terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Martins Pena (Duguay-Trouin*)

A VINGANÇA


Na manhã do dia 11 de setembro de 1711, os sinos da Igreja da Sé, situada no morro do Castelo, e os tambores dos regimentos de milícias tocaram a rebate. O povo corria atemorizado pelas ruas da cidade; uns dirigiam-se para o Castelo e outras eminências da cidade, e os mais timoratos corriam para as suas casas. Os soldados de milícias, saindo fardados e armados de suas habitações, dirigiam-se com a pressa que lhes permitia o seu armamento, para se reunirem aos seus respectivos corpos. A guarnição portuguesa, desde o dia 10 já estava sobre pé, e se tinha postado no prolongamento da costa, compreendida entre o Forte do Calabouço e o Saco do Alferes. O ruído das armas, os pesados passos dos soldados, o surdo rodar das carretas das peças de artilharia, o som do clarim, tudo enfim atemorizava as almas fracas, ao mesmo tempo que incutia valor nos peitos valentes e destemidos.

O povo, que coroava o morro do Castelo, podia distinguir com facilidade uma esquadra que bordejava fora da barra: era ela a causa do terror espalhado entre os habitantes de São Sebastião. No dia 10, depois do meio-dia, viu-se algumas velas que se dirigiam para a entrada do porto; em pouco tempo pôde-se distinguir a sua nacionalidade. Todos os navios traziam o pavilhão francês.

O governador D. Francisco de Castro, não esperando da parte dos franceses senão hostilidades, já por cobiçarem as inumeráveis riquezas minerais, descobertas nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, já pelo assassinato cometido na pessoa do Almirante Du Clerc, deu ordens para que as fortalezas do porto e a guarnição fizessem todo o possível para impedir a entrada da esquadra inimiga.

Toda a tarde do dia 10, e parte da manhã do dia 11, os franceses bordejaram fora da barra e do alcance da artilharia dos fortes. O seu prudente chefe, o Almirante Duguay-Trouin, não queria aventurar a sorte da esquadra debaixo de seu comando, em um ataque mal dirigido, e onde não visse um feliz êxito; assim esperava ele um vento favorável para poder entrar com vantagem no porto. Às 8 horas da manhã principiou a soprar da parte do sul um vento rijo e forte. Duguay-Trouin faz sinal a toda a sua esquadra para que o siga, e ele, pondo-se à sua frente, dirige a proa de seu navio para a entrada da barra.

As pessoas que viam das iminências e arredores da baía o aspecto hostil que tomava a esquadra inimiga, esperavam com ansiedade o êxito do combate.

As fortalezas e fortes abriram o fogo, porém a esquadra continuava a sua marcha. A capitania foi a primeira que sofreu o fogo dos fortes; uma chuva de balas caía ao redor dela e fazia ferver o mar; os artilheiros franceses, como morrões acesos, esperavam com impaciência o momento do combate. Duguay-Trouin, depois de estudar a posição de toda a sua esquadra, manda fazer sinal para que ela abra o seu fogo, e embocando a sua buzina de comandante, solta estas palavras há muito esperadas: – Fogo! fogo de bombordo e estibordo!!

Uma detonação terrível se ajuntou ao concerto infernal. Toda a esquadra seguiu o exemplo.

– Assim! assim! meu bravos!.. sustentem o fogo; que um turbilhão de fumaça nos oculte à artilharia dos fortes!

Uma fumaça densa e branca ocultou aos olhos dos espectadores a cena do combate; porém eles ainda podiam conhecer que a esquadra continuava a avançar.

Um mancebo de alta estatura, que comandava uma das companhias postadas no Forte do Calabouço, via com impaciência que a esquadra francesa penetrava no porto, e que os navios de guerra portugueses estavam estacionários.

– Ah! que não esteja eu dentro de uma daquelas Naus! Então; enquanto uma só tábua estivesse unida a outra, eu defenderia a entrada do porto!... Agora é que eles principiam a suspender ferro!... mas já é tarde!!... Oh! e eu nada posso!!...

Henrique tinha razão. A esquadra portuguesa foi lenta em seu movimento; e quando ela quis impedir a marcha vitoriosa da esquadra francesa, foi tarde.

Duguay-Trouin atravessou toda a baía, fazendo continuadamente fogo, e com pouco custo apoderou-se da Ilha das Cobras, aonde desembarcou.

Henrique, temendo o bombardeamento da cidade pela esquadra francesa e Fortaleza da Ilha das Cobras, pede licença ao comandante de seu batalhão, por um instante, para ir pôr em segurança a sua querida irmã Henriqueta.

Henriqueta e Henrique moravam em uma casa com frente para o mar e, por conseguinte, exposta ao fogo inimigo. Henrique sobe apressadamente as escadas de sua casa e encontra a sua cara irmã muito assustada. Ela lança-se nos braços de seu irmão e oculta as suas belas faces no peito deste.

Ambos amantes, ambos órfãos, viviam estes dois irmãos. Henrique tinha 16 anos e Henriqueta 10 quando perderam seu pai; a vinda de Henriqueta ao mundo tinha custado a vida à sua mãe... Infelizes!...

Henrique sentia por esta única pessoa de sua família o amor sagrado e puro de um irmão; amor sem tempestade e egoísmo.

– Henrique, diz Henriqueta, eu tenho medo destes tiros!...

– Não tenhas medo.

– Tu queres que eu não tenha medo?! ah! mas eu não posso, eu tremo!

– Sossega, minha cara irmã; vai ajuntar alguma roupa tua para sairmos desta casa.

– Sim, sim eu vou... Vê, vê Henrique, aquele navio que ainda vem fazendo fogo!? – e ela apontava para um dos navios franceses que cobriam a retaguarda da esquadra, e que ainda não tinha lançado ferro.

– Ele se há de cansar. Vai aprontar a tua roupa.

Henriqueta caminhava para seu quarto, quando uma bala, atravessando a parede, passa assobiando por diante dela.

– Ah! Henrique!!...

Ambos ficaram pálidos como a morte. Henrique sustém sua irmã meio desfalecida, e a conduz para uma cadeira.

– Minha irmã, cobra alento, não te assustes.

– Henrique, eu tenho medo!!...

Uma pancada forte e seca fez este voltar a cabeça, e ver ao mesmo tempo uma das janelas, que estavam bem fechadas, fazer-se em mil pedaços, e uma bala, batendo em sua irmã, atirá-la no chão toda ensanguentada!

– Henrique, adeus!... (foram as últimas palavras que proferiu esta desgraçada.) E Henrique?

Oh! eu não posso pintar o seu desespero. Ele levantava a sua irmã em seus braços,

beijava as suas faces já frias, procurava reanimá-las; dirigia preces ao céu, para que lha restituísse; levantava os braços para a esquadra francesa em sinal de maldição... Oh! como não devia ele sofrer!...

– Infames assassinos! dizia ele, infames! ah eu juro pelo frio corpo de minha irmã, de vingar-me! ah! sim, tremei!...

Henrique não pôde por muito tempo resistir ao terrível choque, que feriu repentinamente a mais cara afeição de sua alma, ele caiu desmaiado junto de Henriqueta.

Alguns de seus amigos, procurando-o, acharam-no neste estado e com muito custo conseguiram que ele recuperasse os sentidos. Henrique não deu mais uma só palavra, porém via-se no seu olhar frio e brilhante que uma só ideia o preocupava.

Quando ele acompanhou o corpo de sua irmã para a sua última morada, antes que o túmulo os separasse para sempre, chegou-se para ela, e dando-lhe um beijo, disse-lhe com voz trêmula:

– Henriqueta, tu serás vingada!...

D. Francisco de Castro vendo os franceses senhores da Fortaleza da Ilha das Cobras, retirou-se para Mata-Porcos, e de lá expedia as ordens para a defesa da cidade.

Duguay-Trouin lhe enviou uma nota, pedindo satisfação pela morte de Du Clerc e a entrega de seus assassinos. D. Francisco de Castro recusou ambas as coisas, e então começaram de novo as hostilidades.

A noite de 21 a 22 de setembro foi uma noite de horror. Nuvens de uma cor medonha se estendiam como um manto por todo o firmamento, e de entre as vagas do mar se ouvia um mugido triste e sinistro. Os gritos de – alerta! bom quarto! – que os sentinelas e marinheiros enviavam uns aos outros só interrompiam este lúgubre silêncio.

meia noite, o almirante francês, seguido de grande número dos seus, desce com precaução para uma das praias que cercam a fortaleza, onde já estavam prontos alguns lanchões, e manda embarcar a sua gente, e lhes ordena que tomem por abordagem a esquadra portuguesa.

– A noite está escura, diz o almirante, ela nos favorece. Marinheiros franceses, fazei o vosso dever!

Os lanchões partem; o almirante sobe para a fortaleza e manda apontar toda a sua bateria para a cidade.

As sentinelas postadas nas praias da cidade viam ao longe um rastilho luminoso, causado pela ardentia do mar, e uma sombra negra, que os precedia; porém não ouvindo bulha de remos, não desconfiaram ser surpresa alguma da parte dos inimigos.

Os franceses para melhor ocultarem a sua empresa tinham envolto os remos com pano, e assim caminhavam silenciosamente.

A fortuna teria coroado a sua tentativa, se um forte relâmpago não viesse mostrar aos portugueses o perigo que os ameaçava. Os soldados gritam às armas, e uma descarga de mosquetaria de uma das naus faz retroceder os lanchões franceses. Foi este o sinal do combate.

As baterias da Ilha das Cobras principiaram a fazer fogo sobre a cidade, a esquadra seguiu o exemplo: os navios portugueses atiraram sobre os franceses, porém sem se aproximarem, por estarem estes cobertos com a artilharia da fortaleza. O estampido do trovão, então em todo o seu furor, a luz dos relâmpagos, os tiros de uma numerosa artilharia e os gritos das pessoas, que fugiam espavoridas de suas habitações, faziam um todo horrível.

Todo o povo fugia atropeladamente para fora da cidade; a mesma guarnição abandonou os seus postos: a noite ocultou aos franceses o abandono da cidade.

Uma só pessoa não fugia com os outros: via-se que com infatigável vigor carregava barris do Forte do Calabouço para sua casa: esta pessoa era Henrique.

– Aonde vais, Henrique, gritaram os seus companheiros, que já tinham abandonado as armas para correrem com maior presteza; aonde vais? Vem conosco; daqui a pouco tudo estará reduzido a ruínas e cinzas; vem.

– Não! respondeu Henrique; ainda não vinguei Henriqueta: e ele continuava no seu porfiado trabalho.

* * * * * * * * * * * * * * *

Depois de quatro horas de um continuado fogo, Duguay-Trouin à frente dos seus desembarca na cidade. Um silêncio de morte reinava por toda a parte! As ruas estavam em algumas partes impraticáveis pela queda de edifícios abatidos pelas balas. Aqui e ali viam-se cadáveres de diversas pessoas que a morte tinha surpreendido na sua fuga.

– Saque! Saque!! gritavam os soldados franceses.

Todo o cuidado do almirante foi infrutífero para impedir o saque. Os soldados corriam desenfreados pelas ruas. Um grupo deles tendo no meio Henrique aproxima-se a Duguay-Trouin, e lhe entregam o que eles dizem prisioneiro.

– Como te chamas? pergunta o Almirante.

– Henrique.

– Por que não fugiste com os teus compatriotas?

– Porque amo os franceses; e porque sem mim eles não encontrariam um imenso tesouro.

– Um imenso tesouro! E onde está ele?

– Se vós me prometeis metade, a outra é vossa; e eu também exijo que me leveis para França.

Um sorriso imperceptível correu pelos seus lábios.

– Eu exijo que me acompanhe uma força de pelo menos 50 homens, pois desconfio que haja oposição.

Duguay-Trouin dá ordem a uma companhia que acompanhe Henrique, e recomenda todo o cuidado ao chefe que a comanda, porém ele deixa-se ficar.

– Não vindes, senhor? lhe diz Henrique.

– Não, o capitão que comanda os meus é mais que suficiente para esta expedição. Henrique viu a sua principal vítima escapar-se; mas ele levava 50 atrás de si. Acompanhado dos soldados encaminha-se para a sua casa, depois de ter penetrado no interior, volta-se para o capitão e diz:

– Senhor, mandai que dois soldados guardem a porta, e que todos os outros nos acompanhem.

– Até aqui, replica o capitão, eu vos tenho seguido sem hesitar, porém permiti que eu agora tome algumas precauções. Camarada, continua o capitão voltando-se para um soldado; ficareis ao lado deste homem, e ao menor sinal de traição cravai a vossa espada no seu coração. Agora podeis conduzir-nos.

Henrique, tendo de um lado o capitão e do outro o soldado com a espada desembainhada, e abrindo a porta faz ver uma grande quantidade de barris.

– Eis aqui o tesouro! diz ele.

O capitão desce, e vê com espanto que todos os barris estavam cheios de pólvora.

– Traição! Traição! gritam todos.

O soldado que estava junto de Henrique quer atravessá-lo com a espada; porém este saltando para cima de um barril e puxando por uma pistola diz:

– Henriqueta eu te vingo!! e disparando a pistola para dentro de um dos barris, comunica o fogo a esta quantidade enorme de pólvora!!

Uma forte explosão se ouviu, e uma coluna imensa de fogo, paus e corpos humanos, subiu até às nuvens!!! Toda a cidade tremeu.

Henrique e os 50 homens que o acompanharam todos morreram!

Um mês depois Duguay-Trouin partiu para França levando consigo 4 naus, 6 fragatas, 60 navios do comércio português e 600 mil cruzados; porém não gozou de todas estas presas feitas no Brasil. Uma grande tempestade destroçou, antes de chegar à França, grande parte da sua esquadra.

A Providência castigou a França por ter querido invadir a América...
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* René Trouin, melhor conhecido como René Duguay-Trouin mas também grafado como Du Guay-Trouin (Saint-Malo, 10 de junho de 1673 — Paris, 27 de setembro de 1736), foi um corsário francês. Alcançou o posto de almirante e de comandante na Ordem de São Luís.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Adega de Versos 65: Carolina Ramos

 

Raul Pompéia (Maladetto Francesco!)

Houvera dois dias de chuvarada. As ruas tinham o calçamento lavado. Pelas sarjetas inundadas corria um burburinho d'água em direção aos esgotos. Os lampiões estendiam pela. calçada panos de fogo, enquanto as chamas de gás, engaioladas em suas caixas de vidro, debatiam-se doidamente a cada rajada... E o vento passava violento, furtando ao céu turbilhões de nevoeiro e guarda-chuvas aos transeuntes...

Francesco, que andava adoentado, havia dias, foi para a casa nessa noite muito mais cedo que de costume.

Para a casa... expliquemos.

Na rua... há uma portinha.

Isto é a boca de um corredor apertado entre altos muros, pelos quais escorre o sol branco e ardente do verão, ou, conforme o tempo, a chuva das invernadas, que os borra de luxuriantes paisagens feitas a capricho pela vegetação da umidade.

Passam por aí a viração encanada e uma multidão de sujeitos maltrapilhos, que chegam geralmente à tardinha, para saírem, no dia seguinte, à hora em que vêm os lábios rosados da. manhã osculando os cirros fugitivos do arrebol.

Estes indivíduos, com mais algumas mulheres que vivem a lavar roupas no pátio em que termina o corredor, são os inquilinos de umas coisas chamadas quartos, feitos de tabuado, onde o zum-zum das intriguinhas miseráveis e a algazarra das disputas dos moradores justificam o nome de cortiço que se dá às habitações da espécie. O cortiço está à esquerda do pátio das lavadeiras, no fim do corredor.

Nesta passagem entrou Francesco.

Havia uma lâmpada de querosene fixada na parede, à entrada do pátio. Apesar dos esforços dessa pobre lâmpada, cuja luz não conseguia varar a opacidade das suas três faces de vidro, não estava claro o lugar, Francesco lá foi, vacilante e cambaleando de tonteira.

Em um dos quartos do cortiço desapareceu.

Francesco Picolo era um pobre napolitano que nunca conhecera os pais e que viera para ao Brasil de envolta com um aluvião de colonos italianos importados para o Rio. Tinha seis ou sete anos; era louro como uma dessas figurinhas de Murilo que há espalhadas pela tela da Conceição e notavam-se-lhe abaixo dos olhos grandes e alegres, duas manchas róseas, destacadas na alvura pálida e quase sempre suja do semblante. Era miúdo e vivo, de uma vivacidade risonha e galhofeira.

Havia um ano que Francesco residia no Brasil, vivendo na companhia de Giuseppe de tal, um italiano maduro, focinho de calabrês, que viera de Nápoles com ele e se arvorara em seu protetor. Este protetor esperava os pequeninos lucros que o menino auferia de sua atividade e dava-lhe em paga maus-tratos.

Francesco vendia gazetas; e anunciava com tal graça a sua mercadoria, que era um gosto vê-lo na rua apregoando:

— A gazeta! a gazeta!... com a folha erguida na mão direita em gesto de Pedro I do Rocio. Quem o via, tão criança, tão gracioso e tão miserável, não resistia e... lia a Gazeta da Tarde ou a de Notícias do dia. Quando, à noite, esgotava-se a sacola de couro preto dos jornais, entornava ele a sua bolsinha num canto retirado do passeio, ou em alguma soleira, onde desse luz, e punha-se a fazer suas contas. Separava o cobre, com que devia comprar a 30rs. as folhas do dia seguinte; contava os lucros da venda, e exultava, se o ganho subia a 400rs; porque então podia esconder à ganância de Giuseppe dois ou três vinténs.

Estes vinténs furtados Francesco os arriscava na vermeIhinha, apostando sempre pela coroa das moedas atiradas ao ar. Seguia uma sua máxima: quase sempre ganha quem aposta pelas coroas. E ele ganhava frequentemente. Esta fortuna fazia raiva aos garotinhos seus parceiros, de sorte que quase nunca o jogo acabava, senão pela fuga de Francesco Picolo, adiante da perseguição dos outros, que queriam tomar-lhe os ganhos, abusando de sua superioridade do tamanho e de força. Mas Francesco era ligeiro e sempre escapava.

Não era a vermelhinha a única distração do nosso birichino*; o pequeno Picolo tinha outros costumes da rua. Pendurava-se à traseira dos bondes, para enfurecer os condutores, vaiava a polícia; protestava contra as prisões gritando à barba dos urbanos: não pode! Assíduo como um repórter a todos esses grandes acontecimentos que enchem diariamente o noticiário dos jornais, não havia suicídio ou assassinato em cujo teatro não fosse vista a sua carinha loura, fitando os circunstantes ou a vítima, com o seu olhar azul, largo e compassivo. Não perdia incêndios. Era o primeiro a comparecer. Aproveitava a ocasião para brincar um pouco com a morte, mostrando-lhe de perto a sua vidinha alegre e miserável; arriscava-se dando risadas; expunha-se por pândega. E fazia tudo e tudo passava desapercebido. Pequeno demais para ser visto não encontrava embargos; barafustava por qualquer orifício e saltava em pleno perigo. A morte era o seu Polichinelo; Francesco brincava sem tropeços.

Muita vez prestou ele um bom serviço; em compensação, não lhe era raro levar do incêndio uma escoriação no braço, na cabeça, na perna, ou uma queimadura no pé. Sabem o que fazia? Ia fazer letras como as dos jornais ou riscar caricaturas pelas paredes caiadas de fresco, com o sangue das arranhaduras. O resto ficava por conta do seu médico: o tempo.

Tinha ainda o pequeno napolitano o costume de aproveitar os tumultos das festas populares, para furtar lenços e o mais que fosse possível. Uma vez furtou um grande guarda-chuva de alpaca burguesa, que o fez rir a perder. Este furto, mais incômodo que a famosa raposa do espartano, mereceu-lhe um puxão de orelhas do primeiro guarda urbano que o viu. O respeitável zelador da ordem pública deu ao menino o castigo e ficou-se com o guarda-chuva.

— Eu o deixo pra você, gritou-lhe Francesco à distância, porque é muito grande para mim.

E o urbano guardou conscienciosamente o objeto para si. Furtava o ladrão...

Não eram as façanhas dos incêndios, como não eram as escamoteações de prestidigitador da escola de Licurgo, o cúmulo do arrojo do menino.

Ia muito além. Ninguém imagina até onde. Pensam que se trata de pedras arremessadas à vidraças do chefe de policia ou outra coisa, como trepar no eixo de um carro de Nosso-Pai para bulir com o vigário pela abertura posterior do coupê?...

Nada, nada... O arrojo ia adiante. Assim que Francesco Picolo, do meio da rua do Ouvidor, ouvia, lá para as bandas da rua Direita, certo tropear de cavalaria, com a nota de um clarim, destacando-se por cima, quando lhe passavam por diante dois redondos ginetes de dorso em arco sob o peso de lustrosos e ofegantes caboclos, encasquetados em luzidas barretínas, espadas nuas à destra...

Ele já sabia. Aí vinha o seu homem.

Francesca abria as magras perninhas, firmava-se nelas como um Rodes em miniatura e esperava de olho vivo e gazetas ao sovaco.

Em pouco, chegava um grande carro a trote largo. No carro vinha um senhor de cabelos brancos e branquíssimas barbas, enfeixadas numas bochechas amplas e tintas de rosa. Toda a gente dobrava-se em zumbaias para aquele velho, a quem devia doer a espinha, tantos eram os cumprimentos que fazia para a rua... Pois ele não; Francesco Picolo era rebelde. Quando o velho do carro passava por ele e cabeceava-lhe um dos tais cumprimentos... Era tempo. Francesco, com o seu gorro no alto da cabeça, arregaçava as ventas para o velho e mostrava-lhe a língua insolentemente. Depois da careta, dava uma risada e saía a gritar:

— A gazeta! a gazeta! 40 réis!

Esta sua originalidade não degenerou, até que uma vez... Não vinha só, o velho de barbas brancas. Ao lado dele sentava-se uma velhinha de vestido roxo, os cabelos empastados à testa. Tinha um sorriso bom aquela velhinha.

Quando o carro passou por Francesco, o birrichino fez a costumada careta. A velha sorriu docemente para ele e demorou o olhar, até que o permitiu a janela do carro.

Francesco ficou gostando daquela pobre velha... Olhou para ele com tanta suavidade!... Houve uma revolução naquele pequenino cérebro. O revolucionário foi o coração.

Francesco tomou uma resolução: quando de então em diante passasse por ele o homem de barbas brancas, ele tiraria o seu gorro de veludo sovado ao marido daquela boa velha que sorrira para ele...

Apesar de seus costumes da praça pública, Francesco Picolo não era ainda um menino pervertido, mas o que nele predominava mais do que qualquer traço fisionômico do caráter era a bondade do coração.

A prova disso tinha-se, eloquente, indiscutível, em uma tristeza profunda, que de tempos a tempos se apoderava do espírito do pobre menino.

Aquela almazinha, feita de garotagem inocente e risonha, tinha momentos de melancolia contraditórios com ela. Faziam-lhe o efeito de falenas voando ao meio-dia.

Essa tristeza, que podia parecer a abstração idiota das crianças enfermas, tinha uma explicação.

Explicava-se por uma história contada por Francesco a uma boa mulher que lhe dera remédios num hospital, onde ele estivera, havia meses. Era uma história pequenina, delicada e triste, uma nênia escrita numa pétala de rosa. Ei-la:

Ainda na Itália, Francesco Picolo tivera uma irmãzinha. Em Nápoles. Antonieta era mais criança do que ele... e tão bonitinha!... Como ele se lembra!... E como se lembra daquela noite de frio!... De frio e de morte; tudo o mesmo...

Ele e Antonieta vagueavam a esmolar longe, muito longe da mansarda onde os recebiam caridosamente para dormir, aos pobrezinhos que não tinham pais... Era tarde e caía muita neve. Umas toalhas brancas assustadoras estendiam-se pelas cumeeiras dos edifícios e pelas ruas.

Ia a noite se adiantando; urgia escolher um abrigo para a noitada, um canto aonde não chegasse a luz nem o olho da polícia.

Os meninos não gastaram muito tempo a procurar; que mesmo não o permitia o cansaço. Sentaram-se a uma soleira, num ângulo sombrio. Abraçaram-se as pobres crianças, apertaram-se, para que cada um aquecesse ao outro com a temperatura do próprio sangue e fecharam as pálpebras enregeladas e sonolentas.

— Que frio! murmurava Antonieta, tiritando.

Quando o dia seguinte se difundiu cor de leite por cima da espessura das neblinas do inverno, Francesco foi despertado pelo dono da loja a cuja porta dormira com a irmã. Reconheceu então, o desgraçado, que cingia nos braços um corpozinho branco, hirto e gelado.

Esse corpozinho foi-lhe arrancado pela polícia e...

Francesco não tinha mais irmã. O dono da loja, compadecido dos soluços que sufocavam o pequeno mendigo, acolheu-o dentro da casa.

Passados três dias, fê-lo embarcar-se com os colonos que iam partir para o Brasil.

— Além do Atlântico, não há inverno. No Brasil o frio não assassina e o pão não falta. Vai criança, e os olhos de Deus não te percam.

Trazido pelas auras desta bênção, chegou Francesco Picolo à América.

Nessa partida estava o segredo da sua tristeza.

Fora disso era um refinado traquinas e o mais ativo vendedor de folhas que se conhecia na rua do Ouvidor.

Giuseppe, o generoso protetor de Francesco, dormia cedo. Quando não passava misteriosamente a noite fora de casa, às oito horas, quem lhe entrasse no quarto vê-lo-ia preguiçosamente estendido numa maca improvisada sobre duas caixas.

Na noite em que Francesco voltou mais cedo, já o malandro roncava na maca. A entrada do menino fez rumor.

— Quem entra? perguntou Giuseppe com uma voz de ébrio, e remexendo-se todo na cama.

— Sou eu, disse o menino.

— Vamos fazer nossas contas. Chegue-se! convidou o dorminhoco erguendo-se a meio, com a mão a esfregar os olhos.

Francesco aproximou-se, com uns passos pequenos, vacilantes. O coração batia-lhe forte e ele sentia na fronte o calor de um diadema de fogo.

A luz do corredor vinha enviesada pelo quarto dentro. Giuseppe notou a dificuldade dos passos do pequeno.

— Então vens bêbado, Francesco? exclamou ele.

O menino não deu resposta.

— Aposto que não trazes hoje nem um vintém...

Francesco sem dizer palavra, tirou a bolsa de couro que trazia pendente do ombro e colocou-a sobre a cama do protetor.

Imediatamente em seguida, foi estender-se sobre um montão de roupas usadas, que jaziam ali para um canto.

Depois de recolher-se um outro italiano da laia do protetor de Francesco e que o auxiliava no pagamento dos poucos mil-réis do aluguel do cômodo, trancou-se a porta deste. A luz do corredor ficou lá fora e o quarto entregue às exalações da imundície que nele reinava e às trevas.

Começou-se então a ouvir uns gemidos apertados, uns arquejos contidos.

Passado algum tempo, bradou uma voz sonora:

— Até que horas teremos essa música?

A música durou pouco.

Minutos mais tarde o gemido calou-se; o arquejo foi substituído por um respirar violento, opresso, sibilante, até que mesmo estes últimos acordes da música se abafaram.

No dia seguinte, abriu-se a porta e a manhã entrou.

Um dos italianos foi para a rua e o outro, o protetor de Francesco, tendo se acordado também, viu o menino ainda a dormir e pulou da maca para despertá-lo. Giuseppe estava furioso. Pois aquele tratante ainda rolava na cama!...

Às cinco horas estavam já longe, as folhas estavam na rua a vender-se e o preguiçoso do Francesco dormia ainda!...

— Ó Francesco! Francesco!

O patife nem se movia.

Giuseppe atirou-lhe um valente pontapé.

— O Francesco!...

O menino, que se acomodara no alto do montão, rodou até aos pés de Giuseppe.

— Estará morto, este diabo? gritava ele com espanto.

Estava morto, sim...

Francesco Picolo morrera durante a noite.

Isto era um transtorno para os negócios de Giuseppe.

Nada menos que um desfalque de quatrocentos réis diários.

— Maladetto Francesco! exclamou ele lançando ao pequeno morto um olhar raivoso, maladetto Francesco!

Não passou disto a oração fúnebre do pobre birichino. Mais compassivo esteve o sol que penetrou no quarto e amortalhar aquele cadáver num raio generoso, vivificante.

Nessa hora, uns sinos ao longe rebentavam em alegres tintilações.

E havia no espaço uma dessas manhãs de cidade, luminosas, festivas que o beatério enche de badaladas e o sol inunda de claridade e de azul.
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* Birichino = rapaz vivaz e atrevido (geralmente dito com indisfarçável complacência).
Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXV


É UM CAMPO VERDE E VASTO
 
É um campo verde e vasto,
        Sozinho sem saber,
De vagos gados pasto,
         Sem águas a correr.

Só campo, só sossego,
        Só solidão calada.
Olho-o, e nada nego
        E não afirmo nada.

Aqui em mim me exalço
        No meu fiel torpor.
O bem é pouco e falso,
        O mal é erro e dor.

Agir é não ter casa,
        Pensar é nada Ter.
Aqui nem luzes ou asa
         Nem razão para a haver.

E um vago sono desce
        Só por não ter razão,
E o mundo alheio esquece
         À vista e ao coração.

Torpor que alastra e excede
        O campo e o gado e os ver.
A alma nada pede
         E o corpo nada quer.

Feliz sabor de nada,
         Inconsciência do mundo,
Aqui sem porto ou estrada,
         Nem horizonte no fundo.
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EU ME RESIGNO
 
Eu me resigno.
Há no alto da montanha
Um penhasco saído,
Que, visto de onde toda coisa é estranha,
Deste vale escondido,
Parece posto ali para o não termos,
Para que,  vendo-o ali,
Nos contentemos só com o aí vermos
No nosso eterno aqui...

Eu me resigno.
Esse penhasco agudo
Talvez alcançarão
Os que na força de irem põe m tudo.
De teu próprio silêncio nulo e mudo,
Não vás, meu coração.
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EU TENHO IDEIAS E RAZÕES
 
Eu tenho ideias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.
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EXÍGUA LÂMPADA TRANQUILA
 
Exígua lâmpada tranquila,
Quem te alumia e me dá luz,
Entre quem és e eu sou oscila.
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FALHEI. OS ASTROS SEGUEM SEU CAMINHO
 
Falhei. Os astros seguem seu caminho.
Minha alma, outrora um universo meu,
É hoje, sei, um lúgubre escaninho
De consciência sob a morte e o céu.
Falhei. Quem sou vivi só de supô-lo.
O que tive por meu ou por haver
Fica sempre entre um polo e o outro polo
Do que nunca há de pertencer.

Falhei. Enfim! Consegui ser quem sou,
O que é já nada, com a lenha velha
Onde, pois valho só quando me dou,
Pegarei facilmente uma centelha.
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FLOR QUE NÃO DURA
 
Flor que não dura
Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.

Não te perdi
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi
Onde não sou senão a terra e o céu.

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FLUI, INDECISO NA BRUMA
 
Flui, indeciso na bruma,
Mais do que a bruma indeciso,
Um ser que é coisa a achar
E a quem nada é preciso.

Quer somente consistir
No nada que o cerca ao ser,
Um começo de existir
Que acabou antes de o Ter.

É o sentido que existe
Na aragem que mal se sente
E cuja essência consiste
Em passar incertamente.
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GLOSAS
 
Toda a obra é vã, e vã a obra toda.
O vento vão, que as folhas vãs enroda,
Figura nosso esforço e nosso estado.
O dado e o feito, ambos os dá o Fado.

Sereno, acima de ti mesmo, fita
A possibilidade erma e infinita
De onde o real emerge inutilmente,
E cala, e só para pensares sente.

Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

Rimos, choramos através da vida.
Uma coisa é uma cara contraída
E a outra uma água com um leve sal,
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.

Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso,  nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.

Minha Estante de Livros (Estórias da Casa Velha da Ponte, de Cora Coralina)


Decifrar os caminhos da vida de Cora Coralina é adentrar o espaço da memória da cidade de Goiás no estado de Goiás, das suas representações e da complexidade dos deslocamentos entre o passado e o presente da cultura que a constituiu. Falar da obra de Cora Coralina é estabelecer uma conexão forte deste passado, pois ele constituiu a chave fundamental para entender a sua trajetória pessoal e de poetisa.

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas chamada de Aninha e pseudônimo Cora Coralina, perdeu o pai aos dois meses de idade e, após este falecimento, sua mãe casou-se novamente. Cresceu no período que corresponde ao fim da Monarquia e a instalação da República no Brasil e foi criada entre nove mulheres.

A vida de Aninha pode ser dividida em três grandes fases: a infância e juventude vivida em Goiás (de 1889 a 1911); o período do casamento, passado em São Paulo (de 1911 a 1955) e a fase da vida madura, na qual Ana voltou a viver em Goiás (de 1956 até o seu falecimento em 1985).

A infância de Aninha transcorreu em um período de restrições materiais, decorrente da decadência da mineração, da abolição da escravidão, das ausências e de lutas pela sobrevivência econômica, social e moral da Villa Boa de Goyaz. Uma época de forte disciplina entre os seus habitantes, herança do período colonial, escravista.

A cidade de Goiás, Patrimônio Mundial e Cultural da Humanidade é o grande personagem dos livros de Cora Coralina. A cidade é apresentada e re-inventada através de uma deliciosa viagem no tempo, promovida pelo texto poético, que inclui simplicidade, odores, cores, sentidos e o movimento cotidiano da vida tranquila e saborosa, coisas boas que perpassam toda a trajetória da sua obra.

O livro Estórias da Casa Velha da Ponte é o quarto dos seus dez livros. Publicado após a morte da escritora possui 109 páginas e transporta o leitor através de dezoito contos pelos mistérios da “Procissão das Almas”, sensações de “… depená o frango na casa da vizinha” e muitos causos da cidade de Goiás. Seus personagens e tradições perpassam as gerações desde o século XIX e a leitura encanta e possibilita uma viagem pelo interior de um Brasil pouco conhecido, “velho documentário de passados tempos, vertente de estórias e de lendas”.

Cora Coralina conhece como ninguém histórias de sua gente e se insere no grupo de narradores clássicos que, segundo W. Benjamim, sem sair de seu país conhece suas histórias e tradições. Mesmo tendo vivido várias décadas longe da terra natal ela não consegue desvencilhar-se da tradição familiar de contadores de histórias e assume a tarefa de narrar à história de sua gente, dos reinos de Goiás, “antes que o tempo passe tudo a raso” . A partir de então, passa a cantar e contar notícias suas e dos outros.

Como toda residência de interior habitada muito tempo pela mesma família, a casa velha da ponte vivia cheia de histórias. Construída "em pedra, madeirame e barro", com as suas "folhas de portas pesadas de árvores fortes descomunais serradas a mão", a sua senzala desativada e seus imensos portais, a própria casa já era uma parte viva da história da cidade de Goiás Velho.

As suas paredes presenciaram histórias de amor e suicídios de escravos, enquanto lagartixas buscavam as brechas para se aquecer. Um dos antigos proprietários, recebedor dos quintos reais, tinha se apossado do dinheiro do Estado. Para fugir da prisão, teria ocultado no porão moedas e barras de ouro, dando origem assim à lenda do tesouro enterrado. Mais tarde, em época de esplendor, a família só "almoçava sua gorda feijoada goiana em pratos e talheres de ouro".

Tradições como essas embalaram a infância de Cora Coralina, criada na velha casa, já então decadente, "cerradas portas e janelas, resguardando de olhar estranho o desmazelo e a pobreza que se instalavam". Essas histórias domésticas e outras vividas na cidade, que impressionavam a menina, são o material vivo e humano do livro, registro de velhas tradições e, ao mesmo tempo, retrato fiel e pitoresco de uma comunidade do Brasil Central no final do século XIX e início do século XX, com as suas prostitutas segregadas, vivendo em becos, capazes de valentias, como a narrada no delicioso Minga, zoio de prata, os famosos raptos de donzelas (“Cortar em Riba do Rasto”), tão frequentes no Brasil antigo, as solteironas (“Quadrinhos da Vida”).

Nem faltam as estórias de assombração e assombramento (“Procissão das Almas”, “O Caso de Mana”), sempre tão vivas no imaginário popular, narradas com aquela insuperável simplicidade e leveza de Cora Coralina, encanto de seus versos, encanto de sua prosa.

Na escrita coralineana se confirma o autobiográfico a partir do título e se efetiva a cada momento do relato. A narradora-personagem traz informações que são passíveis de verificação, outras fazem parte do imaginário popular que ao serem repassadas de geração para geração adquirem feição meio lendária. A questão do ouro enterrado nas paredes da Casa Velha da Ponte foi fato que se popularizou e mesmo Cora Coralina não se furtou à curiosidade de mandar escavar o velho porão em busca do ouro perdido. A Casa Velha da Ponte foi adquirida quando do nascimento de Helena, segunda irmã mais velha de Cora Coralina, pelo seu pai, o Desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães, no século XIX.

A Casa Velha da Ponte é elemento provocador de retorno ao passado, de protagonista ela passa a mera coadjuvante dos fatos e dos acontecimentos que fazem parte de sua história. Eles, sem pedirem licença, invadem a cena narrativa e centralizam o motivo da enunciação, depois novamente a Casa volta a ocupar seu espaço e demarca a sua existência em três esferas temporais: no presente, no passado e no mítico.

domingo, 9 de janeiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 25: Vera Vargas

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 41 –

Nossos antepassados certamente sabiam apreciar melhor a vida em relação aos costumes e princípios que temos hoje. Mas se fizemos algo de errado, sempre há tempo para mudar.

Na vida desenfreada dos nossos dias, ficaram de lado o lazer, a recreação, o ócio criativo. Essa é a vida a ser vivida? Inflacionamos os dias com tantos afazeres - até os dispensáveis -, caímos na roda-viva da correria, semeamos o insensível para todo o lado, bestificamos os bons dias, ironizando a vida da própria vida.

Em recente livro o humanista Juan Arsuaga afirmou literalmente que "a vida não pode ser trabalhar a semana inteira e ir ao supermercado no sábado. Essa vida não é humana. Deve haver algo mais, e essa outra coisa se chama cultura. É a música, a poesia, a natureza, a beleza".

E acrescenta o também antropólogo:

"Apreciar a beleza é uma questão de educação e sensibilidade. Procure o que é belo na vida. Há muita beleza".

A missão é trabalhar com afinco, mas viver a vida em plenitude.

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Lima Barreto (Coisas de "mafuá")

 - Mas, onde esteve você, Jaime?

- Onde estive?

- Sim! Onde você esteve?

- Estive no xadrez.

- Como?

- Por causa de você.

- Por minha causa? Explique-se, vá!

- Desde que você se meteu como barraqueiro do imponente Bento, consultor técnico do “mafuá" (*feira, mercado) do padre A, que o azar me persegue.

- Então eu havia de deixar de ganhar uns "cobres"?

- Não sei! A verdade, porém, é que essas relações entre você, Bento e "mafuá" trouxeram-me urucubaca. Não se lembra você da questão do pau?

- Isto foi há tanto tempo!... Demais o Capitão Bento nada tinha a ver com o caso. Ele só pagou para derrubar a arvore; mas você...

- Vendi o pau, para lenha, é verdade. Uma coisa à toa de que você fez um “lelé” medonho e, por causa, quase nós brigamos.

- Mas o capitão não tinha nada com o caso.

- À vista de todos, não! Mas foi o azar dele que envenenou a questão.

- Qual, azar! Qual nada! O capitão tem os seus "quandos" e não há negócios que se meta, que não lhe renda bastante.

- Isto é para ele, mas para os outros que se metem com ele, sempre a roda desanda.

- Comigo não se tem dado isso.

- Como não?

- Sim. Tenho ganho "algum" - como posso me queixar?

- Grande coisa! O dinheiro que ele te dá, não serve pra nada. Mal vem, logo vai.

- A culpa é minha que o gasto, mas do que não é minha culpa - fique você sabendo - é que você tenha sido metido no xadrez.

- Pois foi. Domingo, anteontem, não fui ao "mafuá" de você?

- Meu, não! É do padre ou da irmandade.

- De você, do padre, da irmandade, do Bento ou de quem quer que seja, o certo é que lá fui e caí na asneira de jogar na tua barraca.

- Homessa! Você foi até feliz!... Tirou uma galinha! Não foi?

- Tirei! É verdade, mas a galinha do "mafuá" foi que me levou a visitar o xadrez.

- Qual o quê!

- Foi, Pena! Eu não tirei a "indrômita" à última hora?

- Tirou, e não vi você mais.

- Tentei passá-la ao Bento, por três mil-réis, como era costume, mas ele não quis aceitar.

- Por força! A galinha já tinha sido resgatada três ou quatro vezes, não ficava bem...

- A questão, porém, não é essa. Comprei A Noite, embrulhei nela a galinha e tomei o bonde para Madureira. No meio da viagem, o bicho começou a cacarejar. Tentei acalmar o animal, ele porém, não estava pelos autos e continuou: "crá-crá-cá, cró-cró-có". Os passageiros caem na gargalhada, e o condutor me põe fora do bonde e, tenho eu que acabar a viagem a pé.

- Até aí...

- Espere. O papel estava despedaçado e, também, para maior comodidade, resolvi carregar a galinha pelos pés. Ia assim, quando me surge pela frente a "canoa" dos agentes. Suspeitaram da proveniência da galinha, não quiseram acreditar que eu a tivesse tirado do "mafuá". E, sem mais aquela, fui levado para o distrito e metido no xadrez, como ladrão de galinheiros. Iria para a "central", para a colônia, se não fosse ter aparecido o caro Bernardino que me conhecia, e afiançou que eu não era vasculhador de quintais, à alta hora da noite.

- Mas que tem isso com o “mafuá"?

- Muita coisa: vocês deviam fazer a coisa clara. Dar logo o dinheiro de prêmio e não galinhas, bodes, carneiros, patos e outros bicharocos que, carregados alta noite, fazem a polícia tome um qualquer por ladrão... Eis aí!

 Fonte:
Lima Barreto. Marginália (obra póstuma), 1953. Crônica de 1921.

VI Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul/RS (Trovas Premiadas) Nacional Veteranos


Tema: Jorge Amado


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VENCEDORES
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1
Jorge Amado, vida e glória,
bela herança nos deixou;
nas letras, honrou a história,
na história, a vida gravou.
Maria Helena Ururahy Campos da Fonseca
Angra dos Reis – RJ


2
Jorge Amado nos encanta:
sua obra, vista a fundo,
é ponte que se levanta
de Itabuna para o mundo!
José Ouverney
Pindamonhangaba – SP
 
3

Dona Flor ou Gabriela,
personagens geniais
que em cada história revela
Jorge, dentre os imortais.
Márcia Jaber
Juiz de Fora – MG

4  

- Jorge Amado, um literato,
voava quando escrevia,
compondo um lindo retrato
das tradições da Bahia.
Marciano Batista de Medeiros  
Parnamirim – RN


5 (?)
 Com fardas de general
a mãe-de-santo previa...
Hoje, em fardão de "Imortal"
te vejo na "Academia"
  Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio das Ostras - RJ

 
6
Revelou grandes encantos
deste solo abençoado!
Terra de Todos os Santos!
Bahia de Jorge Amado!
Fernando Antônio Belino
Sete Lágoas – MG

 
7
Cheiro de cravo e canela,
gosto de amor delicado:
temperos de Gabriela
aos olhos de Jorge Amado.
Elizabeth Aparecida de Castro Mendonça Fontes
Joinville – SC

8

Versátil, Jorge semeia
talento em qualquer ação;
seu legado é grande teia
viva em cada geração.
Marina Caraline de Almeida Carvalhal
Itaperuna/RJ
 
9

- Um mundo igual à Bahia:
alegre, livre, encantado.
Era por essa utopia
que lutava Jorge Amado.
A. A. de Assis
Maringá – PR


10
Casa do Rio Vermelho,
 de Jorge Amado foi lar.
Em teu portal, me ajoelho,
como se fosse um altar.
 Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora - MG


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MENÇÕES HONROSAS
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1
Disse um dia Jorge Amado
que não morre a trova e quem
faz da trova seu legado
eterniza o amor e o bem.
Jerson Lima de Brito
Porto Velho – RO


2
Tendo um pincel temperado
com cravo, sal e canela,
Jorge pintou seu pecado
no corpo de Gabriela.
Francisco Gabriel
Natal – RN

3

Nome forte abençoado,
codinome de um guerreiro;
no mundo todo aclamado:
Jorge Amado, Brasileiro!
Paulo Marcelo Ribeiro de Araújo
Estrela Dalva – MG

 4

 Em Salvador, da Bahia,
Jorge Amado devaneia.          
- Cada conflito o escrevia:
eis “Os Capitães da Areia”!
Ari Santos Campos
Camboriú – SC

5

Escritor sempre inspirado,
hoje orgulho nacional,
sem dúvida é Jorge Amado
pela sua obra imortal.
Antônio Francisco Pereira
Belo Horizonte – MG


6
Cansado dos ares nobres,
Jorge nas ruas vagueia
na pele dos “anjos pobres”
de seus capitães de areia.
Francisco Gabriel
Natal - RN


7
Autor de livro famoso,
de um enredo bem tramado,
ouso afirmar, orgulhoso,
que Jorge tornou-se... amado...
Antonio Colavite Filho
Santos – SP
 
8

 O grande autor Jorge Amado,
com obras de encantos mil,
nos deixou em seu legado
um retrato do Brasil!
Renata Paccola
São Paulo – SP


9
Jorge Amado e ninguém mais
foi tão grande observador...
tanto que disse: imortais
são a trova e o trovador.
Mário Moura Marinho
Sorriso – MT

10

Gabriela, Dona Flor,
entre outras, teu dom fecundo,
Jorge Amado, és escritor
que mostra a Bahia ao mundo.
Cezar Defilippo
Astolfo Dutra – MG


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MENÇÕES ESPECIAIS
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1
Para ter, em profusão,
um talento bem regado,
quisera, em meu coração,
ter o amor de Jorge Amado!
Elias Pescador
São Paulo – SP

2

Os "quitutes africanos",
já falava Jorge Amado,
hoje se dizem baianos.
Que delicioso bocado!
Luis Parellada Ruiz
Londrina – PR

3

Talento que chegou cedo,
entre lutas impossíveis,
Jorge Amado traça o enredo
dos romances mais incríveis.
Márcia Jaber
Juiz de Fora – MG
 
4

Jorge Amado, realista,
 entre risos e tristeza,
 relata a vida hedonista
 dos ricos sobre a pobreza!
Sílvia Alice de Carvalho Soares
Angra dos Reis - RJ


5
É Jorge de 'Gabriela'
que no romance, eu diria,
faz da Cultura a janela
pra iluminar a Bahia!
Maria Dulce de Lima Pessoa
Tabira – PE

6

Pôde o mundo conhecer
da Bahia um bom bocado,
quando o mundo pôs-se a ler
o mundo de Jorge Amado!...
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo – SP
 
7

O seu nome é Jorge Amado,
grande escritor brasileiro
Partiu deixando o legado
e saudade ao mundo inteiro!
Danusa Almeida
Campos dos Goytacazes – RJ

8

Jorge Amado ao compilar
cores, cheiros e magia
propôs ao mundo escutar
a voz forte da Bahia.
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba – SP
 
9

 Devoto do Candomblé,
inspirou-se em Orixás;
Amado, esse homem de fé,
foi um amigo veraz!
 Glória Tabet Marson
São José dos Campos - SP

10 (?)

Voltou, baiano dileto,
pra reatar o que ficou!...
Não houve exílio completo,
tua alma, ninguém levou.
Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio das Ostras - RJ


Fonte:
Resultado enviado pela presidente da Seção, Jaqueline Machado.

Aluísio de Azevedo (Polítipo)


Suicidou-se anteontem o meu triste amigo Boaventura da Costa.

Pobre Boaventura! Jamais o caiporismo encontrou asilo tão cômodo para as suas traiçoeiras manobras como naquele corpinho dele, arqueado e seco, cuja exiguidade física, em contraste com a rara grandeza de sua alma, muita vez me levou a pensar seriamente na injustiça dos céus e na desequilibrada desigualdade das coisas cá da terra.

Não conheci ainda criatura de melhor coração, nem de pior estrela. Possuía o desgraçado os mais formosos dotes morais de que é susceptível um animal da nossa espécie, escondidos, porém, na mais ingrata e comprometedora figura que até hoje viram meus olhos por entre a intérmina cadeia dos tipos ridículos.

O livro era excelente, mas a encadernação detestável.

Imagine-se um homenzinho de cinco pés (*1,52 m) de altura sobre um de largo, com uma grande cabeça feia, quase sem testa, olhos fundos, pequenos e descabelado; nariz de feitio duvidoso, boca sem expressão, gestos vulgares, nenhum sinal de barba, braços curtos, peito apertado e pernas arqueadas; e ter-se-á uma ideia do tipo do meu malogrado amigo.

Tipo destinado a perder-se na multidão, mas que a cada instante se destacava justamente pela sua extraordinária vulgaridade; tipo sem nenhum traço individual, sem uma nota própria, mas que por isso mesmo se fazia singular e apontado; tipo cuja fisionomia ninguém conseguia reter na memória, mas que todos supunham conhecer ou já ter visto em alguma parte; tipo a que homem algum, nem mesmo aqueles a quem o infeliz, levado pelos impulsos generosos de sua alma, prestava com sacrifício os mais galantes obséquios, jamais encarou sem uma instintiva e secreta ponta de desconfiança.

Se em qualquer conflito, na rua, num teatro, no café ou no bonde, era uma senhora desacatada, ou um velho vítima de alguma violência, ou uma criança batida por alguém mais forte do que ela, Boaventura tomava logo as dores pela parte fraca, revoltava-se indignado, castigava com palavras enérgicas o culpado; mas ninguém, ninguém lhe atribuía a paternidade de ação tão generosa. Ao passo que, quando em sua presença se cometia qualquer ato desairoso, cujo autor não fosse logo descoberto, todos olhavam para ele desconfiados, e em cada rosto o pobre Boaventura percebia uma acusação tácita.

E o pior é que nestas ocasiões, em que tão injustamente era tomado por outro, ficava o desgraçado por tal modo confuso e perplexo, que, em vez de protestar, começava a empalidecer, a engolir em seco, agravando cada vez mais a sua dura situação.

Outro doloroso caiporismo dos seus, era o de parecer-se com todo o mundo. Boaventura não tinha fisionomia própria; tinha um pouco da de toda a gente. Daí os quiproquós em que ele apesar de tão bom e tão pacato, vivia sempre enredado. Tão depressa o tomavam por um ator, como por um padre, ou por um barbeiro, ou por um polícia secreto; tomavam-no por tudo e por todos, menos pelo Boaventura da Costa, rapaz solteiro, amanuense (*escrevente) de uma repartição pública, pessoa honesta e de bons costumes.

Tinha cara de tudo e não tinha cara de nada, ao certo. A circunstância da sua falta absoluta de barba dava-lhe ao rosto uma dúbia expressão, que tanto podia ser de homem como de mulher, ou mesmo de criança. Era muito difícil, senão impossível, determinar-lhe a idade. Visto de certo modo, parecia um sujeito de trinta anos, mas bastava que ele mudasse de posição para que o observador mudasse também de julgamento; de perfil representava pessoa bastante idosa, mas olhado de costas, dir-se-ia um estudante de preparatórios; contemplado de cima para baixo era quase um bonito moço, porém de baixo para cima era simplesmente horrível.

Encarando-o bem de frente, ninguém hesitaria em dar-lhe vinte e cinco anos, mas com o rosto em três quartos, afigurava apenas dezoito. Quando saía à rua, em noites chuvosas, com a gola do sobretudo até as orelhas e o chapéu até a gola do sobretudo, passava por um velhinho octogenário, e quando estava em casa, no verão, em fralda de camisa, a brincar com o seu gato ou com o seu cachorro, era tirar nem por, um nhônhô de uns dez ou doze anos de idade.

Um dia, entre muitos, em que a polícia, por engano lhe invadiu os aposentos, surpreendeu-o dormindo, muito agachadinho sob os lençóis, com a cabeça embrulhada num lenço à laia de touca, e o sargento exclamou comovido:

– Uma criança! Pobrezinha! Como a deixaram aqui tão desamparada!

De outra vez quando ainda a polícia quis dar caça a certas mulheres, que tiveram a fantasia de tomar trajes de homem e percorrer assim as ruas da cidade, Boaventura foi logo agarrado e só na estação conseguiu provar que não era quem supunham. Outra ocasião, indo procurar certo artista, de cujos serviços precisava, foi recebido no corredor com esta singularíssima frase:

– Quê? Pois a senhora tem a coragem de voltar?… E quer ver se me engana com essas calças?

Tomara-o pela pobre, a quem na véspera havia despedido de casa.

Não se dava conflito de rua, em que passando perto o Boaventura, não o tomassem imediatamente por um dos desordeiros. Era ele sempre o mais sobressaltado, o mais lívido, o mais suspeito dos circunstantes. Não conseguia atravessar um quarteirão sem que fosse a cada passo interrompido por várias pessoas desconhecidas, que lhe davam joviais palmadas no ombro e na barriga, acompanhando-as de alegres e risonhas frases de velha e íntima amizade.

Em outros casos era um credor que o perseguia, convencido de que o devedor queria escapar-lhe, fingindo não ser o próprio; ou uma mulher que o descompunha em público; ou um agente policial que lhe rondava os passos; ou um soldado que lhe cortava o caminho supondo ver nele um colega desertor.

E tudo isto ia o infeliz suportando, sem nunca aliás ter em sua vida cometido a menor culpa.

Uma existência impossível!

Se achava-se numa repartição pública, tomavam-no, infalivelmente, pelo contínuo; nas igrejas passava sempre pelo sacristão, nos cafés, se acontecia levantar-se da mesa sem chapéu, bradava-lhe logo um consumidor, segurando-lhe o braço:

– Garçom! Há meia hora que reclamo que me sirva.

Se ia provar um paletó na loja do alfaiate, enquanto estivesse em mangas de camisa, era só a ele que se dirigiam as pessoas chegadas depois. Nas muitas vezes que foi preso como suposto autor de vários crimes, a autoridade afiançava sempre que ele tinha diversos retratos na polícia. Verdade era que as fotografias não se pareciam entre si, mas todas se pareciam com Boaventura.

Num clube familiar, quando o infeliz já no corredor, reclamava do porteiro o seu chapéu para retirar-se, uma senhora de nervos fortes chegou-se por detrás dele na ponta dos pés e ferrou-lhe um beliscão.

– Pensas que não vi o teu escândalo com a viúva Sarmento, grandíssimo velhaco?!

O mísero voltara-se inalteravelmente, sem a menor surpresa. Ah! ele já estava mais habituado àqueles enganos.

Que vida!

Afinal, e nem podia deixar de ser assim, atirou-se ao mar.

No necrotério, onde fui por acaso, encontrei já muita gente; e todos aflitos, e todos agoniados defronte daquele cadáver que se parecia com um parente ou com um amigo de cada um deles.

Havia choro a valer e, entre o clamor geral, distinguiam-se estas e outras frases:

– Meu filho morto! Meu filho morto!

– Valha-me Deus! Estou viúva! Ai o meu rico homem!

– Ó senhores! Ia jurar que este cadáver é o do Manduca!

– Mas não me engano! É o meu caixeiro!

– Dir-se-ia que este moço era um meu antigo companheiro de bilhar!…

– E eu aposto como é um velho, que tinha um botequim por debaixo da casa onde eu moro!

– Qual velho, o que! Conheço este defunto. Era estudante de medicina! Uma vez até tomamos banho juntos, no boqueirão. Lembro-me dele perfeitamente!

– Estudante! Ora muito obrigado! Há mais de dois anos chamei-o fora de horas para ir ver minha mulher que tinia de cólicas! Era médico velho!

– Impossível! Afianço que este era um pequeno que vendia jornais. Ia levar-me todos os dias a “Gazeta” à casa. É que a morte alterou–lhe as feições.

– Meu pai!

– O Bernardino!

– Olha! Meu padrinho!

– Jesus! Este é meu tio José!

– Coitado do padre Rocha!

Pobre Boaventura! Só eu compreendi, adivinhei, que aquele cadáver não podia ser senão o teu, ó triste Boaventura da Costa!

E isso mesmo porque me pareceu reconhecer naquele defunto todo o mundo, menos tu, meu desgraçado amigo.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.

sábado, 8 de janeiro de 2022

Varal de Trovas n. 542

 

Aparecido Raimundo de Souza (Como um passageiro em trânsito...)

Pense no dia que ainda não nasceu:
e a Manhã chegará linda e sorridente.

Pense na esperança:
e ela lhe sorrirá com ternura.

Pense no amor:
e ele transformará a sua vida.

Pense na paz:
e ela estará sempre ao seu lado.

Pense no seu trabalho:
e ele será recompensador.

Pense no seu semelhante:
e ele lhe abraçará em retribuição.

Pense no silêncio:
e ele acalmará as suas horas mais difíceis.

Pense em coisas boas:
e elas brotarão de  dentro do seu “eu” gradativamente.

Pense em fazer alguém feliz:
e verá que esse sonho nunca saiu do seu lado.

Pense na noite encantadora que se avizinha:
e ela lhe trará o descanso merecido e necessário.

Pense no futuro:
e ele simplesmente acontecerá.

Pense nos seus filhos e netos:
e descobrirá a magia imensa em ter alguém lhe chamando de Papai ou Vovô.

Pense nos amigos:
e compreenderá que somente os verdadeiros nunca nos deixarão sem socorro.

Pense na alegria de estar vivo e com saúde:
e agradeça pelo sopro benfazejo da plenitude.

Pense na morte:
e faça tudo aquilo que deixou para realizar no dia seguinte.

Pense nos que se foram e nos deixaram num vazio imenso:
e dobre os joelhos em oração para que descansem em paz.

Pense na escuridão:
E se congratule pela visão perfeita que lhe permite enxergar além dos horizontes.

Pense, por derradeiro, em se prostrar, ou melhor, se detenha, de fato, diante de um espelho e vasculhe longamente buscando o interior de si mesmo:
e certamente concluirá que, tendo Deus na sua vida, na sua alma, e, principalmente, em seu coração, NADA LHE SERÁ NEGADO E COISA ALGUMA SE FARÁ IMPOSSÍVEL.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Alci Vivas Amado (Caderno de Poesias)

AMAR É HUMANO


Desejo namorá-la à moda antiga,
Beijar-lhe a face e a mão,
Você me fere me instiga
Faz do meu corpo um corrimão.

Trago flores à rainha do jardim,
Meu olhar brilha, meu amor lhe ofereço.
Você me alucina: Coitado de mim!
Perdi o freio, agora só resta o começo.

Você está linda! É assim que eu a vejo
Sobre o leito nupcial, vou lhe amar,
E sua boca exaltar com terno beijo.

Meu desejo você desprezou
No mais puro e santo momento
Mas em nossas vidas, um fruto ficou.
= = = = = = = = = = = = = = = = =

O VELHO E O IDOSO

Afirmam que o velho é nocivo,
Ninguém gosta de envelhecer,
Juventude eterna é sonho de todo ser,
A idade, o rigor, nada é decisivo.

Velho não aceita a realidade nascida,
O idoso admite tal inovação,
Ambos levam a história da vida,
Ser velho aos 18 ou 70, depende da criação.

O profundo jamais envelhece,
Sentimento é o coração do ancião,
Carrega a coroa de glória em prece.

O velho vai ao encontro da miopia,
O idoso não se fecha para o amanhã,
Espírito jovem, semente de alegria.
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POR QUÊ?

Tudo em torno de mim é incerteza
Sem você, meu destino se evapora,
Com essa tepidez revelo só tristeza,
O meu amor puro, mandou embora.

Por quê? Enamorei de sua beleza
Dos seus olhos, sua voz, leve e sonora,
Entreguei-lhe tudo! O afeto... minha natureza,
Sem saber seu nome e, até, onde mora.

Por quê? Não me sai da memória
Muito sonhei construir consigo história
Morarmos numa cabana: linda e forte!

Sua ausência me fará crua saudade
Talvez só a esqueça na eternidade
Ou lhe amarei, mais ainda, após a morte.
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VIDAS PARALELAS

Desejo poetar com clareza,
Esmiuçar sua intimidade...
Sentir o esplendor da saudade
Na tepidez de sua beleza.

Na adolescência, lhe chamava, tigresa,
E ainda trago o pudor, forte lealdade!
Mas falta-lhe sutil caridade
Que em mim te exalta, com certeza.

Hoje, não posso vê-la sozinha
E nem me sentir tão só,
Passado deserto, ao meu lado caminha

As rugas vão sulcando agora
Todo esse amor... A história,
Que em minha face, triste, descora.
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VOU TE DIZER ADEUS

Finais momentos de felicidade
Abraça-me com urgência,
Tristeza é mania de ansiedade
Examina tua consciência.

O teu descaso por mim foi perdoado
Não esquecerei um amor tão profundo
De súbito em nós despertado
laço forte, maior desse mundo.

Senta-te aqui, não sejas uma fera.
Conta-me os dissabores de tua vida
Não fiques assim, estou a tua espera.

Minha alma sente que é inevitável
Adeus! Peço perdão se te ofendi
Redime esse cupido miserável.
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Alci Santos Vivas Amado (1945) é poeta, historiador, contista, cronista; filho de Alcebíades Lopes Amado e de Odete Vivas Amado. Nasceu no Distrito de Santo Antonio do Muqui, em Mimoso do Sul/ES, onde fez o primário; cursou o ginásio e o 2º grau no Rio de Janeiro. Cursos Profissionalizantes: Arquivista e Correspondente Comercial pelo SENAC. Trabalhou na Usina Nuclear de Angra dos Reis, onde morou por 20 anos. Publicou livros de poesia e de contos: Santo Antonio Descendente de Corpo Inteiro, Insinuações Poéticas,  Duelo & Perdão e Reminiscencias. Organizou e historiou “A Pastorinha” folclórico – com apoio do SEBRAE e FAOP – Federação de Artes de Ouro Preto – MG. Participou em livros, com diversos autores: “Antologia Escritores Brasileiros” e “Galeria Brasil 2009”. É membro efetivo da APOLO – Academia Poçoense de Letras e Artes, e ocupa a cadeira nº 52. Escreve em alguns sites e blogs, dentre eles: www.apoloacademiadeletras.com.br; www.poetas.capixabas.nom.br.

Fontes:
Celeiro de Escritores. Sonetos Eternos: Antologia de Sonetos. Vol. 1. Santos/SP: Ed. Sucesso, 2009.
Portal Escritores: complemento biográfico

Sammis Reachers (O valentão da madrugada)

Algumas histórias por que passamos em nosso dia-a-dia envolvem certa violência, e sabemos que o melhor, em relação à violência, é mantermos distância dela. Afinal, "violência gera violência." Mas, trabalhando nas ruas, estamos sujeitos a tudo, e muitas vezes nossa única opção é dançar conforme a música. Trabalhando durante a madrugada então, ah, aí é que 'o bagulho fica doido'.

Tudo começa com nosso amigo Sílvio, hoje motorista e homem de Deus, mas na época trabalhando como cobrador, e dado a tomar alguns tragos da "marvada" cachaça. A madrugada ia em seus inícios, lá pelas uma da manhã. A empresa era a ABC de São Gonçalo; a linha era a 12, Santa Luzia x Covanca. Havia já alguns passageiros no carro, dentre    os quais alguns maus    elementos, bandidagem conhecida do bairro Jardim Catarina. Sempre pegavam carona    quando iam ou voltavam de suas 'atividades'. Área de chapa quente é sempre igual: Se não uma amizade, ao menos alguma tolerância se estabelece entre eles, os marginais, e os rodoviários que, acuados, não têm outro recurso senão fazer vista grossa a certos movimentos e caronas.

Pois bem, em certo ponto sobe no veículo um elemento, moreno parrudo, acompanhado de duas mulheres, bonitas e vestidas como 'mulheres da vida'. As mulheres passam pela roleta, e em seguida o cara que, mal-encarado, saca uma nota de cem cruzeiros, algo como 100 reais de hoje. Ao que Sílvio, o cobrador, pergunta:

- O senhor não teria nota menor aí não?

- Só tenho esse, dá seu jeito aí.

Sílvio disse então para o elemento aguardar, pois não havia ainda troco suficiente. O indivíduo, muito cheio de si e querendo se mostrar para as duas mulheres, que sorriam, começou a bater boca com nosso amigo. Ofensa vai, ofensa vem, um dos tais malandros, que estava lá no fundão do buzu, se levanta, vai até Silvio e diz baixinho:

- Aí, cobra, esse malandro tá chiando muito. Segura aqui essa peça e põe na cara dele - e em seguida sacou um trabuco da cintura e fez menção de entregá-lo a nosso amigo.

- Não, não, quero não, tá tranquilo - disse Sílvio, assustado.

Enquanto isso o indivíduo, entretido com as mulheres, sequer percebera a movimentação. Mas continuou a falar grosso, enquanto o malandro voltava para seu lugar.

Mas, meus amigos, o problema foi que o indivíduo não parou de falar. Não se aguentando mais, dois dos malandros se levantaram, e um deles foi logo apontando o canhão direto na cara do 'brabo'.

- Abre a porta aê, motorista. O otário aqui vai descer. Bora otário, desce!

O cara, levantando-se assustado e contrariado, ainda perguntou:

- E o meu troco?

– Troco?!! Tem troco não mané! Desce, vaza!!!

O indivíduo, agora sem a expressão de homem valente, desceu. Mas, como bom otário, cometeu mais um erro: do lado de fora, foi até a porta de trás, que se abrira para apanhar outro passageiro, e perguntou novamente ao cobrador:

- E o meu troco? Quero meu troco.

Ao ouvir isso, os malandros não se aguentaram:

- Para, para, para aê, motô, que nós vamos limpar esse mané.

Os quatro elementos desceram atrás do 'valentão', e o ônibus seguiu viagem, tranquilamente, com Sílvio aliviado por se ver livre da encrenca.

Uma semana depois, um dos malandros do Catarina apanhou novamente o ônibus da dupla. Ao reconhecer Sílvio, o marginal foi logo contando:

- Aí, cobra, lembra daquele otário? Limpamos ele e as duas meninas. Até a camisa e o tênis dele levamos.

Moral da história: Cuidado quando for pegar um ônibus na madrugada. Toda humildade é pouca!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (“Viagens na minha terra”, de Almeida Garret)


A obra foi publicada originalmente em folhetins na Revista Universal Lisbonense entre 1845 e 1846, sendo editada em livro apenas em 1846. Tida como obra única no Romantismo português por sua estrutura e linguagem inovadoras, Viagens na minha terra é um marco para a moderna prosa portuguesa e um importante documento de referência para entender a decadência do império português.

Foco narrativo

A obra é narrada em primeira pessoa e o narrador é o que conhecemos por “narrador-protagonista”. Ou seja, a história é contada por um dos personagens principais (no caso, o autor-narrador que viaja pelo país) em primeira pessoa. Dessa forma, a história tem um ponto de vista fixo, centrado nessa personagem. Além disso, esse narrador-protagonista está quase inteiramente confinado a seus pensamentos, sentimentos e percepções.

O que sabemos a respeito das outras personagens (incluindo seus pensamentos e sentimentos), ou nos é passado através dela mesma, ou através de outra personagem que conta algo ao narrador (em Viagens temos Frei Dinis contando o drama de Carlos e Joaninha). Essas informações podem ser, ainda, inferências feitas pelo narrador-protagonista.

A viagem como busca do autoconhecimento

O tema das viagens sempre foi parte integrante da literatura portuguesa, desde o século XIV quando os navegadores portugueses registravam suas histórias de navegação. Eles produziam uma literatura que não ficava restrita aos acontecimentos da viagem, mas que continha também os motivos que os levavam a se deslocar de um local a outro e as descrições em forma narrativa sobre as terras e os homens que encontravam. Assim, pode-se dizer, que a literatura de viagem não fica restrita ao desejo de conquistar novos territórios, mas, através do contato com outros povos e culturas, pensar de uma nova maneira o seu próprio eu.

Almeida Garrett faz parte dessa tradição literária ao escrever Viagens na minha terra. Nessa novela, a viagem não serve apenas para entrelaçar os fatos ali tratados, mas serve em si como elemento temático fundamental. A viagem como tema da obra está assinalada desde o primeiro capítulo, onde o autor-narrador deixa claro que vai “nada menos que a Santarém”, tornando sua novela uma crônica-ensaio. Através da viagem pelo interior do próprio país do autor-narrador, busca-se a fonte do que é ser português em um momento de drásticas mudanças no país.

O pano de fundo em Viagens na minha terra é a Revolução Liberal. Grosso modo, as ideias liberais surgiram como oposição ao monarquismo, ao mercantilismo e ao domínio religioso. Portugal, na época um país monarquista com fortes raízes católicas, via qualquer ideia liberalista como antinacional.

O país já estava enfrentando diversas crises (as invasões de Napoleão e crise do colonialismo no Brasil) e o embate entre Miguelistas (favoráveis ao monarquismo absolutista de então) e Liberais acabou por gerar uma guerra civil, em 1830. O embate terminou com uma vitória dos Liberais e a restauração da monarquia constitucional.

Almeida Garrett, que sempre lutou pelos ideais liberais, mantém nas Viagens este propósito, através da narração de fatos do presente e do passado, sempre denegrindo àquele em favor do outro. Para tanto, brinca-se também com a questão do verossímil, criando-se a ilusão do verdadeiro através do uso de um tom calculadamente coloquial e uma aproximação com o quotidiano.

Dessa forma, as digressões do narrador sobre os mais diversos temas, da literatura à política, servem para demarcar ideologicamente a obra. O discurso do autor-narrador revela o caótico estado em que se encontra Portugal, a corrupção da sociedade, a aristocracia decadente e o modelo familiar burguês corrompido por atitudes individualistas. Assim, pode-se dizer que para o narrador a crise moral coletiva tem origem na moral individual.

A personagem protagonista Carlos, aparece como símbolo deste embate entre tradição (monarquismo) e modernidade (ideias liberais). Carlos não consegue se decidir entre Joaninha (que representa o velho Portugal) e Georgina (representante do novo Portugal). Por fim, o protagonista acaba por desistir de ambas, perdendo sua identidade e sua moral. Carlos termina como uma representação de uma sociedade alienada e degradante.

Assim, a preocupação de Garrett em Viagens na minha terra é tentar despertar na nação portuguesa a consciência da situação em que o país se encontrava e que direção pode ser tomada para tentar mudar o rumo decadente que Portugal estava tomando. Porém, o próprio autor-narrador não vê perspectivas de melhora, pois a imagem que o homem português tem de si mesmo não é positiva. Dessa forma, apesar de conseguir enxergar um caminho para a recuperação de Portugal, Garrett termina a obra com um tom pessimista.

Comentário

Para o professor Marcílio Lopes Couto, do Colégio Anglo, deve-se antes de tudo ficar atento ao próprio estilo da obra. Apesar de ser um livro pertencente ao Romantismo, ele foge um pouco aos padrões dessa escola literária e já anuncia algumas características do Realismo. Além disso, é importante comparar a obra com outras, como, por exemplo, identificar que aspectos ligam “Viagens na minha terra” a outras obras românticas que são pedidas no vestibular (Memórias de um Sargento de Milícias e Til) e que aspectos a ligam a, por exemplo, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

O professor destaca também, que o título da obra de Garrett em si já é importante para compreender o texto. Já que o livro trata de apenas uma viagem que vai de Lisboa a Santarém, por que o autor coloca viagem no plural? Estas “viagens” fazem referência a uma série de reflexões políticas, históricas, filosóficas e existenciais que o autor-narrador trabalha no texto. Assim, estas “viagens” não tratam apenas de um deslocamento físico, mas também de um “deslocamento psicológico”.
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Almeida Garrett nasceu na cidade do Porto, Portugal, em 1799, com o nome de batismo de João Leitão da Silva. Durante sua época de estudante de Direito, em Coimbra, passou a adotar o nome que o tornaria célebre: Almeida Garrett. Participou da revolução liberal e ficou exilado na Inglaterra em 1823. Durante esse tempo, casou-se e teve contato com o movimento romântico inglês. Em 1824 mudou-se para França e escreveu Camões e Dona Branca, obras que inauguraram o romantismo português. Ávido defensor do liberalismo, Almeida enfrentou outros diversos exílios ao longo dos anos.

Após retornar definitivamente a Portugal, passa a incentivar a literatura e o teatro, escrevendo inúmeros livros e peças teatrais. É dele, por exemplo, a iniciativa de criar o Conservatório de Arte Dramática e o Teatro Normal (atualmente Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa). Faleceu em Lisboa no dia 9 de dezembro de 1854.

Suas principais obras são: “Camões” (1825), “Dona Branca” (1826), “Romanceiro” (1843), “Cancioneiro Geral” (1843), “Frei Luis de Sousa” (1844), “D’o Arco de Santana” (1845) e “Viagens na minha terra” (1846).


sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 16

 

A. A. de Assis (Tio Joca)

Desde menino aprendi a gostar de poesia. Em grande parte por influência de minha mãe e do meu avô maestro. Mas penso que um pouquinho devo também a um personagem fascinante, que trabalhava no velho trem da Leopoldina Railway, no trecho entre Campos e Miracema – RJ. Os passageiros, quase todos conhecidos dele, chamavam-no Tio Joca.

Simpatia em pessoa, tinha por função percorrer os vagões picotando ou recolhendo as passagens. Não bastasse o seu generoso sorriso resistente a quaisquer humores da vida, Tio Joca, redondilheiro de truz, animava a viagem fazendo versinhos. Antes de cada estação, ele ia de ponta a ponta do trem recitando suas alegres cantigas. Tal encanto isso me despertava, que ainda hoje me lembro de algumas:

     – Quem vai pra Ernesto Machado, me dê o bilhete, e obrigado.

     – Pra São Fidélis, quem vai, dá a passagem pro papai.

     – Quem desce no Grumarim, dê a passagem pra mim.

     – Passageiros de Pureza, passagem por gentileza.

     – Quem vai para Cambuci, entregue o bilhete aqui.

     – Quem vai para Três Irmãos, passagem nas minhas mãos.

Sei lá, mas sempre desconfiei de que a influência do bom Tio Joca deveria ser estudada com maior atenção. É que naquele trenzinho maria-fumaça viajavam quase diariamente numerosos jovens que iam das fazendas para as cidades frequentar a escola. E pode ter sido bem mais do que mera coincidência o fato de muitos daqueles moços e moças terem virado poetas algum tempo depois…