceição, uma mulher educada num rigoroso sistema moralista. Proíbe-se ter prazer ou conversar sobre sua intimidade. Menezes conta que tem o hábito de dormir fora de casa nas Quintas-feiras , pois vai ver sua amante Pastora. Apesar da impertinência da sogra, D. Inácia, ele dobra a mulher com as desculpas mais esfarrapadas, como por exemplo ir ao teatro sozinho com medo que a esposa se aborreça com as peças. Ele arruma uma segunda amante, Delfina, que acaba por abandona-lo. No conto, predomina a atmosfera de século XIX, com uma linguagem no estilo Machado de Assis. Aliás, o final da história faz referência ao célebre conto Missa do Galo, do referido autor.

COMENTÁRIO:
Menezes quer que tudo lhe gire em torno, de acordo com suas necessidades ou caprichos. Conceição é obediente e submissa ao extremo, devido à educação e às circunstâncias em que vive. O próprio marido impede-a de manifestar pensamentos ou opiniões e exige dela um comportamento de acordo com os moldes que ele lhe impõe. Mais que submissão ou obediência. O fato de o marido surpreender Conceição chorando demonstra o sofrimento da esposa, tolhida pelo autoritarismo da mãe e sela falta de amor do marido.

Os diálogos entre os dois são tão contidos que um não manifesta seus sentimentos ao outro. Recorrem às evasivas. Menezes sonha e não dá esse direito à esposa. “Os sonhos poderiam fazê-la” querer mudar de vida e ele não quer que a vida mude. £ como será que Conceição encara a vida?

Conceição tenha por ele os mesmos sentimentos que Amélia tinha por ele. Ele queria os bens de Amélia. Conceição quer; agora, os seus bens.

“A ameaça de que estava a ir-me muito breve não comoveu Conceição”.

Apoia-se na certeza de que, à minha morte, hão de restar-lhe alguns bens. Julgamos as pessoas conforme julgamos a nós mesmos. A mudança de comportamento de Nogueira demonstra que as coisas começam a fugir do controle de Menezes, em sua própria casa: "sua presença na casa brevemente seria incômoda. Não quero molestar-me agora com tais problemas.

O final do conto, sem desfecho, dá ideia de que a vida, para aquela família, vai continuando com lentas modificações.

Fontes:
– Manuel Comellas Coimbra. In Algo Sobre, Resumos Literários.
– Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

domingo, 10 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 20 –

 


Amélia Luz (Nem Romeu, Nem Julieta)


Já perdi a conta dos casos que ouvi de namorados românticos. Coisas do passado, é claro. Hoje em dia tudo está muito diferente, as moças não ganham mais as serenatas nas noites de lua cheia, mas elas vão com os seus “ficantes” curtir a balada vazando noites de agito total.

Bom seria mesmo ser a Colombina do Pierrô, ser a Julieta do Romeu, ganhar flores, chocolates, poesias autografadas e, no álbum da vida estar na primeira página ao lado do eterno namorado, aquele do primeiro olhar, do primeiro aperto de mão e do primeiro beijo no portão a despertar a primeira taquicardia.

Receber atenções especiais, corações flechados desenhados nas árvores do jardim com direito a nomes e datas. Ser escravos do Cupido até o fim da vida e contar e recontar todas as viagens, todos os presentes de aniversário, natal, dia das mães e, por que não, dia dos namorados mesmo comemorando as Bodas de Prata ou de Ouro.

Embora tudo isso seja sonho enterrado vivemos o pesadelo da falta de sensibilidade, de virarmos geleiras humanas sem a menor emoção a manifestar. Já não mais existem românticos que mesmo de “jeans e de calça desbotada” mandam “flores para a namorada” como na antiga canção. Que pena!

Com a revolução feminista visando a igualdade de condições, a mulher deixou de ser o sexo frágil que dependia da proteção do homem, preocupado em lhe proporcionar o melhor em muitos casos. Será que a mulher só ganhou ou também perdeu?

Despiu-se de rendas e cetins, vestiu uma bruta calça de brim, tirou o chapéu e a flor dos cabelos e saiu por aí tentando fazer a sua liberdade, ou melhor, a sua igualdade de poderes diante do sexo oposto.

Os homens comodamente se retraíram, guardaram os seus violões e suas poesias com declarações de amor e nem sabem se a lua é cheia ou minguante, porque minguados estão os seus sentimentos neste jogo da vida em que a nudez da mulher, reveladora de todos os seus encantos, agora é exposta, não despertando mais aquela curiosidade que despertavam excitações. Vivemos um tempo de amores passageiros, de divórcios e separações e casamento à moda dos nossos avós e pais é coisa de cafona.

Viajando pelo cinema Hollywoodiano, palco de grandes amores, com músicas e ídolos famosos e beijos inesquecíveis que marcaram um tempo temos as mais preciosas cenas de amor.Como esquecer Scarlett O’hara e o Capitão Rhett Butter no filme E o Vento Levou encantando plateias que se espelhavam nas cenas de amor verdadeiro?

Hoje é a telinha do WhatsApp ou do computador a ditar regras que viciam e castram as emoções de todos criando um outro mundo de gente fria e isolada, inconsciente do que está se passando, na verdade, a seu redor. Escravizados pela máquina segue o homem por esta nova estrada, “deletando” emoções, plugando links, acessando sites no cansaço de se sentir vazio num horizonte onde o arco-íris agora nasce sempre em preto e branco.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Baú de Trovas XXV


Depois que partiste os elos
de nosso Infeliz amor,
os meus sonhos são mais belos,
e eu te devo esse favor...
ALVES JÚNIOR
--------------
Meu destino não lamento
nesta vida transitória.
— O amor pode ser tormento,
mas amar é minha glória!
ANTÔNIO TORTATO
--------------
As tuas mãos carinhosas,
que eu beijo com tanto ardor,
são dois lírios cor-de-rosas
no jardim do meu amor.
APARÍCIO FERNANDES
--------------
Quem ama sente pudor
de falar em quem quer bem:
quem fala multo de amor
não tem amor a ninguém.
A. S. DE MENDONÇA JÚNIOR
-------------–
Mãe! Teu nome pequenino
quanta beleza contém!
Poema de amor divino,
que os anjos cantam no além!…
CELESTE BRAGA
--------------
Quando a mulher é bonita,
tem-se o direito de vê-la,
como se olha uma paisagem
ou se contempla uma estrela.
HORMINO LYRA
--------------
Meu amor não foi desejo,
foi sonho, fatalidade.
Foi a ternura de um beijo
que se perdeu na saudade.
IVONETH PILASTRE DE GOIS
--------------
És rico... mas que tristeza!
Tens vazio o coração...
Não ter amor é pobreza
mais triste que não ter pão.
JESY BARBOSA
--------------
Sendo o amor uma batalha,
sentimos que, em sua trama,
não há vitória que valha
a rendição de quem ama.
JOÃO RANGEL COELHO
--------------
Tudo na vida se alcança,
difícil é começar:
— se dar um beijo é custoso,
depois... custoso é não dar!
JOSÉ FONSECA DUARTE
--------------
Devia ser orgulhosa,
mas anda na rua, aflita,
como se andasse pedindo
perdão de ser tão bonita!
JOSÉ JANNINI
--------------
Sofro e choro resignado,
tu nem ouves minha dor...
Quanto amor desperdiçado
por tanta falta de amor!
JUNQUILHO LOURIVAL
--------------
Envelheci te esperando,
tanto, tanto que nem sei
se a vida é que foi passando
ou se fui eu que passei.. .
KLEBER CRUZ
--------------
O amor, que às vezes nos mata,
outras vezes vivifica.
— É a loucura mais sensata
que o mundo inteiro pratica!
LEOPOLDINA DIAS SARAIVA
--------------
Crer nas juras lisonjeiras
que dos teus lábios ouvi
foi a maior das asneiras
que na vida cometi.
JAYME PAULO FILGUEIRA
--------------
Maria, leva teu beijo
que em minha boca ficou,
para que tenhas o ensejo
de dá-lo a quem te levou.
LUIZ ANTÔNIO PIMENTEL
--------------
Desconfio que a saudade
não gosta de ti, meu bem:
— Quando tu vens, ela vai...
quando tu vais, ela vem...
LUIZ OTÁVIO
--------------
Bendigo a minha tristeza
que em poemas se traduz.
Quem transforma a dor em versos
faz suave a sua cruz...
LYAD DE ALMEIDA
--------------
Ah, se eu pudesse saber
qual a mulher que ele quer...
Que não iria eu fazer
para ser essa mulher?
MAGDALENA LÉA
--------------
Cantei do amor a vitória
e nem me lembrei, sequer:
— efêmera é toda a glória
dos sonhos de uma mulher.
MARIA IDALINA JACOBINA
--------------
Na tarde que se ensombrece
de formas tristes, bizarras,
como num coro de prece
choram todas as cigarras!
MARIA SYLVIA DE CERQUEIRA LEITE
-------------–
A morte vem do Infinito
e canta para ninar.
Vai cantando tão bonito
que não se pode acordar.
MERCÊS MARIA MOREIRA LOP
--------------
O sonho que nasce em mim,
se não puder florescer,
terá comigo o seu fim:
— só morre quando eu morrer...
MARIA DALVACI DANTAS
-------------–
Nesta vida tão injusta,
que tanto me faz sofrer,
só eu sei quanto me custa
passar dias sem te ver!
NELLY D. WERNECK
--------------
O coração que é vencido
quase sempre tem razão.
E a razão, que sempre vence,
nunca teve coração...
NEWTON ROSSI

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Gregório Duvivier (Epitáfio para um Bar que Acolhia Equinos Bípedes e Elegia aos seus Garçons)


“No Alcorão não há camelos”, diz o Borges, e isso, pra ele, prova que se trata de um livro árabe. Qualquer estrangeiro teria enchido a história de camelos. “Maomé, como árabe, não tinha por que saber que camelos eram essencialmente árabes. Estava tranquilo. Sabia que podia ser árabe sem camelos.”

O Hipódromo vai fechar. Isso não muda quase nada pra quase ninguém, mas muda quase tudo pra uma dúzia de pós-adolescentes como eu. Aqui na Guanabara não chamamos de hipódromo o lugar onde trabalha o jóquei —lugar este que chamamos de Jockey— mas o bar perto do hipódromo, na praça do Jockey —praça esta jamais frequentada por algum jóquei.

O bar abriu em 1945, dizia o letreiro, e estava tranquilo. “Sabia que podia ser um hipódromo sem cavalos.” Acolhia todos os tipos de equinos bípedes: poetas, jornalistas, comediantes, adolescentes e divorciados em geral, ou seja: todos aqueles que não tinham senso estético nem paladar apurado e que, por não terem encontrado seu lugar no mundo, ali encontravam consolo num chope aguadinho, numa fatia de pizza com ketchup e num garçom que sabia seu nome e o da sua família toda.

Cada garçom tinha sua expertise e seus clientes preferenciais. Sorriso trazia no olhar ao te ver a alegria de uma criança que vê seus pais chegando à creche, enquanto João de Deus, o Boi, trazia na testa o maço de cigarro equilibrado nas sobrancelhas, entre outros truques impagáveis.

Lacerda tinha a memória mais prodigiosa e o humor mais veloz —o melhor garçom do mundo segundo qualquer concurso que preste. Existia ali uma tecnologia do serviço avançadíssima e que mantinha o bar aberto apesar dele mesmo.

A luz fria, o cardápio imutável, o teto de espuma, nas paredes a foto de um pedaço de carne crua no espeto com os dizeres “esta é a churrasqueira do Hipódromo”. Aquilo era pra ser uma publicidade, mas soava como uma denúncia.

Em seu lugar, abrirá uma filial do Brewteco —espécie de importação carioca da ideia que um paulista faz do que é um botequim carioca. Não reclamo: a imitação da imitação supera muitas vezes o original. A comida será melhor, o chope nem se fala. Mas falta alma. Não faltam camelos. O botequim carioca dos paulistas está mais pra Aladim que pra Alcorão.

A prova: demitiram os garçons. Rezo pra que todos apareçam recontratados. O tal do novo normal tem muito a aprender com o velho. Prometo que, se assim for, estarei lá (assim que encontrarem a vacina, que não sou doido de compartilhar perdigoto com desconhecido).

Fonte:
Folha de São Paulo. 21 julho 2020.

I Concurso de Trovas e Poemas Eliane Mariath Dantas (Prazo: 18 de Janeiro)


ACADEMIA DE LETRAS E ARTES DE PARANAPUÃ -ALAP
Fundada em 21/10/1989
E-mail: alap.paranapua@gmail.com


REGULAMENTO:

No intuito de homenagear a saudosa Presidente Eliane Mariath Dantas, a Academia de Letras e Artes de Paranapuã lança o presente concurso de trovas e poemas, sendo que cada concorrente poderá participar de ambas as modalidades.

Os membros da ALAP participarão na categoria Acadêmicos, ao passo que os concorrentes que não forem membros participarão da categoria Especial.

I - PARA O ENVIO DE TROVAS

01- Tema: LIVRE.

02- Categoria: ESPECIAL e ACADÊMICO

03- Cada candidato poderá concorrer com no máximo 03 (três) trovas.

04- As trovas deverão estar digitadas e serem inéditas (nunca publicadas ou classificadas em concursos).

Observação: 07 (sete) sílabas poéticas em cada verso, com o 1º rimando com o 3º e o 2º com o 4º, em sentido completo.

05- O concorrente deverá enviar a(s) trova(s) com pseudônimo no corpo do e-mail para alap.paranapua@gmail.com. Já a sua identificação deverá vir em anexo (nome completo, categoria em que concorre (acadêmico da ALAP ou especial), pseudônimo, endereço completo com CEP, e-mail, nº do telefone celular).

06- Período de inscrição: de 9 de janeiro a 18 de janeiro, até 23:59 do horário de Brasília.

07- A Comissão Julgadora será composta por membros de renome literário, e sua decisão será soberana e irrevogável.

08- Premiação: Certificado virtual de destaque para os 3 primeiros lugares, Menção Honrosa e Menção Especial.

09- Certificado virtual de participação a todos os participantes.

10- O resultado será publicado no mês de fevereiro no perfil da ALAP - RJ do Facebook.

II - PARA O ENVIO DE POEMAS

01- Tema: LIVRE.

02- Categoria: ESPECIAL e ACADÊMICO

03- Cada candidato poderá concorrer com 01 (uma) poema.

04- Os poemas deverão ser inéditos (nunca publicados ou classificados em concursos), digitados, com o máximo de 35 (trinta e cinco) versos.

05- O concorrente deverá enviar o poema com pseudônimo no corpo do e-mail para alap.paranapua@gmail.com. Já a sua identificação deverá vir em anexo (nome completo, categoria em que concorre (acadêmico da ALAP ou especial), pseudônimo, endereço completo com CEP, e-mail, nº do telefone celular).

06- - Período de inscrição: de 5 de janeiro a 18 de janeiro, até 23:59 do horário de Brasília.

07- A Comissão Julgadora será composta por membros de renome literário, e sua decisão será soberana e irrevogável.

08- Premiação: Certificado virtual de destaque para os 3 primeiros lugares, Menção Honrosa e Menção Especial.

09- Certificado virtual de participação a todos os participantes.

10- O resultado será publicado no mês de fevereiro no perfil da ALAP - RJ do Facebook.

Rio de Janeiro (RJ), 5 de janeiro de 2021.

Fonte:
Email enviado pela ALAP

sábado, 9 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 462

 


São Tomé (Poemas Além Fronteiras)


ALTAS MONTANHAS

   
Pelas montanhas andam meus olhos,
Seguindo o vento que nuvens varria
E a neve esparsa que ainda persistia,
Cobrindo cumes, livres de abrolhos.
 
Das altitudes vi o Mundo a meus pés,
Tão belo e frágil aos olhos meus,
Como será visto aos olhos de Deus?...
Talvez reduzido a mar e suas marés.
 
Ou uma linda bola dum azul terso,
Para enfeitar o altar do Universo,
Que queremos destruir, como cristal.
 
Talvez o Seu jardim verde e florido,
Agora pela poluição destruído,
Oh Deus! Porque fazemos tanto mal?
****************************************

A MINHA CASINHA

Era uma casinha
Que toda sorria
Logo pela manhã
Quando o sol se erguia.

Tinha três janelas
Viradas ao monte
Onde murmurava
Uma fresca fonte.

Tinha uma varanda
Virada pra rua
Onde eu sonhava
Ao mirar a lua.

Tinha uma escada
Em pedra talhada
Já muito antiga
E bem desgastada.

E fora de portas
Havia um pilar
Feito de uma pedra
Para eu cavalgar.

Para eu cavalgar
Por mundos além
Junto com os sonhos
Que a criança tem.

Mas esta casinha
Já não é mais minha
Restam as lembranças
Da graça que tinha.
****************************************

DONOS DO MUNDO

Dentro de mim coabitam em dualidade
O silêncio explodindo num trovão
Que catapultam a voz da minha razão
Aos vastos campos da irracionalidade!

Que caminho percorre a humanidade
Por este planeta frágil, assaz moribundo
Porque não se chega à consensualidade
De que ninguém é o dono do mundo!?
****************************************

OS MEUS VERSOS

Guarda esses versos que te fiz amor,
Para que um dia os possas recordar,
Mas se a saudade der lugar à dor,
Lança-os ao fogo deixa-os queimar.

Se esses versos que arranquei da alma,
Eles não chegarem ao teu coração,
Abre-lhe caminho de flores e palma,
Quem sabe um dia voltará nossa paixão.

Quisera eu fazer deles uma canção,
P’ra que juntos a possamos escutar,
Sem ter por perto a sombra da solidão.

Se esses versos te causarem aversão,
Podes soltá-los nas brumas do mar,
Que o vento oculto, lhe dará a mão.
****************************************

TERRAS DE ALÉM-MAR

Tão longe de mim, tão longe,
Que não as posso alcançar,
Mas estou presa à saudade
Das terras de além-mar…
Onde o tempo não corria,
A noite era igual ao dia
E o sol sempre a madrugar.
Se o mar na areia batia,
Era só para se espraiar.
E pelos longos caminhos,
Com o capim a verdejar,
Havia rosas sem espinhos,
Para as poder abraçar.
E à noite quando surgia
A lua no céu a brilhar,
Ouvia-se o som do batuque
Se expandindo pelo ar.
****************************************

UM DIA VOLTAREI
 
Um dia, voltarei ao meu sertão,
Quando o Sol iluminar mais uma vez
O manto verde que envolve sua tez
E avivar os matizes do rubro chão.
 
Para sorver o orvalho de cada flor
Doce néctar saciando a minha sede
Sentir o frescor do cajueiro verde
Quando intensificar mais o calor.
 
Então espalharei o meu cansaço,
Pela solidão do tempo e espaço,
E no meio a essa magia envolvida
 
No revoar duma ave de rapina
Que por mim adeja em surdina.
Sentirei que de novo voltei à vida.
****************************************

Maria da Conceição Pinto Tomé, cujo nome literário é: Conceição Tomé e São Tomé o seu pseudônimo, nasceu em S. Mamede Ribatua, Concelho de Alijó (Trás-os-Montes), à beira dos rios Douro e Tua. Depois de ter vivido por longos anos em Angola e Brasil, reside atualmente em Amora – Seixal. Casada com o poeta e escritor Pinhal Dias. Escreve versos desde 1958, colaborando em vários Jornais e Antologias Poéticas, com adesão ao Recanto das Letras; Associação Portuguesa de Poetas; Poetas Del Mundo e AVSPE – Brasil; Horizontes da Poesia. Participou nas VI; VII e VIII Antologias Poéticas do Mensageiro da Poesia, 2ª Antologia de Contos Cardeais da Editora Mosaico de Palavras. Tem vários trabalhos publicados em Jornais e Revistas.

Foi Diretora do Mensageiro da Poesia. Vice-Presidente e Fundadora de “Os Confrades da Poesia”; também Diretora-adjunta do Boletim. Tem 2 CD's Gravados/Declamados.

Livros digitais: A Verdura do Meu Olhar; A Verdura do Meu Sentir; Uma prosa de vida; Entre o Verde e o Mar...
Livro Artesanal: "Meus Escritos”

Sites: http://conceicaotome.blogs.sapo.pt e 
http://www.confradesdapoesia.pt

Fontes:
- Os Confrades da Poesia Boletim Nr 57 | Julho/Agosto 2013, p. 20.
- http://www.confradesdapoesia.pt/Biografia/ConceicaoTome.htm
- http://conceicaotome.blogs.sapo.pt

Nilto Maciel (O Pecado de André Gide)


Bomfim fechou a porta e parou na calçada. Olhou para um lado, para outro e tirou a sorte: esquerda ou direita? Acendeu um cigarro, ergueu os olhos para o céu e seguiu. Nem os cachorros da noite davam sinal de vida e a luz fraca das lâmpadas dos postes se derramava sonolenta pelo chão. Sua sombra ia e vinha, a crescer e desaparecer, como num filme de terror.

Não havia nenhuma pressa em seus pés, nem sequer algum desígnio em seus olhos. Bastava andar, acompanhar o desenho dos próprios passos, para cansar-se e poder dormir. Em casa, os ratos brincavam de esconde-esconde, enquanto o gato morria de emoção no canto da parede. Os livros se espremiam na estante, Proust a empurrar Gide para lá, Thomas Mann a sufocar Hermann Hesse. Na sala, o alcatrão e a nicotina se misturavam à alfazema do desejo. A cama esparramava-se pelo quarto, desajeitada, fria, feia, feito mulher indesejável  – coberta de mofo, de lodo, de todos os cheiros ruins da solidão.

Na ponta da rua, uma nesga de luz cortava o chão da calçada de um amarelo claro e projetava a imagem retorcida e tosca de um fantasma. Que rugia, ou blasfemava, ou ameaçava. E Bomfim conteve mais a maciez dos passos e outra vez tirou a sorte: seguir ou voltar? Em seus olhos brilhou o último desígnio – o medo. E não voltou.

A figura se contorcia no chão, aureolada de ouro, poderosa, fascinante, a boca a espumar de desespero – insanamente.

Bomfim desviou-se para a ponta da calçada, quase apressado, um olho na réstia, outro em casa. Os ratos escalavam as paredes, o gato miava de prazer. Uma voz se colava aos seus calcanhares. Gide tombava, Hesse gemia.

Súbito, o braço agudo irrompeu de dentro da luz e Bomfim correu. E saltou pedras, chutou barros e espantou burros. Até desequilibrar-se e ir ao chão.

No corre-corre, o outro também tombou, deixando cair um punhal às mãos de Bomfim, que o agarrou e cravou na goela traiçoeira.

De volta à casa, encontrou tudo como antes – os ratos riam do gato, Proust empurrava Gide, a sala fedia a nicotina e o mofo inundava o quarto. Nem esperou pelo sono e caiu desajeitado no meio da cama – feito um homem repugnante.

E dormiu, muito, como nunca, a noite inteira, sem um sonho para contar. Amarguradamente só.

De manhã, correu aos jornais: o monstro havia voltado, o louco sanguinário, a fera noturna tinha feito mais uma vítima. O mesmo processo: punhaladas no pescoço. A cidade alarmada, a caça infrutífera, a violência urbana, o descalabro social.

Bomfim deu meia volta, abriu a porta de casa, aspirou a nicotina da sala, chamou os ratinhos de safados, alisou a lombada de Proust, abraçou-se a Gide e sentou-se na beira da cama. E se fosse à polícia contar tudo? Não, só se fosse muito ingênuo. Para virar monstro, louco, fera?

Abriu, ao acaso, seu Gide: “Nathanael, não acredito mais no pecado.”

Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) 3. Conto - I Love My Husband

I LOVE MY HUSBAND


Ambiente:
Interior do coração de uma mulher submissa e solitária.

Foco narrativo:
Primeira pessoa.

Personagens:
Marido e mulher.

RESUMO:
Eu amo meu marido, De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre mal dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição."

O marido é frio como o café que ele deixa esfriar. Ela lhe arruma o nó da gravata. Ele diz que esse é seu menor problema. Ela ri. Quer que ele saia tranquilo, “capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto.”

Ela é aclamada por cuidar do marido. Sabe que é a sombra dele. Os objetos “da casa são adquiridos pelo esforço comum”. Ele diz que ela gasta o dinheiro que ele ganha. Ela quer trabalhar, ser produtiva. Ela sente saudade do passado, do tempo em que sua vida não era ditada pelo marido, do tempo em que o marido não era seu dono. Ela sente que não é dona de si mesma. O marido lhe atara as mãos.

Revolta-se. Acaso é mulher apenas pelas unhas longas e coloridas? Já que ele não quer falar de amor, ela diz que talvez possam falar do futuro. Ele põe o jornal de lado. Ela torna a falar no futuro. Anseia por liberdade.

"O marido, com a palavra futuro a boiar- lhe nos olhos e o jornal caldo no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranquilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal?"

"Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredirem doze meses. Encarregava-me, eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada sonhado meu marido era mantido por mim: E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia contabilizar."

"Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério Jamais revelado ao mundo."

"Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao não se cumprira história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude.”

O pai lhe garantira que não envelheceria se vivesse só para o marido. E ela agora se vê numa vida que não quis. Ela se casara na expectativa da novidade do casamento. Na “esperança de que o marido modelaria suas feições até o último dia de vida juntos.

"Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. Não preciso Interpretar os fatos, Incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento."

COMENTÁRIO:
O conto quer mostrar o interior de uma mulher com um casamento só de aparências. Ela sofre, culpa-se pelos próprios sentimentos. E se vê incapaz de modificar a situação em que se encontra e com a qual é obrigada a conformar-se.

Narrado em primeira pessoa, trata dos enredos da vida de uma esposa conformada, educada sob o signo de uma cultura moralizadora e patriarcal. Ao longo da narrativa, mesmo depois de pensar em uma ou outra situação que não a agradou, ela afirma, tanto para si mesma, quanto para o leitor “Eu amo meu marido”, e ocupa-se imediatamente da descrição de atividades que possam favorecer sua felicidade ao lado de seu companheiro.

Embora não haja abordagem explicita, através de seus relatos, podemos notar seu posicionamento diante da sociedade e perante seu marido, a personagem é consciente de sua (in)existência. Sua vida se restringiu a ser, tão somente, a sombra do companheiro, em suas palavras “sou a sombra do homem que todos dizem eu amar”.

Logo no início da narrativa, já verificamos os indícios de sua aceitação diante da opressão, bem como de sua conformidade. A narradora, de certo modo, mostra-se satisfeita com fato de permanecer em uma zona de conforto. Como assinala Simone de Beauvoir (1986) ela, como tantas outras mulheres, é uma cúmplice de sua escravização, é apenas um objeto no relacionamento:

“Não posso reclamar. Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.

O excerto acima destaca o processo cíclico do enredo que começa e termina da mesma maneira. A afirmação da dominação masculina, representada pela figura do marido, nasce a partir da negação de sua condição humana, seus desejos e vontades são anulados pela falsa certeza de que as coisas precisam ser assim. Segundo Maria Consuelo Cunha Campos (1992) esta aceitação está relacionada à aceitação da naturalização de papéis, o homem, enquanto provedor, cumpre seu papel de chefe de família, cabendo a mulher, em contrapartida, assumir sua função submissa.

Outra marca que perpassa toda a narrativa é a ironia do discurso da narradora que demonstra estar consciente de opressão à qual é submetida.  A certeza de estar no mundo, proporciona um momento de epifania, no qual sua identidade leva-a a enxergar o quanto tem sido subjugada pelo marido.

Ao dar conta da de perda sua identidade, a narradora põe-se a buscá-la. Imersa em seus pensamentos, a memória insiste em visitar os conselhos da mãe, a satisfação do pai ao vê-la recebendo uma educação para o casamento e, como reflexo deste processo, encontrara-se agora diante do comportamento machista do marido. Em “I love my husband” a família é apresentada como a principal incentivadora da dominação masculina.

Dividida entre a dominação e a submissão, podermos afirmar que a personagem de Nélida Piñon é mais um exemplo de mulher em busca de sua identidade: mulher/esposa/mãe. Não obstante, é importante destacar ainda que, ao longo da narrativa ao considerar a função de dominador assumida pelo marido, a narradora passa por três momentos: submissão, epifania e resignação. O conflito entre as duas mulheres, sujeito e objeto, fica evidente nas sobreposições de pensamento, sendo a vitória da mulher-objeto afirmada tanto pela sociedade patriarcal, quanto pelo modelo familiar tradicional.

Fontes:
– As relações de gênero em I love my husband, de Nélida Piñon. Jornal Vetor. 4 nov 2015.
– Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 19 –

 

Montagem da trova sobre imagem da Libreria Fogolla Pisa

Contos e Lendas do Mundo (A Discussão dos Talheres)


Garfo, faca e colher estavam numa gaveta discutindo um assunto sério: quem era o melhor e o mais útil no mundo dos homens.

A faca, vaidosa, dizia:

- Eu facilito a vida do homem. Corto coisas enormes que ele jamais poderia utilizar ou comer sem a minha ajuda.

O garfo, muito metido, disse com empáfia:

- Sem mim os homens teriam de usar os dedos para levarem os alimentos à boca, e como esquecem de lavar as mãos engoliriam tanta bactéria que teriam indigestão bacteriana.

- Você sabe por que o homem comia com os dedos?

- Não. – disse o garfo.

- Porque achavam que o alimento era sagrado e por isso devia ser comido com os dedos.

- Mas sem lavar as mãos, não é, dona faca? Eu continuo dizendo que sou a ferramenta indispensável na mesa dos humanos.

A faca, nervosa, retrucou:

- Deixa de ser burro, garfo tonto. Garfo sem faca é o mesmo que relógio sem ponteiro, um não funciona sem o outro. Eu sou o talher mais antigo da história! Fui feita de pedra e servia para a caça e defesa. Depois passei a ser feita de bronze, isso numa outra época.

- Eu sei, seu bobo enxerido, que o homem oriental usava pauzinho a guisa de garfo, feito de bambu e tinha um nome engraçado, hashi. Isso você não sabia. Sabia? Sei, também, que apesar de você ser antigo só chegou ao mundo ocidental no século XI, na Itália. Você foi criado pelos gregos e adotado no século VII pelo Império Bizantino. Na Inglaterra, até o início do século XVII você era considerado utensílio efeminado.

- Não fale assim de mim, dona faca! – choramingou o garfo - Eu não sou efeminado. Eu nasci para facilitar, não para complicar. Eu sei tudo isso que você falou. Sei que ainda hoje, entre os orientais, permanece o uso dos pauzinhos. Com os pauzinhos o homem demorava muito tempo para comer. Cada vez que ele pegava uma porção para levar à boca, caía tudo de volta para o prato. Comigo não. Ele me enche de comida e eu entulho a sua boca.

- Você, seu garfo, é malvado porque incita o homem a comer demais e muito rápido. O costume de comer muito e rápido é prejudicial à saúde. Os pauzinhos são uma forma de disciplinar a alimentação. Aos poucos e devagar. Com eles não se pode pegar um bolão de comida.

- Não adianta, dona faca, sem esse garfinho aqui o homem é nada vezes nada.

- Ora, não seja convencido! - exclamou a faca – às vezes você machuca a boca das pessoas.

- Ah, é!? E você que corta os dedos das crianças?

- Só das crianças desobedientes. Eu ouço sempre as mães dizendo: “- Crianças não brinquem com facas...”

E o garfo exultante acrescentou:

- Viu, viu como eu sou mais útil do que você? Eu nunca ouvi uma mãe dizer: “- Não peguem o garfo, crianças!” Ah, ah, ah, eu sou bom demais!!!

- Pode rir seu bobo. – disse a faca amuada – O seu deboche não me atinge, porque eu sei que você também é perigoso nas mãos das crianças.

E a discussão continuou. A colher, que estava quietinha lá no seu cantinho, numa das divisões do porta-talher, interferiu:

- Dá licença!

- Pois não, dona colher – disse o garfo.

- Vocês estão nessa discussão boba de quem é melhor, quem é mais útil sem pensar que somos um conjunto. Deus permitiu que o homem tivesse a inspiração para nos criar e fazer de nós o pai, o filho e o espírito santo das cozinhas. Somos a tríade que facilita o trabalho de preparar e ingerir os alimentos. A minha história é meio nebulosa. Foram encontrados, em escavações, objetos semelhantes a mim, provavelmente, com mais de vinte mil anos. Sei que os gregos antigos utilizavam a colher de pau para preparar e comer os alimentos. Como vocês podem ver a minha história não é tão interessante quanto as suas. O que tenho certeza é que já fomos objetos rústicos, hoje somos mais modernos. Somos feitos de metal, plástico e madeira. Somos até joias feitas em ouro e prata. Mas a nossa função é a mesma, desde que surgimos na civilização: ajudar o homem na sua alimentação.

Nós somos a união, e a união faz a força. Lembrem-se que um é complemento do outro. E se é para se gabar de utilidade, eu quero fazer uma pergunta:

- Diante de um fumegante prato de sopa, quem é o mais útil? Ah, ah, ah, ah, peguei vocês.

Fonte:
Maria Hilda de Jesus Alão, in Contar e Encantar