quarta-feira, 9 de junho de 2021

O. Henry (Mamon e o arqueiro)


Nota do blog: Mamon é um termo derivado da Bíblia, usado no que se refere à riqueza material ou cobiça. A palavra é uma transliteração do hebraico “Mamom”, que significa dinheiro.

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O velho Antony Rockwall, fabricante e proprietário da Rockwall's Eureka Soap olhou pela janela do escritório de sua mansão na Quinta Avenida e sorriu. O vizinho da direita, o aristocrático clubman G. Van Schuylight Suffolk-Jones aproximou-se do automóvel que o esperava no portão, franzindo o altivo nariz, como de costume, à escultura estilo Renascimento italiano que ornava a fachada do palácio.

— Velho presumido! Retrato mesmo da inércia! — comentou o ex-rei do sabão consigo próprio. — Se não se cuida em breve as musas do Éden acolherão esse gélido Nesselrode. No próximo verão mandarei pintar a casa de vermelho branco e azul e veremos se aquele nariz holandês não se levantará mais ainda!

Antony Rockwall, que jamais se importava com as campainhas, encaminhou-se para a porta da biblioteca e, no mesmo tom de voz que fizera cair pedaços de céu nas pradarias do Kansas, gritou:

— Mike!

À voz doméstica que lhe contestou, berrou:

— Diga a meu filho que passe por aqui antes de sair.

Quando o jovem Rockwall penetrou no escritório, o ancião largou o jornal, mirou-o com sorriso bondoso, refletido no seu rosto grande, suave e avermelhado, alisou, com uma das mãos, uma mecha de cabelo branco e com outra fez tilintar as chaves no bolso.

— Richard, quanto pagas pelo sabonete que usas?

Richard, que saíra do colégio há apenas 6 meses, surpreendeu-se. O rapaz ainda não havia captado as esquisitices do progenitor e era tão inexperiente como uma rapariga que vai pela primeira vez ao baile.

— Penso que 6 dólares a dúzia, papai.

— E pelas roupas?

— Cerca de 80, mais ou menos.

— És um cavalheiro — afirmou convicto Antony. — Ouvi dizer que esses jovens de estirpe pagam vinte e quatro dólares por uma dúzia de sabonetes e gastam mais de cem com roupas. Dispuseste de tanto dinheiro quanto eles e no entanto te mantiveste dentro de um nível moderado e decente. Eu uso atualmente o velho Eureka, não só por sentimentalismo, senão também porque é o mais puro que se fabrica. Se pagas dez centavos por uma pedra de sabão, compras maus rótulos e perfumes. Porém cinquenta está bem para um rapaz de tua posição, classe e geração. Afirmam serem necessárias três gerações para se formar um cavalheiro. Estão enganados. O dinheiro enverniza tanto o indivíduo quanto suaviza a graxa do sabão. Contigo, consegui-o. homem! Comigo não obteve grandes resultados. Sou quase tão incivil e desagradável e possuo maneiras tão rudes quanto esses dois velhos descendentes de uma das primeiras famílias holandesas estabelecidas em Nova Iorque, que vivem ao nosso lado e que não podem dormir tranquilos à noite, porque comprei uma propriedade entre os dois.

— Há certas coisas que o dinheiro não pode comprar — aparteou o jovem Rockwall, com tristeza.

— Ora, não digas isso! — respondeu surpreendido o velho Anthony. — já repassei a enciclopédia até a última letra, à procura de algo que não se possa adquirir com o dinheiro e creio que na próxima semana terei que rever o apêndice, pois verifiquei que com dinheiro tudo se consegue. Menciona alguma coisa que não se possa comprar.

— Antes de mais nada — contestou Richard, nervoso — não se compra entrada nos círculos mais exclusivos da sociedade.

— Ah! Não?! — trovejou o campeão da raiz do mal. — Diga-me onde estariam os círculos exclusivos se o primeiro Astor não tivesse dinheiro para pagar passagem de proa?

Richard suspirou.

— E era disso mesmo que queria te falar — acrescentou o velho. — Para isso pedi que viesses. Algo vai mal contigo, rapaz. Já o percebi há muito tempo. Fora com as tristezas! Poderei levantar mais de onze milhões em 24 horas, além dos bens de raiz. Se for pelo teu fígado, ali está o Rambler, na baía, carregado e pronto para zarpar para as Bahamas, dentro de dois dias.

— Não estás muito longe da verdade, papai.

— Ah! — exclamou Anthony — como se chama ela?

Richard pôs-se a caminhar no escritório, de um lado para outro. Existiam cordialidade e simpatia suficientes no velho e rude pai, de maneira a inspirar-lhe confiança.

— Por que não a pedes em casamento? — prosseguiu o velho. — Ela se jogará em teus braços. Possuis dinheiro, físico atraente e és um rapaz às direitas. Tuas mãos são limpas, nelas não existem resíduos de sabão Eureka. Frequentaste bons colégios, mas ela pouco se importará com isso.

— Ainda não se apresentou a oportunidade — comentou Richard.

— Cria a oportunidade! — ordenou o velho — Convida-a para um passeio ao parque, uma caminhada sem destino, ou acompanha-a a casa de volta da igreja. Oportunidade! Bah!

Tu não conheces o redemoinho social, papai. Ela é parte da corrente que o impulsiona. Cada hora e minuto de seu tempo são marcados com dias de antecedência. Se não possuir essa criatura, essa cidade, para mim, não terá graça alguma. E não posso escrever-lhe. Não me atrevo.

— Basta! — exclamou o ancião. — Queres dizer que com todo o dinheiro que possuo não és capaz de conseguir uma hora do dia dessa moça?

— Esperei muito. Depois de amanhã, ao meio-dia, ela embarcará para a Europa, onde ficará dois anos. Amanhã à noite a verei durante uns poucos minutos. Recebi permissão para esperá-la na Grand Central Station, às vinte e trinta. Devo conduzi-la a galope pela Broadway até Wallacks onde sua mãe e um grupo nos esperam à entrada do teatro. Por acaso parece que poderei declarar-me nesses 6 ou 8 minutos e em tal circunstância? Não. E que oportunidade terei no teatro, ou depois? Nenhuma. Não, papai, essa é uma encrenca que teu dinheiro não resolve.

— Muito bem, meu rapaz — comentou o velho, alegremente. — Podes ir ao teu clube. Estou satisfeito sabendo que teu fígado está em ordem. Porém não te esqueces de acender, de quando em quando,  umas velas ao grande deus Mazuma. Dizes que o dinheiro não compra tempo? Realmente, não se pode conseguir que te embrulhem a eternidade e a entreguem a domicílio, por determinado preço, mas já vi o Papai Tempo machucar os pés, quando caminhava pelos garimpos de ouro.

Nessa noite, tia Ellen, muito sentimental, suave, enrugada, suspirosa e oprimida pela riqueza, aproximou-se do irmão Anthony, que lia os jornais da tarde e pôs-se a discorrer sobre as angústias do amor.

— Já sei de tudo — bocejou Anthony — Afirmei-lhe que minha conta bancária está à sua disposição. Foi então que se pôs a menosprezar o valor do dinheiro. Disse-me que este não poderá ajudá-lo na emergência em que se encontra e que a etiqueta social não pode ser abalada sequer por 10 milionários.

— Ó, Anthony! — suspirou tia Ellen — gostaria que não pensasses tanto em dinheiro. O amor é todo poderoso. Quando se trata de carinho verdadeiro, o dinheiro não conta. Se ele tivesse falado antes! Essa jovem não poderia recusar o nosso Richard. Todo o ouro que possuis não fará feliz a teu filho.

No dia seguinte, às 20 horas, tia Ellen tomou de um belo anel de ouro, guardado numa caixa comida pelas traças, e o entregou a Richard.

— Usa-o esta noite, querido sobrinho — pediu-lhe. — Foi tua mãe quem me deu. Disse que traria boa sorte e que o entregasse a ti, quando encontrasses tua amada.

O jovem Richard recebeu o anel respeitosamente e provou-o no dedo mindinho. O rapaz arrancou-o do dedo e guardou-o no bolso do colete. Imediatamente telefonou pedindo o carro.

Na estação, descobriu Miss Lantry, às 20 e 30, em meio ao gentio.

— Não podemos fazer mamãe e os outros esperarem — comentou a mocinha.

— Para o teatro Wallack e o mais rápido possível! — ordenou Richard.

Fizeram a volta pela rua 42 até a Broadway e desceram a ruazinha iluminada pelas estrelas. Na Rua 34, Richard preparou sua armadilha e mandou que o condutor do coche se detivesse.

— Caiu meu anel — desculpou-se enquanto descia. — Era da minha mãe e sentiria muito perdê-lo. Não me demorarei muito, pois vi onde caiu.

Em menos de 1 minuto estava de volta com o anel.

Foi então que um carro enorme parou bem em frente ao deles. O cocheiro tentou passar pela esquerda, mas  foi trancado por outro veículo. Livrou-se então pela direita e quase foi de encontro a uma carroça de móveis, que nada tinha que fazer naquele lugar. Procurou avançar, mas as rédeas não obedeceram e ele maldisse entre dentes. Estava bloqueado num confuso torvelinho de veículos e cavalos.

— Por que não prossegue? — indagou Miss Lantry, impaciente. — Chegaremos atrasados.

Richard olhou em volta. Uma nutrida fila de carros, caminhões, coches, carroções de móveis e bondes atravancavam o vasto espaço em que cruzavam a Broadway, a 6a Avenida e a Rua 34. E ainda mias: das ruas perpendiculares marchavam com grande velocidade, convergindo para o mesmo ponto, outros carros, entrelaçando suas rodas e agregando mais imprecações ao clamor dos condutores. Tinha-se impressão de que todo o trânsito de Manhattan se congestionara ao redor deles. Os nova-iorquinos mais velhos jamais haviam presenciado bloqueio semelhante.

— Sinto muito — balbuciou Richard, quando tornou a sentar — mas estamos presos. Nem em uma hora poderão desembaraçar tamanho embrulho. Eu tive a culpa. Se não tivesse perdido o anel...

— Deixe-me ver a joia — disse Miss Lantry. — já que não tem remédio, não importa. De qualquer maneira, não tinha mesmo vontade de ir ao teatro.

Nessa noite, às 23 horas, alguém bateu levemente na porta de Anthony Rockwall.

— Pode entrar — gritou o velho, que se deliciava com um livro de aventuras de piratas.

Era tia Ellen, com todo o aspecto de um anjo encanecido, que tivesse ficado na terra por engano.

— Estão noivos, Anthony! — anunciou delicadamente. — Enquanto se dirigiam ao teatro, houve uma congestão de trânsito e 2 horas se passaram antes que pudessem continuar viagem. E, ó mano Anthony! Nunca mais te vanglories do poder do dinheiro. Richard encontrou a felicidade por meio de um pequeno emblema de verdadeiro amor: um anelzinho que simbolizava carinho infindo e desinteressado. Deixou-o cair na rua e desceu do coche para recolhê-lo. E antes que pudessem seguir, produziu-se a interrupção do trânsito. Confessou sua paixão à jovem e conquistou-a enquanto o carro se encontrava cercado. O dinheiro é lixo, quando se compara ao verdadeiro amor, Anthony.

— Muito bem — comentou o ancião. — Estou contente sabendo que o rapaz conseguiu o que desejava. Bem lhe disse que não pouparia esforço algum a esse respeito...

— Mas mano, que poderia ter feito o teu dinheiro?

— Mana, o meu pirata arrumou uma encrenca dos diabos. Seu barco foi avariado e ele conhece demasiado o valor do dinheiro para permitir que afunde. Muito te agradeceria se me deixasses terminar a leitura desse capítulo.

O conto deveria findar aqui. Eu o desejaria tão sinceramente quanto os que o lêem. Mas devemos chegar até o fundo do poço para encontrar a verdade.

No dia seguinte, uma criatura de mãos avermelhadas e gravata de algodão, chamada Kelly, bateu à porta da casa de Anthony Rockwall e foi imediatamente introduzida no escritório.

— Bem — disse o dono da casa, alcançando seu livro de cheques — foi uma bela soma de dinheiro. Vejamos, tu tinhas cinco mil dólares à disposição.

— E ainda gastei mais 300 do meu bolso — respondeu Kelly. — Foi mais caro do que eu esperava. A maioria dos carros e coches aluguei pelos cinco mil dólares, porém os caminhões e carroções me obrigaram a dobrar a quantia. Os condutores quiseram dez dólares, alguns vinte. Os guardas me exploraram. A dois, precisei dar cinquenta dólares e ao resto, vinte e cinco. Porém saiu maravilhosamente, não foi? E não houve ensaio algum! Os rapazes chegaram na hora exata. Foram necessárias mais de 2 horas antes que uma minhoca pudesse chegar aos pés da estátua de Greeley.

— Mil e trezentos. Aí tens, Kelly. — disse Anthony ao lhe entregar o cheque. — Os mil dólares são teus e mais os trezentos que pagaste do teu bolso. Não menosprezas o dinheiro, não é verdade, Kelly?

— Eu? — protestou o homem. — Gostaria de surrar o sujeito que inventou a pobreza.

Quando Kelly já se aproximava da porta, Anthony chamou-o.

— Não viste, por acaso — perguntou — em algum lugar, durante a interrupção do trânsito, um menino gordinho, nu a disparar flechas a esmo?

— Penso que não — respondeu Kelly, surpreso. — não, não vi. E se estava nu, como o senhor diz, por certo um guarda levou-o, antes que eu chegasse.

— Passou-me pela cabeça a ideia de que o malandro por lá estivesse — concluiu Anthony, sofreando o riso. — Adeus, Kelly.

Fonte:
Histórias de O. Henry. Ed. Cultrix, 1964.

Estante de Livros (Tente Outra Vez, de Jaqueline Machado)

sinopse feita por Lúcia Barcelos.

Essa primorosa obra de Jaqueline Machado, permeada por reflexões filosóficas, existencialistas e espiritualistas, mostra que nós, seres humanos, sem exceção, vivemos à busca.
 
Nessa trajetória temos quedas, levantamos, convivemos, celebramos passagens, superamos etapas, enfim, existimos. E apesar de às vezes presos à teia da ilusão terrena, sentimos que somos dotados de um algo mais, que transcende à reles existência. Percebemos que não somos apenas corpo e mente (intelecto), pois no recôndito do nosso ser, no reservatório de nossas emoções, sentimo-nos tocados por uma Energia Suprema, ainda que indescritível.

Através da personagem do presente romance, Jaqueline aborda que, por mais que o nosso intelecto possibilite compreender a lógica dos acontecimentos, nossa alma por vezes leva “choques” e nos desacomoda diante de certas coisas inevitáveis: da perda de um ente querido, por exemplo. E experimentamos uma sensação de ter a alma vazia e triste! A autora fala da realidade da vida, onde há bônus e há ônus. Todos têm seus prêmios e suas penas!

Num dado momento da narrativa, Jaqueline abre parênteses para uma revelação autobiográfica. Abre também seu próprio coração e chama a atenção para o fato de que nem sempre os laços de sangue significam união no sentido verdadeiro da palavra. Nem sempre a família sanguínea é a família amorosa na dimensão do espírito.

Qualquer pessoa, em qualquer condição, pode experimentar a solidão da incompreensão e do desamor. Ela fundamenta por observação e por experiências próprias, que a perfeição e a plenitude não existem nesse plano, nessa vida material. Todos, em qualquer contexto do nosso cotidiano, em algum momento nos deparamos com inquietudes e momentos de profunda tristeza ou até mesmo depressão!

Jaqueline traz à tona a delicada questão do suicídio, de uma forma jamais vista. E indica as soluções que vêm do Alto, da Misericórdia do Criador. Ela chama a atenção para a intercessão Divina nos momentos extremos, quando precisamos dar à alma, o conforto de novos horizontes, sonhos, esperanças, enfim, a luz implícita no AMOR que mostra veredas, que não aquelas cheias dos impedimentos das pedras e espinhos da realidade do nosso Planeta.

Jaqueline, com seu testemunho, com suas palestras e o dom da escrita, aponta que muitas vezes no limiar da trilha escolhida, ainda que sem respostas exatas, nos resta ter fé, aceitar nossos caminhos mudar de rumo quando e quantas vezes forem necessárias... É a metáfora da evolução. E sempre bendizendo as afeições que colhemos neste nosso andar pelo tempo e pela nossa própria vida!
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Jaqueline Machado nasceu em Cachoeira do Sul, em 1979. Poetisa, escritora e palestrante é autora de doze livros. Delegada da União Brasileira de Trovadores (UBT) na cidade.

Acesse AQUI o Link do livro, que está na Amazon

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Versejando 62

 

Arquivo Spina 35: Solange Colombara

 

Rachel de Queiroz (Trabalho & lazer)

NENHUM VIVENTE foi criado com destino ao trabalho; bicho nenhum trabalha, salvo abelhas e formigas, mas por isso mesmo são insetos, formas inferiores, muito abaixo na escala zoológica da aristocracia animal — nós, os mamíferos. Dizem, é verdade, que castores trabalham, constroem represas; mas ou será para estabelecerem a exceção necessária à regra, ou porque se corromperam como nós humanos, e aderiram ao labor como adeririam ao álcool ou à erva - puro vício.

No mais, os bichos todos vivem como nós lá no Nordeste, da mão para a boca, e sendo que o mão-à-boca deles é muito mais simples que o nosso, não exigindo plantar nem criar. Bicho sai por aí, se é herbívoro em procura de pasto, se carnívoro atrás de alguma presa — e comida a ração ou devorada a presa, vai dormir, remoer, digerir, que ninguém é de ferro. E tem até aqueles como as grandes jiboias e sucuris que nessa obra de digestão levam dias, semanas só dormindo.

E também há os bichos porcos chauvinistas como o. leão, que só vive para amar, gozar e querer bem. Quem abastece a família é a leoa — o leão só come o que a companheira matou.

Passarinho faz ninho, é verdade; mas passarinho, além de ser ovíparo, e portanto abaixo dos exaltados mamíferos, faz o seu ninho quase como uma brincadeira, cantando, bailando e namorando. Trabalho maior só no tempo da alimentação dos filhotes; mas também é só na ordem dos volantes que o macho reparte a tarefa com a fêmea — nos mamantes a fêmea que se vire — e dê leite. (Isso quererá dizer que a forma superior da criação é toda dos porcos chauvinistas?)

O homem primitivo não sabia o que era trabalho. Caçava, pescava, mas até hoje em dia caçar e pescar continua a ser diversão, lazer. Na saída do jardim do Éden, o Senhor amaldiçoou o homem com a praga de ter que ganhar o pão com o suor do seu rosto — e aí vocês estão vendo, era praga mesmo, castigo, não tendência natural.

A mulher, sempre inventiva, foi, segundo todas as reconstituições científicas dos hábitos dos primitivos — sim foi ela a inventora da primeira plantação, da primeira panela de barro, da primeira roupa de pele costurada. E o coitado do homem teve então que assumir a maldição do Senhor; e completou as invenções femininas com outras de sua lavra para ao menos aliviar o labor — e assim se inventaram a enxada e o arado.

Depois, a família primitiva, que se abrigava em cavernas quando as achava, foi crescendo de número, as cavernas ficaram poucas — e as mulheres exigiram as cabanas como moradia. (Foi decerto então que se cunhou o slogan “teu amor e uma cabana”.) Da cabana saíram para a casa — e está aí no que deu: estas selvas de cimento que nós chamamos de cidade.

Portanto, voltando à minha tese inicial: o homem não nasceu para o trabalho, nasceu para o lazer. A civilização (que é o ordenamento racional e científico da degenerescência das nossas tendências naturais), foi que instituiu o trabalho como virtude, pois que uma vive na razão direta do outro: — sem trabalho não pode haver civilização.

O pessoal lá do sertão tem uma pena dorida de gente de cidade, que de pequenino começa a sofrer. Enquanto as crianças de lá correm livres pelo mato, as daqui, mal começam a trocar os passos, já estão indo para a escola, quase sempre à força, para trabalhar, ou seja — estudar. E daí até se formarem é aquele cativeiro, obrigadas a aprender tudo que passa pelas estúpidas cabeças dos adultos, a atenderem às manias, preconceitos e à falsa sabedoria dos mais velhos. Menino que odeia matemática, tem que estudar matemática, a pau e a corda. E assim os que odeiam gramática, ciências naturais, física e química; e a prova de que muitas dessas imposições não são tão impositivas quanto se alega, é que com o passar do tempo elas são retiradas do currículo — como hoje o latim, o grego, a retórica. E já houve um tempo em que não se podia conceber infeliz estudante que não recebesse, goela abaixo, o latim ou a retórica.

Fala-se em vocação. Não acredito muito em vocação, salvo aquelas que explodem espontaneamente, como Jorge Amado fazendo romance aos 17 anos, Mozart compondo música criança ainda. Mas hoje há testes vocacionais para descobrir as vocações mais recônditas dos meninos — quando está na cara que os meninos não têm vocação nenhuma, só vão fazer os cursos que lhes são impingidos ou obrigados — nasceram mesmo para o lazer — a chamada sombra e água fresca.

A alegria do trabalho. Pode ser, mas eu por mim não conheço. Nunca trabalhei com gosto — no sentido de trabalhar como cumprir obrigação. Porque cozinhar um almoço para a família reunida pode ser realmente um ato gratificante, inventar comidas pode dar a alegria da criação — mas dar conta do feijão com ensopadinho de cada dia, nós sabemos como é chato; e depois ainda tem que lavar as panelas.

E como cozinhar é escrever, costurar, cuidar de criança, tocar música, representar no teatro. Enquanto se está na etapa voluntária e criadora, ótimo. Mas depois que deixa de ser invenção e diversão para virar tarefa, quer dizer trabalho, é sacrifício demais.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. 
RJ: J. Olympio, 1976.

Nilsa Alves de Melo (Trovas Temáticas) 4

MADRUGADA

Na madrugada que passa,
não chore, guarde a saudade
e se inspire. Ela é de graça,
e tão doce e é de verdade!
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São as horas perdidas;
aquelas da madrugada,
em que foram as queridas
inspirações esperadas!
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MÃE

A cada tranco da vida
minha mãe vem me avisar:
- Coragem, cabeça erguida,
isso também vai passar.
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Coloque um bem alto preço
ao pagar, com gratidão,
a mãe que lhe teve o apreço
que ultrapassa a imensidão.
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Com certeza, mãe querida,
terás os cuidados meus,
agora e por toda a vida,
até dizermos: - Adeus!
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Mãe, jardim, duas palavras
que digo em grande emoção.
Ela, a mãe de muitas lavras,
cultivou-o naquele chão.
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Mãe, olhe o ninho vazio,
ficou grande para mim;
nele o pranto silencio
numa saudade sem fim!
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Minha mãe, que, de cuidados
cercou-me desde o nascer,
depois, em tempos mudados,
dela fui mãe, com prazer!
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Não posso queixar da vida,
tesouro de valor tive;
minha mãe, a mais querida.
lembrança que em mim revive.
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Que mulher esta, tão linda,
nos braços te segurando?
– Minha mãe, jovem ainda,
aqui, na foto me olhando!
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MULHER

Cada mulher traz, latente,
coração de trovadora;
pode dizer o que sente
numa rima encantadora.
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Com mania de limpeza
e com vassoura na mão,
mulher desfaz da beleza
Das flores que ornam o chão.
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Enigma dos mais incríveis,
só decifra quem puder,
com esforços indizíveis,
ler uma alma: - a da mulher.
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PAI

Ao dizer o nome "Pai"
uno os lábios como que
a dizer: este, que aí vai
é um beijo para você.
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Mesmo com a dor da ausência
do pai, no curso da vida,
A fé diz que, na sequência,
o verei no fim da lida.
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Minhas células, trilhões,
trazem, pai, seu DNA;
riquezas em carrilhões.
- Herança maior não há!
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PÃO


O pão doce ou pão salgado,
sem açúcar ou sem sal,
é um alimento sagrado,
saboroso, sem igual.
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Pai do Céu, como meninos,
ensinai-nos repartir
nosso pão aos pequeninos,
com espontâneo sorrir.
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PAUSA

A mais feliz pausa é aquela
para um sono ao fim da vida,
retornando à outra, mais bela,
de alma leve e agradecida.
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Após a bendita pausa,
novas forças, novos rumos;
Em verdade ela foi causa
deste efeito: - Meus aprumos.
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Na música, a pausa fica
ali, quieta, sem o som;
em nossa vida, ela indica:
- Este tempo é um grande dom!
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PROFESSOR

Já conviveste com um santo,
sábio, de real valor?
Eu sim. E lhe devo tanto:
foi meu grande professor!
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Pai, padrinho, professor,
de pequena já aprendi
a respeitar, dar valor:
- Lição que nunca esqueci.
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Passou pela minha vida,
do saber vi o encanto.
Hoje sei, em meio à lida:
meu professor era um santo.
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Professa tão grande crença
como um profeta em clamor.
Profissão? Palavra densa
que resume: - Professor.
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PREGUIÇA

A preguiça, a dita cuja
só te faz desanimar,
As juntas ela enferruja,
leva tudo a desandar.
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Se alguém vires paradão,
não vás fazendo premissa.
- Anemia, amarelão,
se confundem com preguiça.
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ROSA

A rosa, fixa no herbário,
de nada lembra o frescor
das que levo ao santuário
relembrando nosso amor.
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Rosa, digo bem baixinho:
– Não estamos longe assim.
eu também trago um espinho
que me fere em dor sem fim.
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Rosa, Rosa, nome terno
da minha fada formosa.
que ensinou-me o amor eterno
e a plantar um pé de rosa.
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Sê como a rosa que enflora,
lá do esterco, ao sol sorrindo.
- Paciência, já chega a hora
que ao mundo estarás florindo!

Fonte:
Nilsa Alves de Melo. Temas, versos e trovas. Maringá/PR: Massoni, 2018.
Livro entregue pela trovadora.

Lima Barreto (A indústria da caridade)

Era dia de moda. A confeitaria regurgitava. Aqueles móveis de falsa laca, muito pechisbeques (ouro falso) e pernósticos, davam a tudo um ar de fatuidade e presunção. A frequência especial de cavadores, gigolôs, "melindrosas", "guitarristas", bobos-alegres, etc., enchiam o salão, sentados ao redor das mesinhas, olhando, de quando em quando, de soslaio os espelhos que o circundavam.

A um canto, abancados a uma mesa, tendo uma garrafa de Canadian em frente, dois amigos conversavam. Eram sibaritas desses lugares. Gozam em contar um ao outro o que sabem da vida faustosa dessa gente que, rica de uma hora para outra, se empavesa de repente com coisas caras, tal e qual um régulo africano que, nos salvados de um naufrágio, achando um fardão de oficial de marinha, o veste, põe o chapéu armado e fica de pés no chão. Os dois amigos tinham esse prazer, esse “gozo" de andar pelas reuniões públicas, tidas como da moda, para "biografar" os frequentadores.

Já tinham passado em revista a toda a sala e, com desgosto, viram que todo o pessoal era "conhecido". Afinal, deram com uma família "desconhecida" que procurava esconder as suas maneiras de Catumbi, com uma morgue procurada e sob trajes caros no rigor da moda.

O mais velho, o Chichorro, perguntou ao mais moço, o Veiga:

— Quem é aquela gente? Tu conheces?

— Sim; conheço, Chichorro; aquela gente é típica, é a mais pura representação da época. É a família do major Almério que é aquele de cinzento.

— Major! então não é dos "novos"?

— Qual! É da Guarda Nacional, filho!

— Quem é aquele que tem uma pasta, no último mês de gravidez, e está ao lado do tal Almério?

— Aquilo não é uma pasta; é uma “guitarra". Aquele sujeito é um advogado que anda metido com contrabandistas e gente que tal.

— Compreendo... Ele, o tal Almério, é "guitarrista" também?

— Não. É homem honesto; exerce legalmente a Indústria da Caridade.

— Indústria da Caridade! Tens cada uma - livra!

— Lembras-te dos da Renée Mauperin?

— Lembro-me; e como não me havia de lembrar desse livro que me causou tanta emoção?

— Pois bem. Há lá um personagem, cujo nome não me recorda agora, que diz: o furto é a maior indústria do nosso tempo. Os autores do Renée dizem que estudam, nesse livro, a burguesia ou um povo burguês de 64; há, portanto, quase sessenta anos que isso era corrente. Hoje ainda continua a ser; mas uma indústria nova apareceu ultimamente.

— Qual é?

— A da Caridade.

— Meu Deus! Isto é uma blasfêmia!

— Mas é uma verdade.

— Vou te mostrar como o é. Este Almério, há menos dez anos passados, morava em Bonsucesso, numa casinha, pela qual pagava trinta ou quarenta mil-réis. Vivia sabe Deus como. O aluguel da casa era pago com o produto das costuras da mulher e da filha mais velha, que tinha, por esse tempo, dezesseis anos; e o resto os vizinhos e amigos forneciam. Ele vinha todo dia à cidade, a ver se arranjava alguma coisa, qualquer lugar, mesmo de servente em qualquer repartição pública. Era, porém, caipora, nada obtinha; mas não desanimava. Veio uma agitação política, por ocasião de uma sucessão presidencial, e ele viu bem que o "caminho do burro" era ser do partido do candidato popular. Recordas-te da anedota de Diderot com Rousseau?

— Qual?

— Aquela da resposta a dar à Academia de Dijon: — "se o progresso das ciências e artes tinha contribuído para a felicidade do gênero humano?"

— Sim; lembro-me, pois não. Rousseau queria responder afirmativamente; mas Diderot disse-lhe que seria burrice: devia responder negativamente.

— Foi o que fez o nosso major. No negócio presidencial, respondeu — não; foi contra a opinião geral e acertou. Entrou para uma junta a favor do candidato execrado; fizeram-no major da Guarda Nacional e recebia uma diária pelo serviço de meetings, etc. Começou a jantar e a almoçar diariamente, e a família também. Os seus horizontes se alargaram. Não quis mais emprego, fosse qual fosse. Pensou coisa melhor.

— Que fez?

— Planejou um hospital de crianças. Interessou jornalistas e repórteres do partido da coisa. Recebeu donativos, o governo federal cedeu-lhe o velho edifício do hospital da brigada e casas adjacentes, restauradas, deu-lhe uma subvenção; o governo municipal, outra. Ele se instalou num palacete, mobiliado com remanescentes das subvenções, que lhe dão também para comer e vestir-se luxuosamente, ele, mulher e filhas.

— Como se mantém nessa “mamata"?

— À custa de manifestações a tudo quanto é impopular, portanto, do agrado
do "poder".

— Talvez tenha razão, porque nem tudo o que é popular é justo.

— Não há dúvida, caro Chichorro. Noto um fato social e mais nada.

— O papai Basílio fez pior, com o seu Asilo de Santa Rita de Cássia — caso que muito contribuiu para a fama do nosso atual desembargador Ataulfo... Como o tempo corre, hein?

— É verdade. Valha-nos isto: Almério não repetiu o papai Basílio.

Sorveram um trago de uísque e, com o pensamento longe, puseram-se a olhar a sala sem nada ver ao centro e sem trocarem palavra.

A família do major levantou-se e todo o rancho passou por perto dos amigos que sonhavam, mergulhados naquele burburinho de vaidade.

O homem da “guitarra” disse bem alto e cheio de suficiência:

— Consinto em ir jantar com "vocês"; mas com uma condição: eu pago o automóvel.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

domingo, 6 de junho de 2021

Versejando 61

 

Varal de Trovas 506

 


Carolina Ramos (Frustração)

Quem não gostaria de ver, no habitat, um bicho vivo, solto e feliz, em pleno gozo de seus direitos?

Pois em minhas andanças por este mundo de Deus, deixando de lado os encantos turísticos, artísticos, sacros e culturais que tanto nos arrebatam, tenho notado que, em cada lugar que visito, há sempre um animalzinho a marcar presença de modo bastante pitoresco, e que acaba por incluir-se no rol de minhas lembranças, sem que o perceba.

Não me esqueço da emoção, misto surpresa, quando, lá por Goiás, em tempos idos, parei o carro para admirar um lindo tucano empoleirado num galho à beira da estrada.

Com suas cores e inconfundível bico, eclipsava a paisagem, dono absoluto do momento! Magnífico!

Logo depois, doloroso impacto: - estendido, naquela mesma estrada, um tamanduá com sua cauda franjada manchada de sangue! Um pedacinho do Brasil selvagem literalmente atropelado pelas rodas do progresso! Num mesmo dia, com diferença de minutos, duas emoções fortes, contraditórias e inesquecíveis! Vida e morte, in loco, a poucos passos uma da outra!

Sempre gostei muito de animais... não fora, o Poverello de Assis, meu padrinho!

Mas sempre gostei de animais saudáveis e livres, como os saguis mineiros, da praça de Lavras, já quase sumidos; as maritacas barulhentas de Pousada do Rio Quente. Indo mais longe, aqueles gatos e cachorros de minha infância, e, retomando ao presente, os gatos e cachorros criados por meus filhos que ainda habitam uma casa, já que agora as paredes de um apartamento são hostis àqueles fieis amiguinhos de quatro patas, que não gostam de confinamento.

Neste passeio pelas ruas das lembranças, passo para a área internacional e surge ainda aquele esquilo atrevido, que sob o frio intenso de Bethesda, próximo a Washington, deu-me um valente susto, ao saltar de uma árvore, quase sobre meus pés!

Anos mais tarde, outro esquilo, este londrino, mansamente atenderia ao meu chamado no Hyde Park, chegando bem pertinho de minhas mãos, para fugir em seguida, desapontado, ao vê-las lamentavelmente vazias, sem nada a lhe oferecer, a não ser o meu carinho... que dispensou! E aquela numerosa família de coelhos silvestres, surgida de repente, numa noite de lua, resolvida a passear, tranquilamente, por uma das calçadas de Amsterdã, atropelando os pés surpresos de uma família brasileira?!

Todavia, é melhor não dar prosseguimento a este desfile de animaizinhos que algum dia trançaram seus passos aos meus, sem antes explicar o porquê destas lembranças.

Não me move o desejo exibicionista de abrir o passaporte, há muito desatualizado, para expor carimbos internacionais. É certo que gosto de viajar! E quem não gosta?! Mas, hoje, não troco o cômodo prazer da leitura de um bom livro (também deliciosa forma de viajar) por qualquer outra espécie de prazer mundano. E falar sobre alguns bichinhos inofensivos, que encontrei por aí em minhas andanças, sempre é mais agradável, quem sabe, do que falar sobre certa gente, que também por aí anda e que rosna e morde, quando menos se espera!

Na verdade, tudo isto veio à luz em virtude de uma frustração recente.

Há muito, eu desejava ver um lobo-guará, soltinho da silva em seu ambiente natural. Por isso mesmo, já cogitara até visitar o velho mosteiro de Caraças, lá pelas bandas de Belo Horizonte, onde esses dóceis animais se aproximam sem medo, à hora do Angelus, para receber alimentos e acabar por virar atração pública. Mas essa visita, sempre adiada, vai sendo, aos poucos, engolida no tempo.

O que acabo de dizer, reporta-me a uma viagem, não tão recente, por solo mineiro, quando voltava de Alfenas, cidade que julgava menor do que realmente é.

Anoitecia. Eu ocupava o banco traseiro do carro dirigido por meu filho, que tinha ao lado a esposa que Minas lhe concedera. Junto a mim, outra filha e genro.

De repente, a prosa em família foi subitamente interrompida por violenta freada que, por sua vez, arrancou exclamações de surpresa dos demais companheiros de viagem!

Assustada e de coração acelerado, a imaginar a iminência de um atropelamento, fechei os olhos e tampei os ouvidos, como fazia em criança, para não ver o baque e nem escutar os gemidos de uma possível vitima! Silêncio pesado abatia-se sobre nós!

Por instantes, ninguém falava... Nem parecia respirar!

Só consegui abrir os olhos quando o entusiasmo geral saudava, com alarido, o fim daquele mágico e precioso instante!

Precioso, sim... e mágico também… uma vez que, naquele preciso momento, um fantástico exemplar de lobo-guará, ofuscado pelos faróis, parara por segundos, à frente do carro, bem no meio da estrada… com risco de ser atropelado... para logo embrenhar-se na vegetação marginal!... E eu?... De olhos fechados!!!

Era ele, exatamente ele, identificado por todos! - Ou seja, aquele magnífico exemplar descrito pelos dicionários como "maior canídeo nacional, pelo avermelhado, tímido e inofensivo, de quase um metro de altura" - Era ele, aquele lobo-guará que eu tanto desejava e do qual nem rastro vi!

Frustração total! - Mas... É assim mesmo que as coisas acontecem! Ironias da vida! - Quantas vezes, tudo aquilo que mais desejávamos ver, nos surge diante dos olhos e... Sabe-se lá por quê? – Mantemos os olhos fechados, deixando que tudo escape... E sem chance de volta!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 9 –

Amor! Quem no amor se esmera
faz da existência sofrida,
um riso de primavera
e esquece as mágoas da vida!
= = = = = = = = = = =
Ante os seus atos incertos,
Pilatos, viu ante a cruz...
Jesus, de braços abertos,
enchendo o mundo de luz!
= = = = = = = = = = =
Ao longe, escuto o cicio
de um canto triste e plangente;
é a voz cansada de um rio
chorando as dores que sente!
= = = = = = = = = = =
A saudade se resume
no sisudo ritual,
desse silêncio sem lume
da solidão outonal!
= = = = = = = = = = =
De volta à igrejinha antiga,
vi minha infância tão bela...
Cantando a ancestral cantiga
no altar da mesma capela!
= = = = = = = = = = =
Dou meu conselho ao mais velho
num breve e simples resumo:
Segue a estrela do evangelho
que a luz da treva é sem rumo!
= = = = = = = = = = =
Enquanto a lua se arruma
abre a janela e se alteia...
A onda escreve de espuma
hieróglifos na areia!
= = = = = = = = = = =
Eu começo a perceber
que a saudade se completa,
nas horas do entardecer
do coração de um poeta!
= = = = = = = = = = =
Eu guardo os sons e os afetos,
com os quais, mamãe me embalava;
e hoje, eu embalo os meus netos
com as canções que ela cantava!
= = = = = = = = = = =
Mãe! O amor com que me aqueces,
e acende a luz que me guia,
se eu fosse pagá-lo em preces
seriam cem mil por dia!
= = = = = = = = = = =
Mãe - três letrinhas, só três,
e em qualquer outro alfabeto,
gênio nenhum, nunca fez
palavra com tanto afeto!
= = = = = = = = = = =
Meus versos, entre os aflitos,
se escondem da lua cheia;
porque versos mais bonitos
a espuma escreve na areia!
= = = = = = = = = = =
Na infância, a gente nem sente,
quanto o tempo nos desgasta;
mas como desgasta a gente,
depois que a infância se afasta!
= = = = = = = = = = =
Na infância, essa tez bonita!
Na velhice, não há fuga;
nem se escondendo, se evita
a mão da primeira ruga!
= = = = = = = = = = =
Não precisa pressa alguma,
para a vida mais ditosa;
o sol, sem pressa nenhuma,
pinta a tarde cor de rosa!
= = = = = = = = = = =
Num ranchinho abandonado,
no insensível desengano,
vive um sonho do passado
na bonequinha de pano!
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O rio, arrastando o entulho,
sem reclamar do que sente,
mostra a violência do orgulho
que entulha o peito da gente!
= = = = = = = = = = =
Ó, sonho de amor de outrora,
te procuro tanto em vão,
que nem sei mais por quem chora
esse velho coração!
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Parte a jangada!... E, ante a bruma,
entrega os sonhos plebeus,
aos braços do mar de espuma
e aos remos das mãos de Deus!
= = = = = = = = = = =
Por mais que não me respondas,
te pergunto, ó velho mar:
– Se não pões almas nas ondas,
quem faz a onda chorar?
= = = = = = = = = = =
Prendi meus olhos, naqueles
olhos verdes, tão risonhos;
nem pensei que o riso deles
fosse a prisão dos meus sonhos!
= = = = = = = = = = =
Quando a jangada se lança
aos sopros dos vendavais,
enfrenta o mar, na esperança,
de sempre voltar ao cais!
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Quem luta e crê não se cansa,
por mais que a vida se oponha;
que a crença, é a própria esperança
da paciência de quem sonha!
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Se a velhice nos impede
dos sonhos da mocidade...
Essa distância se mede
pelos passos da saudade!
= = = = = = = = = = =
Sinto em velhas madrugadas,
que entre nós dois sempre a sós,
conversamos de mãos dadas
e há solidão entre nós!
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Só depois que o sol desmaia,
deixando o céu mais aflito,
a orquestra da tarde ensaia
seus arranjos no infinito!
= = = = = = = = = = =
Tempo, por que me envelheces,..
Não vês que a melancolia
é a mais sofrida das preces
que se reza ao fim do dia?!...
= = = = = = = = = = =
Velhos sonhos andarilhos!...
Hoje, cercados de afetos...
Vivem presos aos meus filhos
e aos carinhos de meus netos!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Sammis Reachers (A maratona da panificação: Quem vencerá?)

O tema deste capítulo não é um assunto politicamente correto, mas este livro e o próprio humor também não o são. Vamos falar de uma realidade algo delicada, algo controversa: os idosos que, valendo-se do fato de não pagarem passagem, e do tempo de sobra que têm para fazer (ou não fazer) o que quiserem, pegam ônibus à esmo, seja subindo num ponto para descer no seguinte, seja percorrendo grandes distâncias, por motivos fúteis ou mesmo à toa, para "fazer hora".

Em mais um dia comum na garagem da Ingá, pela manhã, a galera está reunida para aquela tradicional resenha, o bate-papo que dá o ânimo do dia. Alguém começa a falar do assunto, dizendo de um ancião que sai do bairro Fonseca para, todos os dias, comprar quatro míseros pães franceses no mercado Extra, no centro de Niterói. Sendo que, no mesmo Fonseca, ele tem à disposição umas 15 opções de compra, sem ter que apanhar ônibus algum. Todos os presentes dizem então conhecer casos semelhantes. Mas nisso o motorista Fabiano "Gueiry", antiga "cria" da empresa, toma a palavra e, dizendo que o que eles viam no dia-a-dia não era nada, passa a relatar o seguinte:

- Na linha do Apolo (bairro de São Gonçalo, coberto pela empresa Fagundes), eu costumava pegar às vezes o carro de certo motorista, no horário das 5h00. O motorista seguia normalmente apanhando os passageiros do horário nos respectivos pontos. A maioria, galera que trabalhava nos estaleiros de Niterói. Certa vez, ao apanhar uma leva e dar a arrancada no carro, alguns dos passageiros puseram-se a gritar:

- Ei! Ei, motorista! Está vindo um senhor lá atrás, espera ele aí!

Conhecendo a 'peça' e um pouco contrariado, o motorista ainda fez menção de acelerar mais o veículo, cujo horário era extremamente apertado, mas alguns dos passageiros sentados na parte de trás chegaram a xingá-lo.    

O motorista    então    puxou    o freio de mão e pacientemente esperou. Lentamente    o senhor se aproximou e subiu com dificuldade no ônibus.

- Obrigado meu filho, se eu perder esse ônibus eu não pego a fornada de pão das seis horas...

O motorista, a essa altura já com a cara fervendo e querendo ensinar uma lição aos passageiros, mesmo sabendo que estava completamente errado, resolveu ir devagar. Os pontos já ficavam normalmente cheios, e com a lentidão repentina eles enchiam ainda mais, e assim também o ônibus,    que nunca vira tantos passageiros na vida, enquanto o piloto tranquilamente se arrastava, rebocando como um pé-de-pano.

Aquela lentidão já prefigurava o atraso daqueles trabalhadores, que tinham hora certa para pegar no serviço. A insatisfação e o burburinho dentro do veículo só faziam crescer, até que a galera não se conteve e começou a reclamar:

- Como é que é, ô piloto! Vamo com essa carroça! Nós temos hora pra chegar em Niterói!

Era o momento pelo qual o motorista, alma tinhosa, esperara e trabalhara,

- Ué rapaziada, vocês têm hora? Não me xingaram, lá atrás, para esperar o coroa? Pensei que vocês não tivessem pressa.

- Mas ele é velho já, se perdesse esse ônibus o outro ia demorar!

- E vocês sabem o que ele vai fazer? Ele sai todos os dias lá do Apolo, só para ir em Niterói comprar meia dúzia de pães!!! Atravessa centenas de padarias, pega engarrafamento, toma chuva, só pra ir em Niterói comprar pão porque "o de lá é mais gostoso"! E ele não tem nada melhor pra fazer mesmo... Então esse é o preço do atraso de vocês: um saco com seis pães franceses. Agora podem xingar, pra ver se anima o motor.

A galera ficou contrariada e, confusa entre ficar com raiva do motorista vingativo ou do idoso de paladar exigente, ficou em silêncio o resto da viagem.

Desnecessário é dizer que eles nunca mais pediram àquele piloto para esperar ninguém!

Após tal relato, Fabiano acreditou que se sagrara o vencedor da disputa sobre a maratona da panificação, praticada diariamente por milhares de velhinhos. Mas então Marqulnho, motorista baixinho e grande zoador, morador do bairro gonçalense do Jockey, terminou de tomar seu café e tomou a palavra.

- Malandros, como alguns aqui sabem, antes de trabalhar como motorista na Ingá eu era da empresa Rosana, em São Gonçalo. Pegava às 17h00 e largava às OlhOO da madruga. Acontece que a garagem da Rosana era problemática, e quando chovia, corria o risco de alagamento. Assim, em noites de muita chuva o dono da empresa ligava pra lá e pedia pra galera fazer uma força e rodar até às 05h00 da manhã, e se ainda assim a chuva continuasse e a garagem ficasse alagada, era pra largarmos os ônibus nas ruas próximas a ela. Nessas vezes, sempre às 04h00 da manhã, quando eu ia com minha última viagem, já exausto, sempre pegava um velhinho, que dizia estar esperando o outro carro da linha, que era efetivo de todo dia, mas passava às 04h20. Com o tempo fui pegando uma certa amizade com o velho, pois sempre que tinha que rodar até às cinco lá estava ele, sem falta. Até que chegou certo dia, e eu perguntei:

– Trabalha aonde?

- Ô meu filho, eu não trabalho não... Sabe o que é, é que há muito tempo eu morei no município de Rio Bonito, e gostei muito do pão de lá. Aí todo dia eu vou lá comprar pão.

Ou seja: o indivíduo saía às 05h00 da matina do município de São Gonçalo, pegava dois ou três ônibus só de ida, e além de São Gonçalo atravessava os municípios de Itaboraí e Tanguá para chegar em Rio Bonito, quase duas horas depois... apenas para comprar pão.

E com essa bordoada o presepeiro do Marquinho aniquilou todos os presentes e sagrou-se campeão da disputa.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (A Mulher que Escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar)

O Autor


 Moacyr Scliar, médico e escritor. Gaúcho de origem judaica, produziu ao longo de sua vida uma obra vasta que vai do romance ao ensaio, traduzida para doze idiomas e adaptada para o cinema, o teatro e a TV. Publicou entre outros a coletânea de contos "A orelha de Van Gogh", ganhadora do prêmio Casa de Las Américas e os romances "Sonhos tropicais" e "A majestade do Xingu", baseados nas vidas de Oswaldo Cruz e Noel Nuttels respectivamente.

Sinopse:

A mulher que escreveu a Bíblia é um pequeno romance em que se fundem as três maiores qualidades do gaúcho Moacyr Scliar: a imaginação, o humor e a fluência narrativa. Para estas qualidades recebeu o Prêmio Jabuti 2000.

Ajudada por um ex-historiador que se converteu em "terapeuta de vidas passadas", uma mulher de hoje descobre que no século X antes de Cristo foi uma das setecentas esposas do rei Salomão - a mais feia de todas, mas a única capaz de ler e escrever. Encantado com essa habilidade inusitada, o soberano a encarrega de escrever a história da humanidade - e, em particular, a do povo judeu -, tarefa a que uma junta de escribas se dedica há anos sem sucesso. Com uma linguagem que transita entre a elevada dicção bíblica e o mais baixo calão, a anônima redatora conta sua trajetória, desde o tempo em que não passava de uma personagem anônima, filha de um chefe tribal obscuro.

Moacyr Scliar recria o cotidiano da corte de Salomão e oferece novas versões de célebres episódios bíblicos. Em sua narrativa, repleta de malícia e irreverência, a sátira e a aventura são matizadas pela profunda simpatia do autor pelos excluídos de todas as épocas e lugares.

Tema:

Último romance escrito por Scliar e lançado no final de 1999, A mulher que escreveu a Bíblia reúne o que há de melhor no trabalho desse escritor cujo texto é marcado pela leveza, fluência e imaginação. Em sua trama bem urdida, misturam-se sem cerimônia erudição e escracho, sagrado e profano, História e ficção, sublime e ridículo, religião e sexo. Para escrevê-lo, Scliar baseou-se na hipótese do crítico norte-americano Harold Bloom de que uma mulher teria sido a autora da primeira versão da Bíblia, escrita no século X a.C.

A trama, que envolve um terapeuta de vidas passadas charlatão e apaixonado por sua paciente, leva-nos numa viagem aos esplendores do reinado do sábio rei Salomão em Israel, a cujo harém acaba de chegar uma mulher feia, apaixonada e - coisa incomum para a época - letrada. Será ela a narradora dessa história repleta de ação, aventura, paixão e intriga. Diversão garantida pelas hilariantes versões de episódios bíblicos, tratados com originalidade e irreverência rejuvenescedoras pelo talento de uma dos maiores representantes de nossa literatura.

Trecho:
"Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho letra após letra, palavra após palavra, era algo que me deliciava. Não era só um texto que eu estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta da ordem, da harmonia. Eu descobria que uma letra atrai outra, essa afinidade organizando não apenas o texto como a vida, o universo. O que eu via, no pergaminho, quando terminava o trabalho, era um mapa, como os mapas celestes que indicavam a posição das estrelas e planetas, posição essa que não resulta do acaso, mas da composição de misteriosas forças, as mesmas que, em escala menor, guiavam minha mão quando ela deixava seus sinais sobre o pergaminho."(p.41)

Resenha:

Em The Book of Jo, o crítico norte-americano Harold Bloom levanta a surpreendente tese de que a primeira versão da Bíblia hebraica teria sido escrita por uma mulher, na segunda metade do século X a.C. Moacyr Scliar, neste breve e delicioso romance, vai além: ao submeter-se a uma “terapia de vidas passadas”, uma mulher de nossa época descobre que foi ela que, há três mil anos, como a única letrada entre as setecentas esposas do rei Salomão, recebeu deste a incumbência de escrever a história da humanidade e do povo judeu.

É pelos olhos dessa mulher feiíssima e intelectualmente brilhante que percorremos os bastidores da corte de Salomão e a vida cotidiana da Jerusalém de seu tempo. Por essa via oblíqua, Moacyr Scliar constrói uma narrativa fascinante, que é ao mesmo tempo sátira e romance de aventura.

Como costuma acontecer nos livros do autor, o humor irreverente anda de braços com um profundo humanismo, cujo traço mais evidente é a simpatia pelos deserdados e excluídos. Aqui, Scliar, além de sua fabulosa imaginação, demonstra todo o seu virtuosismo literário ao misturar o registro elevado da linguagem bíblica com a fala desabusada da narradora/escriba, criando anacronismos deliberados e impagáveis.

Desse modo, brinda-nos com versões novas e hilariantes de célebres episódios bíblicos, como o das duas mulheres que recorreram a Salomão na disputa por um bebê (“prostitutas de uma estrela, no máximo”), ou o do encontro do rei dos judeus com a bela rainha de Sabá (a quem ele recita, com propósitos lascivos, os versos do Cântico dos Cânticos).

Diante desse banquete de fantasia e humor, nenhum leitor ficará indiferente.

Fonte:
Resenha por José Geraldo Couto e resumo disponíveis em
Orfeu Spam (site atualmente desativado)

sábado, 5 de junho de 2021

Versejando 59 (Alba Krishna Topan Feldman)

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 25

As calendas do outono têm sido contumazes incitantes de ideias e idealidades. Numa das andanças pelos caminhos diários, lembrei de uma página dos ANALECTOS, do filósofo Confúcio, onde laconicamente diz assim: " Não se desvie do caminho ".

Tão curta quanto certa é a afirmação - buscar um caminho como meta, seguindo obstinado na missão a que nos propusemos.

Com denodo e perseverança, cultivando pensares, saberes, viveres, fazendo o de que mais gostamos, parece ser o destino ditoso que podemos viver.

E viveremos !

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Versejando 60


 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 29 e 30


DIÁLOGO FINAL


— É tudo que tem a me dizer? — perguntou ele.

— É — respondeu ela.

— Você disse tão pouco.

— Disse o que tinha para dizer.

— Sempre se pode dizer mais alguma coisa.

— Que coisa?

— Sei lá. Alguma coisa.

— Você queria que eu repetisse?

— Não. Queria outra coisa.

— Que coisa é outra coisa?

— Não sei. Você que devia saber.

— Por que eu devia saber o que você não sabe?

— Qualquer pessoa sabe mais alguma coisa que outro não sabe.

— Eu só sei o que eu sei.

— Então não vai mesmo me dizer mais nada?

— Mais nada.

— Se você quisesse…

— Quisesse o quê?

— Dizer o que você não tem para me dizer. Dizer o que não sabe, o que eu queria ouvir de você. Em amor é o que há de mais importante: o que a gente não sabe.

— Mas tudo acabou entre nós.

— Pois isso é o mais importante de tudo: o que acabou. Você não me
diz mais nada sobre o que acabou? Seria uma forma de continuarmos.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ENCONTRO

O personagem de Lúcio Cardoso hospedou por algumas semanas o personagem de Cornélio Pena. Nunca se viam, porque um dormia pela madrugada e o outro ao anoitecer. Não se encontravam à mesa, mas ambos diziam “bom dia”, sozinhos, referindo-se ao companheiro.

O personagem de Guimarães Rosa, encontrando aberta a porta da casa, entrou, não viu ninguém, deu tiros para o alto. Um buriti cresceu na sala de jantar, a vereda fluiu suas águas. Os personagens de Lúcio e de Cornélio acudiram ao mesmo tempo, surpresos. Ouviu-se a viola de Miguelão entoar modinhas do Urucuia. Todos beberam muito, e a noite acabou em antologia mineira, com ilustrações de Poty.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Cônego Benedito Vieira Telles (Jardim de Trovas)


1
A esperança também gera
o mal que a saudade tem,
quando a gente vive à espera
do sonho que nunca vem.
2
Amigo, qual tenra planta,
tem de ser bem cultivado.
Se outro valor se levanta,
você pode ser trocado...
3
A neve nos pinheirais,
nestas paragens do Sul,
forma brincos de cristais
na terra da gralha azul.
4
À sua mesa haja o pão,
partilhe-o com quem não tem.
Reparta-o com o irmão,
que não o falte a ninguém.
5
Às vezes, no entardecer,
prateia a lua as ramagens.
Velha árvore a fenecer...
Com ela, as frescas aragens!
6
A trova, menor poesia,
síntese da inspiração.
São sete pés de maestria,
que medram no coração!
7
A trova não envelhece,
assim é toda a poesia.
É perene como a prece,
imortal a cada dia!
8
A vida é dura, renhida,
porém tem muita poesia.
Faço parte da torcida
da esperança a cada dia.
9
Cidade do coração,
tens meio milhão de amores,
tu és a ‘Cidade Canção’,
Maringá, urbe das flores!
10
Coração de mãe é grande,
infinito como o amor.
Sua ternura se expande
como o perfume da flor!
11
Em vez de bombas, canhões,
fome, miséria, orfandade,
que se unam os corações
na paz da fraternidade!
12
Frondosa árvore, bendita,
que antepassados plantaram.
Árvore alegre, bonita,
de ti saudades ficaram!
13
Há festa no céu, na Terra,
foi a maior deste Mundo,
nos mares, rios e serras...
Natal, mistério profundo!
14
O domingo é do Senhor,
dia pascal do cristão.
Vamos ao altar do Amor
enriquecer-nos do irmão.
15
O homem foi feito perfeito,
à semelhança de Deus;
às vezes, fico sem jeito
de não ser igual aos meus.
16
Ontem falara às estrelas,
e sussurros seus ouvia.
Foi difícil entendê-las!...
Novo dia em cantoria.
17
Ouvir e ver as estrelas,
sonhara, enfim, o profeta.
Se Bilac falou com elas,
vale a pena ser poeta!
18
O vento farfalha a copa,
da árvore, folhas e flores,
e a ave o ninho envelopa
para abrigar seus amores.
19
Pode entrar. A casa é sua,
sempre me traz alegria.
Ao sair, esta é a rua...
se puder, volte. Bom dia!
20
Por que não curtir saudade,
que é parte do nosso ser?
– Saudade não tem idade,
fica em nosso entardecer.
21
Pra que possa haver perdão,
estenda a mão o ofensor
ao ofendido – e do irmão
cure a dor com muito amor.
22
Quanto mais a idade avança,
no longo tempo a correr,
eu tenho mais esperança
e mais prazer em viver...
23
Quisera ter coisas novas
escritas, mas tudo em vão.
Só encontrei algumas trovas
no escrínio do coração.
24
Quisera ter tantas vidas
pra levar a Paz e o Bem.
Lancei sementes nas lidas...
agradeço a Deus. Amém!
25
Receba, de coração,
o que posso repartir:
à mesa, um pouco de pão,
e a alegria de sorrir.
26
Rústico curral bovino,
maternidade do Amor.
– No corpo de um Deus-Menino,
nasceu-nos o Salvador.
27
Sai o hábil semeador
e lança a boa semente.
Chamado pelo Senhor,
planta-a na alma da gente.
28
Senhor, neste amanhecer,
louvo a tua criação:
da aurora ao entardecer,
eu te encontro em meu irmão.
29
Sigo minha trajetória
pelos caminhos, cantando.
No coração, trago a história
desde que O segui, sonhando.
30
Traz-me a árvore lembrança
dos verdes anos, agora.
Como foi bom ser criança,
com meus sonhos desde a aurora.
31
Tudo o que é criado passa,
porque tudo é contingente.
Deus sempre, com sua graça,
renova a vida da gente.
32
Uma prece eleve a Deus,
com fé peça hoje a cura
para alguém junto dos seus
e cure essa criatura.
==============================
Cônego Benedito Vieira Telles nasceu no Distrito de Campo Místico, hoje, cidade e comarca de Bueno Brandão/ MG, em 1928. Filho de pais católicos praticantes, Luiz Vieira Telles e Maria da Conceição Telles. Eram doze irmãos. Aos domingos, íam à Missa na Matriz de São Bom Jesus da Pedra Fria, igreja em que foi batizado, crismado, fez Primeira Comunhão. Nesta matriz rezou a Primeira Missa solene, em 1960, em Ação de Graças pelo chamado ao sacerdócio.
 
Em 1945, entrou no Seminário dos padres da Congregação Salesiana, em Lorena – SP. Concluídos os estudos de Filosofia e Teologia no Seminário Maior São José, Rio de Janeiro – DF, foi ordenado sacerdote por dom Jaime Luiz Coelho, em 1960, na primeira catedral de madeira, cujo bispo de Maringá ordenava-lhe o primeiro padre da diocese.

Foi nomeado vigário coadjutor da catedral, Secretário do Bispado, Chanceler da Cúria Diocesana. Implantou pastorais na catedral: catequese paroquial e nas escolas, Obras das Vocações Sacerdotais, cujas vocações floriram. Ia mensalmente às capelas dos distritos de Maringá, zonas rurais, para dar-lhes assistência espiritual. Fundou o Movimento Familiar Cristão e outros. Foi nomeado Cura da Catedral de Maringá. Pároco por quase nove anos. Foi transferido para a paróquia de Inajá. Depois, pároco em Guairaçá, Atalaia, comunidades desta arquidiocese. Exerceu o magistério de Direito na Universidade Estadual de Maringá até a aposentadoria e Unicesumar.

Colaborou na Folha do Norte do Paraná, imprensa diocesana e outras obras, que constam em Livros Tombos das paroquiais que administrou.


Fontes:
Trovas obtidas nos Boletins de Trovas "Trovia", de A. A. de Assis.
Biografia adaptada obtida da Arquidiocese de Maringá, em 2016.
http://arquidiocesedemaringa.org.br/noticias/695/60-anos-da-arquidiocese-de-maringa-conheca-a-historia-do-conego-benedito-vieira-telles

Marcelo Spalding (Abrir e fechar os olhos)

Insistem para que eu abra os olhos. Pegam na minha mão, acariciam meu rosto, tentam uma graça, um incentivo. Esperam, rezam, se revezam. Sai o Otávio, que fala baixo e suspira alto, sai de cabeça baixa, sem cumprimentar a irmã, entra a pequena, de sorrisos medidos, gestos ensaiados, olhar atento. Tem sido assim nos últimos quarenta e três dias, vivemos a mesma vida em mundos paralelos, eu preso à cama e eles acorrentados a mim.

Não sei precisar de onde veio o golpe, se do revólver de um vagabundo, da fúria de um vizinho, da violência de um motorista ou do capricho de um deus. Não sei compreender os motivos, as culpas, os remorsos, tampouco as ausências e os desejos que ficaram pra trás. Não sei aplacar a ânsia das pernas, acalmar a urgência dos pulmões, amenizar a dor da pele, iludir os sentidos. Mas enquanto permanecer nesse mundo poderei ver e ouvir os seres deste e do outro mundo, estar aqui e em todos os lugares, nesse e em todos os tempos.

A pequena traz uma cartolina enrolada, com alguma dificuldade vai revelando o papel e nele há fotografias, muitas, tantas quanto possível para uma vida pacata. Ela pede licença para colar o presente na parede, quer que seja minha primeira visão no dia em que eu abrir os olhos. Com cuidado prende as pontas, ajeita os recortes, observa o resultado. No fundo não acredita que eu esteja ouvindo, mas fala alto, fala para si, não sabe ainda que eu não apenas vejo cada imagem como também me transporto para o dia em que foi tirada, visito cada casa, abraço cada amigo. Reparo, depois de uma reveladora e cansativa volta no tempo, que em algumas sorrio, em muitas não, em algumas estou sentado, em outra de pé, em algumas estou sem camisa, em outros de terno e gravata, em algumas olho para a câmera, em outras para um ponto qualquer, mas em nenhuma, absolutamente em nenhuma delas estou sozinho, como em nenhum momento dessa viagem me senti sozinho, nem no dia da morte da filha bebê nem no dia da certeza que ela não voltaria aos meus braços nem na derradeira manhã do golpe. Nunca.

A cartolina fica na parede. Com o passar dos dias me acostumo com a presença dos pequenos e aprecio a persistência da pequena, que depois das fotos trouxe um radinho, um bibelô da casa, meu travesseiro. E cada vez que exibia o presente, insistia para que eu abrisse os olhos, uma insistência classificada por médicos e enfermeiros como comovedora, ingênua e triste. Mas ela se aproximava, beijava meu rosto como nunca dantes, baixava a cabeça para rezar e dizia: eu espero, pai, eu espero o tempo que tu precisar.

Para ela foram meses, para mim apenas um instante, pois o tempo não é igual em todos os mundos. Um dia ela chegou sem esconder uma alegria transcendente, alegria maior que os primeiros traços de preocupação já cravados na face, maior que o permitido pelo fio desesperado de esperança no meu retorno, e me pediu para abrir os olhos e ver o milagre da vida. Pegou na minha mão e a pousou com cuidado no seu ventre, com a mão já posta falou que o bebê teria o meu nome e não em memória, mas como homenagem a alguém que escolheria viver, e nesse dia lembrei do meu primeiro bebê, do anjo que partira cedo, e finalmente cedi ao desejo de todos.

Devo ter aberto um olho só e com grande dificuldade, pois demorei para ter uma visão clara do rosto delicado da pequena, do rosto de traços tão semelhantes ao da minha juventude, e quando consegui ela chorava sem soluçar, as lágrimas escorrendo e caindo na minha mão morta sobre o ventre vivo. Abri um olho, depois outro, ou parte dele, abri-os e meu olhar não deve ter transmitido dor, nem medo, nem revolta, nem tristeza. Em pouco tempo todos meus filhos estavam ali e a pequena segurava a cartolina que me trouxera de volta para o mundo dela. Um por um se aproximaram e beijaram minha face, como nunca antes.

Não voltei a fechar os olhos, observava tudo com a intensidade de quem já conhecera outro mundo. E não voltaria a fechar os olhos jamais não fosse a pergunta muito grave da pequena: a gente te quer por perto seja como for, pai, mas precisamos saber se tu também quer. Tu quer, pai? Responde pra nós, dá um sinal. Tu quer ficar com a gente? Eu jamais voltaria a fechar os olhos, mas precisei fechá-los e abri-los com calma para que entendessem meu sim. Sim.

Daquele dia em diante, abrir e fechar os olhos deixou de ser um gesto involuntário, singelo, automático. Foi com um abrir e fechar de olhos que concordei com o nome do bebê, com um abrir e fechar de olhos que agradeci à pequena, com um abrir e fechar de olhos que aprovei a cartolina com fotos e, mais tarde, com um abrir e fechar de olhos que escolhi cama, quarto, médicos. Foi com um abrir e fechar de olhos que escolhi viver.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Adega de Versos 26: Olivaldo Júnior

 

Humberto de Campos (A Vingança)

O caboclo Saturnino, agricultor em Jacarepaguá, era, por natureza um homem morigerado (*bem-educado). Criando os seus porcos, as suas cabras, os seus perus, as suas galinhas, fazia o possível para que a bicharada não saltasse a cerca, indo devastar as plantações dos vizinhos. Se ele se indignava até à inconveniência quando um bode alheio lhe penetrava o roçado, era natural que os outros se revoltassem, também, quando vítimas de idênticas depredações.

Não obstante os cuidados de todo o dia, tapando, endireitando, recompondo os menores buracos do cercado, foi o Saturnino surpreendido, uma tarde, pela falta de uma das galinhas mais gordas do terreiro. Experiente como era, saiu o caboclo pelo fundo do quintal, e ao olhar para a cozinha do seu compadre Teodoro Maniva, descobriu lá a sua galinha, que estava sendo depenada pela dona da casa. Saturnino rodeou o cercado, bateu à porta da frente e queixou-se do que lhe haviam feito. Positivamente, aquilo não era sério, nem digno de um homem de bem... Teodoro sorriu, e desculpou-se:

- Ora, compadre, para que brigar? Vamos entrar num acordo. A galinha já está na panela; venha jantar hoje, comigo...

Inimigo de questões, Saturnino aceitou o convite, esperou a hora, jantou, despediu-se, e dirigiu-se para casa, de cabeça baixa, imaginando o meio de tomar desforra do seu compadre Teodoro.

Esta não foi difícil. A Brígida, mulher do Teodoro, era uma cabocla forte, rochonchuda, atarracada, cujos olhos faiscavam toda a vez que divisavam, na vila ou nas estradas, o vulto do Saturnino. O caboclo recordou-se disso e, com o propósito da represália, resolveu explorar essa fraqueza da comadre. E tanto fez, tanto virou, tanto mexeu, que, um dia, ao voltar do roçado, o Teodoro não encontrou mais a mulher. Desconfiado, rumou para a casa do Saturnino, e bateu.

- Quem é? - perguntaram de dentro.

- Sou eu! - trovejou o Teodoro.

Saturnino apareceu na soleira do casebre e o outro indagou, feroz:

- A Brígida não está aqui?

O caboclo sorriu, batendo-lhe no ombro:

- Está aí, compadre. Ela está aí dentro.

E tomando-o pelo braço, puxando-o para a cabana:

- Entre, compadre. Fique para dormir com a gente...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

A Árvore em Versos - 2


Giuseppe Artidoro Ghiaroni
(Paraíba do Sul/RJ, 1919 – 2008, Rio de Janeiro/RJ)


AS ÁRVORES CORTADAS

Deceparam as árvores da rua!
Sem troncos hirtos na calçada fria,
a rua fica inexpressiva e nua;
fica uma rua sem fisionomia.

0 sol, com sua rústica bondade,
aquece até ferir, até matar.
E a rua, a rir sem personalidade,
não dá mais sombras aos que não têm lar.

As árvores, ao vento desgrenhadas,
não lastimam a peia das raízes:
Olvidam suas dores, concentradas
no sofrimento de outros infelizes.

Eu penso, quando à frente dos casais
vem sentar-se um mendigo meio-morto,
que uma fronde se inclina um pouco mais,
para lhe dar mais sombra e mais conforto.

Sem elas, fica a triste perspectiva
de uns muros esfolados, muito antigos,
que se unem na distância inexpressiva
como se unem dois trôpegos mendigos.

Quando vier com o seu farnel de lona,
arrimar-se à sua árvore querida,
o ceguinho de gaita e de sanfona
será capaz de maldizer a vida.

E aquela magra e trêmula viúva
que anda a esmolar com filhos seminus,
quando o tempo mudar, chegando a chuva,
dirá que dela se esqueceu Jesus!...

Meu Deus, seja qual for o meu destino,
mesmo que a dor meu coração destrua,
não me faças traidor, nem assassino,
nem cortador de árvores da rua!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

José de Alencar
(Fortaleza/CE, 1829 – 1877, Rio de Janeiro/RJ)


ÁRVORE SIMBÓLICA

– Que fazes tu, em meio do caminho,
Loureiros ideais amontoando?
Olha... com astros já formei teu ninho:
Vem dormir... inda há dia, e estás suando. –

Falou-lhe a morte assim com tal carinho,
Que ele dormiu, a obra abandonando:
E quando o mundo o procurou, foi quando
Viu que um sol cabe num caixão de pinho.

Devia ser-lhe marco à cabeceira
Uma águia, abrindo as asas remontada...
Não tem... plantemos tropical palmeira.

O tronco esbelto, a coma derramada
Dará ideia duma vida inteira
Sempre a subir... sempre a subir coroada...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Joyce Kilmer
(EUA, 1886 – 1918, França)

ÁRVORES


Sei que nunca verei um poema mais belo e ardente,
do que uma árvore; uma árvore que encerra
uma boca faminta, aberta eternamente
ao hálito sutil e flutuante da Terra.

Voltada para Deus todo o dia, ela esquece
os braços a pender de folhas, numa prece.
Uma árvore, que ao vir do estio morno, esconde
Um ninho de sabiás nos cabelos da fronde.

A neve põe sobre ela o seu níveo diadema
e a chuva vive na mais doce intimidade
do tronco, a se embalar nos galhos seus;
Qualquer néscio como eu sabe fazer um poema.
Mas quem pode fazer uma árvore? – Só Deus.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Maurice Rollinat
(França, 1846 – 1903)


A TRISTEZA DAS ÁRVORES

Oh! grandes vegetais! oh! mártires do estio!
Liras das virações – os músicos dos ares –
Quer verdes estejais, quer vos despoje o frio,
O poeta vos adora e vos sente os pesares!

Quando o olhar do pintor procura o pitoresco
É em vós que sacia a sôfrega avidez,
Porque vós sois o imenso e formidável fresco
Com que a terra sem fim cobre a sua nudez.

Quando estala o trovão, e o granizo peneira,
É a floresta um mar de encapeladas águas,
E tudo – a tília enorme ou a frágil roseira –
Solta nos penetrais lamentações de mágoas.

E vós, que muita vez, silentes como os mármores,
Adormeceis tal como as almas sem receio,
Então rugis, torcendo os braços, pobres árvores,
Sob as patas brutais de elementos sem freio!

Quando a ave os olhos fecha ao verão que a quebranta
Dos vossos ramos vai dormir ao brando afago;
Eles servem de abrigo à pedra e à débil planta
E casam sua sombra à fresquidão do lago.

Só nas noites de Maio, aos clarões estrelares,
Aos aromas sutis que as caçoulas exalam,
É que esquecer podeis as dores seculares,
Dormindo um sono bom que os zéfiros embalam.

O sol vos cresta e morde; o aquilão vos vergasta;
– Vivos embora – o inverno, frígida mortalha,
Vos cinge; e como enfim tanto sofrer não basta,
A rir o lenhador vossas carnes retalha.

Na cidade, no campo ou nas ínvias devesas,
Onde quer que vivais, olmos, faias, carvalhos,
Eu fraternizo com as enormes tristezas
Que derramam pelo ar vossos sombrios galhos...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Pedro Tamen
(Lisboa/Portugal)

ÁRVORE

Cresce e vem do fundo da terra
ou do fundo do tempo.
Sobe para um céu
que afinal não conhecemos.
No intervalo há vida
– e também ela cresce:
nela se encerra
o que somos e temos;
e se desvela o véu.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

William Vicente Borges
Rio de Janeiro/RJ


A ÁRVORE E O MENINO LEVADO

Uma mangueira, nenhuma manga.
Um menino levado, nenhum juízo.
E por que não pular de galho em galho?
Afinal árvore e menino levado
Formam um par bem adequado.

Só que o menino levado não sabia
Que nem toda árvore está de brincadeira
E que nem todo galho só enverga.
E bem do alto da mangueira então,
Feliz da vida caiu o menino ao chão.

Todo arranhando saiu o menino
Com o galho ainda sob si,
Todos os amiguinhos atônitos
Não se atreveram a na árvore subir.
Mas a lição aprendida pôs todos a rir...

A mangueira ficou lá meio esquecida
Mas muitas frutas vieram a nascer
E lá foi o menino levado –
Só que desta vez não subiu nos galhos –
Com vara de bambu foi alto colher.

O menino levado cresceu e virou moço
E sempre que pode vai a árvore visitar
E na sombra dela ri do acontecido.
Menino levado e árvore combinam, sim.
O que não combina é não ser precavido.

Fonte:
Sammis Reachers (org.). Árvore: uma antologia poética. São Gonçalo/RJ, 2018. E-book.

Paulo Mendes Campos (O homem que odiava ilhas)

- Não tem um escritor americano que só queria levar para uma ilha deserta um manual do perfeito construtor de barcos?

- Chesterton. Não é americano, é inglês.

- Pois é. Também eu tenho horror às ilhas. Estávamos num barco de pesca em Cabo Frio. O senhor atlético, já meio grisalho, ao qual eu fora apresentado pouco antes, continuou a falar:

- Não dou para Robinson. Até sinto saudade do meu apartamentinho da Rua 49, bem no meio da confusão, morei lá oito anos. Estava só há um mês em Nova York - trabalhando para uma firma, sou engenheiro - quando me chamaram para topar uma pescaria no Maine. Fomos de trem, num fim de semana, seis rapazes e seis moças. Convidei para ir comigo uma garota que trabalhava no escritório, um amor de alemãzinha, chamada Graziela. O nome é italiano mas era filha de alemães. Fazia parte do grupo um rapaz, forte pra burro, que eu não conhecia antes, um tal Aiken, que resolveu dar em cima da minha pequena. Veja o meu azar.

Não sei se por eu ser sul-americano, moreno assim, o sujeito de vez em quando empurrava uma piadinha para o meu lado, a turma se esbaldava; eu também ria, fazendo aquilo que eles chamam de fair-play*. No domingo, um dia maravilhoso, muito azul, estávamos pescando na praia, quando resolvemos tomar duas lanchas de aluguel para ir até umas ilhas que a gente avistava dali. Logo na primeira ilha, dei sorte e peguei três peixes; mas os outros resolveram tentar a outra, a um quilômetro, ficando de me apanhar depois. Graziela seguiu com a turma. Ali pelas quatro horas, comecei a achar que eles estavam demorando a voltar. Uma fome horrível. Mas você sabe como é esse negócio de pescaria; se o peixe está dando, ninguém se lembra do tempo. Não liguei muito. A ilha não tinha nada, era um pouco parecida com a das Palmas. Aquilo mesmo, umas árvores magras e pedra. O tempo foi passando, o sol esfriou, eu fui ficando desconfiado. Quando anoiteceu, confesso que não gostei. Uma ilhazinha de nada no mar, tudo escuro, num país estrangeiro; e umas aves desagradáveis guinchando em cima de minha cabeça. O frio era de rachar, e eu de calção e blusa. Ajuntei uns gravetos e acendi uma fogueira, a duras penas; para aquecer-me e com a esperança de que algum barco me visse. O fogo não durou nada, madeira úmida. Começou a bater um vento gelado, meu velho, de dar calafrio. Quando achei que eles não voltariam mesmo me deu um ódio de morte. Precisei de berrar todos os palavrões que sabia para me acalmar um pouco. Sabe o que tinha acontecido? Quando as duas lanchas foram buscar o pessoal na outra ilha, Aiken disse para o motorista da segunda, e para Graziela que dera ordem para o primeiro barco ir me buscar.

Em terra, convenceu a turma de que eu, furioso por ter esperado tanto tempo, havia tomado o trem sozinho. Mas só soube disso depois. De qualquer forma, aquilo só podia ser coisa do tal Aiken. Já se imaginou na minha situação?! Ser passado assim pra trás! Me deu tanta raiva que chorei. Consegui arrancar uns galhos de uns arbustos e me cobri mais ou menos com eles, disposto a esperar a madrugada. Mas não aguentei. Ainda por cima, o cigarro acabou. E aqueles pássaros piando e esvoaçando na copa das árvores me punham nervoso. Sem que medisse bem as consequências do que ia fazendo, caminhei até uma rocha, resolvido a sair dali de qualquer jeito. Queria ajustar contas com Aiken o mais depressa possível. Calculei que da ilha à praia devia ser coisa de uns quatro quilômetros. Eu via lá na costa uma luzinha acesa provavelmente do bar onde trocáramos de roupa. Larguei na ilha o caniço e o molinete - uma beleza de molinete -, caí n'água, e fui nadando na direção da luz.

Nado bem mas o mar estava bastante grosso e, pior de tudo, frio feito gelo. Se me desse uma cãibra, adeus brasilzinho. Fui nadando. A luz do bar me guiava. Às vezes, uma onda mal-intencionada me cobria; a luz sumia. Depois a luz acabou sumindo mesmo. Cúmulo do azar: tinham apagado a lâmpada. A cãibra queria chegar, eu boiava um pouco, não tinha estrelas quase, só a Lua, Lua Nova. Mas, boiando, o meu sentido de direção piorava. Outras vezes, achava que nadava para dentro do mar, e não para a praia. Isso era pavoroso. Essa impressão acabou tão forte, que decidi nadar na direção contrária. Uma felicidade louca: exatamente quando ia virar, vi a luz de um carro passando pela costa. Nadei como um cão. Não sei quanto tempo, umas quatro horas. A costa era quase toda de rochedos, só em um pequeno trecho era de seixos. Tive uma sorte tremenda, dei no lugar dos seixos. Cheguei morto, tremendo e batendo queixo como uma caveira. Bati no bar, não apareceu ninguém.

Esmurrei a porta. Apareceu um rapazinho, o vigia, os proprietários já haviam ido embora, ele não tinha a chave; que eu viesse buscar as minhas roupas no dia seguinte.

Tiritando de frio, andei até a estrada e comecei a pedir carona. Um caminhão parou. Quando o chofer me viu, de calção, todo molhado, perguntou: "Where did you come from?" De onde você veio? Dali, respondi, apontando para a ilha. Ah, o sujeito ficou besta, deu-me um aperto de mão. No caminho da cidadezinha, contei-lhe a história toda. O cara ficou no maior entusiasmo, e me levou a um boteco, onde chamou os amigos para dizer tudo que se passara comigo. Gente simples, da melhor qualidade.

Me pagaram uísque, sanduíches, até roupa me arranjaram, e me emprestaram dinheiro para a passagem de volta. Mandei um cheque depois em nome do dono do bar.

- E o tal de Aiken?

- No dia seguinte, Graziela me deu o telefone dele. Marcamos um encontro num lugar ermo. O cabra era bom no boxe. Mas naquela época eu jogava capoeira e, modéstia à parte, era também uma parada amarga. Foi uma das melhores brigas da história dos Estados Unidos, isso eu posso lhe garantir que foi. Não sei quem venceu; de minha parte, fiquei satisfeito. Agora, se eu lhe disser uma coisa, você não vai acreditar. Dessas que só acontecem nos Estados Unidos, Aiken se tornou o meu melhor amigo. Ainda outro dia me escreveu participando o nascimento de seu terceiro filho. Sou até padrinho do primeiro, o Kenneth.

- E a alemãzinha?

- Graziela? É a mulher dele, mãe dos garotos.
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**Fair-play: em inglês significa "jogo limpo, justo, honesto; que segue as regras estabelecidas.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O cego de Ipanema. RJ: Editora do Autor, 1960.