domingo, 4 de abril de 2021

Júlia Lopes de Almeida (O Último raio de luz)

A Júlia Cortines


Ainda me lembro do último raio de luz que me feriu as pupilas. Sol! sol! por que não te hei de esquecer?

Era em maio. A janela do meu quarto dava para o mar, e havia uma larga moldura de rosas amarelas que a circundava toda. Eu tinha quinze anos só. O médico ia todos os dias ver os meus olhos e quedava-se longo tempo a falar com minha mãe, descrevendo-lhe o meu mal, pedindo-lhe desvelo, arregaçando-me as pálpebras, admirando a limpidez do meu olhar azul e inocente.

Eu ouvia-o falar em amaurose* com uma piedade tão comovente, que me enternecia. Qual era a minha doença? Ignorava-o eu; minha mãe compreendia-a, respondia com voz mal firme às perguntas e prescrições do doutor. Ele era moço, era formoso e era meigo; que havia de estranhável em que eu o amasse?

Amei-o; mas eu só tinha quinze anos e ele já tinha trinta! Para ele eu era uma criança apenas, uma flor mal desabrochada e triste. Sorria-me com a doçura que os desgraçados inspiram, eu bebia-lhe a voz com a sofreguidão indefinida que o primeiro amor dá! Para mim, ele era tudo! Tremia com o vê-lo e senti-lo ao meu lado, o coração batia-me com força, as fontes latejavam-me, um desmaio de ventura percorria as minhas veias, ia no meu sangue; era o meu sangue mesmo, girando dentro da minha carne fresca, rosada e pura, ora impetuoso, ora brando, que me sobressaltava, avermelhando-me as faces, ou me enlanguecia, matando-me de gozo. Quinze anos! oh, meus quinze anos! quão longe estais! Quando passo as mãos pelos meus cabelos, que devem estar brancos, e os dedos encontram no meu rosto as rugas da velhice, treme-me no peito uma saudade daquele tempo de primavera, e sinto as lágrimas rolarem-me pelas faces. Só para chorar não morreram os meus olhos, bendito seja Deus!

Um dia o médico tapou-me a vista com um lenço escuro. Senti–lhe as mãos emaranhadas no meu cabelo loiro, e a sua voz clara e sonora dizer-me junto ao ouvido:

– Conserve-se assim alguns dias; não retire esse lenço sem meu consentimento... do contrário ficará cega... cega, ouviu? Promete-me obediência?

Prometer-lhe obediência foi para mim uma felicidade. Obedecer ao homem que ama é para a mulher um gozo esquisito, terno e perfeito. Acenei-lhe que sim. Passei alguns dias imóvel; mãos cruzadas no colo, como uma figura de santa paciente, feliz na sua resignação!

Ao redor de mim tumultuava a casa. As crianças corriam, chamavam-me, diziam que o tempo estava formoso, que havia novas flores na minha roseira; que a mamãe fizera outro manto para a imagem do meu oratório... As criadas vinham contar proezas dos meus animais favoritos; minha mãe, tão discreta, essa mesma deixava-se levar no entusiasmo de quem vê, e volta e meia tinha uma exclamação de espanto ou de alegria que me impeliam a arrancar o lenço para ver também.

As mãos, porém, não se descruzavam; o sacrifício feito para obedecer-lhe tornava a obediência mais querida ao meu coração. Eu supunha que ele conheceria, perceberia, apalparia, por assim dizer, todas aquelas atribulações, todos aqueles sentimentos que se agitavam dentro de mim. Eu devia ser como um cristal, e cuidava sê-lo aos olhos do meu médico! De todas as pessoas da família, minha irmã mais velha era a mais doce. Ao pé de mim não gabava a beleza que os seus olhos vissem; acariciava-me como a uma pomba cansada, a quem se teme magoar as asas. Pobre de minha irmã! Com a falta de vista fui apurando o ouvido, de tal sorte que o mínimo som chegava até mim perfeitamente limpo. Uma agulha que caísse no chão, uma palavra mal segredada, um suspiro retido a meio, um sopro, um voar de asas finas do mais pequenino inseto constituíam o meu drama, todo o meu mundo visível, porque enfim eu via pelo ouvido, pelo ouvido reconstruía imaginariamente todas as cenas! Chegava a adivinhar a intenção das pessoas, a maneira de ocultarem sob palavras brandas e quase indiferentes a admiração que algum objeto lhes causasse; a recusa íntima de coisas que os lábios consentiam, ou o consentimento de outras que o espírito recusava!

Principiei a conhecer que toda a gente mentia mais ou menos em minha casa, e que o exemplo vinha desde minha mãe e de meu pai.

Não era só a mentira grosseira, áspera, rude, vulgar; o que eu percebia ia mais longe: sentia a mais tênue, a mais fina, a mais vaporosa sombra de falsidade. Tristes momentos em que a cegueira nos descortina segredos, que desejaríamos ignorar toda a vida! Para eu não ser má, valia-me a paixão pelo médico. O amor abria-me a alma, enchia-me o coração de bênçãos, e para cada defeito que eu descobrisse na voz de alguém, tinha um perdão no meu seio!

Um dia, não se puderam calar e entoaram todos louvores ao sol.

– Há muito que não faz um tempo assim! exclamava um.

– Dá vontade à gente de passear! dizia outra, rindo.

Eu sentia o calor brando e doce do sol de maio, e as minhas narinas dilatavam-se ao aroma das rosas francamente abertas. Voavam andorinhas perto das janelas, e o flu-flu das asas soava no ar deliciosamente. Alguém passava na praia cantando uma cançoneta alegre, e as crianças riam alto na varanda, correndo atrás do meu cão predileto.

Oh, se eu pudesse correr ao sol! colher flores para o meu amado, cantar as canções felizes que a vista do mar me inspirasse, como seria bom, como seria bom! E as mãos apertavam-se mais, com medo de desobedecer ao meu senhor, ao dono do meu destino, do meu terno coração de quinze anos, todo primavera, todo amor, todo esperança.

Comecei a rezar baixo, mentalmente mesmo, pedindo à virgem minha patrona que desse saúde aos meus olhos cansados da escuridão. Tive de interromper a minha prece... No jardim havia um sussurro brando que me fez estremecer. Ergui-me e fui, tateando, à janela.

Vi todas as flores, nos seus perfumes, o calor ameigou-me a pele, o mar rolou uma queixa doce aos meus ouvidos; as mãos trêmulas desligaram-se-me: ouvi então a voz do meu médico falando de amor a minha irmã...

Uma ilusão! sim! era uma ilusão tudo aquilo; e, para convencer--me, eu, desgraçada, arranquei dos olhos o lenço escuro. O sol! Só vi o sol... mais nada! O sol furioso, dardejante, afogueando tudo, mar, céu, terra, plantas, como brasa ardente e cáustica a rebrilhar em toda a natureza, tingindo de ouro vivo as cores mais delicadas, ferindo de morte os meus pobres olhos de virgem apaixonada...

Agora, quando os filhos de minha irmã me perguntam qual foi a última impressão que tive pelo olhar, mal lhes respondo e quedo-me a rever-me nos meus quinze anos, sentindo que, ao menos para chorar, ainda vivem os meus olhos, louvado seja Deus!
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* Amaurose ou Gota Serena é a perda total da visão, sem lesão no olho em si, mas com afecção do nervo óptico ou dos centros nervosos, podendo afetar a visão de um ou ambos os olhos.
 
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Sammis Reachers (Poemas Avulsos) 2


 Casadoiro

Procuro uma menina
que me dê amor verdadeiro,
não fingido, não sonhado

amor de abraço longo
e comida benfeita

confiança
como telhado novo sem goteiras

De minha parte
faço-lhe uma promessa:
ainda que eu não encontre
as palavras certas
eu encontrarei as ações
e isso
é o que de maior um poeta
pode prometer.
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Equívocos

Perdi o poema que vinha
eu sangrei meu seio

supus primavera na esquina
era algazarra de um tiroteio

e eu lá de sonhos abertos
com os olhos intoxicados e quietos

na solidão central de seu meio
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Lamento à maneira antiqua

Um coração de tipo e viés cigano
valia-me mais que este meu, pacato
eu amaria as que me constrangem, sem recato
trocaria minha farda por colorido pano.

Beberia vinho em fundas tascas de cristal
sem atinar para a vil aparência do mal;
deitaria meu rosto de pranto em todo colo
e redimiria de o vazio delas todo o dolo...

Mas temo e tremo, pela alma e destino meus;
recolho-me à minha taba, espero em meu Deus.
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Menina-mulher

Renovas o mundo,
Deita-o a girar

A tapeçaria do Caos
Tecem-na teus dedos
Delicados-brancos
tecem-na para que eu me deite,
leito de intempestivas andorinhas

há paz & forças sulfurosas
em teu beijo langoroso
pacificação e lento incêndio
em teus olhos-de-dilacerar

A balbúrdia em teu iPod
o último louvor da última levita,
ou o Pearl Jam cantando Last Kiss
a todo o momento, ressuscitando
um dia de poemas realizados
que talvez nunca tenha sido

A forma como entregas a tua vida
Como se fora dela o dia derradeiro

Teu sorriso tange os homens,
Arrebanha a minha dispersão

Hoje é o teu dia, lua cadente-sorridente
- Parabéns
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O poeta é um desvelado

O poeta é um desvelado,
Qualquer criança, num qualquer soslaio,
Lhe desnuda o segredo:
Ele escreve
porque não sabe voar
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Peter Pa(i)n

Perfile as tropas, Sininho.
Não há volta para nenhum de nós;
Crianças, nossas ações
são as ações de homens desesperados.
Desconecte os Bulbos de Realidade,
mergulhe tudo no Sonho.

Ele é um anjo caído, o que se nos opõe;
sequer podemos vê-lo,
conhecer-lhe o plano ou a extensão do braço;

No Sonho e no Sonho apenas
é o único lugar onde poderemos
assassinar o nosso tão injustamente
poderoso inimigo.

Fonte:
Sammis Reachers. Pulsátil. Poemas canhestros & prosas ambidestras.
 São Gonçalo/RJ, 2014.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Germani, um sábio

Quase um século de heroísmo, talento, generosidade. Belíssima história inserida na fascinante história do Sul – Rio Grande, Santa Catarina, Paraná.

Conheci Emílio Germani em 1955, logo que cheguei a Maringá. Ele já era um vitorioso empresário, um dos mais respeitados pioneiros da cidade. Participante ativo de todas as entidades já aqui existentes, entre as quais a Santa Casa, a Associação Comercial, o Rotary Club – o rotariano mais rotariano que até hoje conheci. E ainda achava tempo e fôlego para escrever ótimos artigos para os nossos primeiros jornais e revistas.

Catarinense nascido no dia 22 de junho de 1917 em Capinzal, em 1950 Germani residia em Videira, após haver morado durante algum tempo em Caxias do Sul. Em Videira ele era já um homem importante, exercendo alta função na empresa Ponzoni Brandalise, que mais tarde se tornaria a Perdigão.

Deu-se, porém, o inesperado: numa noite de chuva, ao atravessar de jipe a linha férrea, foi atropelado por um trem, o que o obrigou a ficar 40 dias no hospital. Ao receber alta, pediu mais 10 dias de licença e aproveitou para vir conhecer o norte do Paraná, eldorado do qual muito se falava na época. Maringá estava novinha ainda, nem município era. Ele chegou aqui exatamente no dia 15 de agosto, dia de Nossa Senhora da Glória, futura padroeira da cidade.

Ao passar em frente ao escritório da Companhia Melhoramentos, Germani viu um montão de gente entrando e saindo. Entrou, foi conversar com um dos corretores. Resultado: comprou um terreno na Avenida Mauá, uma chácara nos arredores e alugou um salão na Avenida Paraná. Voltou a Videira levando a surpresa, contou a aventura para Dona Elza e no dia seguinte apresentou aviso prévio à firma onde trabalhava.

Dois meses após já estava em Maringá de mala e cuia, em companhia do seu irmão Guido. Montaram primeiro um escritório de representações, depois uma fábrica de camas, depois uma cafeeira, e alguns anos mais tarde entraram no ramo do milho. Logo cresceram e se tornaram grandes industriais, com prestígio internacional. Uma história de gente forte, parecida com a de tantos outros peitudos que ajudaram a construir esta pujante cidade.

Mas o que eu queria mesmo dizer era que para mim foi uma bênção haver conhecido Emílio Germani e ter com ele convido durante muitos anos nas reuniões de Rotary, na Academia de Letras de Maringá e em muitos e inesquecíveis encontros nas redações de jornais e revistas.

Gostava demais de conversar com ele, ouvir suas histórias, aprender com ele tantas e tão preciosas lições de vida. Germani era um sábio, um homem bom, um modelo de cidadania. Um ser humano realmente fora do comum.

Autor de três ótimos livros – “Encruzilhadas”, “Fragmentos Históricos do Distrito 4630” e “Retalhos da Vida”, além de centenas de artigos, poemas e crônicas. Despediu-se no dia 2 de junho de 2010, com 93 anos. Deixou uma bela família – 11 filhos, 25 netos, 11 bisnetos.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 28--01-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sábado, 3 de abril de 2021

Monteiro Lobato (O Sabiá e o Urubu)

Era à tardinha. O sol morria no horizonte, enquanto as sombras se alongavam na terra. Um sabiá cantava tão lindo que até as laranjeiras pareciam absortas à escuta.

O urubu contorce-se de inveja e queixa-se:

– Mal abre o bico esse passarinho e o mundo se enleva. Eu, entretanto, sou um espantalho de que todos fogem com repugnância... Se ele chega, tudo se alegra, mas se eu me aproximo, todos recuam... Ele, dizem, traz felicidade, mas eu, mau agouro... A natureza foi injusta e cruel comigo. Mas está em mim corrigir a natureza; mato-o, e desse modo me livro da raiva que me provocam seus gorjeios.

Pensando assim, aproximou-se do sabiá, que ao vê-lo armou as asas para a fuga.

– Não tenha medo, amigo! Venho para mais perto a fim de melhor gozar as delícias do canto. Julga que por ser urubu não dou valor às obras-primas da arte? Vamos lá, cante! Cante ao pé de mim aquela melodia com que há pouco você extasiava a natureza.

O ingênuo sabiá deu crédito àqueles mentirosos grasnos e permitiu que dele se aproximasse o traiçoeiro urubu. Mas este, logo que o pilhou ao alcance, deu-lhe tamanha bicada que o fez cair moribundo.

Arquejante, com os olhos já envidrados, geme o passarinho:

– Que mal eu fiz para merecer tanta ferocidade?

– Que mal fez? É boa! Cantou!... Cantou divinamente bem, como nunca urubu nenhum há de cantar. Ter talento: eis o grande crime!...
………………………
A inveja não admite o mérito.
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Dona Benta suspirou e disse:

– Está aqui outra fábula muito dolorosa, meus filhos. Põe em foco a inveja – o sentimento pior que existe. A maior parte das desgraças do mundo vem da inveja, e creio que não há sentimento mais generalizado. A inveja não admite o mérito – e difama, calunia, procura destruir a criatura invejada.


Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas. Publicado em 1922.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXIV


NÃO AMAR...

MOTE:
Não amar nem ser amado,
é o mesmo que não ser nada,
é pisar no chão eivado
de acúleos pelas estradas.
(Abel B Pereira)

GLOSA:
Não amar nem ser amado,
viver sempre em solidão,
sem presente e sem passado,
faz chorar o coração!

Viver sem amor, é triste,
é o mesmo que não ser nada,
pois somente, o nada existe
na solitária jornada!

Estar, assim, angustiado,
nos leva à desilusão,
é pisar no chão eivado
(descalços) – de pés no chão!

Sozinhos e sem carinhos,
somente as nossas pegadas
deixaremos, nos caminhos
de acúleos pelas estradas.
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PORTAS DO DIA

MOTE:
Termina a noite estrelada...
E, por estranha magia,
vejo as mãos da madrugada
abrindo as portas do dia.
(Abigail Rizzini)


GLOSA:
Termina a noite estrelada...
Vão dormir, nossas estrelas!
A noite fica apagada,
não conseguimos mais vê -las!

Mas um milagre acontece
e, por estranha magia,
o sol no céu aparece
revestido de poesia!

Como uma bênção dourada
nessas luzes multicores,
vejo as mãos da madrugada
tecendo novos amores!

Assisto, com emoção,
essa aurora de alegria,
que acarinha o coração
abrindo as portas do dia!
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VIDA E MORTE

MOTE:
Não teme a morte temida
quem na vida não tem sorte:
Há tanta morte na vida
e há tanta vida na morte...
(Aderbal Melo)

GLOSA:

Não teme a morte temida
quem vive sozinho e triste,
pois sem amor, sem guarida,
somente o vazio existe!

Segue sempre em depressão,
quem na vida não tem sorte,
pois viver sem emoção
faz perder o próprio norte!

E vendo a razão vencida
sofremos pelo caminho...
Há tanta morte na vida
pela falta de carinho!

Devemos crer de verdade
na vida e no amor. Ser forte!
Pois vida é felicidade,
e há tanta vida na morte...
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BORDADOS DO SOL

MOTE:
O sol em brilho fecundo,
tecendo fios dourados,
pinta na tela do mundo
os mais luzentes bordados.

(Ailson Cardoso de Oliveira)

GLOSA:
O sol em brilho fecundo,
matizando, com mil cores,
no seu último segundo
pinta um ocaso de amores!

Sendo artista primoroso
tecendo fios dourados,
torna bem mais amoroso
um casal de namorados!

Com um carinho profundo
compõe o quadro mais belo,
pinta na tela do mundo
um pôr-de-sol amarelo!

E esse pintor de universos
pinta os sonhos mais sonhados
e põe, no sol dos seus versos,
os mais luzentes bordados.
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ESTEIRA DO SONHO

MOTE:
Na suave esteira do sonho
seguirá minha poesia,
pois é nos versos que ponho
meu mundo de fantasia.

(Almira Guaracy)

GLOSA:
Na suave esteira do sonho

eu descanso os meus cansaços,
e o meu sorriso tristonho
relembra, então, teus abraços!

A vagar pelo infinito
seguirá minha poesia,
sonhar é bom e é bonito,
e nos traz muita alegria!

Com meus versos eu transponho
o patamar da emoção,
pois é nos versos que ponho
a minha imaginação!

Um novo mundo, eu desvendo,
como em toque de magia,
e vejo sempre, nascendo
meu mundo de fantasia.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XIX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2004.

Contos de Alvorada – Histórias da nossa cidade (Prazo: 22 de Abril)


Coletânea do Clube dos Escritores de Alvorada.

Com o patrocínio da Serigrafia Porto Screen e apoio da editora meia-noite, o CLUBE DOS ESCRITORES DE ALVORADA vai lançar mais uma coletânea. Depois de seis outros livros de participação nacional, vamos lançar mais esta coletânea impressa, com a divulgação nas redes sociais.

Desta vez, vamos escrever textos em prosa (contos e crônicas) cenarizados na nossa cidade. Qualquer história que se passe com personagens ou cenários em Alvorada, fictícia ou não, será lida neste próximo livro que contará com participação livre de autores de nossa cidade. Qualquer autor poderá participar da coletânea, desde que sua história se passe em qualquer época de Alvorada.

Queremos incentivar a produção literária de nossa cidade, que sabemos ser enorme, e tentar encontrar algumas maneiras de fazer a interação dos literatos alvoradenses, como o CEA já fez em outras eras, sempre pretendendo reconhecer e valorizar o trabalho de autores de todo o Brasil

Regulamento

É fácil participar. Basta enviar seu texto no formulário de inscrição para a editora meia-noite, seguindo as indicações deste regulamento até 22 de abril de 2021.

A inscrição é online e gratuita.

O importante será mostrar uma boa narrativa literária, sem tendências políticas, religiosas ou que de alguma forma façam apologia ou ofendam a grupos, a lei brasileira ou nossa língua culta.

Bastará informar os dados solicitados. O texto deverá constar no local indicado. A editora meia-noite fará a configuração final para o livro e todos autores terão uma amostra antes da impressão.

Após preencher o formulário, bastará clicar em ENVIAR, e esperar a confirmação por um de seus contatos. Se preferir, poderá usar outros meios de comunicação.

Cada autor é dono de seu devido texto devendo por ele se responsabilizar quanto a criação, tendo o pleno direito de autoria intransferíveis.

A ideia de nossas publicações é a de que mais pessoas escrevam e outras muito mais leiam.

Nosso custo inicial será bancado pela Serigrafia Porto Screen, que não está pensando em ficar rica com as publicações (rs) e sim, ajudar os autores iniciantes a mostrarem seus trabalhos para o maior número possível de leitores. E divulgar nosso trabalho para o Brasil inteiro.

Cada escritor receberá um exemplar da coletânea, como forma de retribuição pela sua participação, que será entregue com frete custeado pelos organizadores.

Os direitos de publicação ficam automaticamente cedidos para o Clube dos Escritores de Alvorada com o envio do material para a publicação da coletânea.

Ao submeter seu trabalho para apreciação, tenha o cuidado de manter seu endereço eletrônico ativo para contatos sobre o material enviado e atualizações do nosso projeto. Seus contatos sociais também serão úteis.

Os textos passarão por edição dos responsáveis pela editora meia-noite e qualquer alteração será submetida à avaliação e aprovação do autor, antes de sua publicação, bem como a preparação de texto e revisão gramatical.

Nenhum autor será obrigado a comprar qualquer quantidade de livros. Se algum dos participantes puder, querer, poderá encomendar exemplares pelo preço de custo.

E aguarde:

Nossa próxima publicação, já tem até tema: Poesias em Alvorada.

Qualquer um que tenha uma ideia parecida, ou melhor, e que queira compartilhar, nós sempre estaremos prontos para continuar sentindo o cheiro de livro novo.

Não esqueça de baixar o formulário de inscrição. Ele é o passaporte para a sua participação. Click aqui

Siga o blog do CEA para acompanhar as notícias dos próximos projetos.
https://clubedosescritoresdealvorada2.blogspot.com/

editora meia-noite
editorameianoite@gmail.com
Alvorada – RS

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 38) Receita rápida

O LUIZÃO BOCA ZANGADA chega no escritório de sua advogada, às nove horas em ponto, cumprimenta a secretária Maria do Carmo e revela, sem mais delongas, o motivo da sua presença:

— Bom dia, dona Maria do Carmo. Preciso urgentemente falar com a minha advogada. Por favor, é muito importante. Diga a ela que estou aqui na recepção e, se puder me atender agora, agradecerei.

Dona Maria do Carmo, a secretária, está com o rosto entristecido e a voz embargada. Toda ela é uma angústia de proporções gigantescas:

— Bom dia, seu Luizão. A doutora Efigênia não poderá mais atendê-lo...

Luizão Boca Zangada se queda pasmo e interrogativo:

— Como não? Eu marquei com ela na sexta-feira retrasada. Houve um problema, precisei faltar ao nosso encontro. Liguei para a casa dela, no mesmo dia, e ela me disse que eu poderia vir hoje cedo.

De repente a Maria do Carmo começa a chorar copiosamente:

— Seu Luizão, infelizmente...

Luizão Boca Zangada não deixa que a funcionária complete o que tem a dizer. Interrompe:

— Dona Maria do Carmo, veja bem. Me escuta. Estou em dia com os honorários. Nada devo à doutora Efigênia... É um caso novo... Caso novo...

Com toda paciência a garota tenta explicar:

— Seu Luizão... A doutora..

Todavia, o Luizão parece por demais irritadiço e fora de si:

— Dona Maria do Carmo, não tem mais nem menos. Vá lá dentro e diga para a doutora que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Eu...

Desta vez, a atendente corta a conversa pelo meio:

— Seu Luizão, a doutora Efigênia morreu neste sábado. Nos deixou, a todos, comovidos e sem ação. Como pode perceber, a grosso modo, nos pegou de calças curtas. Sinto muito...

Luizão Boca Zangada resmunga alguma coisa que ninguém entende, dá meia volta e vai embora.

Dia seguinte, mesmo horário, está ele, de volta, ao escritório. Ao chegar, cumprimenta as pessoas sentadas na recepção, se serve de um cafézinho e encara a bela recepcionista:

— Bom dia, dona Maria do Carmo. Como lhe disse ontem, careço urgentemente falar com a minha advogada. Por favor, é muito importante. Diga a ela que estou aqui e, se puder me atender agora, agradecerei...

Maria do Carmo pede licença a uma cliente com uma bebê de colo, encara o Luizão Boca Zangada e, calmamente, volta a esmiuçar o que ele sabia desde o dia anterior:

— Seu Luizão Boca Zangada, infelizmente a doutora Efigênia não poderá lhe atender. Ela...

Luizão Boca Zangada perde a esportiva e se enfurece:

— Dona, não quero saber. Não tem mais, nem menos. Vá lá dentro e diga para a doutora que tenho urgência em falar com ela... É um caso novo... Não saio daqui hoje...

A pacienciosa tenta, de novo, com toda calma, definir o infortúnio que pegou a todos  de surpresa:

— Seu Luizão, Seu Luizão, como lhe disse ontem... Está lembrado? A doutora Efigênia faleceu...

— Como é que é?

— A doutora Efigênia não está mais entre nós...

— Como não? Eu marquei com ela na sexta-feira passada. Ela me disse que eu poderia vir. Eu vim. A senhorita me enrolou e, agora, de novo, me vem com este papo furado...

— Seu Luizão, como lhe disse ontem, e volto a repetir hoje. A doutora Efigênia partiu. Sinto muito, sinto de verdade... Estava explicando a esta senhora, quando o senhor chegou...

— Não é possível. Na sexta-feira ela...

Precisa a criatura repetir, em meio a um suor de angústia que lhe molha as têmporas (apesar do ar condicionado ligado), o que havia dito no dia anterior, para que o Luizão Boca Zangada entendesse. Apesar disto, o imbecil vai embora abespinhado, batendo a porta de vidro que guarnece a sala de espera.

Quarta-feira, nove horas em ponto, o hall cheio. Entra, de novo, o Luizão Boca Zangada, como um furacão. Desta feita, sem cumprimentar ninguém. Vai direto ao balcão e vocifera:

— Dona Maria do Carmo, aqui estou em carne e osso. Rogo que vá lá dentro agora e diga para a doutora que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Só saio daqui depois que me entrevistar com ela. Não quero saber de lero-lero. Vai... Vai... Não tenho o dia todo... Trouxe para ela um caso novo...

Assustada com os modos brutalizados, a Maria do Carmo se levanta da sua cadeira e encara o ranzinza parado a sua frente:

— Seu Luizão, pelo amor de Deus. A doutora Efigênia morreu. Disse isto ontem ao senhor e na segunda também. E torno a repetir, agora e sempre: a doutora Efigênia veio à óbito.

Luizão Boca Zangada bate fortemente na superfície da bancada tentando intimidar a funcionária:

— Veio à quê?

— À óbito, seu Luizão. À óbito. A doutora Efigênia morreu. Morreu...

Luizão perde as estribeiras e encara as pessoas que ocupam o ambiente. Grita:

— E toda esta gente que aqui está? O que me diz, qual a explicação que me dará em vista disto?

Sem perder a serenidade, Maria do Carmo repete, pela milésima vez, a triste notícia:

— A doutora Efigênia, seu Luizão, morreu... Morreu...

Estabanado, derrubando um vaso de plantas, o anormal sai da sala, e, desta feita, quase põe abaixo a porta envidraçada de acesso ao ambiente.

Quinta-feira, nove horas em ponto, a sala se encontra como nos dias anteriores, superlotada. A Maria do Carmo segue atendendo, devolvendo documentos, fazendo a restituição de valores recebidos. Eis quem surge, do nada... Luizão Boca Zangada. Ao vê-lo entrar sem modos e com ares de poucos amigos, se adianta e peita o inconveniente:

— Seu Luizão, de novo? Pelo amor de Deus, não acredito! Será que joguei pedras na cruz?

Luizão não dá tratos à bola:

— Dona Maria do Carmo, aqui estou, mais uma vez, nos seus calcanhares. Não vou pedir, vou intimar a senhora. Falarei uma vez só. E não pretendo repetir. Vá, pois, lá dentro, agora — eu disse agora — e diga para a doutora Efigênia, que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Lembrando à sua cara de espantada, que somente sairei daqui depois que ela me encarar frente a frente. Hoje estou disposto a tudo. Não quero saber de desculpas. Vai logo, o que está esperando?

Encurraladamente acuada, Maria do Carmo se debulha em lágrimas. Algumas senhoras que aguardam a vez, acorrem a atendê-la, em face do estado emocional deplorável em que a moça se encontra.

— Senhor – diz uma cliente — Sinto muito dizer, mas a doutora Efigênia morreu no sábado. Estamos aqui pegando a nossa papelada para levarmos para outro defensor.

Um idoso entra na discussão e procura, de igual modo, acalmar os ânimos do irrequieto travesso:

— Sentimos muito, senhor. Todos nós aqui sentimos muito. Fomos vítima do inevitável. A amável e querida doutora Efigênia, nos deixou...

Luizão Boca Zangada, desfere um soco, ao oposto da primeira vez, não na bancada, desta feita, na parede ao lado da mesinha de café. Não contente, atira na cesta de lixo um amontoado de copinhos plásticos, onde os clientes da extinta podiam se servir de uma bebida quentinha, feita na hora:

— Morreu? Morreu? Como esta desgraçada morreu? E o meu processo?

À imitação das vezes em que ali esteve, o chato de galochas sai raivoso e encrespado, como se não entendesse o que acontecia.

Sexta-feira, amanhece chovendo. À cântaros. Apesar disto, o espaço destinado aos clientes da doutora Efigênia, se faz superlotado. De resto, tudo em paz, em ordem, até que o relógio assinala nove horas em ponto. Trajando capa de chuva preta e guarda chuva, adentra, no maior estardalhaço, o Luizão Boca Zangada.

Deseducado, como de costume, e soltando fogo pelas ventas, sem cumprimentar quem ali chegara antes dele, encosta direto na beira da pobre e indefesa Maria do Carmo:

— Dona Maria do Carmo... Senhora, os cambaus... Maria... Vou lhe dar dois minutos para ir lá dentro e chamar a sua patroa, a maldita doutora Efigênia. Repare, um minuto acabou de passar... Não ande, voe...

Maria do Carmo faz, então, sinal para um homem alto, vestido num elegante terno preto que se acha encostado ao lado da porta do banheiro. O seu corpo atlético lembra um desses armários embutidos de doze portas com maleiro e tudo:

— Seu Eurico, seu Eurico, por favor...

O seu Eurico prontamente se aproxima, todo volumoso, na frente da pequena Maria do Carmo.

— Pois não, senhora!

— Este é o senhor do qual falei. — aponta o Luizão Boca Zangada — Veio aqui a semana inteira e cansei de explicar à ele que a doutora Efigênia não poderá atendê-lo, em face do... O senhor sabe o motivo, da pobrezinha ter nos enlutado. Como pode ver, acho que precisará levar um papinho mais sério com o nosso teimosinho...

O grandalhão encara o Luizão Boca Zangada de uma maneira tão fria que todos os presentes certamente alimentaram a mesma impressão. Aquele olhar do segurança parece ter varado o fundo da alma pegajosa do buliçoso fanfarrão:

— Pois não, cavalheiro? Em que posso ajuda-lo?

— Com quem estou falando? Não me lembro de ter topado, pelo menos, até agora, com a sua carinha de mau. Quem é o prezado?

— Um amigo da doutora Efigênia. Antes que fale alguma coisa, até onde sei, a senhorita Maria do Carmo lhe passou os devidos esclarecimentos a semana toda.

Luizão Boca Zangada, por seu turno,  arrosta o brutamontes, sem se deixar ser intimidado pela energia prodigiosa que emana de sua superioridade. Carece esticar bem o pescoço, em face da estatura do seu interlocutor ser um pouco incomum.

— Verdade. Ela me disse que a minha advogada morreu. Ora, se ela morreu, o que toda esta gente veio fazer aqui? Ela está atendendo e se nega a me receber? Saiba, seu rascunho de Torre Eiffel, que estou em dia, em dia. O senhor quer ver os recibos?

— Não quero ver nada. Se o senhor, por acaso, pagou e não deve nada, ou se pagou a mais e a senhorita Maria do Carmo disser que o senhor tem alguma soma a ser reembolsada, ou via outra, documento faltoso, que ficou para trás, por favor, pegue o que tem de pegar, ou de receber e caia fora.

E prossegue, no mesmo tom, sem mover um músculo da face carrancuda.

— A doutora Efigênia morreu, bateu as botas...

Luizão Boca Zangada, em resposta, aponta o dedo em riste para a galera ao redor:

— Morreu né? E toda esta gentalha aqui sentada? Está esperando por quem? Se a doutora Efigênia escafedeu... Até onde sei, ela trabalhava sozinha... E então, desembucha...

— Estas pessoas estão retirando seus documentos para irem procurar outro advogado. Deu para entender?

— Não dei, nem vou dar. Ficou louco? “Ta me tirando?”.

— Senhor, um conselho. De novo. Pela derradeira vez. Pegue seus documentos e se tiver dinheiro, rogo que resgate e, da mesma forma, depois de tudo nos conformes, vaza daqui. Fui claro, ou quer que eu desenhe?

Em continuo, o robusto pergunta à Maria do Carmo (para que todos o escutem) se aquele mala sem alça tinha dinheiro a ser devolvido ou documentos.

— Nada, seu Eurico. A doutora acertou tudo com ele. Aliás, aqui está a pasta com todo o andamento do caso que ela resolveu para ele. O processo deste senhor está finalizado faz tempo.

— Ouviu, meu camarada. Nada mais resta a fazer aqui. Dê meia volta e evapore...

— Quero falar com a doutora...

— Quantas vezes terei que dizer para o senhor que a sua advogada, a doutora Efigênia morreu?

Rindo a mais não poder, e exprimindo uma audácia tranquila, o Luizão Boca Zangada tenta passar, num gesto carinhosamente revestido de uma ironia vulgar, a mão esquerda em torno do rosto carrancudo do impenetrável segurança.

— A doutora morreu?

— Morreu, morreu... Repete o segurança, meio pê da vida e prestes a encaçapar o sujeito.

— MORREU... M...O...R...R...E...U!...

— Desculpe, meu lindo — completa Luizão Boca Nervosa em voz tronituante. A doutora morreu. Desculpe, de verdade, mas é que eu adoro, amo de paixão ouvir isto! De paixão, está me compreendendo? A doutora morreu... Uau! Que ótimo... Que legal... A doutora, a minha doutora morreu... Viva, viva, a doutora virou defuntaaaaaa...

A datar, porém, deste dia em diante, o Luizão Boca Zangada virou as costas e nunca mais apareceu no pedaço.

Fonte:
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘Comédias da vida na privada’ – Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021. Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Varal de Trovas 490

 


Leon Eliachar (A Experiência)

Eu era a cobaia. Quando subi na balança, depois de um regime apertadíssimo de dois anos e meio, estava pesando “menos 48 quilos”. Era a primeira vez que via um homem pesar “menos” — e esse homem era eu. Pra subir na balança eu precisava descer: colocaram no meu pé uma espécie de âncora que me puxava pra baixo. Pra sair, era só destarrachar a corrente que eu saltava. Foi o que fizeram, quando comecei a subir. Lá em baixo, os cinco cientistas esfregavam as mãos, cada vez menores. Uma sensação de alívio, à medida que me afastava deles. Não sentia o meu corpo e, pra ser franco, nem sei mesmo se ainda tinha corpo, pois não era possível pesar “menos” e ainda ter um corpo. Tentei me apalpar, mas não tinha forças pra mover os braços. Só a muito custo percebi que nem sequer tinha braços. Isso de não ter braços foi o que mais me preocupou — até eu descobrir que também não tinha pernas. Nem tronco. Nem pescoço, incrível, eu não tinha mais eu. Era um absurdo. Como é que eu estava pensando? Pelo menos devia ter cabeça —- mas como verificar, se não podia perguntar a ninguém e os cientistas ficaram lá em baixo, cada vez mais pequenininhos e cada vez menos cientistas? Tentei me lembrar do primeiro dia em que me apresentei como voluntário e para isso usei o sistema do “flashback”, muito usado pelo cinema americano. Tudo foi ficando fora de foco e quando começou a ficar nítido, o tecnicolor estava impecável — e eu sempre imaginei que só se pensava em preto no branco.

— Voluntário 1.335!

Era eu. Aquela voz gritando o meu número nunca mais me saiu da cabeça. E dizer que a cabeça era a única coisa que me restava. Acredito que sim, porque sem ela eu nunca poderia pensar tudo isso que vou pensar. Eu estava num desses laboratórios de pesquisas cósmicas e aceitei sentir as emoções de uma cobaia para um novo invento. Ouvi dizer que estavam tentando lançar no espaço um homem sem máquina e isso era um bom assunto para uma grande reportagem. E os outros 1.334 voluntários, que fim levaram?

— Está com medo?

Lembro-me que sorri quando desafiaram a minha vaidade. Achei que seria uma grande reportagem e pensei na cara incrédula dos diretores do jornal, quando eu chegasse à redação com uma série de artigos: “eu voltei do espaço”. E se eu não voltasse, como mandar a reportagem? Pensei num novo título: “eu não voltei do espaço”, primeira e última de uma série. Mas quem escreveria? Não pude nem terminar de raciocinar: um homem barbado me olhou dos pés à cabeça (bons tempos aqueles em que eu ainda tinha pés) e disse categórico:

— O senhor será submetido a um severíssimo tratamento de despersonalização material. Está disposto?

Não tive tempo pra decidir. Dois braços fortes me carregaram e me colocaram dentro de um cofre de vidro. Do lado de fora, dezenas de olhos faiscavam de curiosidade pra ver o que acontecia. O Dr. Krutschneider, ou Kafinotch, não me lembro bem, chegou a falar em desintegração do corpo humano como o primeiro passo para a nova conquista da ciência.

Nessa altura dos acontecimentos eu só pensava na reportagem, mesmo porque não havia outro remédio, pois do lado de fora eu tinha a impressão que ninguém ouvia nada.

— Ligue o comutador n.° 3!

— Pronto.

— Comutador n.° 4!

— Pronto.

— Comutador n.° 5.

Até aí eu ouvia tudo o que diziam, nitidamente.

Não sei se chegaram a ligar o comutador n.° 6 porque quando me tiraram do cofre me disseram que eu já estava lá há um mês. Pedi uma Coca-cola, a única coisa que me ocorreu pedir, e fiquei sabendo que ali era o único lugar do mundo onde não havia chegado a Coca-cola. Fantástico. Se eu contasse isso na reportagem, ninguém acreditaria. Me levaram para um salão todo branco e me submeteram a um processo de desidratação e, logo em seguida, de descalcificação, o que era muito perigoso, pois estavam fazendo de mim um sujeito descalcificado: qualquer errinho de revisão, seria fatal para a minha reputação.

— Tire a roupa.

Tirei.

— Tire o corpo.

— Como?

— Tire o corpo.

Vontade eu tinha de tirar o corpo fora, mas de que jeito? Dois enfermeiros se aproximaram com uma máquina de calcular. Na contagem dos meus glóbulos vermelhos e brancos houve um saldo de 0,00000000002 a favor dos vermelhos e, pra acertar as contas, foi preciso contratarem o maior contabilista do país pra tirar a diferença. Segundo a teoria do Dr. Germigold, que estava fazendo um estágio ali, pois ganhara uma bolsa de estudos, o meu desaparecimento seria feito consubstancialmente e quando lhe perguntei o que significava isso, ele limitou-se a me olhar com um ar de superioridade, como quem quer evitar de me chamar de ignorante.

— Ignorante!

Mas não evitou. Foi justamente aí que comecei a perder rapidamente o peso. Quando cheguei a “zero grama” era como se não existisse mais. Não tinha fome, não tinha sede e ainda que tivesse não tinha por onde engolir, pois a minha garganta havia sumido. Ainda assim, eles não ficavam satisfeitos: queriam que eu pesasse menos do que menos.

Um ano e meio depois eu não sentia mais o corpo, só sentia a cabeça. Pedi um comprimido e me disseram que isso de nada adiantaria pois o comprimido não tinha por onde circular. Me imaginei só cabeça, com manchetes nos jornais e fotografia do meu rosto: “foi visto em Belo Horizonte a cabeça voadora”. No princípio ninguém acreditaria, porque em Belo Horizonte acontece de tudo. Mas depois minha cabeça seria vista no Alasca, na Indochina, no Afeganistão, no Meyer e em Cabo Canaveral. Provavelmente eu seria fotografado pelo João Martins, só pra meter inveja nos discos voadores. Haveria enquetes a meu respeito: “você acredita na “cabeça voadora”?”

O IBOPE faria pesquisas e concluiria que 57% dos homens já haviam visto a “cabeça voadora”; 24% das mulheres também; 13% das crianças tinham pavor e 0,6% se negariam a responder. Possivelmente um vespertino americano ofereceria cem mil dólares pela minha cabeça — “viva ou morta”.

Parece que descobriram que eu estava pensando demais. Só pode ser isso, do contrário não lhes ocorreria nunca me submeterem também à prova de desmemorização. Afinal, se só me restava a cabeça que é que eles queriam que eu fizesse com ela? A última dúvida que tive foi se já haviam mandado o meu corpo ao espaço ou se pretendiam mandar a minha cabeça, depois de darem sumiço no meu corpo. Que pretendiam eles? Se fizessem desaparecer também a cabeça nada lhes restaria pra mandar ao espaço.

Assim não era vantagem: mandar nada ao espaço era muito simples, era o mesmo que não mandar pois não havia o que mandar. Quem estaria falhando: os cientistas, que já estavam perdendo a minha cabeça ou eu que já estava perdendo a cabeça dos cientistas? O certo é que se me fizeram ficar sem memória como é que não conseguiam me impedir de raciocinar? Outro coisa: e quem poderia garantir que eu estivesse raciocinando direito? Vou ser franco: este, aliás, foi o meu último raciocínio lógico, porque daí em diante não consigo me lembrar de mais nada. Absolutamente nada. 
 
Foi quando perdi a cabeça.

Fonte:
Histórias do Acontecerá -1. RJ: GRD.

Nilton da Costa Teixeira (Ramalhete de Trovas) – 1

Abraçadas por espinhos,
tristes cruzes nas estradas,
são saudades nos caminhos
por mãos piedosas plantadas.
= = = = = = = = = = =

Abraços, beijos e flores,
podem estar numa festa
ou também cobrindo dores
quando nada mais nos resta!
= = = = = = = = = = =

A estreiteza de um abraço
tem enorme dimensão
porque dentro desse espaço
cabe qualquer emoção.
= = = = = = = = = = =

A humildade não se cansa,
conserva a fé arraigada,
e vai plantando esperança
onde não haja mais nada.
= = = = = = = = = = =

Após frustradas quimeras
nossos silêncios ocultos
mostram descrenças e esperas,
choram desejos sepultos.
= = = = = = = = = = =

As campas dos cemitérios
sempre, em silêncio, esquecidas,
guardam os tristes mistérios
das esperanças perdidas.
= = = = = = = = = = =

Buscando mundos risonhos,
plenos de sábios caminhos,
vou na humildade dos sonhos,
esquecer dos meus espinhos.
= = = = = = = = = = =

De São Francisco de Assis,
era tamanha a humildade
que, ao fazer alguém feliz,
sentia felicidade.
= = = = = = = = = = =

Em abraço dolorido,
quase sempre sem querer.
a gente deixa esquecido
o que esperava dizer.
= = = = = = = = = = =

Em silêncio, pelas faces,
vão as lágrimas descendo,
quais esperanças fugazes
dos sonhos que vão morrendo!
= = = = = = = = = = =

Enlaçados nos abraços,
cabem sorrisos e prantos,
satisfações e fracassos,
prazeres e desencantos!
= = = = = = = = = = =

Humildade, bem celeste,
bondade fluindo ao léu;
venturas com que se veste
quem busca alcançar o céu.
= = = = = = = = = = =

Na humildade do Calvário,
nova estrutura se lança
e de um ato sanguinário
nasce um Mundo de Esperança!
= = = = = = = = = = =

Nas mentiras dos abraços
não ponhas demais a fé:
"Vivem falsos a dois passos
e a perfídia esta de pé...
= = = = = = = = = = =

Não! O silêncio não basta
contra uma intriga atrevida
que, caluniosa e nefasta,
quer arruinar nossa vida.
= = = = = = = = = = =

Neste abraço em que te aperto
com a beatitude de um monge,
sinto meu amor tão perto,
minha esperança tão longe!
= = = = = = = = = = =

No abraço de despedida,
a gente sente em verdade
uma emoção repartida
que se vai tornar saudade!
= = = = = = = = = = =

No abraço de despedida,
entre quem fica e quem parte,
resta um momento da vida
que, em saudade se reparte!
= = = = = = = = = = =

Nos meus cabelos de prata,
silenciosa, sem defesa,
tio a fio, se retrata
minha infinita tristeza!
= = = = = = = = = = =

Nos silêncios dos caminhos
a cruz triste e apodrecida
é uma lembrança entre espinhos,
dos espinhos desta vida.
= = = = = = = = = = =

Nossos silêncios ocultos,
dentro do peito, sofrendo,
são quais desejos sepultos
dos sonhos que vão morrendo.
= = = = = = = = = = =

Numa humildade feliz,
vou a vida a largos passos
e essa ventura me diz
que levo o mundo nos braços.
= = = = = = = = = = =

0 abraço de despedida
deixa sempre a sensação
de uma coisa indefinida
machucando coração!
= = = = = = = = = = =

0 meu sonho não se cansa,
vagaroso nos seus passos!
- Vai em busca da esperança,
com a Humildade nos braços!
= = = = = = = = = = =

Para salvar aparências,
nós, pela vida, mentindo,
entre silêncios e esperas,
sofremos sempre sorrindo.
= = = = = = = = = = =

Pelas curvas dos caminhos,
sempre a saudade se queixa
de abraços feitos de espinhos
que a vida sempre lhe deixa!
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Quais tênues gotas de orvalho
sobre as folhas pequeninas,
busca a humildade agasalho
nas almas mais cristalinas.
= = = = = = = = = = =

Quem se conserva de pé
frente à calúnia tacanha,
tem humildade, tem fé,
e transpõe qualquer montanha!
= = = = = = = = = = =

Silenciosos e tristonhos,
desfilam pelos caminhos,
os meus calvários de sonhos
e minhas cruzes de espinhos!
= = = = = = = = = = =

Tal uma flor campesina,
sempre a humildade oferece
a grandeza pequenina
do perfume de uma prece!
 
Fonte:
Trovas enviadas por Nilton Manoel

Concursos de Trovas em Andamento

Concurso, prazo e link com regulamento

São José dos Campos - Projeto de trovas – 6a. Etapa
Prazo: 15 de maio
https://www.falandodetrova.com.br/vidamelhormaio21

XII Jogos Florais de Juiz de Fora
Prazo: 31 de maio
https://www.falandodetrova.com.br/ubtjuizdefora2021

XXI Jogos Florais de Curitiba
Prazo: 31 de maio
https://www.falandodetrova.com.br/ubtcuritiba2021

I Concurso de Trovas Três Fronteiras (Foz do Iguaçu)
Prazo: 31 de maio
https://www.falandodetrova.com.br/tresfronteiras2021

Jogos Florais de Campos dos Goytacazes
Prazo: 31 de maio
https://www.falandodetrova.com.br/cgoytacazes2021

I Concurso de Trovas de Itaperuna/RJ
Prazo: 30 de junho
https://www.falandodetrova.com.br/ubtitaperuna2021

XXVI Jogos Florais de Porto Alegre
Prazo: 30 de junho
https://www.falandodetrova.com.br/ubtportoalegre2021

49. Jogos Florais de Niterói
Prazo: 30 de junho

https://www.falandodetrova.com.br/ubtniteroi2021

XIII Concurso Literário "Poeta Zé Mitôca"
Prazo: 31 de julho
https://www.falandodetrova.com.br/zemitoca2021

II Concurso de Trovas e Microcontos de Itaocara/RJ

Prazo: 30 de junho
https://www.falandodetrova.com.br/ubtitaocara2021

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Adega de Versos 8: Isaac Jordão

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 20, 21 e 22

A ORQUESTRA ODIOSA


É uma orquestra desarmônica por excelência. O maestro faz o possível para lançar a discórdia entre os instrumentos, e extrai disso um belo efeito. A trompa e o fagote não se cumprimentam, e ambos vivem de implicância com o oboé, que por sua vez trata o clarinete com soberano desdém. A flauta doce desmente seu nome, recusando o diálogo com o corne inglês. E os violinos planejam sequestrar o contrabaixo. Trompas e timbales têm ar feroz. O mais, nessa mesma linha de agressividade.

Como pode uma orquestra assim povoada de desavenças alcançar tamanho êxito em suas audições? O público ouve-a em religioso silêncio. Sucedem-se as turnês pelos estados, e há convites do exterior, que ainda não puderam ser atendidos.

Devo afirmar, a bem da verdade, que a execução dos concertos é impecável, e como cada instrumento deseja não apenas suplantar, como até expulsar os demais do conjunto, há competição acirrada em torno de quem é capaz de tocar melhor. O rancor conduz a resultados sublimes, que a crítica não sabe como explicar. A orquestra apura cada vez mais suas ambições, e teme-se que no auge de seu esplendor ocorra um assassinato nas cordas.
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AQUELE CASAL

O sr. Inclusive roía as unhas, preocupado. A sra. Alternativa, sua mulher, dissera que não ia se demorar, e já se haviam passado cinco horas sem que ela voltasse.

— Com Alternativa não se pode ficar sossegado — resmungava ele. — Inclusive já pedi a ela que percorresse sempre o mesmo caminho de volta, que é o mais curto e o mais seguro. Não quer me ouvir, prefere dar voltas. Alega que assim está sempre experimentando novas possibilidades de caminho, e quem sabe se não descobrirá um dia a mais favorável.

A sra. Alternativa, postada diante de uma bifurcação, hesitava na escolha de rumos. E consultando um caderninho, monologava:

— Meu problema é escolher entre dois caminhos, mas eu preferia que a escolha fosse entre nove ou dez. O bom seria que de uma alternativa derivasse outra alternativa, e assim por diante, gerando número infinito de opções. O Inclusive não compreende isto. Fica pensando que todas as alternativas podem se englobar no processo de inclusão. Ele esquece que todo inclusive tem a alternativa de um exclusive (aliás, de muitos). Isso torna a nossa vida conjugal bastante monótona. Pensando bem, só há uma alternativa para mim: o divórcio
ou um amante sensível às variantes da vida.

— Inclusive já pensei em matá-la — disse consigo o marido, à mesma hora, andando de um lado para outro. — Como é que eu posso viver com uma mulher que inclusive não tem hora de chegar em casa?
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AS PÉROLAS

Dentro do pacote de açúcar, Renata encontrou uma pérola. A pérola era evidentemente para Renata, que sempre desejou possuir um colar de pérolas, mas sua profissão de doceira não dava para isto.

— Agora vou esperar que cheguem as outras pérolas — disse Renata, confiante. E ativou a fabricação de doces, para esvaziar mais pacotes de açúcar.

Os clientes queixavam-se de que os doces de Renata estavam demasiado doces, e muitos devolviam as encomendas. Por que não aparecia outra pérola? Renata deixou de ser doceira qualificada, e ultimamente só fazia arroz-doce. Envelheceu.

A menina que provou o arroz-doce, aquele dia, quase já ia quebrando um dente, ao mastigar um pedaço encaroçado. O caroço era uma pérola.

A mãe não quis devolvê-la a Renata, e disse:

— Quem sabe se não aparecerão outras, e eu farei com elas um colar de pérolas? Vou encomendar arroz-doce toda semana.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 
Publicado em 1981.

Caldeirão Poético XLII

Alana Girão de Alencar

Fortaleza/CE

A... CALMA


Não temas o caminho dos acasos,
Nem sejas fardo nu à vida ingrata.
Vês que as sombras da noite são mágoas
E as noras? Revelam-se em convulsões.

Acalma... Não te lances à loucura
nem veles o afã da partida adversa.
O silêncio há de dormir são e exausto,
feito rei desgarrado de seu brio.

Vem... qual rio corrente de estiagem
e paira sobre a minha espera crua
teu leito delirante e pavoroso,

Vem... vazante e límpido, foz, menino...
não temas a ameaça das curvas
...e deixa vir o som que tanto assusta
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Ana Maria Furtado Néo
Fortaleza/CE

ANTISSONETO


É bem difícil compor um soneto
Tenho aversão a palavras contadas
Gosto mesmo é dessa palavra solta
Jogadas em si em busca de espaços

Palavras muito livres que se deixam
Cair em precipício e até em si
E voltam por cima ecoando vontades
Pois a palavra se deixa dizer

Não, de fato nunca há má palavra
Mesmo quando elas se encontram à toa
Não ouso usá-las ao meu bel prazer

Peço perdão ao ilustre Camões
Por que eu, como o poeta de Barros,
Não curto palavras acostumadas,
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Josenir Lacerda
Crato/CE

ANSEIO


Quem me dera os adereços mais sutis
Para enfeitar meus versejos acanhados
Bastaria, perfumes primaveris
Ou os alcantis de um agreste abandonado.

Quem me dera o farfalhar de antigas sedas
Melodias de cantos gregorianos
O frescor mais ameno das alamedas
Abrigando sons e cores dos ciganos.

Da musa, verto o carinho e os afagos
O cantar inebriante das sereias
O encanto lúdico da arte dos magos

O uivar dos ventos das praias nas areias
Reflexos da lua no espelhar dos lagos
Calmaria logo após as marés cheias.
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J. Udine Vasconcelos
Fortaleza/CE

A MORTE DO VELHO MONGE


Em seu claustro, rezava o velho monge.
Punha os olhos cansados no horizonte
Como se contemplasse a face, ao longe,
Do Sacratíssimo Autor da áurea Fonte.

Por longas horas, ele meditava,
Terço à mão, debulhava o seu Oficio,
Porque, também, à Mãe de Deus, rezava,
Nessa sua clausura e sacrifício.

Era final de tarde em arrebol.
Em sangue se banhava o ardente sol,
Ao som do repicar dos tristes sinos.

O velho monge, em prece à Ave Maria,
Tombou ao chão, e assim se despedia
Do orbe, como o sol, em raios divinos!...
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Júlio César Martins Soares
Fortaleza/CE

A MULHER NASCE DO SONHO


Não, a mulher não nasce da costela.
Brota do desejo da noite vaga.
Onde já se viu, pois, coisa tão bela,
Principiar naquilo que finda, estraga?

Não vem da Odisseia de Homero
Nem mesmo da Eneida de Virgílio
Vem antes, primeiro daquilo que quero
Com o propósito que eu deliro.

Vem antes do vento, da branda bruma
Muito longe da espuma de Afrodite.
D'um imenso sorriso risonho

Não nasce a mulher daquilo que em suma
Como num lindo reino que a conquiste
Sim, eu sei, a mulher nasce do sonho.

Fonte:
Luciano Dídimo (org.). 100 sonetos de 100 poetas.
Fortaleza/CE: Expressão Gráfica e Ed., 2019.

Chico Anysio (O Inspetor do Ginasial)

Não ligam para o fato de o nome dele ser Cícero. Consideram um nome mais importante do que o merecido. Chamam-no Pipoca, pondo ódio no apelido. No colégio, onde exerce a função de Inspetor, é repudiado.

— Peguei o milho — grita um aluno, escondido atrás da pilastra, começando a brincadeira.

— Botei na panela! — adiciona outro...

— Joguei a banha! — grita o terceiro. ..

— Virou pipoca...

E todos, em coro:

— Pipoca... Pipoca... Pipoca...

Ele avermelha-se, tenta descobrir o iniciador ou, pelo menos, alguns dos que deram continuidade à gozação. Quando os encontra, baba-se de felicidade:

— Você, você, você, você e você... ficam até seis e meia.

Isso, quando não os suspende por dois ou três dias, além de chamar os pais ao colégio para contar a delinquência abjeta.

É solteiro. Talvez por ser tão exigente, não tenha conseguido encontrar uma mulher que o satisfizesse nas minúcias de que faz questão.

— Copie de novo o trabalho. Está muito borrado.

Substitui os professores que faltam. Isso aumenta, nos alunos, o ódio que já lhe dedicam. Tira-lhes o direito de uma horinha extra de folga. Sabe lecionar todas as matérias. Ecletismo que exerce com prazer.

Não dispensa o paletó. No bolso de cima, quatro esferográficas de cores variadas. Sabe de cor os nomes de todos os alunos e suas deficiências. Arvora-se em psicólogo, querendo inventar traumas que julga possuírem os rapazes e as moças. Agora foi nomeado diretor do ginasial. A tristeza dos ginasianos é gritante. Promete-lhes aula extra aos sábados.

— Quem se comportar mal durante a semana, tem que comparecer sábado de manhã, para uma aula de recuperação.

Diz isso, como sempre, falando de modo que não move o lábio superior, onde se põe o bigode retilíneo e antigo, corretamente aparado, um hífen sobre o lábio.

Hoje tomou uma medida que provoca protestos: proibiu a entrada das moças com minissaias. Considera imoral. Elas não gostam. Os rapazes odeiam ainda mais.

— Qual é?

— Pipoca é um quadrado.

Fazem protesto junto ao Diretor-Geral. Ele mantém a proibição. Pipoca tem carta branca. Diante do que chamou de motim, obriga o curso ginasial completo a comparecer sábado pela manhã.

Os meninos já são homens e as moças são mulheres, mas parece que ele não se apercebe disso. Entende pouco da juventude. É um antigo solteirão.

Está voltando para casa. Feliz em excesso, pela manutenção da sua portaria — proibição de trajes sumários — por parte da alta direção da escola.

Vai pegar o ônibus da rua comercial do bairro. Os alunos motorizados o gozam.

— Vai pra lá?

— Vou.

— O ônibus já vem aí.

Seguem nos seus carros. Pipoca não os esquecerá. Como guarda-civil, já lhes decorou os números. Eles que esperem.

Viaja em pé. Nunca tem chance de um lugar sentado, pegando o ônibus em meio de linha. Leva o dinheiro da passagem já trocado, providência que julga ser obrigatória por parte de todos os passageiros. Tem um jornal sob o braço e alguns livros, como sempre. Não se separa do guarda-chuva, mesmo que o dia seja de sol. É previdente.

Mora sozinho num conjugado da Av. Copacabana, em prédio onde a maioria dos apartamentos são usados por firmas comerciais. A banheira sempre cheia, prevenindo-se contra uma falta de água que pode ocorrer a qualquer momento.

Entra em casa irritado.

— Bando de idiotas. Juventude perdida.

Seu ódio aos jovens é quase ponto de honra. Vinga-se neles pelos seus 50 anos mal vividos, desaproveitados. É bedel há 26 anos, sem nunca ter conseguido um lugar oficial de professor.

No fogão, como todos os dias, as panelas com a comida que a arrumadeira faz.

Requenta o feijão, frita um pouco mais o bife.

— Se os pais se preocupassem com elas, não se perderiam tão cedo — lembra das mocinhas a quem proibiu as saias curtas. — Perdidas. Irrecuperáveis. Mas comigo vão cortar uma volta.

O feijão borbulha. Despeja-o sobre o arroz frio e lhe acrescenta o bife. Não tem prazer na refeição. Faz aquilo por necessidade de sobrevivência. Raspa o resto do prato na lata de lixo e põe o que usou na pia, despejando-lhe água. Não tem geladeira nem televisão. Liga o rádio na estação que programa Tchaikowsky. Apaga as luzes, pega o binóculo e vai para a janela semi-aberta, vigiar os quartos dos apartamentos fronteiros, onde moram quatro alunas da terceira série.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.

Dicas para Escritores (Dicas para pontuação de diálogos)

 
arte de Albert Anker (Suiça, 1831 1910)
Texto de Marcelo Spalding


Todo o apaixonado pela literatura, seja leitor ou escritor, sabe da importância dos diálogos em um texto. Eles, na medida certa, têm o poder de mostrar os personagens e a história, sem que seja preciso contar sobre eles. Além disso, o diálogo dá movimento e deixa o texto mais interessante para o leitor. Porém, quando começamos a inseri-lo nos nossos textos, algumas dúvidas aparecem, principalmente quanto à pontuação.

É sobre isso que vamos falar neste artigo, sobre dicas para pontuação de diálogos, um assunto fundamental para os escritores que desejam fazer dos diálogos poderosos aliados para os seus textos.

Antes de tudo, a pontuação existe nas línguas para tornar os textos mais claros. Portanto, utilize-a para facilitar a compreensão do leitor. Mesmo se a opção for mudar o ritmo do texto a partir da pontuação, como no fluxo de consciência, em que pontos e vírgulas são suprimidos. Confira as dicas:

1. Uma das primeiras (e poucas) lições de escrita criativa que temos ainda nos primeiros anos de escola é: para reproduzir a fala da personagem, coloque dois pontos e travessão;

2. A cada vez que trocar a personagem que está falando deve haver um novo parágrafo. Se houver dois parágrafos diferentes com a fala de uma mesma personagem, o leitor pode se confundir;

3. Use intervenções do narrador apenas quando for essencial, para que o leitor não se perca sobre quem está falando;

4. Jamais seja redundante. Se por exemplo o leitor consegue entender a tristeza da personagem pela sua fala, não use o narrador para dizer depois: “ela respondeu, tristonha”;

5. Em textos ou cenas com poucas falas, para evitar a quebra de ritmo, é indicado o uso das aspas ou mesmo o discurso indireto. Essa escolha depende também do quão o seu narrador interfere na história, se é um narrador câmera, onisciente etc.;

6. A pontuação de uma frase não tem a ver com pausas na fala, ela justifica-se pela sintaxe, pelo ordenamento dos termos na oração. Por isso, cuide para não usar vírgulas onde não pode haver vírgulas (como na separação entre sujeito e predicado), pois isso atrapalha mais o texto do que a falta de pontuação;

7. Evite o excesso de reticências e pontos de exclamação. Reticências use apenas em casos de interrupção de uma fala, e o ponto de exclamação guarde para momentos em que ele realmente seja necessário. Quando usados demais, tais sinais de pontuação perdem sua força;

8. Para que o leitor não se perca no diálogo, além das intervenções do narrador, você pode usar o vocativo e expressões ou termos que só uma das personagens diria, o que deixa claro quem está falando.

Essas são as regras básicas de pontuação de diálogos, mas isso não significa que não existam outras possibilidades. Certa vez convidamos uma turma de pós-graduação a fazer uma análise da pontuação dos diálogos. Cada aluno trouxe um livro de ficção para analisar qual era o método de marcação dos diálogos. A maioria deles era marcado com o travessão, mas muitos usavam as aspas, que é uma tradição na literatura em língua inglesa, outros prescindiam dessas marcas e outro trouxe Saramago, que criou uma forma particular de marcar seus diálogos.

Vejamos exemplos dessas possibilidades:

Exemplo 1. Tradicional travessão separando a fala da personagem da voz do narrador:

João finalmente encontrou a criança e perguntou, muito bravo:

— Onde você estava?

— Eu estava conversando com a Bia — respondeu apontando para a menina.

— Nunca mais faça isso.

— Tá bom, pai. — O menino voltou-se para a colega e piscou o olho esquerdo.

Neste caso, procure não usar ponto antes do travessão se o que vier depois for um verbo dicendi, como: “disse”, “sussurrou”, etc., além de seguir o texto com letra minúscula. Já se o que vier depois do travessão for uma cena, coloque ponto antes do travessão e inicie com letra maiúscula (como em “O menino volta-se”).

Exemplo 2. Marcação do diálogo pelo uso de aspas:

João finalmente encontrou a criança e perguntou, muito bravo: “Onde você estava?”.

“Eu estava conversando com a Bia”, respondeu apontando para a menina.

“Nunca mais faça isso”.

“Tá bom, pai”. O menino voltou-se para a colega e piscou o olho esquerdo.
 
A marcação do diálogo pelo uso de aspas é muito semelhante à marcação com o uso do travessão. No Brasil, porém, o mais comum é usar aspas para expressar o pensamento da personagem.
Uma exceção é quando há uma fala solta em um parágrafo do narrador, sem que essa fala desencadeie um diálogo. Nesse caso, o mais indicado é mesmo o uso de aspas ou mesmo não usar nem as aspas, como no discurso indireto livre.


Exemplo 3. Sem marcas de pontuação no diálogo:

João finalmente encontrou a criança e perguntou, muito bravo:

Onde você estava?

Eu estava conversando com a Bia, respondeu apontando para a menina.

Nunca mais faça isso.

Tá bom, pai. O menino voltou-se para a colega e piscou o olho esquerdo.

Neste caso não temos marcas de pontuação no diálogo, o leitor terá que perceber qual personagem está falando pelo contexto e pelas trocas de parágrafos. Esse estilo de pontuação é usado em contos como o célebre Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, e livros como Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera.

Exemplo 4. Estilo Saramago – sem mudar de parágrafo:

João finalmente encontrou a criança e perguntou, muito bravo, Onde você estava? Eu estava conversando com a Bia, respondeu apontando para a menina. Nunca mais faça isso. Tá bom, pai, respondeu o menino, que se voltou rapidamente para a colega e piscou o olho esquerdo.
 
Este é o estilo de Saramago, que pontua o diálogo apenas usando uma vírgula e letra maiúscula no começo da fala da personagem, sem mudar o parágrafo. Isso faz com que alguns parágrafos dos seus textos fiquem enormes, mas combina com seu estilo de narrador intruso, que alterna o tempo todo entre narração e digressão/discurso. Há quem diga que seus livros são ótimos por causa disso e outros que seus livros são ótimos apesar disso.

Fonte:
Escrita Criativa

terça-feira, 30 de março de 2021

Rubem Braga (Dois escritores no quarto andar)

A última crônica de meu livro Um pé de milho é sobre a Rue Hamelin, de Paris, “onde morreu Proust”, faço notar doutamente, e onde vivi eu. Ao escrever aquela crônica eu ouvira cantar o galo, mas não sabia onde. Digo ali que “onde Proust morreu vive hoje um sindicato”. Era o que eu pensava na ocasião.

Eu vivia no quarto andar do número 44 e no segundo habitava meu amigo, o escritor gaúcho dom Carlos de Reverbel. Juntos fomos procurar o tal número onde morreu Proust e demos com o tal sindicato. Mas acontece que procurávamos um número errado. O verdadeiro — descobrimos depois — era o nosso 44 mesmo...

Não quero fazer pouco de dom Carlos de Reverbel, mas eu sou um proustiano mais íntimo do que ele. É verdade que meus inimigos assoalham que eu jamais li, no duro mesmo, todos aqueles volumes, embora, em conversa de salão eu seja capaz de discretear sobre Swan, descrever Combray ou Balbec, falar de Albertina ou da senhora duquesa de Guermantes. “O Braga tem suas lantejoulas, mas não sabe as coisas” — murmuram os invejosos.

Pois que se mordam de inveja: Proust morreu exatamente no apartamento do quarto andar, de número 44, onde eu vivi. Dom Carlos morava, eu já disse, no segundo; pode alegar a seu favor que várias vezes foi ao quarto me visitar, o que o classifica, sem dúvida alguma, como o segundo proustiano do Brasil.

Leon Pierre-Quint conta que Marcel Proust alugou todo o quarto andar do edifício que então devia ser novo; ali morreu em 1922, ano em que pela primeira vez eu vinha ao Rio de Janeiro, vestido de marinheiro do Encouraçado S. Paulo, trazido pela minha irmã para ver a Exposição do Centenário. Eu tinha 9 anos de idade, nunca ouvira falar de Proust e estava longe de supor que 25 anos depois iria dormir na cama em que ele morria aquele ano. Mais pobre do que Marcel, aluguei apenas o grande quarto de frente com uma entradinha e um banheiro, o que me custava 6 mil francos em 1947; não era caro, levando-se em conta que nesse tempo eu era casado.

Conta Leon Pierre-Quint que Proust escolheu um quarto muito frio (não diz qual) temendo que a calefação central fizesse mal à sua asma. Não posso afirmar, mas devia ser o meu quarto; era friíssimo. Imagino quantas vezes ele não se quedou, como eu, a olhar a rua lá embaixo, pela vidraça encardida, a esfregar as mãos de frio. Ah, bem que me parecia suspeita aquela velha cama, bem que notei certos estremecimentos nas cortinas e pressenti, no tapete desbotado, o rastro de antigos pés que o pisaram em noites de insônia, e vagas nódoas de remédio. Posso informar com a maior segurança que, pelo menos nos últimos anos de sua vida, Proust não tomava banho de chuveiro. Não havia chuveiro na casa. Encontrei uma banheira com manchas de sujos imemoriais; mandei lavá-la, esfregá-la, flambá-la com álcool, mas nem assim me animei a tomar um banho nela; preferi comprar um chuveirinho de borracha que adaptamos à pia. Eu não podia adivinhar que era a banheira de Proust...

Às vezes, pela madrugada — conta o biógrafo — Proust despachava Odilon em um táxi para procurar algum amigo que viesse conversar com ele. Imagino-o perfeitamente à espera, escutando o ruído agônico do pequeno elevador que, no quarto andar, para perigosamente entre dois degraus da escada, uma velha escada sempre às escuras em que os passos reboam absurdamente alto. O amigo o encontrava na cama, com um lenço no pescoço, todo vestido sob os cobertores, com luvas de algodão, vários pares de meias e o plastron branco sobre a camisa amarrotada, no quarto fechado cheirando a remédios, a asma, a fumegações, a Proust.

Eu positivamente ainda recolhi ali um pouco desse cheiro, dentro do qual foi escrito o último volume de Sodoma e Gomorra; homem bárbaro de um país semibárbaro, me lembro de que muitas vezes combati esse cheiro abrindo de par em par as portas que dão para a sacada e a que dá para o corredor, formando corrente de ar para grande pânico da arrumadeira. Ah, se eu soubesse aproveitar bem aquele cheiro, que coisas sutis não haveria escrito no lugar das croniquinhas triviais que eu mandava para O Globo!

Proust cochilava três dias à custa de veronal, depois ficava três dias desperto à custa de cafeína, falando de literatura, de pintura (esses jovens: Giraudoux, Picasso...), recitando Anatole ou Baudelaire, discutindo finanças e mundanismo, falando em mandar vir seus livros, seus móveis, suas coisas, o que nunca chegou a fazer.

Também tive minhas noites de insônia na Rue Hamelin; não terá ficado dentro de mim um pouco da angústia proustiana? Seria distintíssimo, mas receio que não; três copos de Beaujolais me punham facilmente em forma.

De qualquer modo, os jovens intelectuais que quiserem escrever sobre Proust devem me consultar para “fazer ambiente”. Posso, por exemplo, descrever o cubículo em que a concierge lá embaixo (uma velha, positivamente a mesma da era proustiana) está sempre fazendo contas, passando roupa a ferro ou espichando o nariz para ver quem entra, quando não atende ao telefone com sua voz chorosa:

— Passy, soixante-et-un deux fois...*

Tomem nota, rapazes: Passy 61-61; é o antigo telefone do Proust e do Braga...

Rio, maio, 1958.
_____________________________
* soixante-et-un deux fois: do francês, sessenta e um duas vezes.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Alvitres do Prof. Renato Alves – 3

20.
O rio vem correndo tranquilamente... De repente, acelera, agita-se, e nos oferece o imponente espetáculo visual da queda d’água. Logo adiante, retoma a calma e continua seu curso...

Vejam como a sensibilidade do poeta nos conta isso através de uma linda trova!

Vestem-se as águas de prata,
saltam no espaço vazio.
Findo o show da catarata,
sereno refaz-se o rio...
( A. A. de Assis)


21.
No poema “A um poeta”, Olavo Bilac retrata o trabalho exaustivo que é escrever.

Ressalta, porém, que, pronta a obra, este trabalho não deve ser percebido pelo leitor (“...que na forma se disfarce o emprego do esforço...”). A mesma ideia parece estar presente na trova de Adelmar: “tão fácil, depois de feita, / tão difícil de fazer...”.

Certamente é também a este esforço que se refere a expressão “dura prova” na trova de Jotagê.

Ao ler uma bela trova
depois que pronta ficou,
quem calcula a dura prova
por que o poeta passou?
(J. G. de Araújo Jorge)


22.
Diz-se que “o Perdão traz mais bem-estar espiritual a quem perdoa do que a quem é perdoado”...

O perdão ilumina e fortalece o coração do perdoador, capacitando-o a continuar perdoando e, portanto, aprimorando-se espiritualmente, numa espécie de círculo virtuoso. Veja como o trovador conseguiu traduzir com simplicidade esta ideia, com base nos pares: perdão/luz, ilumina/eleva, eleva/perdoa.

O perdão é luz na treva
do coração da pessoa.
Quem se ilumina se eleva
e quem se eleva, perdoa!
(Alfredo de Castro)


23.
Na trova humorística é mais que conhecida a preferência pela temática da “sogra”, que sofre avassaladora e sistemática gozação. No entanto, nesta primorosa trova de Sérgio Ferreira da Silva, a sogra levou a melhor...

A minha sogra me deu
um troféu e uma medalha...
e, no diploma, escreveu:
“VENCEDOR – TEMA: CANALHA”
(Sérgio Ferreira da Silva)


24.
Às vezes, a repetição (reiteração) pode valorizar muito uma trova. Veja como o uso deste recurso foi fundamental para a ideia central e o efeito humorístico das trovas abaixo:

Ao por-lhe a esmola no prato
pergunta ao surdo, baixinho:
– És mesmo surdo de fato?
E ele: – ”Surdinho, surdinho!”
(Vasques Filho)

Nunca vi almas! – diz rindo.
E o cara na sua frente,
foi sumindo, foi sumindo,
transparente, transparente...
(José Maria M. de Araújo)


25.
Na mesma linha camoniana do “fogo que arde e não se vê / ferida que dói e não se sente”, eis, na trova ao lado, uma bela aplicação da “antítese”, figura de linguagem tão adequada para definir a natureza
contraditória do amor.

O amor é sorriso... ou pranto.
O amor é nuvem... ou sol.
O amor é lágrima... ou canto.
O amor é treva... ou farol.
(Maria Thereza Cavalheiro)


26.
Além do escorreito português dos verbos em 2ª pessoa do plural (rireis, saberdes, pousais), esta trova apresenta um interessante emprego da palavra “verde” com carga semântica dupla: verde = cor e verde = jovem, em oposição aos maduros olhos do poeta.

Rireis talvez ao saberdes
como eu me sinto em apuros
se pousais os olhos verdes
nos meus olhos já maduros!
(José Fabiano)


27.
Na literatura, o efêmero, o passageiro, o transitório sempre esteve representado pela metáfora do “nome escrito na areia” que o mar vem e logo apaga. Veja que belo aproveitamento desta imagem na trova ao lado.

Malgrado a graça suprema
que o nosso olhar incendeia,
a juventude é poema
que a vida escreve na areia.
(Élen de Novaes Félix)


28.
Está no jogo de palavras, na inteligente manipulação das variantes semânticas do vocábulo “pena”, a beleza do achado desta primorosa trova do mestre Izo Goldman.

Que pena que as minhas penas
não te causem pena alguma,
e, sem pena, eu seja apenas,
entre as penas... só mais uma!
(Izo Goldman)


29.
A maioria dos concursos exige a menção da palavra-tema na trova. Muito já se discutiu sobre tal obrigatoriedade e as opiniões são bem divergentes. Mas veja aqui uma bela trova, premiada em Nova Friburgo em que a ausência da palavra não prejudicou em nada a ideia de “Presença”, o tema proposto

O livro, o cigarro ao lado,
o rádio, o abajur antigo...
Eu deixo tudo arrumado
fingindo que estás comigo...
(Maria Tereza Noronha)