quinta-feira, 18 de março de 2021

Júlia Lopes de Almeida (A alma das flores)


A Lúcio de Mendonça


– Em ótima ocasião vieste, Adolfo, exclamou o Sales, vendo-me ao portão do seu jardim; tenho agora uma esplêndida coleção de rosas. Entra.

De fato, as roseiras estavam com uma deliciosa carga de flores: umas brancas como a neve, outras amarelas, outras rosadas, outras cor de sangue, rajadas, lisas, crespas, folhudas, simples; de todos os tamanhos, de todas as cores e de todos os feitios, elas bailavam à doce viração da manhã, sacudindo entre a folhagem escura as cristalinas gotinhas d’água, com que ou o regador do jardineiro ou o orvalho da noite as tinha pulverizado.

– Encantador! realmente! disse eu sentando-me num banco, enquanto o Sales ia e vinha, explicando a origem desta rosa, a história complicada daquela outra, o romance de amor ligado a uma assim e assim, o trabalho que tal floricultor tivera para conseguir uma rosa tão perfeita como era a que eu via junto a mim, na haste curva de uma roseira sem espinhos.

O Sales dizia de cor tudo aquilo, mais de quatrocentos nomes, um catálogo vivo, que ele desfiava muito ufano.

– No Rio já há gosto! – repetia ele de vez em quando, impando de orgulho em frente às suas formosíssimas flores.

Eu ouvia-o, sentindo-me bem ali, embebido naquele doce aroma e com tal espetáculo diante dos olhos.

De repente, enquanto o Sales externava os seus conhecimentos de jardineiro apaixonado, eu vi, em um extenso gramado verde, aveludado, que havia junto ao lago, aparecerem, como por encanto, umas vinte raparigas formosíssimas, pés descalços, túnicas rosadas mal seguras nos ombros, erguidas de um lado, deixando ver a perna torneada e roliça, cabelos negros suspensos na nuca por travessas de ouro, olhos negros também, cheios de alegria e de malícia, dentes brancos resplandecentes, sorriso aberto, faces frescas como a aurora!

Elas dançavam em rondas, mãos dadas, beijando-se, aparecendo ora aqui ora ali, sempre alegres e saltitantes.

O Sales continuava a descrever a astúcia de um tal floricultor inglês, que roubara a um belga um importante segredo da esquisita formação de uma nova rosa:

– Biltre! clamava ele, vermelho de cólera.

Nesse momento, uma das raparigas, destacando-se do grupo, correu para mim e deu-me ingenuamente um beijo no pescoço; voltei-me rápido e vi que me roçava no ombro a tal rosa muito perfeita, inclinada da haste de uma roseira sem espinhos.

O Sales convidou-me para o almoço e eu segui-o, julgando que aquela esplêndida visão me havia de acompanhar; mas na sala, em frente às costeletas de carneiro e dos bifes, nada mais vi.

Passou-se algum tempo. Um dia o Sales, entrando-me pelo escritório, exclamou:

– Homem! consegui ter aqui, no Rio, cravos tão belos como os de S. Paulo; se quiseres vê-los vai amanhã cedo ao meu jardim.

Fui. Sentei-me no mesmo banco; o Sales começou a fazer a história dos cravos; falou-me de um amigo seu da província, que chegara a obter cento e tantas qualidades deles! narrou a propósito uma viagem e meia dúzia de anedotas; eu escutava-o, procurando no extenso gramado as vinte raparigas da manhã das rosas; mas não as encontrava!

Olhando sempre, principiei a divisar, ao longe, umas pontas de lanças douradas, uns capacetes de cintilações metálicas e uns penachos flutuantes, de cores vistosas.

Era um exército de cavalaria que subia uma encosta?...

Eram uns comparsas de teatro, ensaiando-se para o espetáculo.

Eu ia definir a coisa, quando o Sales disse:

– Vem cá! Vou mostrar-te uma parede da minha horta, que está literalmente coberta de madressilva; aquilo é uma flor vulgar, mas é bonita... anda daí.

Entramos na horta.

Borboletinhas cor de palha voavam por sobre as couves; havia um ar ingênuo em tudo aquilo. Chegando em frente ao tal muro fiquei atônito! Como uma cascata de flores, amarelas, rosadas e brancas, os cachos da madressilva pendiam de entre a folhagem; zumbiam-lhe as vespas em torno; e o Sales explicou:

– Esta trepadeira fornece muito mel às abelhas. Que cheiro agradável... hein?

Já então umas mãozinhas curtas e gordas afastavam a folhagem, e eu vi a cara redonda e graciosa de uma moça surgir detrás da verdura, olhar para a direita e para a esquerda, estender o pescoço roliço, mostrar o busto coberto por uma camisa de linho e um colete de veludo negro, de aldeã.

Logo depois veio de fora um camponês, vestuário galante, rapaz altivo e alegre; e ela, debruçando-se na folhagem, como quem se debruça à janela, sorriu, mostrando as covinhas das faces, e os seus lábios encontraram-se com os do campônio, num longo beijo de amor.

As abelhas zumbiam, e a camponesa enfeitava de flores o chapéu de feltro cinzento do namorado. E agora já não eram só eles! Em vários pontos do muro, camponeses e camponesas segredavam, abraçando-se; uma delas chegou a ter a ousadia de saltar para fora, e mostrou assim as suas meias em riscas e a saia vermelha barrada de preto; o noivo aparou-a nos braços, e lá se foram os dois saltando por sobre as ervas, e rindo às gargalhadas!

O Sales convidou-me a ir ao pomar.

– Tenho lá uma magnólia esplêndida. Eu sou tão doido por flores, que as planto em toda a parte! – dizia-me ele, dando-me o braço.

O pomar era pequeno, mas tratado com muito capricho; tinha de notável uma mangueira de enormes dimensões, e já não me lembra que variedades de frutas. A magnólia lá estava, com as suas grandes flores pálidas emergindo da rama escura da árvore.

Rodeando uma jaqueira vizinha, havia um banco de pau. Sentamo-nos um pouco. O Sales começou a ferir-lhe o tronco com o canivete. Estávamos silenciosos, e eu meditava na estranheza das minhas visões em casa do meu amigo, quando vi, positivamente vi, uma encantadora mulher, já na segunda mocidade, mas, apesar disso, linda, arrastando-se de joelhos, com os cabelos em desalinho, os olhos castanhos cheios de paixão, os lábios trêmulos, o vestido a envolvê-la numas rendas sombrias, pospontadas por uns pequenos raios de ouro, as mãos erguidas suplicemente. Transbordava de tal maneira a paixão do seu olhar, havia tal contenção de amor no seu peito, que me chegou a ser doloroso vê-la assim! Com quem falava? a quem dizia com tanta veemência o amo-te sagrado? Não sei: o peito arquejava-lhe, saltavam lágrimas grossas dos seus olhos, e espalhava-se-lhe pela fisionomia uma palidez de luar... Fiquei muito nervoso e despedi-me do Sales.

Meses depois tive de lá voltar a instâncias dele, para ver uma pequena coleção de lírios. Estivemos perto do lago, vendo os lírios d’água, cor de marfim e aromáticos; a nosso lado havia dos outros, cor de violeta e dos brancos, muito poéticos.

O Sales nunca oferecia as flores do seu jardim; era zeloso em excesso, e pôs-se a contar-me a razão disso. Entretanto, eu via através de umas névoas uns vultos indistintos, tocando em liras e em harpas de prata. Era um quadro vago, branco, nublado, aéreo.

Saí e jurei nunca mais voltar à casa do meu amigo, para não correr o risco de ficar doido!

Tive por esse tempo de mudar-me. Fui habitar o primeiro andar de uma casa de pensão. Pela janela de sacada do meu quarto eu via o quintal da minha senhoria, uma boa burguesa econômica, que em vez de jardim tinha um coradouro para a roupa lavada, e, a um canto, um único canteiro para tomates e salsa. Havia, porém, na vizinhança, um quintalito de iguais dimensões, mas onde a dona, igualmente prática, mas de sentimentos mais tocados por uns laivos de poesia, plantara, além da grama para o coradouro, e da salsa para a panela, um canteirinho de angélicas, que estavam então em flor.

No verão tive sempre por hábito ir fumar um cigarro à janela, antes de me deitar. Puxei a minha poltrona para a sacada, na primeira noite da estada na minha nova habitação, e pus-me a cogitar em um negócio sério, quando de súbito vi uma coluna singular, movediça, que se alava para o firmamento infinitamente azul e infinitamente calmo!

A pouco e pouco fui distinguindo formas humanas, figuras quase apagadas de mulheres, como se aquela coluna fosse a bíblica escada de Jacó, por onde as recatadas virgens iam subindo ao céu! À proporção que eu as fixava ia-as divisando melhor, até que as vi distintamente!

Eram todas alvas, eram todas loiras; os cabelos flutuavam-lhes em grandes ondas flexíveis, levavam os braços erguidos e nas pontas dos dedos das mãos, juntas acima da cabeça, uma pequena açucena, onde iria talvez a essência divina da maior dor da terra!

Dos seus olhos azuis, úmidos de pranto, caía o orvalho para as ervas, e elas subiam, sucediam-se, sempre formosas, sempre loiras, sempre a erguerem acima da cabeça a pequena açucena cor de leite!

Aquele quadro tinha uma magia estranha, de que eu não me podia desprender! ficava horas inteiras a contemplá-lo, até que, cansado, adormecia. O criado fechava com estrondo a janela e eu ia tonto para a cama.

Esta cena repetiu-se por umas cinco ou seis noites. Apesar do meu protesto, apresentei-me no fim de alguns dias em casa do Sales. Levando-me através do jardim, ele mostrou-me de passagem umas camélias brancas. Eu olhei detidamente para essas bonitas flores, que me pareciam, na sua mudez, pequenas virgens mortas: nada me feriu nem abalou a imaginação. Bem! calculei eu, agora as minhas visões só vêm à noite!

Mas exatamente nessa noite, debalde esperei a coluna humana, que subia da terra a perder-se nas constelações da Via Láctea! Em vão olhei para o espaço vazio, azul, iluminado pela luz da lua; no céu acinzentado luziam as estrelas como pequeninos pontos de ouro; mais nada!

Por que não viriam? onde estariam elas, as encantadoras filhas da noite? Cansado de procurá-las no espaço, debrucei-me da janela para procurá-las na terra. Tudo silencioso! tudo como na véspera... unicamente, do canteiro do quintal vizinho tinham desaparecido as angélicas brancas...

Só então percebi que via o que os outros sentem – o aroma!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. 
Brasília : Senado Federal, 2020. 
Publicada originalmente em 1903.

Alvitres do Professor Renato Alves - 1 -

1.
Já reparou que as pessoas dinâmicas, que estão sempre em atividade, são as que mais recebem críticas? Sempre há os "engenheiros de obras feitas" a condenar os erros do irmão que produz. Pois bem! Veja como este aspecto da conduta humana foi bem captado na trova abaixo!
    
Quem não faz, risco não corre.
Erro...engano...quem não falha?
Só pode errar quem socorre,
age, executa, trabalha!
(Maria Thereza Cavalheiro+)


 2.
"Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe!" – Esta sucessão de momentos bons e momentos maus, quase sempre efêmeros, que ocorrem durante toda a vida, foi flagrada de forma magistral nessa metáfora trovada de Waldir Neves, nosso saudoso irmão.
    
Ao longo da caminhada
em que a vida nos conduz,
vão-se alternando, na estrada,
luz e treva... treva e luz...
 (Waldir Neves+)
 
3.

A trova, ordinariamente leve e sutil, às vezes envereda pelo terreno das trágicas paixões que assolam a alma humana. Veja como, em quatro versos apenas, é possível criar-se um clima de tragédia que mexe com a nossa sensibilidade.
    
Achado morto em seu leito,
o anão do circo da esquina
apertava contra o peito
a foto da bailarina...
(Waldir Neves+)
 
4.

Observe o clima de  intimidade  e aconchego que esta trova  cria!
    
Eu me rendo, abaixo o tom,
te abraço e logo me apego...
Tranco a porta, ligo o som,
fecho a cortina e me entrego!
 (Ailto Rodrigues)
 
5.
Será que todo mundo é mesmo tão rigoroso em sua auto-avaliação? Eu acho que não!... Os homens, em geral, são até generosos demais no julgamento de seus atos. Como disse Fernando Pessoa:

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo...
São todos uns príncipes... "

 
Caso, um dia, o homem consiga
a si mesmo conhecer,
eu duvido que ele diga
que teve "muito prazer".
(Miguel Russowsky+)

 
6.

Sendo a língua o meio de expressão da arte literária e, por consequência, da trova, um de seus gêneros, a correção gramatical é uma preocupação constante de alguns trovadores, servindo-lhes, às vezes, até  de  tema:

Ao ler, na fábrica, o aviso
dizendo:  "VAGAS NÃO Á",
comenta alguém, num  sorriso:
– Nem para o emprego do "H"?
(Waldir  Neves+)
 
Dois ladrões, num intervalo,
foram juntos almoçar.
Um deles pediu... "roubalo"!
e o outro... "furtos do mar"!
(Edmar Japiassú Maia/RJ)
    
Sempre contando lorota,
diz que fala até chinês,
e, ao dizer-se poligrota,
assassina o português.
(Maria Nascimento/RJ)
 
"Cuidado com os degrais!"
– dizia o aviso ao freguês.
E ninguém tropeçou mais...
(A não ser no português!)
(Renato Alves/RJ)

7.
Trova é cultura:

Por mais simples que seja, a trova, às vezes, contém imagens que exigem um conhecimento específico para serem apreciadas plenamente. Por ex: O diamante é o estágio mineral mais puro do carbono, um elemento químico que forma milhares de compostos. É muito  brilhante, mas, um dia,  já  foi um negro carvão...
 
Se o erro ficou distante
seja pleno o teu perdão
Não se cobra ao diamante
seu passado de carvão!
(Pedro Ornellas/SP)


8.

Na poesia simbolista (escola literária do final do séc.XIX, tendo, no Brasil, como seu maior representante, o poeta Cruz e Sousa) uma das características é a  "sugestão": o poeta não exprime diretamente o que sente, mas sugere, insinua, apela para os sentidos. Prefere criar um clima sugestivo, de formas vagas, em vez de dizer diretamente.

Às vezes,  percebo por  trás da beleza de algumas trovas, este mesmo efeito do Simbolismo, uma certa atmosfera de insinuação...

    
Este teu corpo de miss
me deixa o coração tenso...
Imagina se eu te visse
daquele jeito que eu penso!
(Clarindo Batista/RN)
 
De meu pai, em mim gravada,
guardo a imagem, rotineira,
de uma camisa suada
sobre as costas da cadeira...
(Edmar Japiassú Maia/RJ)

 
9.
Coincidência na Trova:


Conforme nos alertou Luiz Otávio em "Meus irmãos os Trovadores":
 
"Nas trovas, como em todos os gêneros, podemos encontrar identidade de inspiração, semelhança de ideias, igualdades nas estruturas. Geralmente sem maldade... Assim, aconselho aos poetas que lerem alguma trova muito idêntica a uma sua, que não atirem a primeira pedra... Muitas vezes, a que você está lendo e julga ter sido plagiada da sua,  foi feita e publicada muitos anos antes."
 
Para ilustrar os comentários do mestre, cito abaixo 5 trovas iguais na temática (dupla visão do bêbado) e estruturas semelhantes. Da minha parte, posso garantir que nunca tinha lido qualquer uma das outras três.

 
Que genrinho inteligente!
Bebeu uma vez na vida,
viu duas sogras na frente,
nunca mais topou bebida!
(Élton Carvalho)
 
De fogo, o goleiro Armando,
enfurecendo a galera,
viu duas bolas entrando,
e pulou na que não era!
 (Pedro Ornellas/SP)
 
Chegou tarde, vista torta,
do boteco o Zé Morais,
viu duas sogras na porta
e não bebeu nunca mais!
(Pedro Ornellas/SP)

O pileque faz das suas!
Pra mim, porre nunca mais!
– Minha sogra virou duas...
castigo assim é demais!
(Josué de Vargas Ferreira)

Tomou "todas" – Que exagero!
Ficou com dupla visão...
Foi pra casa e... Oh! desespero!
Duas sogras no portão!
(Renato Alves/RJ)

 
Observem, agora, a semelhança de temas nos versos muito conhecidos em "Chão de Estrelas" na trova abaixo:
 
"A porta do barraco era sem trinco,
e a lua furando nosso zinco
salpicava de estrelas nosso chão..."
(Orestes Barbosa)

Dos pingos que a lua espalha
ficava o chão pontilhado...
É que meu rancho de palha
tinha furos no telhado
(Pedro Ornellas)

___________________________________
continua...

Melo Morais Filho (Casamento na Roça) - 1


Nos costumes nativos de nossas populações campesinas há uma face tão amena e pitoresca, que verdadeiramente delicia o artista que se ocupa desses assuntos.

É na intimidade desse povo inculto, na convivência direta com essa gente que conserva os seus usos adequados, que melhor se pode estudar a nossa índole, o nosso caráter nacional, deturpado nos grandes centros por uma pretendida e extemporânea civilização que tudo nos leva, desde as noites sem lágrimas até os dias sem combate.

E nem se diga que somos um povo que não tem passado e nem tradições; que não tivemos costumes próprios como qualquer outro, só porque o pedantismo medra nos centros mais populosos, à sombra da tolerância que tudo desvirtua e aniquila.

Em todos os atos de sua vida particular e pública, o Brasil possui o cabedal distinto de usanças, notas discordantes de costumes, pouco variáveis, alguns deles, no Sul e no Norte.

Daí a diferenciação que nos separa de povos estranhos, e o que dá a medida de nosso caráter, de harmonia com os nossos meios.

Errante de vila em vila, de cidade em cidade, de província em província, em busca de nossas tradições que se extinguem, sem um reflexo sequer na história nacional, os casamentos na roça ressaltam à descrição de nossa pena, tão originais nos parecem as suas peripécias e os seus detalhes, como quadros da vida brasileira no interior.

Na província do Rio de Janeiro, em lugares como Boa Esperança, Rio Bonito, etc., os casamentos em geral dividiam-se em três categorias. A primeira compreendia o de pessoas da classe rica e elevada; a segunda, o de indivíduos da mediana local; a terceira, o da gente baixa, seguindo-se logo após o dos escravos de fazendas, de que mais tarde trataremos.

Embora esses atos religiosos, essas festas nupciais apresentassem entre si pontos de contato, o tipo do segundo plano, isto é, os casamentos em que o noivo e a noiva saíam da cama da intermediária, nos parecem definir melhor os costumes roceiros, por isso que exornavam com mais largueza o cenário daqueles noivados ruidosos, e imprimiam um cunho mais tradicional na constituição da família.

Depois das preliminares do namoro e do pedido em casamento, a boa nova não tardava a ser espalhada por toda a localidade, por toda a povoação, acompanhada habitualmente das participações e convites. Desde logo, se o dia ficava determinado, os preparativos começavam, as encomendas do vestido da noiva, das luvas, da grinalda e do véu faziam-se com urgência e isso ao mesmo tempo que as primas, os vizinhos, as moças conhecidas mandavam comprar na cidade ou nas lojas próximas cortes de chita ou de caça para vestidos, fitas em profusão, flores de pano e enfeites para a toalete a capricho e de acordo com a moda.

A dona da casa e as escravas antecipavam-se na confecção dos doces saborosíssimos, na lufa-lufa dos arranjos domésticos, recomendando ao marido a provisão necessária de vinhos, queijos, lombo de porco, e mais extraordinários para o banquete.

A casa era varrida e vasculhada, as serpentinas e os castiçais ficavam gessados até a véspera, as mangas de vidro desempoeiradas e cobertas com ramos de flores artificiais; e as mucamas e os molequinhos, olhando para as suas roupas novas, espichavam o beiço, arregalavam as sobrancelhas, murmurando ao passar: “Chi!... tão boni to!...”

A noiva, sempre desconfiada, assistia a tudo isso, suspirando a instantes pelo delicado noivo que, entregue a outros afazeres, bem como ao de entender-se com o alfaiate sobre a roupa do casório, convidar os amigos, prevenir os tocadores de rabeca e de flauta, emprazar para o dia os violeiros de fama, rareava as suas visitas, no que era desculpável.

Concluídos os aprestos, e depois que corriam os proclamas, na manhã de um sábado a porta da noiva já se achava guarnecida de povo e da magna comitiva, que acompanharia os noivos à matriz da vila, que às vezes demorava a longa distância.

Do interior da casa, repleta de gente e de algazarra, lá vinham as madrinhas e os padrinhos, as damas do séquito, a noiva, enfim, com véu e grinalda de flores de laranjeira, sustentando-lhe a comprida cau da do vestido branco dengosa mucama, penteada e risonha, trajada também de branco, permanecendo todos alguns instantes na saída, à espera dos velhos que grazinavam lá dentro.

Nisso o noivo, a cavalo, os padrinhos e a comitiva de cavaleiros, que se achavam a seus postos, se aproximavam, dando sinal aquele a um carro de bois com toldo de esteira coberto de chita, que chegasse, para que embarcassem a noiva e as madrinhas, as primas e convidadas, evitando destarte a demora do padre na igreja, que os aguardava à hora certa.

– Eh! boi!...

E o carro, rangendo nos eixos, parava à porta; e quando a noiva subia em um banco para entrar, das janelas abertas entornavam-lhe sobre a fronte salvas de flores, ao que o noivo e os cavaleiros saudavam tirando o chapéu, empinando os cavalos e seguindo o carro.

O noivo, geralmente vexado, sacudindo o fraque bonito, alisava de quando em quando as crinas de seu ginete branco, sorrindo amarelo a alguma pilhéria importuna que lhe viesse roçar-lhe ao ouvido.

Durante o trânsito, as roceiras do carro e o séquito dos cavaleiros entretinham-se em conversas banais, em provocações maliciosas, sendo vulgar um ou outro dos acompanhadores levar algum tombo na estrada, o que despertava gargalhadas, correspondidas pela curiosidade das senhoras que botavam a cabeça de fora e aplaudiam por sua vez.

Chegado o casamento à matriz, o povaréu abria alas: os escravos que tinham partido adiante seguravam os cavalos, a noiva, as madrinhas e o mulherio apeavam-se, formando o grupo da frente as madrinhas e a noiva, com a sua mucama, que lhe levantava a cauda do vestido, entrando na igreja.

A estas seguiam-se o noivo, os padrinhos e a turba de convidados, que iam assistir ao ato e compartilhar do regozijo da família.

Depois de casados, como é comum, a noiva ressabiada dava o braço ao noivo que a conduzia ao carro, e o préstito, na ordem estabelecida, regressava, chegando a casa ao escurecer.

Apenas vistos de longe, os pais – os sogros e sogras –, se não os acompanhavam, ficavam às janelas, para receber os recém-casados; os abençoavam e abraçavam, espargindo-lhes à entrada perfumosas flores, e aclamando-lhes a futura felicidade.

E um tocador de viola, sapateando na rua, retorcendo-se em momices, antepondo-se aos noivos acanhados, cantava:

Tirana, minha tirana,
Tirana de lá debaixo;
Você vai cortar bananas,
Queira me trazer um cacho.

Tirana, minha tirana,
Ai! tirana de Irajá!
Aquilo que nós falamos
Tomara que fosse já.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Continua….

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 13: Radicalmente eficaz


CHAMBRÓSIO BOITORADO, foi visitar seu amigo Parreira, que mora no Leme. Chamou um Uber, se aboletou no banco traseiro e, nele, se deslocou da Rua Sá Ferreira, até o prédio onde o rapaz residia, na Gustavo Sampaio. Assim que chegou no apartamento dele, percebeu que a dorzinha de cabeça que viera, de contrapeso, desde que saíra de casa, seguiu dando sinais de que não pretendia  lhe dar um segundo de paz.

A certa altura, enquanto jogavam xadrez, incomodado com a chateação que não o largava,  indagou do companheiro, se  ele não tinha algum remédio do qual pudesse fazer uso para se livrar do desconforto irritante que não o permitia  que se  concentrasse nas peças do tabuleiro.

—  Qualquer coisa serve, Parreira.

—  Credo, mano. Relaxa.

Parreira, todavia, antes de se levantar para ir buscar  o analgésico pedido, discorreu sobre uma receita diferente, segundo ele, mais rápida e objetiva. Quando se via acossado por alguma indisposição que teimava em deixa-lo em maus lençóis, saia à cata dela.

— Se me permite, amigo Chambrósio, vou lhe falar de um santo remédio que considero por demais porreta, embora não seja médico, mas que, tenho certeza, se você pudesse fazer uso dele, certamente sairia depressa, como um rato assustado,  deste seu sufoco impertinente.

— E qual é este milagroso, amigo Parreira?

— Seguinte: toda vez que me atormenta uma indisposição momentânea,  uma dor de cabeça, enxaqueca, ou sei lá mais o quê, vou até a casa de Luciana, minha ex-mulher. Fico por lá uma hora, uma hora e meia e, quando percebo que estou sarado, levanto acampamento...

— Interessante...

— Muito. Escuta só. Ainda não acabei, mano. Esta semana, me vi umas três vezes em palpos de aranha. Na terça, uma dor forte veio me bolinar as medidas, assim do nada, chegando a me embaralhar as ideias. Falei com minha secretária observando a ela que não voltaria e, de lá mesmo, do escritório, corri direto para a casa da Luciana...

— Uau...!

— Na quinta e na sexta, precisei repetir a façanha. Bati desesperado nos calcanhares da Luciana, e, como num passe de mágica, cara, uma hora depois, eu estava novinho em folha.

— A Luciana, sua ex, deveria ser uma boa enfermeira, ou médica, se não tivesse escolhido ser juíza de direito.

— Verdade, meu brother. Tem toda razão. Se ela tivesse optado pela medicina... Apesar disto, a danadinha sabe como fazer um sujeito estressado e cheio de problemas voltar à sua tranquilidade. Bastou uma hora, Chambrósio, uma hora e eu me vi renovado e pronto para outra.

— Folgo em saber. Cá entre nós. Acho que você ainda gosta dela. Vejo isto em seus olhos. Eles brilham, quando você toca no nome dela e seu tom de voz muda literalmente... Por que não tenta reatar?

— Sem chance, Chambrósio. De mais a mais, estou em outra. Ei, antes que me esqueça: você precisa conhecer a Ariranha.

— Quem?!

— Minha nova namorada. Daqui a pouco ela pinta aqui no pedaço. Ariranha é um mulherão, uma cavala para homem nenhum botar ou ver defeito. É a tal da ‘Perfeitinha’, aquela música cantada pelo Enzo Rabelo, filho do Bruno, da dupla sertaneja Bruno&Marrone.  

— Sei a qual se refere.  Só o nome da graciosa — , me perdoe a observação —, é meio estranho. Você não concorda? Ariranha?

— Eu gosto, Chambrósio. Não acho nada fora da normalidade. Eu rotularia o patronímico dela, de diferente, de exótico...

— De qualquer  forma, apesar destes predicados todos que você enumerou, sei que ainda ama a Luciana.

— Sai, fora, mano. Luciana já era.

— Se você está dizendo...

Em resposta, Parreira se levantou, foi até a cozinha pegou um copo de água, passou no banheiro, onde tinha uma farmacinha particular, e de lá voltou com um comprimido.

— Tome.

— Qué isto?

— Torcilax. Um relaxante muscular que logo deixará você se sentindo como se estivesse dentro do paraíso... Com uma Eva a sua disposição...

— Ok. Parreira, obrigado... Estava aqui pensando...

—... Em que, meu amigo?

—  Raciocina comigo. Se funciona com você, certamente daria certo para mim também...

— Não entendi. Seja mais objetivo. Do que você está falando?

— Da Luciana, sua ex.  Se quando você está mal, se entrega aos cuidados dela, me responda, sem mais delongas... Neste momento, caso a minha cabeça não passe... Onde eu poderia  encontrar Luciana, a sua ex?!      

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Arquivo Spina 31: Antonio Queiroz

 


Luís da Câmara Cascudo (A Lenda de Itararé)


EM TEMPOS IDOS a nação indígena que vivia às margens do Paranapanema resolveu abandonar a região, escapando assim às atrocidades praticadas pelos brancos invasores.

Uma noite, porém, já em viagem, quando despertaram, estavam os índios completamente cercados e só à força de tacape conseguiram abrir caminho por entre os adversários; mas, na fuga, uma das mulheres mais formosas da aldeia - Jaíra - caiu sob o poder do chefe do bando contrário, homem forte e valoroso.

Reuniram-se as nações indígenas convocadas, e durante uma lua inteira se prepararam para a guerra. Efetuaram a festa do preparo do curare, também chamado uirari. Era a mulher mais velha da aldeia quem tinha a honra de preparar o veneno; vestia-se com penas vermelhas, escutava o canto dos pajés e partia para o mato, de onde voltava carregada de ervas. Quando o curare ficava pronto, os vapores da panela subiam; ela os aspirava e caía morta. Assim se fez.

Depois de esfriado o curare, começou a dança em torno à panela, ervando todos os guerreiros as suas flechas. Antes de se iniciar a batalha, chegou um velho de muito longe e entrou a aconselhar, secretamente, os pajés: na guerra contra os brancos, que usavam armas de fogo, só deviam esperar a morte; eles eram muitos e sabiam
defender-se; o que deviam fazer era o seguinte:

– Um dos nossos ocultará, perto do acampamento inimigo, filtros de amor que conhecemos, a fim de o chefe ficar apaixonado por Jaíra, e após deverá apresentar-se aos brancos como desertor da aldeia, para trabalhar com eles. Assim terá oportunidade de falar com ela e entregar-lhe drogas preparadas. E um dia, quando todos estiverem adormecidos pelo ariru, servido no banquete, os guerreiros indígenas, em massa, atacarão subitamente os inimigos, de tacape em punho. Não escapará nenhum dos brancos, cujos cadáveres serão lançados aos corvos.

Tal plano foi aceito pelos pajés.

No dia seguinte partiu o guerreiro, levando os filtros de amor, mas os índios em vão esperaram (como estava combinado) pelo canto da saracuara, três vezes em noite de lua nova. É que o chefe se apaixonara pela linda bugra, e Jaíra também se apaixonara pelo moço, de modo que o guerreiro enviado regressou sem nada haver conseguido.

O tenente Antônio de Sá (assim se chamava o chefe) era casado e residia em Santos, e quando sua esposa soube do amor que o ligava a Jaíra, fez que seu pai a conduzisse ao acampamento dos brancos, onde ela chegou, uma tarde, com muitos pajens e comitiva luzida.

Houve disputa entre os esposos, e, no dia seguinte, Jaíra, muito desgostosa, resolveu partir, dizendo ao tenente que ia esperá-lo à beira do rio Itararé, a fim de fugirem, à noite, pela floresta. E rematou:

- Quando a lua for descendo pelos morros azuis eu cantarei três vezes como a araponga branca, e, se você não comparecer ao lugar da espera, ligarei os pés com um cipó e me atirarei ao rio.

E pôs-se a caminho, deixando, em lágrimas, o moço. À noite, ouviu-se três vezes o canto da araponga branca, mas o chefe dos brancos não foi procurar Jaíra.

Medonha e súbita tempestade revolucionou, então, aquela região, caindo raios numerosos que vitimaram muitos bois, reduzindo bastante os animais do tenente Antônio de Sá.

Ao amanhecer, o chefe foi a cavalo, acompanhado por um pajem, à pedra indicada por Jaíra, mas só achou ali a roupa da infeliz criatura, com uma coroa de flores de maracujá do mato, em cima. O tenente soltou um grito de desespero, e ficou tão alucinado, que se lançou à corrente e não veio mais a terra.

A senhora branca soube do ocorrido, dirigiu-se a cavalo ao rio, onde só viu a roupa de Jaíra e o lugar em que sucumbira o esposo, e em pranto, a vociferar, amaldiçoou o rio em que cuspiu três vezes. Então as águas cavaram o solo e se esconderam no fundo da terra, os peixes ficaram cegos, a mata fanou-se e morreu!...

Contam que quem descia, de noite, à gruta de Itararé veria Jaíra, vestida de branco, com a grinalda de flores de maracujá, tendo ao colo o corpo do moço que morrera por ela. Às vezes, a sua sombra vinha à beira da estrada, matava os viajantes, tirava-lhes o sangue e com ele ia ver se reanimava o seu morto querido.

Dizem, em época mais recente, que a penitência já se acabou; e um dia, quando menos se esperar, as águas do rio hão de abrir de novo as suas margens e hão de espalhar-se pela terra, para refletir, à noite, o fulgor de todas as estrelas.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.

Professor Garcia (Mourão em sete pés) – 1


Esse é um dos estilos poéticos cantados pelos nossos magníficos repentistas, que nos proporcionam momentos de rara beleza e encantamento, porque prova a velocidade do raciocínio e da inteligência dos cantadores. Via de regra, quem começa já imagina o fechamento da estrofe; mas o oponente, ao perceber, muda essa ideia na tentativa de deixar o colega em dificuldade.

Alguns exemplos a seguir entre Prof. Garcia (PG) e Zé Lucas (ZL)


PG - Todo mourão me enternece
seja do jeito que for.

ZL - Eu vibro quando ele cresce
na voz de um bom cantador.

PG - Mourão que é bem feito em sete,
verso nenhum se repete
na lira de um trovador!
= = = = = = = = = = =

PG - A abelha da jandaíra
é uma operária sofrida.

ZL - Na natureza se inspira,
fabricando o mel da vida.

PG - Meu Deus! e o que faço agora,
se a jandaíra de outrora,
já foi de morte, ferida!
= = = = = = = = = = =

ZL - No piso de meu curral,
só quero vaca leiteira.

PG - E eu quero no meu quintal
o canto da cachoeira.

ZL - Quando a cachoeira canta
o rio, que se levanta,
vem de barreira a barreira.
= = = = = = = = = = =

PG - Me lembro da bordadeira
na varanda da fazenda.

ZL - E uma cabocla faceira
tecendo bico de renda,

PG - Esse passado tão lindo
pouco a pouco foi sumindo;
no meu sertão, virou lenda!
= = = = = = = = = = =

ZL - Espremida na moenda,
virava bagaço a cana.

PG - E o bagaço era oferenda
no terreiro da choupana.

ZL - No sabor da rapadura
concentrava-se a doçura
do mel da cana caiana.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PG - O engenho de moer cana,
referência do passado,

ZL - Hoje é saudade tirana
de um sonho desmoronado.

PG - Para falar a verdade,
é meu mundo de saudade
dentro do peito guardado!
= = = = = = = = = = =

ZL- Eu defendo a virgem mata,
onde a paz ainda habita.

PG — Onde a lua cor de prata
deixa a noite mais bonita.

ZL - Se, ali, alguém que não presta,
ferir de morte a floresta,
até o silêncio grita!
= = = = = = = = = = =

PG - Quem usa a foice maldita
para uma planta cortar.

ZL - Com a lei divina se atrita,
pisoteia o verbo amar!

PG - Quem queima e que tudo corta,
deixa a natureza morta
e a terra triste a chorar!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Gota D’Água)


Pai, talvez você continue sem querer notícias, mas precisa saber que estou bem. A cidade é um grande cartão postal, me recebeu de luzes acessas. Você, que sempre gostou das águas paradas, adoraria conhecer o Guaíba, um lago tão grande que aqui chamam de rio. E não tem dono, qualquer um pode sentar à margem e namorar, conversar, escrever, pensar, sonhar. Eu, quando sinto falta do mato, do milho crescido, da casinha que não temos mais, venho pra cá. E lembro daquela tua frase: o que é uma gota de lágrima diante dum rio grande? Lembra o dia em que me disse isso? É, mas eu não achei que fosse sentir tanta falta dela. Nem que nossa vida mudaria assim.

Rosa, os dias aqui são curtos e o tempo parece que passa mais rápido. Por isso não escrevi antes. Mas saiba que a cada dia levanto, lavo as mãos, olho para o espelho e nele está nossa foto. É por ti que vim, por ti que trabalho. Não peça prazo, não tenha pressa. Está próximo o dia em que voltarei para ti buscar. Aqui você vai trabalhar numa loja muito fina, atender madames e ganhar altas gorjetas. Nunca mais vai precisar tirar leite, carnear boi, correr atrás das galinhas, ouvir aquele grosso te dando ordens e te explorando. Nem você nem a mana.

Carlos, sei que nesse mês vence a primeira prestação. Nem parece que há tanto tempo deixei o campo, o pai, a Rosa, os manos. Confesso ter ficado triste com tua carta, mas é a dificuldade que eles passam aí o que me dá forças para esta loucura. E, claro, tua ajuda. Aquele dinheiro foi fundamental nos primeiros meses, e mais ainda quando precisei comprar roupas. Para que roupas? As coisas na capital são muito diferentes, não se pode sair de camisa rasgada, velha, cabelos despenteados. As pessoas nos olham como se fôssemos bandidos e nos dão no máximo moedas, nunca trabalho.

Mana, que saudades! O Carlos contou das dificuldades que têm passado com o pai. Coitado, ao invés de chorar, ele bebe a falta da mãe. Assim acaba mal, mana, acaba mal, não esquece o que o padre disse. Bem, mas a verdade é que daqui não te mando notícias muito melhores. Pelamordedeus, não conte pro pai, mas a cidade e o campo sofrem do mesmo mal: tem gente demais e espaço de menos. Ou gente de menos com todo o espaço para si, não sei. O fato é que tive problemas com nossos pães. Até capinei, tirei pedras da casa duma madame, derrubei uma árvore, tudo que odiava fazer aí só para não passar fome. Pior quando olho o rio e lembro dos nossos planos. A gente fazia tantos...

Dra. Marisa, só a senhora pode me ajudar nesse momento difícil. Vim para a cidade com a roupa do corpo, alguns pães feitos pela mana e um dinheiro emprestado pelo Carlos. Aluguei um quarto, vendi uns pães, comprei os ingredientes para fazer mais pães. Só que onde moro não deixaram usar a cozinha, e me sugeriram alugar a da padaria do Seu Manoel. Fui lá e combinei de trabalhar de graça para ele de dia e fazer meus próprios pães de noite. Venderia ali mesmo. Só que ontem cheguei lá e ele tinha me demitido! Nunca fui empregado dele, levei meus pães, única riqueza que eu tinha, e ajudei o cretino a fabricar outros. Como posso ter sido demitido? Calculo que ficaram mais de cem dos meus pães para serem vendidos.

Mano velho, não sei nem o que responder. Esta tua carta me cai como mais uma bomba. Imagina que hoje de manhã mesmo fui expulso do quartinho. Agora essa, que a Rosa está de casamento marcado. E com o Carlos! O sem vergonha nunca respondeu às minhas cartas, nem pra cobrar ele me escreveu. Só podia ter coisa errada. Agora, mano, não sei o que faço. O pai cada vez mais doente, a Rosa não me espera mais, o dinheiro acabou. Voltar, talvez voltar. Mas voltar para onde? Para o acampamento? Levar a mana e o pai comigo e tentar de novo? Sabemos como funciona, não é solução. Nem ficar esperando outro explorador e suas migalhas. Não, voltar eu não vou. Que a Rosa case, faz bem. Não sei quando poderia buscá-la mesmo. No fundo fiz tudo isso pela mana. Ela não pode ser a vida inteira empregada daquele porco imundo. E quando morrer a patroa, a Dra. Marisa, nem respeito o filho da mãe vai ter. Deus me livre.

Padre, lamento não estar aí no campo para falar com o senhor. Tentei os padres aqui da cidade, mas poucas igrejas ficam abertas para alguém como eu. Não, padre, não sou mais o mesmo. Primeiro perdi os pães, depois as roupas ficaram trancadas no meu quartinho como pagamento dos atrasados, e hoje nem esperanças tenho mais. Sobrevivo graças a um senhor que me alimenta, me deixa dormir em sua garagem e em troca capino um terreno para ele. Isso não é vida. Não ganho nada, só comida, caneta e papel. Ele já disse para eu voltar, o mano também. Mas é por isso que escrevo, não posso voltar. Não existe mais a minha terra. Desde que a mãe morreu ela não existe mais. E o pai sabe disso, tanto que nunca mais viveu. Foi o senhor, padre, quem me explicou o perigo que era a cabeça de um viúvo, a força da tristeza mesmo nas almas mais nobres. Foi o senhor, padre, quem pediu para eu vender todas as facas afiadas demais, esconder cordas e navalhas. Foi o senhor, padre, quem pediu para eu acompanhar ele no rio. E foi no rio que eu entendi o porquê, padre. Ele não chorou, nunca chorou. Só olha para aquelas águas paradas, tristes, quietas. Um dia me perguntou o que é uma lágrima diante do rio grande. Não sabia, padre, não sabia mas aquelas palavras me cortaram. Verdade que não percebi isso naquele instante, precisei atravessar o estado, me arriscar neste cartão postal, perder pães, roupas e sonhos para descobrir a tristeza do rio. Do pai.

Agora eu entendo.

Que o senhor me perdoe, padre. E que a mana pense ter sido um acidente. Ela ainda merece ser feliz.

Fonte:
Marcelo Spalding.

terça-feira, 16 de março de 2021

Adega de Versos 4: José Lucas de Barros

 


Stanislaw Ponte Preta (O boateiro)


Esta historinha — evidentemente fictícia — corre em Recife, onde o número de boateiros, desde o movimento militar de 1.° de abril, cresceu assustadoramente, embora Recife já fosse a cidade onde há mais boateiro em todo o Brasil, segundo o testemunho de vários pernambucanos hoje em badalações cariocas.

Diz que era um sujeito tão boateiro, que chegava a arrepiar. Onde houvesse um grupinho conversando, ele entrava na conversa e, em pouco tempo, estava informando: "Já prenderam o novo Presidente", "Na Bahia os comunistas estão incendiando as igrejas", "Mataram agorinha o Cardeal", enfim, essas bossas. O boateiro encheu tanto, que um coronel resolveu dar-lhe uma lição. Mandou prender o sujeito e, no quartel, levou-o até um paredão, colocou um pelotão de fuzilamento na frente, vendou-lhe os olhos e berrou: "Fogoooo!!!". Ouviu-se aquele barulho de tiros e o boateiro caiu desmaiado.

Sim, caiu desmaiado porque o coronel queria apenas dar-lhe um susto. Quando o boateiro acordou, na enfermaria do quartel, o coronel falou pra ele:

—    Olhe, seu pilantra. Isto foi apenas para lhe dar uma lição. Fica espalhando mais boato idiota por aí, que eu lhe mando prender outra vez e aí não vou fuzilar com bala de festim não.

Vai daí soltou o cara, que saiu meio escaldado pela rua e logo na primeira esquina encontrou uns conhecidos:

—    Quais são as novidades? — perguntaram os conhecidos.

O boateiro olhou pros lados, tomou um ar de cumplicidade e disse baixinho: — O nosso exército está completamente sem munição.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996.

Lino Mendes (Conversas com Ti António*) Novembro


E as “conversas com ti António “uma “figura da nossa charneca” continuam. Mas diga-se antes de mais, e que segundo ele nos diz, aos 5 anos(1922) começou a ver como iam as coisas lá pela charneca, aos 14 já lavrava, sendo que aos 16(1933)tomou conta da sua própria lavoura.

Eu já tinha nos meus planos,
que havia coisas boas
no dia de Todos os Santos,
que era o esperado das broas;

Mas era só no primeiro dia,
que não podia ser mais,
tínhamos de semear o trigo,
lavrado por animais;

Dos animais que lavravam
isto antes e depois,
e os mais apropriados
eram as vacas e os bois;

Isto já se fazia dantes
e não é uma brincadeira
aproveitar bem o mês dos Santos
pois era o melhor para as sementeiras;

Começava-se à segunda-feira
isto logo de madrugada
eram seis dias por semana,
por vezes até de empreitada;

E trabalhar de empreitada,
muita gente o fazia,
começar de madrugada
para aproveitar bem o dia;

Era uma grande alegria
a vida dantes,
muita coisa se fazia
no mês dos Santos;

Mas dentro do mês dos Santos
nem só se semeava
já se fazia dantes
azeitona se apanhava;

A azeitona se apanhava
com jeito e muita alegria,
todos os baguinhos se colhiam
ao longo de todo o dia;

Varejava-se toda pro chão
para a mulher apanhar
bago por bago
com as suas próprias mãos;

Era sempre de empreitada
ao longo de todo o dia
apanhar a bago por bago,
pois tinha que encher o saco
era a empreitada do dia;

Era a vida que corria
setenta anos atrás,
era a vida que se fazia
quando eu era rapaz;

A vida não volta pra traz,
nem nada disso pode ser,
gostava dela quando era rapaz
que não agora que estou a envelhecer;

Pouco mais posso viver,
escutem bem o que lhe digo;
Já muita coisa deixei de fazer,
até deixei de fazer trigo;

Já deixei de semear trigo,
que muito gostava de fazer,
era o pão de cada dia
pra todos terem de comer;

E o pão pra todos comerem,
é o que tem mais valor,
mas tem de ser semeado
p'lo tal dito lavrador;

E até eu o fazia
com carinho e amor,
lavrando todo o dia,
com orgulho de lavrador;

Lavrador era quem lavrava,
que sempre assim foi,
muito trigo se lavrava
com a vaca e com o boi.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Ti António Carqueja foi uma figura típica da nossa terra. Exímio bailador, segundo ele próprio “arranhava” umas coisitas no harmónio, na concertina e no realejo. Ensinou alguns jovens a tocar concertina. Tocava ferrinhos no Rancho, e pertencia aos grupos de Foles e de Realejos. No princípio de cada mês (logo doze vezes) ia a casa dele para me falar do mês em referência, mas a condição – ele que não era poeta – mas tinha que ser em verso.

Fonte:
Boletim em linha. Montargil Acção Cultural. N. 90. novembro de 2021.
Colaboração de Lino Mendes.

Humberto de Campos (São Filomeno)


A estação de Carirí, na Estrada de Ferro de Sobral, no Ceará, é separada da Serra Grande, ou da Ibiapaba, por dez ou doze léguas de planície, onde se estendem as caatingas uniformes e pedregosas, ou se levantam, aqui e ali, os outeiros cinzentos, ásperos, desertos, inteiramente despidos de vegetação. A falta de açudes ou de lagoas e, mesmo, a pequena fertilidade das terras, tornou ali menos densos, e menos próximos, os núcleos humanos. As fazendas são mais raras, e os povoados mais distantes, vendo-se, apenas, quebrando aquela monotonia, de légua em légua, pequenos grupos de reses, que se disputam, melancólicas, os poucos recursos de pastagem.

Contrastando com esse panorama desolador, que a impiedade do sol torna mais triste, surge, porém, de repente, aos olhos de quem viaja, um ramalhete de verdura, um breve oásis em que as árvores se aglomeram, e que se conservam permanentemente viçosas, como aqueles plátanos da Arcádia que protegeram os primeiros amores de Zeus. É ali, nesse breve refrigério da natureza, que os vaqueiros e transeuntes repousam da travessia sertaneja, descansando na terra o bordão de caminheiro ou amarrando nos troncos, à sombra dos juazeiros e das oiticicas, as velhas alimárias fatigadas.

- Que bosque é este? - perguntei, um dia; diante dessa paisagem curiosa, à simplicidade do meu guia, um caboclo serrano, moreno, forte, de alma de criança e pescoço de touro.

- Aqui? Aqui é a mata do Nicolau.

- E esse Nicolau, mora aqui? - indaguei.

O caboclo sorriu, zombeteiro, e explicou:

- Não mora, não, senhor; já morou.

O caso, como era natural, intrigou-me, e, como eu insistisse, o caboclo sentou-se no alforje, que atirara ao chão, e contou-me, enquanto almoçava o seu pedaço de queijo fresco, a maravilhosa história daquela paragem.

- Antes da seca de 77 - começou - havia neste lugar uma povoação, que vivia, com a graça de Deus, na maior fartura. Então, não havia estas árvores. Tudo isto era campina; caatinga, chapadão, como lá fora. A gente era muito ativa e decidida, e, como a terra fosse boa, não faltava nada. Com a Seca Grande, porém, veio a fome, a miséria, um horror. O povo, fiado em Deus, e em São Filomeno, padroeiro do lugar, não queria fugir. O gado morreu. As galinhas morreram. Até bode morreu nesse ano. E começou a morrer gente. Desenganados de inverno, os moradores reuniram-se uma noite na capela e resolveram abandonar o povoado. E como não entrassem em acordo a esse respeito, ficou resolvido que o Nicolau pensasse e deliberasse por todos.

- E quem era esse Nicolau? - interrompi.

- Espere lá, já lhe digo. Esse Nicolau era o sujeito mais respeitado do lugar. Sério como ele só. A mulher, D. Felismina, era uma santa. Não perdia missa, nem novena, nem ladainha, e ia até o Carirí, sozinha, para ouvir a Santa Missão. E como era ainda o menos pobre, foi o Nicolau encarregado de resolver o caso, em nome dos companheiros de desgraça. Devoto como era, resolveu ele pedir o auxílio de São Filomeno, e meteu-se, nessa mesma noite, na capela, trancado. Trancou-se, rezou muito, e, lá pela madrugada, dormiu. E foi aí que se deu o milagre.

- Milagre?

- Sim, senhor. Diz ele que, assim que pegou no sono, viu São Filomeno descer do altar, e ir crescendo; crescendo, até que ficou do tamanho de um homem. Depois, aproximou-se dele, e disse: "Nicolau, o povoado vai ser reduzido a cinzas porque, todos nele são pecadores. As mulheres, então, já estão mais degradadas do que as galinhas do teu terreiro e do que as cabras do teu serrote!" - "É possível, senhor?!" - exclamou Nicolau, espantado. O santo não entrou, porém, em explicações, limitando-se a dizer: - "Olha, Nicolau, o momento não é para vinganças nem para derramar sangue de cristão. Mas eu vou te dar elementos para apurar a verdade. Toma, - disse, entregando-lhe dois punhados de caroços; - toma estas sementes, e distribui, uma a uma, pelos homens casados do povoado, para que eles plantem à porta da sua casa. Depois, fujam, abandonem o lugar, a capela, tudo, porque a seca vai continuar ainda por dois anos. Ao fim desse prazo, voltem, e examinem: na porta daqueles cujas mulheres os tenham traído, estas sementes terão nascido; e só não nascerão, Nicolau, na porta daquele cuja mulher nunca o tenha enganado!" O homem cumpriu a recomendação do santo, distribuiu as sementes pelos companheiros, plantaram, e fugiram para o Amazonas. Anos depois, voltaram.

- E então?

- E então? Então, encontraram este bosque verde, viçoso, que nunca mais morreu!

- Nasceu, então, até a semente da porta do Nicolau?

O caboclo sorriu, e atendeu:

- A porta do Nicolau era ali.

E indicou um pé de jatobá imenso, largo, robusto, cuja copa dominava o oásis e guiava, de longe, os viajantes que transitam, hoje, entre a frescura da Serra Grande e a estação da Estrada de Ferro, nos sertões do Carirí.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Adega de Versos 3: Dudu Morais

 


Contos e Lendas do Mundo (A Pedra Sagrada)


Era uma vez um lobo que andava cheio de fome. Desesperado com tudo, foi a uma velha tabanca falar com um homem grande.

– Já há muito tempo que ando assim: sem comer coisa alguma! Queria que o homem grande me ajudasse a vencer esta situação.

– Eu posso ajudar-te a sair dessa situação. Vou te dar indicações para facilmente encontrares uma pedra sagrada com o aspecto duma figura humana: olhos grandes, compridas orelhas e uma boca enorme. Eis aqui a chave do mistério que vais utilizar para enganar os outros, a fim de conseguires o alimento que tanto desejas. Quem quer que por ali passe e diga "a pedra que tem barba", cai e morre logo. Tu não podes dizer a frase completa, apenas "a pedra que tem bar". Mas faz com que os outros a completem. Mais uma vez, lobo, não te esqueças da minha advertência, disse ainda a terminar o homem grande.

O lobo despediu-se do velho e pôs-se a caminho. Andou, andou, andou e tanto andou que acabou por dar com o local. Viu a pedra com as mesmas características que lhe foram apontadas pelo homem grande. Pôs-se e então à espera, cada vez com mais fome.

Não tardou que a gazela passasse por ali. Chamou por ela e disse:

– Já viste aquela "pedra que tem bar"?

A gazela, sem desconfiar de nada, completou a frase:

– Pois, amigo lobo, já vi aquela "pedra que tem barba".

Caiu e morreu logo. O lobo, satisfeito com o resultado, acabou de comer e ficou à espera.

Seguiu-se-lhe o macaco, a onça e o tigre, até chegar a vez da lebre.

Esta, que andava bastante distraída, ouviu uma voz chamar por ela. Virou-se e deparou com o lobo, que se apressou a dizer-lhe:

– Então sobrinha! Como vai essa vida?

– Muito boa, tio lobo! Que fazes aqui?

Mas o lobo, tão esperto que era, quis aproveitar-se logo da situação:

– Sobrinha lebre, será que já viste aquela "pedra que tem bar"?

– Pois, tio lobo! Já vi aquela "pedra que tem bar"! É muito engraçadinha! - respondeu a lebre, que já conhecia a situação.

O lobo não se deu por vencido. Voltou a repetir a mesma frase:

– Sobrinha lebre, será que já viste aquela "pedra que tem bar"?

A lebre, mais desconfiada que nunca, repetiu a mesma frase. Então o lobo insistiu aos berros, desorientado com a resposta da lebre, pretendendo que esta completasse a frase.

Mas ela não se deixou impressionar, nem mesmo com o tom de voz do lobo. Depois de muita discussão e repetição da mesma frase, o lobo acabaria por cair na armadilha. Irritadíssimo e sem se lembrar dos conselhos do homem grande, disse:

– Ainda não viste aquela "pedra que tem barba"?

Imediatamente caiu e morreu, tal como acontecera com todos os outros que enganara antes.

– Pensavas que sou burra? - disse a lebre afastando-se.

Fonte:
Universo das Fábulas

Caldeirão Poético XL

Antônio Roberto Fernandes

São Fidélis/RJ, 1945 – 2008, Campos dos Goytacazes/RJ

COVA


Cova é palavra que, naturalmente,
lembra morte, mistério e nos espanta
pois cova tanto é o lar de uma serpente
como, na Iria, foi o altar da santa.

Na cova o lavrador deita a semente
pra que ela morra e gere nova planta.
Sempre uma cova espera pela gente
e quem se deita lá não se levanta.

Mas na lavoura da felicidade
somos a terra, o fruto e a semente
– mistério da humaníssima trindade –

pois se louco de amor seu corpo enlaço
penetro em sua cova e, de repente,
deliro… e morro… e me sepulto… e nasço!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Diniz Vitorino
Monteiro/PB, 1940 – 2010, João Pessoa/PB

DESEJO


No meu último instante, quero acesas
as estrelas banhadas de neblinas,
e, ao sussurro de orquestra montanhesas,
dançar valsas com rosas bailarinas.

Satisfeito soltar as lágrimas presas,
da alcova luminosa das retinas.
derramar todas elas, sem tristezas,
no gramados das chãs esmeraldinas.

Beber gotas do pólen fecundado,
sobre o colo do galho esverdeado,
onde a flor engravida sem sentir!

Deleitar-me na paz que envolve a fonte
morrer bêbado fitando o horizonte,
vendo a lua deitar-se pra dormir!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Haroldo Lyra
Fortaleza/CE

DESPEJADAS

Trocou su’alma santa e o mais sutil
traço de vida calma e intemerata,
pelo vesgo contágio da ribalta
que lhe acena com brilho mercantil.

Na luxúria, no beijo que arrebata
das entranhas da carne o gozo vil,
paga o preço que a fama discutiu
nas premissas que o vero não retrata.

E colhe entre os abraços repentinos,
os laivos dos amores clandestinos,
em cavilosas juras gotejadas,

que tão cedo lhe explodem em desenganos,
martírio desses tratos levianos:
o alto custo das ninfas despejadas.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

J. G. de Araujo Jorge
Tarauacá/AC, 1914 – 1987, Rio de Janeiro/RJ

BOM DIA, AMIGO SOL!

         
Bom dia, amigo Sol! A casa é tua!
As bandas da janela abre e escancara,
– deixa que entre a manhã sonora e clara
que anda lá fora alegre pela rua!

Entre! Vem surpreendê-la quase nua,
doura-lhe as formas de beleza rara…
Na intimidade em que a deixei, repara
Que a sua carne é branca como a Lua!

Bom dia, amigo Sol! É esse o meu ninho…
Que não repares no seu desalinho
nem no ar cheio de sombras, de cansaços…

Entra! Só tu possuis esse direito,
– de surpreendê-la, quente dos meus braços,
no aconchego feliz do nosso leito!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 

José Antonio Jacob
Juiz de Fora/MG

FIM DE JORNADA


Enquanto minha pena versifica
Versos de amor em minha caderneta
Vejo passar o tempo na ampulheta,
– Mas na ampulheta o tempo sempre fica!

Tanta saudade sua não se explica…
Desenho um coração com a caneta
E dentro dele um nome clarifica…
Arranco a folha e a guardo na gaveta.

Finda a jornada vou ao bar ao lado,
Para esquecer o amor da minha vida
Tranquei lá no escritório o nome amado…

E, ainda, cansado dessa solidão,
Eu peço uma caneta e uma bebida
E escrevo o nome dela no balcão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Vinícius de Morais
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

SONETO DA DEVOÇÃO

 
Essa mulher que se arremessa, fria
e lúbrica em meus braços, e nos seios
me arrebata e me beija e balbucia
versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
que se ri dos meus pálidos receios
a única entre todas a quem dei
os carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
a miséria e a grandeza de quem ama
e guarda a marca dos meus dentes nela;

essa mulher é um mundo! – uma cadela
talvez… – mas na moldura de uma cama
nunca mulher nenhuma foi tão bela!

Fontes:
Ademar Macedo. Mensagens Poéticas.

Dicas: Como Organizar uma Estante de Livros – 3, final

Criando estantes estilosas


1. Faça um fundo escuro (opcional).

A estante ficará ainda mais chamativa se o fundo for mais escuro do que as paredes e prateleiras circundantes.

Considere pintar a parte traseira das prateleiras para obter esse efeito vívido.

No caso de estantes abertas, pendure um tecido entre elas e a parede.

2. Colecione possíveis itens de decoração.

Conheça bem os itens que serão usados antes mesmo de começar a preencher as prateleiras. Vasos, porcelana, estatuetas, bugigangas, candelabros — a sua casa é a sua concha. Reúna mais do que você pensa ser necessário, a fim de testar mais opções.

Objetos verticais e com linhas retas parecem mais similares aos livros, resultando em uma aparência austera e rígida.

Algumas tigelas redondas, cestas ou outros objetos esféricos podem ajudar a criar uma atmosfera mais amigável.

3. Comece com os objetos maiores.

Separe os maiores objetos decorativos e os grandes livros, se houver algum. Espace-os bem ao longo da estante, deixando bastante espaço entre eles para criar alguns pontos focais isolados. Um padrão de ziguezague funciona bem, no qual você deixa um dos objetos na extremidade esquerda da primeira prateleira, outro na extremidade direita da segunda e assim por diante.

4. Guarde os livros em orientação diferente.

Atraia os olhos por mais tempo variando a posição de seus livros.

Empilhe alguns livros um sobre o outro em algumas prateleiras, e mantenha-os verticalmente juntos em outras.

Experimente criar uma pirâmide de livros, com um discreto objeto de decoração no topo.

5. Use decorações pequenas para criar contraste.

À medida que você posiciona os seus livros, coloque um objeto de decoração onde parecer necessário. Use objetos coloridos em contraste aos livros com capa discreta e apagada, ou vice-versa.

Um par de candelabros altos serve bem como moldura de livros baixos.

6. Firme os livros com objetos pesados.

Apoios para livros são bastante úteis, e vêm em uma grande variedade de formas decorativas.

Como alternativa, você pode usar qualquer objeto pesado a fim de mantê-los no lugar.

7. Deixe bastante espaço vazio.


Lacunas dão às prateleiras uma aparência melhor do que quando entulhadas com livros e origami. Isso se torna especialmente importante no caso de estantes abertas colocadas no meio de um cômodo, pois precisam de bastante espaço a fim de permitir que a luz passe.

Dicas

Depois de retirar todos os livros, tire a poeira das prateleiras vazias e dos próprios livros. No caso daqueles especialmente empoeirados, use um aspirador de pó com adaptador para itens pequenos.

Você pode comprar capas brancas para esconder livros com lombadas feias ou desgastadas.

Avisos

Livros são mais pesados do que parecem. Não pegue pilhas muito pesadas para serem carregadas com conforto. Levante-as com os joelhos, mantendo as costas eretas, para evitar a ocorrência de Lesões.

Fonte:
Wikihow

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 36) Não há porta que resista


O DOUTOR ROQUE TAQUIAFERRO, médico ginecologista  e sua esposa doutora Bebel Taquiaferro, pediatra, tem uma mansão de fazer inveja a qualquer um, na Rua Antonio de Andrade Rabelo, no  Morumbi, bairro nobre de São Paulo. Para se ter uma ideia, do tamanho da residência dos Taquiaferro,  a construção é um pouco maior que a casinha do dono do SBT, Silvio Santos, edificada na mesma rua, três portões acima.

No enorme solar, além do doutor Roque e sua esposa, a propriedade abriga Pepeu e Laurita, os dois filhos do casal respectivamente de oito e dez anos e mais seis empregados, cada um deles em seu próprio quarto, com todas as comodidades imagináveis. Desta meia dúzia de serviçais, dois se destacam. O motorista do doutor Roque e da esposa dele, o Chicão Lambreta e a Cibele Caçarolinha, babá das crianças, praticamente uma segunda mãe, tendo em vista que os pais, em face de seus compromissos laborais pouco param em casa.

Por esta razão, Chicão Lambreta e Cibele Caçarolinha desfrutam dos aposentos no interior da casa, separados um do outro apenas por um corredor enorme que começa depois da ampla cozinha atravessando toda a área de serviço que desemboca nas dependências dos demais funcionários. Cibele Caçarolinha é uma moça linda, bem feita de corpo, na linha dos trinta.  

Se comparada à esposa do doutor Roque Taquiaferro, além de ser mais bela e formosa que a patroa, é dona de uma aparência elegante e perfeita, além de extremamente provocante e sensual. Chicão Lambreta, por seu turno, não deixa nada a desejar. De corpo atlético e saradão, se assemelha a um daqueles atores hollywoodianos, ao estilo Vin Diesel, de Velozes e Furiosos. Chicão está apaixonado  por Cibele.

Desde que foi busca-la na rodoviária, há cinco anos atrás,  chegada de Santos, contratada  para ser pajem dos filhos do patrão (em substituição a babá anterior, que  fora embora,  por motivo de ter se casado), não a tirou mais de seus pensamentos. Mais velho que ela três anos, o rapaz tem feito de tudo para conquistar as graças e os deleites da bela, todavia, as suas investidas de aproximação para um contato mais íntimo, sempre caem por terra. Cada tentativa, a moça se esquiva, lhe dando um fora com elegância sutil jogando, como se costuma dizer, ‘baldes de água fria com pedrinhas de gelo’.

Por consequência, toda a sua vontade férrea de lhe fazer a corte, e ser correspondido, redunda em nada. Esta noite, como em tantas e tantas passadas, após todos se recolherem, Chicão Lambreta resolve, mais uma vez, tentar a sorte. ‘Água mole em pedra dura —, comunga com seus botões —, tanto bate até que fura’. Com esta determinação guiando seus passos, se esgueira do seu quadrado tomando o corredor imenso, e o faz, pé ante pé, como um gato arisco à caça de um rato mais arisco ainda.

Seria a derradeira vez, jurou a si mesmo, enquanto se punha a caminho. Se falhasse, deixaria, em definitivo, a graciosa em paz e partiria para outra.  Bate na porta de Cibele com o nó dos dedos e a chama quase em sussurro:

— Cibele!... Cibele, minha princesa. Por favor, abra...

Sabe que a moça está acordada. Em vigia, percebera que ela acabara de sair do quarto de Pepeu e, antes de se dirigir para o seu, deu uma espiada em Laurita.

Em seu cantinho, uma luz que escapa por uma janela que desemboca frontalmente para a dispensa (apesar da cortina fechada), se apaga:

—  Cibele... Cibelinha... Abra. Ao menos rogo que escute o que tenho a lhe dizer. Você sabe o quanto gosto de você. Abra. Me dê uma chance!

Cibele continua calada. Chicão Lambreta  volta a insistir. Bate de novo e de novo, agitado  e pressuroso.

—  Cibelinha!... Abra e me deixa entrar...

Qual o quê! Nem um sinal vem do interior que lhe dê uma esperança, por menor que seja. Chicão Lambreta então se lembra do que, certa vez, lhe dissera seu pai, quando conheceu a sua mãe e se apaixonou por ela. ‘Nunca desista’.


Usaria o mesmo argumento e algo mais (como complemento ao ‘nunca desista’). Quem sabe, desta vez, conseguisse ver ressurgida a sorte de seu velho e falecido pai, na difícil empreitada.

—  Cibelinha... Ah! Cibelinha... Olha, minha gatinha... Se você soubesse como é que eu estou aqui fora!...

Como num passe de mágica, a porta se escancarou. Segurando a maçaneta, diante dele surge a mulher que tanto seu coração de homem sozinho e carente cobiçava.

Ela preencheu o umbral se fazendo mais linda e inimitável aos olhos do seu  galanteador, vestida num baby doll branco, onde as suas curvas pecaminosas (apesar da luz se achar apagada) mesmo no escuro, e somente através da transparência do tecido, deixava à mostra, todo o colosso e a generosidade das  suas formas garbosas e magistrais.

Fonte:
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘COMÉDIAS DA VIDA NA PRIVADA’ – Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021. Enviado pelo autor.

domingo, 14 de março de 2021

Varal de Trovas 486

 



Arthur de Azevedo (Conjugo Vobis)

A formosa Angelina, filha do Seabra, tinha um namorado misterioso, que via passar todas as tardes por baixo das suas janelas. Era um bonito rapaz, dos seus trinta anos, esbelto, elegante, sempre muito bem trajado, sobrecasaca, chapéu alto, botinas de bico finas, bengala de castão de prata, pincenez de ouro. Limitava-se a cumprimentá-la sorrindo. Ela sorria também, para animá-lo, mas, qual!, o moço parecia de uma timidez invencível, e o romance não passava do primeiro capítulo.

– Com certeza um rapaz bem colocado, pensava Angelina, mas o diabo é que não se explica, e não hei de ser eu a primeira a chegar à fala! Afinal, um dia, passando, como  de costume, ele atirou para dentro do corredor da moça um bilhete em que estavam estas palavras:

"Amo-a, e desejava saber se sou correspondido."

No dia seguinte ele apanhou a resposta, que ela atirou à rua:

"Não posso dizer que o amo, porque não o conheço, mas simpatizo muito com a sua pessoa. Diga-me quem é."
* * *

Nessa mesma tarde, por uma dessas fatalidades a que estão sujeitos os corações humanos, o Seabra, pai de Angelina, entrou em casa como uma bomba, esbaforido, carregado com muitos embrulhos, suando por todos os poros, e intimou a esposa e a filha (eram toda a sua família) a fazerem as malas, porque no dia seguinte, às 5 horas da manhã, partiam para Caxambu.

– Mas isto assim de repente! – protestou a velha. – Vai ser uma atrapalhação!

– Não quero saber de nada! O médico disse-me que, se eu não partisse imediatamente para Caxambu, era um homem morto! Eu devia até seguir pelo noturno! Estou com uma congestão de fígado em perspectiva!

Angelina ficou desesperada por não ter meios de prevenir o moço e lá partiu para Caxambu com o coração amargurado.
* * *

Não a lastimem compadecidas leitoras: com 10 dias de Caxambu, Angelina tinha se esquecido completamente do namorado. Isso não foi devido aos efeitos das águas, que não servem para o coração como servem para o fígado, mas à presença de um rapaz que estava hospedado no mesmo hotel que a família Seabra e, em correção e elegância, nada ficava a dever ao outro. Era um médico do Rio de Janeiro, recentemente formado, moço de talento e de futuro, que, de mais a mais, tinha fortuna própria. O Seabra, que estava satisfeito da vida, porque o seu fígado melhorava a olhos vistos, acolheu com entusiasmo a ideia de um casamento entre Angelina e o jovem doutor, e era o primeiro a meter-lhe a filha à cara. Em conclusão, o casamento foi tratado lá mesmo, sob o formoso e poético céu do sul de Minas, para realizar-se, o mais breve possível, na Capital
Federal.
* * *

Regressando das águas, onde se demorou um mês, Angelina viu passar o primeiro namorado, que olhou para ela com uma expressão de surpresa e de alegria, mas a moça fechou o semblante. O semblante e a janela. E, para nunca mais ver passar o importuno, deixou dali em diante de debruçar-se no peitoril.
* * *

No dia do casamento, os noivos, as famílias dos noivos, as testemunhas e os convidados lá foram para a pretoria.

– Tenham a bondade de esperar – disse-lhes o escrivão. – O doutor não tarda aí.

Sentaram-se todos em silêncio, e pouco depois o pretor fazia a sua entrada solene. Angelina, ao vê-lo, tornou-se lívida e esteve a ponto de perder os sentidos. Ele estava atônito e surpreso. Era o primeiro namorado. O mísero disfarçou como pôde a comoção, e resignou-se ao destino singular que o escolhia, a ele, para unir a outro à mulher que o seu coração desejava.
* * *

Quando todos os estranhos se retiraram, ficando na sala da pretoria apenas o juiz e o escrivão, este perguntou àquele:

– Que foi isso, doutor? O senhor sofreu qualquer abalo! Não parecia o mesmo! Que lhe
Sucedeu?

O moço confiou-lhe tudo. O escrivão, que era um velhote retrógrado e carola, ponderou:

– Ora, aí está um fato que só se pode dar no casamento civil; no religioso é impossível.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 10


tão longe eu lhe disse até logo
um pouco de tudo passou-se outra vez
e foi uma vez toda feita de jogos
aquela outra vez que não soube ser vez
pois voltou e voltou e voltou
sem saber que de duas uma
nunca são três
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carta ao acaso

a carta do baralho
grande gilete
corta sem barulho
o olho do valete
o rei a fio de espada
a água e a farinha
uma só passada
a espada na rainha
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soubesse que era assim
não tinha nascido
e nunca teria sabido

ninguém nasce sabendo
até que eu sou meio esquecido
mas disso eu sempre me lembro
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

meus amigos
quando me dão a mão
sempre deixam
outra coisa

Presença
olhar
lembrança calor

meus amigos
quando me dão
deixam na minha
a sua mão
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

dia de reis passou
o ano avança a maio
os reis passaram
flor
maria
trabalho
o povo ficou
mãe
maioria
os povos ficaram
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nascemos em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase

rima à primeira vista nos vimos
trocamos nossos sinônimos
olhares não mais anônimos

nesta altura da leitura
nas mesmas pistas
mistas a minha a tua a nossa linha
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

acordei bemol
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido
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Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
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parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meu deus

eu sou o seu profeta
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o barro
toma a forma
que você quiser

você nem sabe
estar fazendo apenas
o que o barro quer
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o poema
na página
uma cortina

na janela
uma paisagem
assassina

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos (saques, piques, toques & baques). Publicado em 1983.

Paulo Mendes Campos (Os velhos)

Um professor criou um neologismo para uma arte (ou ciência) nova: eugeria, velhice feliz. Os gregos não tiveram o otimismo de juntar os dois elementos dessa palavra.

Andam a mexer muito com os velhos ultimamente. Que a ciência procure dar-lhes os meios efetivos de preservar a saúde, que as leis assentem os recursos que lhes poupem penúrias e humilhações, que as famílias os tratem com respeito e carinho. Mas querer iludi-los com estimulantes psíquicos, ficar a discutir suas tristezas em público, isso me parece impertinência. Cuidá-los como criança, engambelá-los, isso lhes ofende a dignidade.

Envelhecer é ruim. Meu mestre, frade franciscano, dizia-nos que mesmo o Papa mais santo não gostava de envelhecer. Mas a criatura humana tem o orgulho preliminar de poder aguentar a verdade. Só um velho palerma, indigno da verdade, iria acreditar que não é velho, que a velhice não existe, que a vida é um sorriso incessante. Os velhos honrados sabem como se arrumar no seu canto, com pudor e gravidade. Deixá-los. Não precisam de nós, que os aborrecemos com as nossas vãs consolações. Respeitemos o silêncio da idade avançada, e que nos respeitem mais tarde. Ou daqui a pouco. A velhice é um sentimento íntimo, que não devemos violar com frioleiras sentimentais. O sentimentalismo dos parentes jovens diante dos velhos é doloroso. Pretender reanimar um espírito mais vivido, mais experiente e mais amargado que o nosso, é quase sempre de uma inoportunidade impiedosa.

Tantos gestos afetivos lesam mais do que confortam, tantas solicitudes inábeis estão sempre a reabrir feridas. Nosso amor pela pessoa velha não deve ser uma opressão, uma tirania a inventar cuidados chocantes, temores que machucam. Deixemos que façam o que bem entendam, cometam as suas imprudências, desobedeçam os conselhos médicos. Libertemos os velhos de nossa fatigante bondade. Que exagerem, se lhes der vontade, na comida e na bebida, durmam fora de hora, se esqueçam de tomar o remédio, fumem, apanhem sol, chuva, sereno. Não chatear demais os velhos, que ainda têm nas pequenas imprudências um gosto de vida. Não ter muito juízo é um dos prazeres da velhice. Mesmo que de vez em quando brinquem um pouco com a vida, poupemos a eles a nossa aflição. É porque não ignoram as manhas desta vida nossa, é por sabedoria que proporcionam a si mesmos um pico de insensatez. E é por egoísmo que os moços, sobretudo os filhos, vigiam os velhos como se vingassem da infância.

Não se diz ao velho, por exemplo, “está na hora de dormir, papai, o senhor deve estar exausto”; “amanhã eu levo a senhora ao médico à força”; "a senhora fique sabendo que está proibida de ajudar a cozinheira"; “o senhor parece uma criança, onde já se viu deitar no ladrilho”; “olhe bem antes de atravessar a rua”; “tome o seu remedinho direitinho, viu”; “a senhora não está mais na idade de ficar nessa agitação que não para, que coisa horrorosa”; “cuidado com o degrau”; “quantas vezes já lhe disse para não sair sem agasalho”; “a senhora não precisa fazer nada, que eu sei fazer tudo sozinha”.

Impertinências que ferem os velhos e os desamparam mais do que a velhice. Palavras más, nascidas de um sentimento de amor muito mal administrado. Mostram sempre que não basta ser bom neste mundo, é preciso distinguir as bondades que não doam. A alma do homem não é tão simples que só o exercício do afeto seja suficiente para satisfazê-la. E gostar de alguém não confere privilégios tirânicos.

Respeitemos os velhos sem sentimentalidades enjoadas, sem antipatia, sem o sadismo de certos tipos de ternura.

Mas a verdade é que o mundo está cheio desses sentimentalões estabanados, que entram na intimidade dos outros derrubando e quebrando tudo.


Fonte:
Paulo Mendes Campos. O anjo bêbado. Publicado em 1969.

Dicas: Como Organizar uma Estante de Livros – 2


Alterne entre sistemas de organização

1. Classifique os livros por tamanho.

Considere essa opção se você tem livros que vão desde os finos periódicos até imensos livros de arte. Coloque os títulos mais altos na prateleira mais baixa, posicionando aqueles cada vez menores mais altos, à medida que você sobe na estante, criando uma aparência limpa e organizada. Em algumas estantes, isso é necessário para adaptar a altura de cada prateleira.

2. Separe os livros com base na cor.

Esse sistema funciona muito bem, mas é mais bem empregado se você tiver uma única estante. No caso de coleções maiores, ele pode tornar mais difícil o ato de encontrar um livro específico. Aqui estão alguns sistemas de classificação baseados na cor da lombada:

Uma cor por prateleira (uma prateleira azul, outra verde e assim por diante). Se você tiver problemas preenchendo uma única prateleira, envolva alguns dos livros com papel kraft.

Um gradual fluxo de arco-íris fluindo de uma cor até a outra, ou das cores mais saturadas até os tons pastéis.

Um padrão que cria uma bandeira ou outra imagem simples, quando a estante está toda preenchida. Essa organização requer bastante tempo, mas pode ser bem impressionante.

3. Faça um arranjo de acordo com a frequência de uso.

Essa é uma ótima forma de organização quando você consulta os livros constantemente para fins de pesquisa ou referência.

Mantenha aqueles usados diariamente na prateleira à altura dos olhos ou um pouco abaixo, onde você possa vê-los e alcançá-los com facilidade. Os livros que quase nunca são abertos podem ficar nas prateleiras acima da altura da cabeça.

Se você tiver livros suficientes para encher duas ou três estantes, preencha aquela que for mais visível com os títulos importantes.

Se a sua coleção for ainda maior, esse sistema pode não funcionar muito bem.

4. Divida-os com base em seus planos de leitura.


Se você tem um grande número de livros que gostaria de ler, por que não dar a eles uma prateleira própria? Mantenha uma prateleira vazia na mesma estante, a fim de guardar os títulos lidos com facilidade. Você pode repensar a organização depois de terminar a sua lista de leitura, mas essa alternativa pode ser conveniente por enquanto.

5. Crie a cronologia de sua vida.

Preencha as prateleiras superiores com livros que você tenha lido na infância, adicionando mais para baixo todos os outros, na ordem em que os descobriu. Esse método funciona melhor para os livros com fortes lembranças associadas — e para pessoas com excelente memória.

6. Reserve uma prateleira para os seus títulos favoritos.

Não importando qual método você escolha, há a opção de manter uma prateleira especial. Sendo geralmente a mais visível, é nela em que você colocará as primeiras edições, as cópias assinadas ou, ainda, aqueles livros que mudaram a sua vida.

Continua…

Fonte:
Wikihow