domingo, 6 de fevereiro de 2022

Manuel Du Bocage (Sonetos) V

“ÂNSIAS TERRÍVEIS, ÍNTIMOS TORMENTOS”


Ânsias terríveis, íntimos tormentos,
Negras imagens, hórridas lembranças,
Amargosas, mortais desconfianças,
Deixai-me sossegar alguns momentos.

Sofrei que logre os vãos contentamentos
Que sonham minhas doidas esperanças;
A posse de alvo rosto, e loiras tranças,
Onde presos estão meus pensamentos.

Deixai-me confiar na formosura,
Cruéis ! Deixai-me crer num doce engano,
Blasonar de fantástica ventura.

Que mais mal me quereis, que maior dano
Do que vagar nas trevas da loucura,
Aborrecendo a luz do desengano ?
= = = = = = = = = = = = =

“CANTA AO SOM DOS GRILHÕES O PRISIONEIRO”

Canta ao som dos grilhões o prisioneiro,
Ao som da tempestade o nauta ousado,
Um, porque espera o fim do cativeiro,
Outro, antevendo o porto desejado;

Exposta a vida ao tigre mosqueado
Gira sertões o sôfrego mineiro,
Da esperança dos lucros encantado,
Que anima o peito vil, e interesseiro;

Por entre armadas hostes destemido
Rompe o sequaz do horrífico Mavorte,
Co’ triunfo, co’a glória no sentido:

Só eu (tirano Amor! tirana Sorte!)
Só eu por Nise ingrata aborrecido
Para ter fim meu pranto espero a morte.
= = = = = = = = = = = = =

“FIEI-ME NOS SORRISOS DE VENTURA”

Fiei-me nos sorrisos de ventura
Em mimos femininos, como fui louco!
Vi raiar o prazer, porém tão pouco
Momentâneo relâmpago não dura.

No meio agora desta selva escura,
Dentro deste penedo úmido e ouço,
Pareço, até no tom lúgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura:

Que estância para mim tão própria é esta!
Causais-me um doce, e fúnebre transporte,
Áridos matos, lobrega floresta!

Ah! Não me roubou tudo a negra sorte;
Inda tenho este abrigo, inda me resta
O pranto, a queixa, a solidão e a morte.
= = = = = = = = = = = = =

“OLHA , MARÍLIA, AS FLAUTAS DOS PASTORES”

Olha , Marília, as flautas dos pastores,
Que bom que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-te! Olha não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali, beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha para,
Ora nos ares sussurrando gira:

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira,
Mais tristeza que a morte me causara.
= = = = = = = = = = = = =

“OH TREVAS, QUE ENLUTAIS A NATUREZA”

Oh trevas, que enlutais a Natureza,
Longos ciprestes desta selva anosa,
Mochos de voz sinistra, e lamentosa,
Que dissolveis dos fados a incerteza.

Manes, surgidos da morada acesa
Onde de horror sem fim Plutão se goza,
Não aterreis esta alma dolorosa,
Que é mais triste que vós minha tristeza;

Perdi o galardão da fé mais pura,
Esperanças frustrei do amor mais terno,
A posse de celeste formosura.

Volvei pois, sombras vãs, ao fogo eterno,
E lamentando a minha desventura,
Movereis a piedade o mesmo inferno.
= = = = = = = = = = = = =

“TRISTE QUEM AMA, CEGO QUEM SE FIA”

Triste quem ama, cego quem se fia
Da feminina voz na vã promessa!
Aspira a vê-la estável! Mais depressa
O facho apagará, que espalha o dia.

Alada exalação, que na sombria
Tácita noite os ares atravessa,
Foi comigo a paixão volúvel dessa
Que o peito me afagava, e me feria.

Do desengano o bálsamo lhe aplico,
E a teus laços, Amor, sem medo exponho
Dos benéficos céus o dom mais rico.

Vejo mil Circes plácido, risonho;
E se fé me prometerem, ouço e fico
Como quem despertou de aéreo sonho.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. SP: FTD, 1994. Disponível na Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

Irmãos Grimm (A mochila, o chapeuzinho e a corneta)


Era uma vez três irmãos que foram ficando cada vez mais pobres. Até que chegaram ao ponto de passar fome.

- Isto não pode continuar assim! - disseram eles, afinal.

- É melhor irmos pelo mundo afora tentar a sorte.

Puseram-se, então, a caminho. Andaram muito e pisaram muito chão, sem que se apresentasse a sorte. Assim chegaram um dia, a uma floresta muito grande, em meio da qual se elevava uma montanha. Ao se aproximarem, viram que toda ela era de prata. Disse, então, o mais velho:

- Encontrei a sorte que desejava e não quero outra maior.

- Recolheu toda a prata que podia carregar e voltou para casa.

Os outros dois, porém, disseram:

- Exigimos que a sorte nos dê algo mais que prata.

E, sem tocar no metal, seguiram adiante.

Depois de andar durante mais dois dias, chegaram a uma montanha que era de puro ouro. O segundo irmão ficou a pensar, indeciso: "Que devo fazer? Levar o ouro de que preciso para o resto de minha vida, ou seguir adiante?

Afinal resolveu-se. Encheu os bolsos e, despedindo-se do irmão, voltou para casa.

O terceiro ficou a pensar: "O ouro e a prata não me dizem grande coisa e continuarei procurando a sorte. Talvez ela me reserve coisa melhor."
    
Continuou caminhando e, três dias depois, chegou a uma floresta maior ainda que as outras; esta agora não terminava nunca e, como não achava nada para comer nem beber, esteve a ponto de morrer de fome. Trepou, então, numa árvore bem alta para ver se descobria o limite daquela floresta mas não conseguiu enxergar outra coisa senão as copas das árvores que se estendiam infindáveis.

Dispôs-se a descer e disse a si mesmo: "Se pudesse, ao menos, encher o estômago mais uma vez.”

E eis que, ao tocar o chão, viu, com assombro, debaixo da árvore, uma mesa magnificamente posta, coberta de abundantes pratos de  que se desprendia um aroma apetitoso.

"Desta vez - pensou - meus desejos se cumpriram no momento oportuno." E, sem pensar em quem poderia ter trazido aquele banquete, acercou-se da mesa e comeu até fartar-se.

Quando terminou, teve uma ideia. "Seria uma pena que esta linda toalhinha se estragasse aqui no bosque", e, dobrando-a com cuidado, guardou-a. Depois prosseguiu sua jornada e, à noite, quando tornou a sentir fome, quis por a toalha à prova. Estendeu-a e disse:

- Quisera que voltasse a cobrir-te de boa comida!

Mal expressou esse desejo, a toalha se cobriu de pratos, cheios de saborosíssimas iguarias.

- Sei agora, - disse ele - onde cozinham para mim. Isso é melhor do que a montanha de ouro e a de prata.

Mas não satisfez com a toalhinha mágica; achou que ela não bastava para retirar-se e viver tranquilamente em sua casa e continuou a jornada em busca da sorte.

Certa noite encontrou, num bosque solitário, um carvoeiro coberto de fuligem. Estava fazendo carvão e tinha ao fogo umas batatas que lhe  deviam servir de janta.

- Boa noite, melro negro! - disse, saudando-o.- Como vives nesta solidão?

– Todos os dias, para mim, são iguais. - respondeu o carvoeiro. - De noite, sempre há batatas para  a janta. Se te apetece, te convido.

   - Muito obrigado! - disse o viajante. - Não quero privar-te de tua refeição, pois não esperavas convidados. Mas, se contentas com o que tenho, sou eu que convido.

- E quem irá trazer-te a comida? Vejo que nada carregas contigo e, em duas horas de caminho, não há quem possa dar-te alguma coisa.

- Mesmo assim teremos uma ceia - respondeu o outro- tão boa como jamais tiveste igual.

E, tirando a toalhinha da mochila, estendeu-a no chão e disse:

- Toalhinha, cobre-te!

No mesmo instante apareceram cozidos e assados, tudo quente como recém-saído da cozinha. O carvoeiro arregalou os olhos, mas não se fez de rogado. Serviu-se, metendo bocados cada vez maiores na boca tisnada. Depois de jantarem, o carvoeiro falou, satisfeito.

- Escuta aqui, gostei da tua toalhinha; seria de grande utilidade para mim aqui na floresta, onde ninguém cozinha algo apetitoso. Proponho-te uma troca! Ali, naquele canto, está pendurada uma mochila de soldado. É, na verdade, velha e de feia aparência, mas possui qualidades prodigiosas. Como não mais preciso dela, poderia trocá-la pela tua toalhinha.

- Primeiro quero saber que qualidades prodigiosas são essas de que falas - retrucou o rapaz.

- Vou  dizer-te. - explicou o carvoeiro. - Sempre que bateres nela com a mão, verás surgir à tua frente um cabo e seis soldados, armados até os dentes, que farão tudo o que ordenares.

- Está bem! Já que não tens outra coisa, aceito a troca! - disse o outro.

Deu a toalha ao carvoeiro e, pondo a mochila ao ombro, despediu-se.

Depois de haver andado um pouco, resolveu experimentar as qualidades mágicas da sua mochila e deu-lhe uma batida. No mesmo instante apareceram os sete guerreiros. O cabo perguntou-lhe:

- Que ordena meu amo e senhor?

- Marchem, a toda pressa, de volta ao carvoeiro e exijam que lhes entregue minha toalhinha mágica.

Os soldados deram meia volta e pouco depois estavam de regresso com a toalha que haviam tirado do carvoeiro. O rapaz, então, mandou que se retirassem e prosseguiu caminho, confiando em que a sorte ainda se mostraria mais propícia.

Ao por-do-sol, encontrou outro carvoeiro que estava também, preparando sua refeição.

- Quer jantar comigo? - convidou o homem tisnado. - Batatas com sal, mas sem gordura. Se aceitas, senta-te a meu lado!

- Não! - retrucou o rapaz. - Quero que sejas tu o meu convidado.
   
E tirou a toalha que, depois de estendida, ficou logo cheia com os mais deliciosos manjares. Alegres da vida, comeram e beberam juntos. Quando terminaram a refeição, o carvoeiro disse:

- Sobre aquele banco, ali, está um chapeuzinho velho e sovado, mas que possui propriedades espantosas. Quando alguém o põe e lhe dá uma volta na cabeça, aparecem doze canhões, em fileira, que começam a disparar derrubando o que há por diante, sem ninguém possa resistir a seus efeitos. A mim, de nada serve e bem o trocaria pela tua toalha.

- Não é mau. - respondeu o rapaz e, apanhando o chapéu, colocando-o na cabeça, entregando, ao mesmo tempo, a toalhinha.

Mal, porém, andara um trecho do caminho, bateu na mochila e ordenou aos soldados que lhe trouxessem, novamente , a toalhinha. "Uma coisa traz outra, - pensou - e parece que minha boa sorte ainda continua.”

Seus pensamentos não o haviam enganado. Ao fim de uma hora, encontrou mais outro carvoeiro que, como os anteriores, o convidou a comer suas batatas sem gordura. Ele lhe ofereceu, também, uma janta extraordinária à custa da toalha mágica, e o carvoeiro ficou tão entusiasmado que propôs trocá-la por uma cornetinha dotada de qualidades ainda superiores às do chapeuzinho: quando a tocavam, todas as muralhas e baluartes caíam por terra, reduzindo cidades a montes de escombros. O jovem aceitou a troca mas, pouco depois, ordenou a seus soldados trazerem de volta a toalha, com o que ficou de posse da mochila, do chapeuzinho e da cornetinha.

"Agora, – disse para si mesmo - sou um homem feito e é tempo de voltar para casa a ver como estão passando meus irmãos.”

Ao chegar à cidade onde moravam, viu que seus irmãos haviam construído uma bela casa e se entregavam à boa vida com o ouro e a prata que tinham encontrado. Apresentou-se a eles, mas , de vestes rasgadas, chapeuzinho roto e a velha mochila, os outros dois se negaram a reconhecê-lo como irmão. Riram-se dele, dizendo:

- Pretendes te fazer passar pelo nosso irmão que desprezou o ouro e a prata porque desejava coisa melhor? Não há dúvida que voltará com grande magnificência; numa carruagem, como verdadeiro rei, e não feito um mendigo!

E assim correram com ele de casa. Indignado, o rapaz pôs-se a bater na mochila até que cento e cinquenta homens se apresentaram, perfilados, diante dele. Ordenou que cercassem a casa de seus irmãos e deu ordens a dois soldados para apanharem varas de marmelo e com elas surrarem os dois insolentes até que estes reconhecessem quem ele era.

Tudo aquilo provocou uma enorme balbúrdia. Os habitantes do povoado correram a prestar socorro aos dois agredidos , mas nada puderam fazer  contra os soldados do jovem.

O caso  chegou, finalmente, aos ouvidos do rei, ao qual zangado, enviou um capitão à frente de sua companhia, com ordem de expulsar da cidade aquele desordeiro. Mas o homem da mochila reuniu, num instante, uma tropa mais numerosa ainda, e rechaçou o capitão com todos os seus homens, obrigando-os a retirar-se com os narizes ensanguentados.

Mesmo assim, disse o rei:

- Ainda poderemos liquidar com esse aventureiro.

E, no dia seguinte, enviou contra ele um grupo maior, mas sem obter melhor resultado do que na véspera. O adversário lhe opôs mais gente e, para terminar mais depressa, deu umas voltas no seu chapeuzinho. Imediatamente a artilharia entrou em ação, derrotando os homens do rei  pondo-os em fuga.

- Agora não darei a paz, - pensou o jovem - até que o rei me dê sua filha em casamento e eu fique governando o país em seu nome.

Mandou comunicar sua decisão ao rei e este disse à sua filha:

- A necessidade obriga. Que remédio me resta senão ceder ao que ele exige? Se quero obter a paz e conservar a coroa em minha cabeça, devo entrega-te.

Celebrou-se, pois o casamento, mas a princesa sentia-se aborrecida pelo fato de ser o marido um homem vulgar que andava sempre com um chapéu roto à cabeça e uma velha mochila aos ombros. Com muito gosto ter-se-ia desfeito dele. Dia e noite ficava a cismar como satisfaria seu desejo.

Pensava ela: "Estarão na mochila suas forças mágicas?" E começou a tratá-lo com fingido carinho.

Quando o coração do marido se abrandou, ela lhe disse:

- Se ao menos tirasses essa velha mochila... Ela não te fica bem e faz com que me envergonhes de ti.

- Minha querida, - respondeu-lhe o marido - esta mochila é meu maior tesouro. Enquanto eu a possuir, não temo nenhum poder do mundo!

E revelou à mulher os poderes mágicos da mochila.

Ela, então, enlaçou o marido como para beijá-lo, mas, com rápido movimento, tirou-lhe a mochila dos ombros e escapou-se. Depois, sozinha, pôs-se a bater-lhe e ordenou aos soldados que detivessem o seu antigo senhor e o expulsassem do palácio. Os homens obedeceram e a ingrata esposa enviou, ainda, outros mais, com ordem de fazê-lo sair do país. O rapaz estaria perdido se  não tivesse o chapeuzinho. Assim que pode libertar as mãos, deu-lhe um par de voltas e, no mesmo instante, a artilharia começou a entrar em ação, destruindo tudo. A princesa não teve outro remédio senão apresentar-se, pedindo misericórdia.

E como pediu com tanto carinho prometendo corrigir-se, o marido concedeu-lhe a paz. E ela fingiu tão bem que ele se convenceu de que era profundamente amado. E um dia acabou confessando à mulher que, caso alguém se apoderasse de sua mochila, nada poderia contra ele enquanto não lhe tirasse, também, o chapeuzinho.

E aí então, de posse de seu segredo, ela aguardou que o marido adormecesse e arrebatou-lhe o chapeuzinho. E por mais uma vez, ordenou que o expulsassem.  

Mas ao pobre rapaz ainda restava a cornetinha, num acesso de cólera, se pôs a tocá-la com toda as suas forças. Imediatamente começaram a ruir por terra, muralhas, fortificações, cidades e vilas, acabando com o rei e sua filha. E caso não houvesse parado depois de tocar um pouquinho, tudo se transformaria num montão de ruínas, sem ficar pedra sobre pedra.

Ninguém mais se atreveu a lhe oferecer resistência, tornando-se ele o soberano de todo o país

Fonte:
Irmãos Grimm. Contos. vol.1. Publicados em 1812.

Isabel Furini (O Chapéu na literatura)

“Pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu.”
  Do conto: Capítulos do chapéu de Machado de Assis

Falar de chapéus é falar de um acessório que, além de proteger a cabeça do Sol e do vento, pode aumentar o glamour das pessoas. Em literatura elementos como bolsas, relógios, luvas, bengalas, chapéus e outros, podem servir para destacar a singularidade de algum personagem.

Em alguns locais do mundo as festas de casamento exigem que as mulheres escolham elegantes chapéus. O chapéu é muito usado nas históricas cidades da Europa, como Londres, por exemplo, onde as nobres cabeças são muitas vezes ornadas com belos chapéus - como símbolo de elegância.

Um chapéu tem que ser adequado para o tipo de rosto, para potencializar o charme... e até a altura. Sim, segundo alguns autores essa era a função do chapéu de Napoleão: torna-lo mais alto aos olhos dos outros.

Na literatura o chapéu também fez sua aparição em grandes livros. Por exemplo, quem não lembra de Sherlock Holmes, o famoso detetive inglês e seu chapéu. Miss Marple, a idosa também detetive, usava um chapéu surrado.

Talvez como disse Machado de Assis no conto citado (Capítulos do chapéu): “O princípio metafísico é este: — o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado a eterno; ninguém o pode trocar sem mutilação.”
 
E qual é essa força que o chapéu empresta ao ser humano? É força da escolha, de se distinguir, singularizar. Um homem de chapéu destaca-se na multidão.
 
Também em livros infantis aparecem personagens usando chapéus. O chapeleiro louco do livro Alice no País das Maravilhas usa uma cartola muito especial, com um pano amarrado e uma carta. Também podemos lembrar de Chapeuzinho Vermelho. E as bruxas? Elas quase sempre estão representadas com um chapéu preto pontudo. Já os gnomos são representados com um gorro colorido. O imaginário representa Papai Noel, também com um gorro.

Dick Tracy, Indiana Jones e Freddy Krugger (personagem de A Hora do Pesadelo) são caracterizados usando chapéu.

A belíssima Brett Ashley, na obra O Sol Também se Levanta, de Ernest Hemingway, usava um chapéu masculino sem perder a feminilidade. Ao contrário, com esse ornamento a sua beleza e sensualidade pareciam aumentar.

Em O Lustre de Clarice Lispector, um chapéu é citado no início da história. No final Virginia, a protagonista, morrerá e será reconhecida por aquele chapéu marrom. O chapéu adquire um simbolismo especial. É como um personagem do livro.
 
O romance de Menalton Braff, Moça com Chapéu de Palha (2009), também traz a imagem de uma mulher usando um chapéu. Em A Insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, lemos: “Por isso, quando Sabina colocou diante dele o chapéu-coco na cabeça...”

Bill McGovern, o personagem de Stephen King também usava chapéu. Lemos: “O chapéu marrom surrado que estava usando lhe dava um ar elegante, como o de um repórter de filme policial dos anos quarenta.” (...)

Os Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas usavam chapéus de abas largas com uma pluma decorativa.

Em Don Quixote de la Mancha lemos: “Como no caminho lhe começou a chover, receoso ele de que lhe estragasse o chapéu, que naturalmente seria novo, pôs-lhe por cima a bacia.”
 
Um fato interessante é que na cidade de Oviedo (Astúrias) Espanha, existe um concurso e literatura chamado Cuentos e Sombreros (Contos e Chapéus), promovido pela chapelaria Albiñana.

O chapéu, como acessório dos personagens e como elemento que pode revelar um forte simbolismo, já conquistou o seu espaço na cabeça de alguns protagonistas e de seus autores.

Grande ou pequeno, masculino ou feminino, elegante ou bizarro, o chapéu pode ser encontrado não só nas vitrines das chapelarias, mas também na literatura.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Adega de Versos 69: Álvaro Posselt

 

A. A. de Assis (“Amnestia”)

Vou falar de novo do professor Polyclínio. Ele era desses de não dizer as coisas sem minuciosa explicação. Cada palavra no seu devido lugar e com o significado exato. Um vizinho dele chegou meio avexado, falando dos entreveros que mantinha com a mulher: “Ela é dura na queda, seu professor. Tá certo que fiz minhas travessuras na vida, mas isso foi já faz muito tempo. Volta e meia ela me pega no pé e sai com os desaforos. Tem hora que chega a me dar gana de desmaridar. Só à custa de muita reza vale-me o santo de me reassossegar”.

O bom mestre pediu-lhe que mandasse Dona Zina falar com ele. Daria uns conselhos de velho experimentado, habituado a lidar com as mais complicadas filosofias, psicologias, etceterologias. Ela decerto haveria de acabar com aquelas rabugências.

A mulher foi, sentou-se, aceitou um chazinho. Provocada pelo paternal Polyclínio, narrou as artes do marido, reconhecendo, entretanto, que “o safado nos últimos tempos andava mais caseiro e quieto”.

– Pois olhe, querida vizinha e amiga, eu lhe garanto que o Lico se emendou de vez e de verdade. Então acho que está na hora de dar um fim nessas brigas tolas. Proponho que a senhora, generosa como é, além de perdoá-lo, lhe ofereça uma anistia.

– Merecer ele não merece, mas já perdoei sim senhor.

– Perdão é pouco. Tem que ser anistia mesmo. Perdão é coisa que muita gente diz que dá, mas não dá. Fica com a mágoa encalhada no coração. Basta um mínimo furrubundum pra vir tudo de novo à goela.

– Se explique mais melhor, faz favor.

– Explico sim. “Anistia”, no grego, é “amnestia” (de “mnes”, que significa “memória”). Juntando o prefixo “a”, que indica “negação”, temos “a-mnestia”, isto é, algo não lembrado, varrido da memória. Anistia é o mesmo que esquecimento total.

Dona Zina ficou mais perdida do que antes. Vá lá saber que trem era esse que o velho sábio estava tentando lhe enfiar no ouvido...

– Deixemos pra lá os gregos, disse ele. Quero só que a senhora esqueça todas as descabeçadas que o seu marido andou aprontando no bem antes do hoje. Quem sabe a senhora, mesmo sendo uma abençoada pessoa, também tenha alguma parte na culpa. Mas agora que os dois estão mais maduros tratem de apagar as más lembranças e comecem de novo a vida.

– O senhor professor acha que dá?

– Acho sim. “Amnestia”... anistia... esquecimento completo... Perdão é uma palavra bonita, mas anistia tem bem mais força: enxota da memória as causas da mágoa. Se alguém fez algo errado, esqueça de vez. E bola pra frente, cabeça erguida, coração limpinho. Entende?

– Entender não entendo muito não, mas entendo sim.

– Vá em paz. E dê um abração no meu amigo Lico.
========================================
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-1-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Nadir D’Onofrio (Poemas Escolhidos) IV

BRUMAS E VARAS DE PESCA

 
Coberto por brumas
Corre o rio caudaloso
Águas, outrora serenas
Hoje, se mostram agitadas
 
Passam por corredeiras
Descem em cachoeiras
Cumpriram enfim o destino
Ao desaguar no oceano
 
Que acolherá em seu seio
Abarcando o estuário como
A mãe, aconchega o rebento
Assim, serão unos!
 
Duas varas de pesca
Arrastadas da margem...
Seguem junto, boiando
Frutos do esquecimento!
 
De um pescador desatento...
Objeto de esporte, a água levou
Só o samburá ficou...
Assim, navega o presente!
 
Levado pelo filho pródigo... rio
Que a casa dos pais retornará... o mar...
Qual  o destino das varinhas?
Isso... Netuno... decidirá...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

É PRIMAVERA
 
Cai a chuva indolente
entristecendo o dia
Que deveria estar radiante
até há pouco o sol ardia...
 
Mas as nuvens choram
lágrimas em pranto sentido
Pelo rosto de um deus destilam
o olhar da mulher, o deixa aturdido
 
Ante aflitiva confidência
e o coração da musa destroçado
Seus sonhos de amor esfacelaram...
 
Desapareceu seu homem amado!
apagou-se qual estrela cadente
Hoje as cores do arco íris desbotaram...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

FLORES

Sopra uma brisa refrescante na ilha
Farfalhado as folhas dos coqueirais
Causando inveja às açucenas
Que ladeiam o cais...
= = = = = = = = = = = = =

RENDEIRA


Dedos ágeis da rendeira
Tecem a renda de bilro
Cruzam linhas e cores
Nos alfinetes o destino...
Dedos calejados
Labuta cansativa
Deixa vagar pensamentos
Mocidade e seus momentos
À sombra da choupana

Tem o mar como cenário!

Olhar triste e perdido
Desesperança surgindo...
Onde estará seu amor?
O Raimundo pescador
Exímio jangadeiro
A noite passou
O dia clareou
A tarde findou
E ele não regressou…
= = = = = = = = = = = = =

ROMANTISMO     
 
Trago no peito a dor insuportável
lancinante, sufocante da doença
Instalada e classificada de incurável
o romantismo, arraigado, é esperança...
 
Do encontro almejado e, sempre adiável
diante dos obstáculos surge mudança
Resta-me exercitar a persistência, inabalável
atributo que extermina a desesperança
 
Finda e reinicia os anos, em longa espera
A visualizar ao longe teu semblante
Quem sabe são, lembranças de outra era!
 
Assim, nesta febre delirante
de uma paixão, não, efêmera
Percebas meu amor, abrasante!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

(SÓ) ENTRE O BREU
 
Que os ais dos meus anseios
Misturem-se, ao vento a bramir
Dissipem meus devaneios
E a angustia, que tento oprimir
 
Sem perspectivas e galanteios
A dor da saudade vou suprimir
Apago assim, os candeeiros
Imaginando poder dormir...
 
(Só), entre o breu, trovoadas
Vejo o raio partindo um galho
No rosto, lágrimas desvairadas
 
Diante do portentoso carvalho
A chuva a cair como chibatadas
E um tapete de folhas, sobre o cascalho…

Aparecido Raimundo de Souza (Aos milagres de certas graças)

AS DUAS AMIGAS, Cimara e Cineide, caminham sem pressa alguma para o ponto de ônibus. São quase onze horas. O sol está escaldante. Apesar disso, as beldades proseiam e riem animadamente, enquanto cruzam as ruas na tentativa de galgarem o ponto da condução, na praça da igreja matriz, aquela hora, apinhada de gente.

Cimara: — Mudando de pau pra cavaco, acho que não te falei. A minha mãe perdeu o celular e não sabe onde. Na volta, você me ajuda a procurar?

Cineide: — Fácil, amiga. Nem precisa se dar ao luxo. Ligue para ele...

Cimara: — Você acredita que não sei o número da minha velha?

Cineide: — Que número que você não sabe?

Cimara: — Do celular da minha mãe, ora bolas. De quem mais? Acorda, colega...

Cineide: — Eu que não sou nada da sua mãe tenho o número dela. Deixa ver aqui na agenda do meu aparelho...

Cimara: — Achou?

Cineide: — Anota ai no seu: nove, nove, nove, cinco, oito zero, zero, dois patinhos na lagoa, bolinha ó. Gravou?

Cimara: — Sim, amiga: nove, nove, nove, cinco, nove... oito zero, dois patinhos na lagoa, bolinha ó. Confere?

Cineide: — Liga logo e deixa de onda...

Cimara: — Estou fazendo isso, amiga. Droga! Ninguém atende. A bateria deve ter descarregado...

Cineide: — Vamos fazer o seguinte, Cimara?

Cimara: — Diga, amiga...

Cineide: — Que tal deixarmos os nossos salões de beleza para amanhã? Hoje, segunda-feira, deve estar assim de gente. Olhe como andam os ônibus. Aproveitando que dona Glória sai cedo para o trabalho, sugiro voltarmos agora à casa dela, já que é perto da sua e da minha e revirarmos tudo de pernas para o ar. Assim que toparmos com ele, se estiver por lá, logicamente, botamos para carregar e aí a gente liga em seguida dos nossos aparelhos até descobrirmos, de uma vez por todas, onde ele se encontra...

Cimara: — Bem pensado, Cineide. Por que não atinei com isso antes?

Cineide: — Por que você não é ninguém se eu não estiver por perto para lembrar certas coisinhas simples. Resumindo, Cimara: eu sou o pensamento vivo que aflora e você a cabeça objetiva que coloca o que mentalizo em movimento.

Cimara: — Você tem toda razão, minha linda. Sem você eu não seria nada.

Cineide: — E eu sem você me pilho como um zero à esquerda, apesar de estarmos ambas com quase trinta anos nas costas. Na volta da sua mãe, passamos em minha casa e almoçamos. Gostou da ideia?

Chegam no quintal de dona Glória. Um outro problema surge em obstáculo: Cimara não vislumbra como ganhar o interior da enorme moradia. Lembra, entrementes, que a sua genitora deixa as chaves dependuradas num local apropriado onde, aliás, repousam todas as demais pecinhas pertencentes aos outros cômodos. Sua mãe carrega, na bolsa, somente a tetra de três voltas de acesso à sala.

Cimara: — Reze, Cineide, para que a mãe não tenha feito como eu faço no meu quadrado. Por medo encadeio, com escoras, todas as janelas. A da despensa ela sempre deixa encostada...

Volteiam em torno da construção. De posse de um cabo de vassoura forçam o tal envidraçado do depósito. Realmente, não havia sido imobilizado.

Cineide: — É meio alto. Consegue subir e pular?

Cimara: — Com a sua ajuda... me disponho a qualquer travessura. Como estou de vestido, e não temos suporte de apoio. Por favor, quando me segurar, não espie a minha calcinha...

Vai daqui, tenta dali, agarra acolá, a jovem alcança seu intento. Sem mais delongas, passa a mão nas chaves da cozinha e, de reforço, a que descamba na varanda. Engrena as veredas de regresso.

Uma trabalheira danada para “despular” de onde começou a aventura. Colocar a brecha invadida na posição normal e abandonar o conforto do peitoril de mármore no qual se agarrara, atrelada ao afoito acelerado da descida. Ao se soltar, um movimento abrupto faz com que ambas se desequilibrem e beijem o chão rolando cada uma para um canto. Rostos sujos de terra, mãos e roupas igualmente emporcalhadas, Cimara exibe num sorriso contagioso o resultado edificante do que se propusera em sua missão:

— Pronto, amiga. Agora podemos escolher. Você prefere vir comigo pelo conforto da sala ou começamos a escalada usando os descaminhos tortuosos dos fundos?

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 29: Rodolpho Abbud

 

Nilto Maciel (Menino Insone)

Vontade de falar com a mãe: não conseguia dormir. As sombras das redes nas paredes, nas portas, no guarda-roupa, no chão escondiam almas. A luz da lamparina bruxuleava. Súbito uma novidade: o irmão menor bota as pernas fora da rede, senta-se, levanta-se e caminha em direção a uma das portas.

Para onde irá?

Abre a porta e some no corredor.

O menino quer falar com a mãe. Ela dorme e poderá se assustar. Melhor ir atrás do outro.

E se ele também estiver dormindo?

Muitas vezes lhe disseram: não se deve acordar quem anda durante o sono. Pode morrer. O menino permanece de olhos bem abertos, atento à luz da lamparina, às sombras, aos pequenos ruídos.

Por onde andará o irmão? Terá ido ao banheiro?

Possivelmente não, pois não abriu a porta para o quintal.

Um ratinho corre pelo canto da parede. O pai ronca no quarto ao lado. Um cachorro late longe. Outros dão resposta.

Será nos quintais ou no meio das ruas? O dia está para chegar ou falta muito tempo para clarear? Nenhum galo cantou ainda.

E o irmão? Estará dormindo no chão do corredor, da cozinha, junto às baratas?

O menino fecha os olhos. O rato deve ter sumido num buraco. Será profundo, raso, estreito, largo? Outros ratos habitarão aquele mundo de trevas. Lá não deve haver lamparinas. Quem as acenderia? Quem compraria querosene? E o perigo de incêndio! Não, não há perigo. Tudo é calmo, tudo é calmaria. Bichinhos são lindos. Coelhos correm pelo chão gramado da praça. Todos muito brancos, olhinhos arregalados, focinhos trêmulos. Queremos comer cenoura, seu menino. Onde vou arranjar cenouras, meus amigos? Então vamos brincar de correr.

Não havia mais ninguém na praça, um ventinho soprava as folhas das árvores, os cabelos do menino. Chovia fininho. Um arco-íris enorme cobria a praça, a cidade, a serra, o mundo. Tudo colorido. O sol se escondia atrás de um monte alto. Passarinhos voavam e piavam no céu. Outros meninos corriam e brincavam na praça. O menino abriu os olhos. A luz da lamparina parecia se apagar. Silêncio absoluto no quarto. O pai não roncava mais. Na rede ao lado o outro menino dormia. Pareceu-lhe ouvir um galo cantar.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) IX, motes e glosas


Não tenho merecimento
Pra morrer como Jesus.


O divino Nazareno,
Por falsas acusações,
Morreu entre dois ladrões,
Mas altaneiro e sereno;
Eu, que sou fraco e pequeno,
Diante da grande luz,
Só devo morrer na cruz
Do espinhaço de um jumento...
Não tenho merecimento
Pra morrer como Jesus.

= = = = = = = = = = = = =

"Nosso velho burocrata
Diz não ter substituto."


O livro cheira a barata..
O balcão suja os clientes;
Cochila detrás das lentes
Nosso velho burocrata.
Falta o termo, esquece a data,
Mastiga mais um minuto...
Pra recolher o tributo,
O freguês fica maluco,
Mas, mesmo assim, o caduco
Diz não ter substituto.
= = = = = = = = = = = = =

Quando eu morrer, vão dizer
Que fui poeta e mais nada.


Não tive roupas modernas;
A vida não me deu prêmios,
Porque fui um dos boêmios
Da perdição das tavernas;
Inda tenho boas pernas
Para os sopapos da estrada,
Mas, logo ao fim da jornada,
O mundo vai me esquecer...
Quando eu morrer, vão dizer
Que fui poeta e mais nada.


Não vivo só de cantar
O que a poesia me aponta,
Trabalho para dar conta
Dos encargos de meu lar;
não vivo em mesa de bar,
bebo na minha morada,
mas, os de língua malvada,
contestando meu viver,
quando eu morrer, vão dizer
que fui poeta e mais nada!

= = = = = = = = = = = = =

Só tenho felicidade
Quando faço alguém feliz.


Eu não sei comer sozinho
O pão que a vida me dá;
Quero que um pedaço vá
Para a mesa do vizinho;
Quando à margem do caminho
Encontro uma flor de lis,
Faço como sempre fiz:
Dou a alguém por amizade...
Só tenho felicidade
Quando faço alguém feliz.


Minha alegria se some
E minha alma cambaleia,
Se estou de barriga cheia,
Vendo crianças com fome;
Peço até que Deus me tome
Aquilo que eu sempre quis,
Se eu me mostrar na matriz
esquecendo a caridade...
Só tenho felicidade
Quando faço alguém feliz.

= = = = = = = = = = = = =

Vindo ao mundo, peguei o trem da vida,
Mas não sei o tamanho da viagem.


– Neste mundo, ninguém tem a medida
Do caminho do berço para a morte,
E eu, que tinha de achar algum transporte,
Vindo ao mundo, peguei o trem da vida;
Anotei o momento da partida
E enfrentei a jornada com coragem;
Deus me deu o bilhete da passagem
E mandou-me seguir estrada afora,
Inda estou caminhando até agora,
Mas não sei o tamanho da viagem.

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014
Livro enviado por Rosileide Barros.

Lucy Hay (Dicas de Escrita) Como escrever o esboço de um Enredo = Parte 2

USANDO O MÉTODO DO FLOCO DE NEVE

1. Resuma o enredo em uma frase.

O método do floco de neve é muito comum na estruturação de romances, mas também serve para contos e outros textos curtos. Nele, você vai poder explorar o enredo em incrementos e estruturar as cenas em uma planilha. Para começar, resuma toda a história em uma frase que a explique bem.

Escreva um resumo breve e direto, sem incluir descrições específicas demais ou mesmo nomes próprios.

Não passe de 15 palavras e concentre-se no grande tema do enredo.

Por exemplo: o livro Garota Exemplar, da norte-americana Gillian Flynn, poderia ser resumido como "Um casamento aparentemente perfeito é arruinado quando a esposa desaparece".

2. Resuma o enredo em um parágrafo.

Depois de resumir a história em uma frase, é hora de você expandir o conceito a um parágrafo inteiro que descreva a ambientação, os principais eventos, o clímax e o final. Você pode usar a estrutura de "três desastres e um final", na qual três coisas ruins acontecem na história antes de ela chegar ao clímax. O objetivo é pensar em eventos cada vez piores, mas que sejam resolvidos pelo protagonista no fim das contas.

Escreva um parágrafo com cinco frases. Uma delas deve descrever a ambientação; depois, uma deve falar de cada evento desastroso (com um total de três); em seguida, a última frase deve descrever o final.

Veja um exemplo de parágrafo:

"Para todo mundo que vê de longe, Nick e Amy parecem ter um casamento perfeito. No entanto, Amy desaparece sob circunstâncias misteriosas em uma noite e surge a hipótese de que havia uma trama secreta contra ela. Nick é acusado por assassinar a esposa e se vê obrigado a se defender perante um júri. Depois, ele descobre que a esposa fraudou a própria morte e está viva, mas determinada a colocá-lo atrás das grades. Nick a confronta e eles discutem, mas no fim das contas Amy o convence a continuar casado com ela com uma ameaça".

3. Crie sinopses para os personagens.

Depois de escrever o resumo, é hora de se dedicar aos personagens. Crie uma história para cada um e inclua características importantes, como nome, motivação, objetivos, conflitos e epifanias. Dedique um parágrafo a cada um desses elementos.

As sinopses dos personagens não precisam ser perfeitas. Você provavelmente vai fazer algumas alterações quando começar a escrever cenas do romance final. No entanto, elas dão uma boa ideia de quem esses personagens são e de que papel eles exercem no enredo.

Veja um exemplo de sinopse de personagem:

"Nick tem 35 anos e trabalha como repórter, mas é demitido após dez anos de empresa. Ele está casado com Amy há também dez anos e a vê como 'menina de ouro', a esposa e a parceira ideal. No entanto, o desemprego começa a afetar a sua autoconfiança, principalmente quando se lembra de que Amy vem de uma família rica e herdou uma fortuna há pouco tempo. Ele acha que tem que ser o provedor do casamento e se sente ameaçado pela independência financeira e pelo sucesso profissional da esposa. Quando Amy desaparece, ele vive um conflito entre tentar encontrá-la e retomar sua infelicidade conjugal. Com o tempo, Nick acaba percebendo que a sua esposa tramou para acusá-lo do desaparecimento dela".

4. Crie uma planilha com cenas.

Depois de escrever o resumo em um parágrafo e as sinopses de cada personagem principal, é hora de você juntar os dois e transformar esses resumos em cenas. Essa lista dá uma noção melhor do enredo da história como um todo.

Use um programa de planilha, como o Excel, para organizar as cenas na ordem em que elas aparecem. Você pode ter algo entre 50 e 100 cenas, dependendo do tamanho da história. Faça duas colunas, uma para os personagens cujos pontos de vista o leitor acompanha e outra para explicar brevemente o que acontece. Em seguida, comece a listar também os eventos um a um usando o resumo como guia.

Por exemplo:

"Nick descobre que Amy desapareceu. Personagem central: Nick. O que acontece: Nick chega em casa depois de passar a noite trabalhando como bartender e nota que a porta de entrada foi arrombada. Ele também encontra uma poça de sangue no corredor e sinais de combate físico na sala, com poltronas reviradas e marcas de unhas nas paredes. Nick procura na casa inteira, mas não encontra Amy".


Continue fazendo isso com cada cena que está naquele resumo de um parágrafo. Quando terminar, você vai ter a estrutura geral do enredo e a lista de cenas que o integram, o que facilita bastante a sua vida na hora de montar o texto final.

Fonte:
Traduzido de https://www.wikihow.com/Write-an-Outline-for-a-Story

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 20

 

Franz Kafka (O Novo Advogado)

Temos um novo advogado, o dr. Bucéfalo. Há muito pouco em seu aspecto que nos lembre ter sido ele certa vez o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia.

Claro, se você conhece sua história, você é pessoa bem informada. No entanto, mesmo um simples meirinho, a quem eu vi outro dia nas escadas de entrada do Palácio da Justiça, um homem com a consideração profissional de um pequeno apostador das corridas, lançava seus olhos estupefatos para o advogado na medida em que ele subia os degraus de mármore levantando bem as pernas e fazendo ressoar suas pisadas.

De um modo geral, a Ordem dos Advogados aprovou a admissão de Bucéfalo. Com admirável compreensão, diziam que, sendo a moderna sociedade o que é, Bucéfalo está em situação difícil, e portanto, considerando também sua importância na história do mundo, ele merecia, pelo menos, uma recepção amistosa. Atualmente - não se pode negar - não existe mais Alexandre o Grande. Há um grande número de homens que sabe matar pessoas; a destreza de atingir com a lança um amigo do outro lado da mesa de um banquete é coisa que não falta; e para muitos a Macedônia é demasiadamente estreita, tanto que estas pessoas amaldiçoam Felipe, o pai - mas ninguém, ninguém de fato conhece o caminho para as Índias. Mesmo na época de Alexandre as portas da Índia estavam fora de alcance, embora a espada do Rei apontasse o caminho para eles.

Hoje as portas foram removidas para bem mais longe e para bem mais alto; ninguém mostra o caminho; muita gente usa espadas mas apenas para brandi-las, e o olhar que tenta segui-los se confunde.

Assim, talvez seja melhor fazer o que Bucéfalo fez e mergulhar nos livros de direito. À luz suave do candeeiro, com os flancos livres do incômodo das esporas de qualquer cavaleiro, liberto e longe do clamor das batalhas, lê e vira as páginas dos nossos alfarrábios.

Fonte:
Franz Kafka. Um médico rural. Publicado em 1919.

Odenir Follador (Crestomatia Trovadoresca)

A foto ou fotografia
revela muita emoção,
deixa a marca desse dia
 impressa no coração!

A imagem que eu possuía
e guardei com tanto amor...
A sua fotografia,
aos poucos, ficou sem cor!

A mulher é como a flor,
necessita de carinho...
E é somente com amor,
que ganhamos um beijinho!

Arte é a demonstração
de criar o mundo em verso;
é para o escritor a visão
subjetiva do universo!

A trova é fácil, quer ver?
Quatro versos bem rimados,
sete sílabas conter,
com assuntos bem formados!

Chora junto àquela fonte
a bela moça donzela...
Raios de sol do horizonte
brilham nas lágrimas dela.
5. Lugar – I Concurso de Trovas “Singrando Horizontes”, Estadual (PR), 2019.

Deus criou o Paraíso,
o Céu e todo o Universo...
Mas, o homem perdeu o juízo
ao criar um mundo inverso!

É comum em residência
ter a proteção de um cão;
por vezes sem assistência,
de teto e alimentação!
5. Lugar – I Concurso de Trovas "Memorial Luiz Otávio" da Delegacia de Arapongas/PR, Estadual (PR), 2016.

Eu já não sei o que faço
nas linhas do meu caderno,
cada palavra que traço
lembra nosso amor eterno.

Feliz dias dos avós!
E de Sant’Ana também!
Que derrame sobre vós
graças e saúde... Amém!

Lua é a inspiração
aos casais enamorados;
neste clima de emoção
aos beijos, apaixonados...

Mãe... Oh! Palavra sublime
por três letras é formada;
e tão grande amor se exprime
nesta palavra encantada!

Nas festas juninas têm:
pipoca, doce e quentão;
dança caipira e também:
fogos, fogueira e pinhão.

Nas horas que não consigo
e não sei mais o que faço;
vem resolver um amigo
com a força de um abraço!

Neste incrível universo    
do mundo da poesia;
sendo aprendiz, tento imerso
nos meus versos, noite e dia!

Neste mágico momento
que desce a temperatura;
em flocos e muito lento
a neve queda, alva e pura!

Netos! Um encantamento...
Alegria que traduz
recordações  no momento,
de uma paz e muita luz!

Nosso Santo protetor...
Salve São Francisco... Amém!
Patrono do trovador,
proteja a fauna também!

O dia do trovador
é pra sempre ser lembrado;
pois a trova tem valor
de brilhante lapidado!

Onde reside a humildade,
sempre ajudo, mas confesso:
não quero ter a verdade,
muito menos o sucesso.

Plantando haverá colheita,
nos diz um velho ditado;
só não colhe quem rejeita,
um solo bem preparado.

Quem encontrar um amigo
trate com muito cuidado;
preserve sempre consigo
esse tesouro encontrado.

Quisera ninguém mais visse!
Nem ódio, guerra ou maldade,
e todo mundo se unisse:
Em raça, cor e amizade.

Saudemos a primavera,
estação linda das flores;
oh! Se eu pudesse... Quem dera!
Cantar-te em versos e cores.

Ter pureza natural
é ser correto, é atitude!
Ser verdadeiro, real,
é legítima virtude!

Toda ação final se alcança
com a equipe em união;
onde existe liderança,
há também satisfação!
7. Lugar – II Concurso de Trovas "Memorial Luiz Otávio", da UBT Delegacia de Arapongas/PR – Estadual (PR), 2018.

Todo álcool é semente
do usuário de bebida;
tornando-o dependente,
com risco da própria vida.

Todo professor ensina
com muita dedicação...
Escreve, fala, examina,
e o aluno aprende a lição!

Todo texto literário
lapidado pelo autor,
tem como destinatário
os olhos do seu leitor.

Uma linda foto antiga    
traz boas recordações,
saudades que nos instiga
a reviver emoções!

Um momento singular
de alegria e de emoção...
É para sempre guardar
no fundo do coração!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Odenir Follador, nasceu em 31 de maio de 1948, em Taquaruçu, Distrito de Palmeira-PR, faleceu em Ponta Grossa/PR, onde se radicou, em 23 de novembro de 2021.

Formado como Técnico de Contabilidade em 1975, Licenciado em Ciências em 1979, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e Licenciado em Letras – Português/Inglês em 2017, pela UniCesumar de Maringá-PR. Pós-graduação “Lato Sensu” em Neuroaprendizagem, pela UniCesumar em 2019.

Atuou como Militar no 13º Batalhão de Infantaria Blindado de 1967 a 1977, e como Economiário na Caixa Econômica Federal, em Castro e Ponta Grossa, nas funções de Escriturário, Caixa Executivo, Gerente de Núcleo e Supervisor, até sua aposentadoria.

Atuou por algum tempo como professor de Matemática, e como professor de Ciências. Teve experiência por algum tempo com professor de música.

Acadêmico de diversas academias, como ACLAB – Academia de Ciências Letras e Artes Belforroxense, Rio de Janeiro-RJ (correspondente); Academia de Letras Brasil/Suíça (correspondente); Academia de Letras dos Campos Gerais, Ponta Grossa-PR (efetivo); Academia de Letras de Teófilo Otoni – MG (correspondente); Academia Ponta-grossense de Letras e Artes, Ponta Grossa-PR (efetivo); Academia de Artes de Cabo Frio -RJ; Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes, Rio de Janeiro –RJ (correspondente); Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes, Niterói-RJ (correspondente); Movimento Nacional Elos Literários, Salvador – BA (efetivo); Ordem dos Benfeitores Culturais da Humanidade, Rio de Janeiro-RJ (correspondente); Organização Mundial dos Defensores dos Direitos Humanos (efetivo).

Figurante do filme Cafundó em Ponta Grossa em 1999, lançado no Brasil em de 2005.

Premiado em concursos de trovas, poesias e contos no Brasil e exterior.

Em 2015, a Câmara Municipal de Ponta Grossa lhe conferiu o Título de Cidadão Honorário de Ponta Grossa, pelos relevantes serviços prestados á Comunidade e ao Município.

Em 2016, O Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes do Rio de Janeiro, lhe confere a Medalha no Grau Oficial “Ordem do Mérito Conìnter Artes”.

Em 2016, o Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes & o Instituto Comnène Palaiologos de Educação e Cultura, lhe concede a Medalha e outorga a Comenda da Paz Nelson Mandela, com direito ao uso do Título Honorífico de Comendador, em reconhecimento de Suas contribuições de destaque nas diversas áreas de trabalho, bem como os Seus Atos que contribuíram através de Serviços Prestados à Humanidade, através da Influência Intelectual, Científica e Artística.

Livros publicados:
Memórias de infância e outros relatos (Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2012) e Associação dos Militares da Reserva–ASMIRE (Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2015).


Fonte:
Trovas enviadas pelo trovador.

Isaac Asimov (Versos na luz)

A última pessoa deste mundo que alguém julgaria um criminoso era a sra. Avis Lardner. Viúva do grande mártir da Astronáutica, era filantropa, colecionadora de arte, uma extraordinária anfitriã e, todos concordavam, um gênio artístico. Acima de tudo, era o mais gentil e bondoso ser humano que se podia imaginar.

O marido, William J. Lardner, morreu, como todos sabemos, devido aos efeitos da radiação da luz solar, após ter deliberadamente permanecido no espaço, a fim de que uma espaçonave de passageiros pudesse levar seu veículo espacial em segurança à Estação Espacial n°5.

Por isso a sra. Lardner havia recebido uma generosa pensão, a qual investira bem e com muita sabedoria. Ao fim da meia-idade, estava rica.

Sua casa era uma espécie de exposição permanente, um verdadeiro museu, contendo uma coleção de lindas joias, pequena, porém de extremo bom gosto. De uma dúzia de diferentes culturas havia conseguido relíquias de quase toda peça de artesanato concebível que pudessem ser engastadas de joias para servir à aristocracia daquela mesma cultura. Possuía um dos primeiros relógios de pulso, adornado de pedras preciosas, fabricado na América, uma adaga incrustada de pedras preciosas, procedente do Camboja, um par de óculos, decorado com joias, vindo da Itália, e assim por diante, interminavelmente.

Tudo estava aberto ao público. As peças de artesanato não estavam no seguro, e não havia nenhuma providência comum no sentido de garanti-las. Não havia a necessidade de nada convencional, porquanto a sra. Lardner mantinha um corpo de auxiliares, constituído de robôs-servos, a cada um dos quais podia se confiar a guarda de cada um dos objetos, tendo eles imperturbável concentração, irrepreensível honestidade e irrevogável eficiência.

Todos sabiam da existência dos robôs e não há registro de ter algum dia ocorrido alguma tentativa de furto.

E havia também, é claro, sua escultura-luz.

Como a sra. Lardner descobriu seu próprio gênio para a arte, nenhum convidado de suas pródigas reuniões conseguia adivinhar. Contudo, em cada ocasião, quando a sra. Lardner abria a casa para os convidados, uma nova sinfonia de luz percorria os aposentos de um lado ao outro; curvas e sólidos tridimensionais, numa mescla de cores, algumas puras, outras difusas, em surpreendentes efeitos cristalinos que mergulhavam no assombro cada convidado, e que se ajustavam por si mesmos, de forma a embelezar os cabelos macios e azulados e o rosto de contornos pouco definidos da sra. Lardner.

Era por causa da escultura-luz, mais do que por qualquer outra coisa, que os convidados apareciam. Nunca era a mesma duas vezes, e nunca deixava de explorar novos enfoques da arte.

Muitas pessoas que podiam comprar consolo-luz preparavam esculturas-luz por diversão, mas ninguém chegava nem de longe a igualar a perícia da sra. Lardner. Nem mesmo aqueles que se consideravam artistas profissionais.

Ela mesma era encantadoramente modesta a respeito disso – Não, não – dizia ela, quando alguém destilava lirismo. – Eu não a denominaria “poesia na luz”. Isto é ser bondosa demais. No máximo, eu diria que se trata de meros “versos na luz” – e todos sorriam da sutil tirada de espírito.

Embora fosse solicitada frequentemente a fazê-lo, jamais criava “escultura-luz” em outras ocasiões, salvo em suas próprias festas.

– Seria comercialização. – costumava dizer.

Contudo, não objetava à preparação de elaborados hologramas de suas esculturas, de forma que se tornassem permanentes e fossem reproduzidos em todos os museus do mundo. Tampouco nunca cobrou nada pelo uso que pudesse ser feito de suas “esculturas-luz”.

– Eu não teria coragem de cobrar um centavo. – dizia ela, abrindo bem os braços. – É de graça para todos. Afinal de contas, eu mesma a uso durante pouco tempo.

Era verdade, ela nunca utilizava duas vezes a mesma “escultura-luz”.

Ela própria cooperava quando eram feitos os hologramas. Observando benignamente cada etapa, estava sempre pronta a mandar que os robôs ajudassem.

– Por favor, Courtney, quer ter a bondade de ajustar a escadinha?

Era o seu estilo. Sempre se dirigia aos robôs com a mais formal das cortesias.

Certa ocasião, há muitos anos, quase fora repreendida por um funcionário federal do “Bureau of Robots and Mechanical Men”:

– Não pode fazer isto. – disse ele severamente. – Interfere na eficiência deles. São construídos para cumprir ordens e quanto mais claramente lhes der ordens, mais eficientes as cumprirão. Quando pede com elaborada polidez, compreendem com dificuldade que está sendo dada uma ordem. Reagem mais lentamente.

A sra. Lardner ergueu a aristocrática cabeça:

– Não exijo rapidez e eficiência. – disse ela. – Peço boa vontade. Meus robôs me amam.

O funcionário poderia ter explicado que robôs não podem amar, mas murchou sob o olhar ofendido, ainda que meigo, dela.

Era fato conhecido de todos que a sra. Lardner jamais remeteu um robô à fábrica para ajustamentos. Seus cérebros positrônicos eram de enorme complexidade, e quando saem da fábrica, um em dez não está perfeitamente regulado. Às vezes o desajuste não se revela durante um período de tempo, mas sempre que um engano se manifesta, a “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation” efetua a correção gratuitamente.

A sra. Lardner sacudiu a cabeça:

– A partir do momento em que o robô está em minha casa, – disse – e cumpre com seus deveres, as excentricidades secundárias devem ser toleradas. Não permitirei que seja maltratado.

Era a pior coisa possível tentar explicar que um robô era apenas uma máquina. Ela dizia inflexivamente:

– Nada que seja tão inteligente como um robô pode ser apenas uma máquina. Trato-os como gente.

E pronto!

Ela conservava até mesmo Max, embora fosse quase inútil. Mal se podia compreender o que se esperava dele. Contudo, a sra. Lardner insistia:

– Absolutamente, – dizia firmemente – ele é capaz de pegar e guardar chapéus e casacos perfeitamente. Segura objetos para mim. Sabe fazer muitas coisas.

– Mas por que não manda regulá-lo? – perguntou um amigo, certa ocasião.

– Oh, eu não teria coragem. Ele é ele mesmo. É muito amável, sabe? Afinal de contas, um cérebro positrônico é tão complexo que ninguém consegue saber onde está enguiçado. Se fosse ajustado para a perfeita normalidade, não haveria meios de recuperá-lo para a amabilidade que possui agora. E eu não quero desfazer-me dele.

– Mas, se ele está mal regulado, – disse o amigo, olhando nervosamente para a sra. Lardner – não poderá ser perigoso?

– Nunca! – a sra. Lardner deu uma risada. – Tenho-o há anos. É completamente inofensivo e é um amor.

Na verdade, ele tinha a mesma aparência de todos os outros robôs: liso, metálico, vagamente humano, mas inexpressivo.

Contudo, para a bondosa sra. Lardner, todos eram gente, pessoas, todos meigos, todos adoráveis. Ela era assim.

Como poderia cometer um crime?

A última pessoa que alguém esperaria que fosse assassinado seria John Semper Travis. Introvertido e de modos suaves, estava no mundo, mas não pertencia a ele. Possuía aquele peculiar talento para a Matemática que lhe tornava possível resolver mentalmente o complexo entrelaçamento de uma miríade de circuitos positrônicos cerebrais da mente de um robô.

Era o engenheiro chefe da “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation”.

Mas era também um entusiasmado amador em “escultura-luz”. Havia escrito um livro sobre a matéria, no qual tentava mostrar que o tipo de Matemática que utilizava para resolver problemas de circuitos de cérebros positrônicos poderia ser modificado para servir de guia na produção da estética da “escultura-luz”.

No entanto, sua tentativa de colocar a teoria em prática foi um fracasso desanimador. As esculturas que produziu, segundo seus princípios matemáticos, eram pesadas, mecânicas e sem interesse.

Era a única razão de infelicidade em sua vida tranquila, introvertida e segura, no entanto era razão suficiente para sentir-se profundamente infeliz. Ele sabia que suas teorias eram corretas, se bem que não conseguisse pô-las em ação. Se não conseguisse produzir uma boa peça de “escultura-luz”…

Naturalmente, estava a par da “escultura-luz” da sra. Lardner. Ela era universalmente aplaudida como um gênio, muito embora Travis soubesse que era incapaz de compreender mesmo o mais simples aspecto da matemática dos robôs. Havia trocado correspondência com ela, mas ela recusava-se obstinadamente a explicar seus métodos, levando-o a perguntar-se se ela possuía mesmo algum. Não seria mera intuição? – mas mesmo a intuição pode ser reduzida à matemática. Finalmente, ele conseguiu receber um convite para uma das festas. Precisava avistar-se com ela a todo custo.

O sr. Travis chegou bem tarde. Havia feito uma última tentativa com uma peça de “escultura-luz”, que resultara num fracasso desalentador.

Cumprimentou a sra. Lardner com uma espécie de enigmático respeito e disse:

– Estranho aquele robô que pegou meu chapéu e casaco.

– Aquele é Max. – disse a sra. Lardner.

– Está muito desregulado e é um modelo bem antigo. Por que razão não o manda para a fábrica?

– Oh, não! – disse a sra. Lardner. – Seria demasiado trabalho.

– De modo nenhum, sra. Lardner. – disse Travis. – A sra. ficaria surpresa com a simplicidade do trabalho. De vez que sou da U.S. Robots, tomei a liberdade de ajustá-lo pessoalmente. Não levou tempo e a sra. verá que ele está agora em perfeitas condições de funcionamento.

Uma estranha mudança ocorreu no rosto da sra. Lardner. A fúria estampou-se nele pela primeira vez em sua existência sossegada. Era como se os traços fisionômicos não soubessem qual posição tomar.

– Ajustou-o? – perguntou com voz aguda. – Mas foi ele que criou as minhas “esculturas-luz”. Foi o ajustamento defeituoso, o desajuste, que você jamais conseguirá restaurar… aquele…

Foi uma grande desgraça que ela estivesse mostrando sua coleção naquele momento e que a adaga com cabo cravejado com pedras preciosas, procedente do Camboja, estivesse sobre o tampo de mármore na mesa em frente dela.

A fisionomia de Travis também se distorceu:

– A sra. quer dizer que, se eu tivesse estudado o estranho cérebro positrônico dele, eu poderia ter aprendido…

Ela avançou com a arma com demasiada rapidez para alguém detê-la. Ele não tentou se esquivar ao golpe. Há quem diga que foi ao encontro dele – como se quisesse morrer.

Fonte:
Isaac Asimov. Nós, Robôs. Publicado em 1982.

Minha Estante de Livros (Solo de Clarineta, de Érico Veríssimo)


Solo de clarineta é uma obra múltipla: reflexões de um escritor sobre sua ficção e a arte literária, testemunho de um período da história brasileira e mundial, e retrato de uma família que parece tirado de um romance.

O leitor mergulha no caldo da matéria-prima de onde brotou a obra do autor de O tempo e o vento nos dois volumes que revelam a trajetória da família Verissimo, desde Érico garoto, passando pela decadência econômica da família, pela luta da mãe para manter os filhos com o trabalho de modista, pelas leituras de um menino à sombra de uma ameixeira-do-japão, até a consagração de Érico Verissimo como um dos escritores mais importantes da literatura brasileira.

Solo de Clarineta é dividida em dois volumes:

O primeiro volume de Solo de clarineta (1973) Veríssimo conta a sua infância e adolescência até a idade adulta quando abandona o cargo na UPA e sua filha Clarissa casa-se com o físico americano David Jaffe. No segundo, após relatar o nascimento de seus três netos e o denominar de O Arquipélago , relatando também o primeiro dos ataques cardíacos, Érico começa a contar sua viagens. A primeira é a viagem à Grécia. Depois conta sobre O Senhor Embaixador e então… Portugal! Veríssimo era apaixonado pelo país e conta de seu tour pelo país em 1959 junto com a esposa Mafalda, seu editor e seu filho Luís Fernando. Infelizmente, Érico morreu antes de concluir este volume, essa segunda parte foi organizada postumamente por Flávio Loureiro Chaves e publicada em 1976, segunda parte deste segundo volume, contando sobre a Holanda, a Espanha e um colóquio entre ele e o homem no espelho através do qual ele analisa a si mesmo, sua obra, suas opiniões e sua autobiografia: o que ele nos deu foi "não um concerto de jazz ou uma grande peça sinfônica, mas um solo de clarineta.”

Nessa edição, os volumes apresentam prefácio e apresentação inéditos, uma cronologia que cruza dados biográficos da família Verissimo com a vida dos personagens das obras mais famosas de Érico, e um caderno com fotos, manuscritos e desenhos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 546

 

Leandro Bertoldo Silva e Valéria Gurgel (Qual o mundo que você quer?)

 (Texto inicial de Leandro Bertoldo Silva, o “Quixote das Gerais”)

Há um tempo escrevi uma reflexão sobre a pandemia e fiquei a pensar como ele, o tempo, muda de perspectiva. O passado já não existe e o futuro ainda virá e, assim, além de acarretar uma sobrecarga no presente, faz muitas coisas se perderem, inclusive nossas responsabilidades com nós mesmos.  

Para quem escreve, excetuando os clássicos, que só são clássicos por nunca serem esquecidos, pode ser meio frustrante se sentir desatualizado ou, no mínimo, ver se tornar desimportante algo tão sério e talvez diminuído na fala dos que ainda virão. Já pensou ouvir daqui a alguns anos algo do tipo: “Ah, não liga não! Esse negócio de pandemia que o vovô fala é láááá do ‘tempo do onça’ (assim como essa expressão). Hoje não tem importância nenhuma, é só uma ‘gripezinha’”. Tomara mesmo ser uma gripezinha com o avanço da ciência… No entanto, na iminência de deixar vivo o alcance de nossos atos, devo acrescentar apenas uma pergunta ao final do escrito. Foi assim…

Que momento vivemos! É engraçado — sim, há “graça” em tudo isso — pensar na única certeza existente: as incertezas.

Sou do tipo de pessoa a acreditar naquele ditado: “se a vida te deu um limão, faça uma limonada”. Pois é, a vida não nos deu um limão, mas uma plantação inteira.

Estou a falar dessa medonha pandemia que em momento algum da humanidade a história registrou algo tão surpreendente. Mas não quero dizer aqui mais do que os jornais, os especialistas e as autoridades já noticiaram; quero ir além do medo, se é possível, e pensar nisso tudo como um grande presente, uma grande oportunidade de uma mudança absurdamente necessária em nossas vidas, pelo menos na minha.

Há tempos vivenciava uma angústia por não conseguir expressar meu sentimento ao olhar para as coisas do mundo, de como as pessoas, e até mesmo eu, iam dispondo suas vaidades, suas “certezas” e opiniões em um mundo tão superficial. De repente a felicidade passou a ser medida pela nossa popularidade, pela quantidade de “amigos” e seguidores e, depois, nem isso – bastam as curtidas, o resto não interessa.

Em um mundo onde tudo virou marketing – e da pior espécie – ao ponto de nos vermos invadidos por uma onda de propagandas de produtos e serviços os quais sequer necessitamos ou temos interesse, em um mundo onde até os sorrisos são vendidos por uma camuflada onda de “gatilhos mentais” para capturar nossa atenção e vender felicidade de forma fácil, para não dizer mágica, a custo da inocência do desejo, vem a vida e nos obriga a parar com tudo isso e a pensar unicamente em sobreviver.

Mas sobreviver para quê?

Para voltar ao que era antes? Voltar ao trabalho da mesma maneira como se nada tivesse acontecido ou simplesmente termos tirado umas férias inesperadas? Voltar às enxurradas de postagens marqueteiras e à vida superficial das redes sociais? Voltar a tratar o outro como inimigo porque pensa diferente, embora também não sejamos obrigados a ser cordiais com quem nos faz mal e termos o direito de nos afastar? E por que não fazemos? Porque temos medo de sermos sinceros com nós mesmos e, por isso, suportamos o insuportável? Sabe aquele pensamento: “eu te respeito, mas isso não significa que eu preciso ser seu amigo?” Sabe aquele trabalho que você realiza porque é obrigado a ganhar dinheiro, pois se não fosse isso você não o faria? Sabe tantas outras coisas ditas e acreditadas pela verdade dos outros?

Pois é… Para esse mundo eu não quero mais voltar.

Quero o mundo onde eu continue a escrever, porque escrever é a minha sobrevivência, mas sem me ver preso nas correntes ocultas a me forçar a divulgar para todo mundo. Deixa-me falar uma coisa: estou a compreender que o que fazemos não é para todo mundo… Este blog não é para todo mundo, os meus livros não são para todo mundo, nem mesmo este texto é para todo mundo, mas para quem, por alguma razão, se alinha com o meu estado de espírito e com a minha forma de pensar. Pode não ser, e certamente não é, melhor e nem pior do que a de ninguém; é simplesmente minha e nossa para quem nos irmanamos. E isso basta.

Quero o mundo onde a obrigação de trabalhar não destrua o prazer que o trabalho me traz e nem mesmo faça parte da minha vida; onde as pessoas entendam o meu jeito de fazer as coisas. Pode até não ser o delas, e está tudo bem.

Quero o mundo onde eu tenha menos amigos virtuais e mais amigos reais. O mundo onde a tecnologia seja usada a meu favor e não o contrário. O mundo o qual não seja preciso me afastar das pessoas para dizer o quanto gosto delas e futuramente eu me arrepender de não tê-lo feito. Quero um mundo tão diferente…

Sabe o que mais penso de tudo isso?

Para esse mundo poder existir eu precisarei ressignificar dentro dele quem eu sou ou quem eu fui. Não é ele a mudar, mas eu na minha ignorância de me fechar em meus medos por achar não dar conta dos desafios que é não pertencer a lugares, relacionamentos, formas de trabalho há muito perdidas por não mais acreditar dessa ou daquela maneira.

E aqui está a “graça”, não hilária, mas da permissão de sermos autênticos e fazermos diferente, pois, embora a palavra mudança traga calafrios gigantescos em nossos corações, nos colocamos nessa situação de ter nela a única forma de salvar a nós mesmos e os outros, nos olhando de verdade e transformando as incertezas em possibilidades.

E VOCÊ, QUAL O MUNDO QUE VOCÊ QUER?

E aqui acrescento a pergunta a tornar essa reflexão universal e duradoura, a considerar a vitória da ciência. Passado tudo isso e a olhar para você, mas olhar bem, em qualquer tempo e em qualquer lugar, responda: é esse o mundo que você quis?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

QUAL O MUNDO QUE VOCÊ QUER?

por Valéria Gurgel


Eu dei a minha resposta! Uma carta desabafo que gostaria muito que também fosse lida por Miguel de Cervantes! Claro, se ele hoje pudesse ter acesso às nossas atuais realidades, mas, que para dizer a verdade, vejo que o mundo e a humanidade não caminha! Até hoje mal rasteja por aí! E percebo que dentro de cada um de nós habita um Dom Quixote e um Sancho Pança!!! Vamos à resposta.
__________

Querido amigo “Quixote das Gerais”, Don Leandro Bertoldo! Essa é a minha humilde carta, que eu, Valéria Gurgel, gostaria ter enviado para Miguel de Cervantes!

Se eu pudesse analisar o mundo em que vivemos, baseado no contraste entre o Cavalheiro Sonhador que nos inspira a agir e o de seu Fiel Escudeiro realista e sua revigorante humanidade, eu diria que seguimos oscilando o pêndulo da razão e da emoção.

Essa busca constante pelo equilíbrio tão almejado que poderia dar fim ao egoísmo, chaga sangrenta essa, que só atrasa o processo evolutivo da humanidade, não cessa. Somos bombardeados a cada século, a cada ano, meses, dias, horas por inúmeros e constantes desafios. Doenças, conflitos familiares, conflitos internos, externos, desigualdades, insanidades inumanas e limitações financeiras, físicas, psíquicas, que resultam em letargiar nossas ações, reações e decisões no cotidiano da vida. E tudo isso vem recheando os nossos mais lindos sonhos deixando-os com um leve sabor amargo de decepção.

Sabemos que viver é uma dádiva, um verdadeiro presente que nos foi concedido pelo criador. Por isso, e por um sentimento que nos invade às vezes, a vida nos instiga a aventurar-se a…

Aí mora o precioso quixotismo imbatível, romântico e sonhador que não nos deixa esmorecer e amarelar o verde de nossas esperanças. Que faz despertar o brilho nos olhos e aquele desejo de fazer acontecer, ainda que quantas vezes, nem sabemos como ou por onde seguir.

Diante a essa competição desenfreada, cruel, onde os verdadeiros valores, vem sendo substituídos por prazeres vãos. Vitórias que jamais conhecerão derrotas, competidores que não enxergam o seu adversário com o mesmo valor e respeito, atropelamentos sucessivos acontecem nessa desenfreada corrida que pisa em cima do outro para se elevar, sucessos que jamais entenderam o que é trabalho. A Selva de pedras devoradora das oportunidades e do papel de destaque.

Ou podemos optar por estagnarmos as ideias, os projetos, os desejos, os sentimentos, por excesso de realismo deprimente, que também não nos conduz a nenhum porto seguro. E morremos frustrados, decepcionados, quantas inúmeras vezes em uma única vida, sem sequer descobrirmos: aonde habita o nosso verdadeiro propósito por trás de tudo isso!?

Lamentavelmente ainda nos perdemos entre o passado e o futuro, entre o medo e a coragem, entre o sonho e a realidade, deixando escapar de nossas mãos esse autoconhecimento de entender, afinal, o que viemos fazer aqui. E nessas angústias existenciais, vamos perdendo o nosso precioso tempo, presente, que é a única coisa real na qual ainda temos um certo controle substancial.

As nossas inquietações pançônicas urgem e nos tornamos leões com garras abertas prontos para atacar, quando o assunto é família, sobrevivência, e defender o nosso condado familiar repleto de carências existenciais e limitantes crenças, medos, bloqueios mentais nos quais somos submetidos de geração a geração, até mesmo sem entender o porquê de tudo isso.

Então, afinal, quem somos nós? Cavalheiros Errantes ou Fiéis Escudeiros, meros acompanhantes? Somos os seguidores da tropa, da grande massa de pés no chão, ou o fidalgo com a cabeça nas estrelas, que mira um oásis no horizonte, ainda que caminhando sobre as areias escaldantes do deserto? Somos simplesmente humanos, ou, desejamos ser?

Como defensores de nossas subjetividades temos o direito de sermos, de querermos, porém, o ciclo vicioso, do “te ver e não te querer, é improvável, é impossível” como diz a letra da música de Francisco Eduardo Amaral e Samuel Rosa de Alvarenga, é um labirinto cruel, sem fim, que às vezes, não nos leva a lugar nenhum. Entender e valorizar o Ser, sem o Ter, é um processo longo e diário.

Portanto, vale a pena gargalharmos por nossas supostas infelicidades ou fracassos assim entendidos por nós e se formos motivos de chacotas por almejarmos algo maior que nós mesmos, que saibamos seguir adiante, com a certeza de que ainda que pareça distante essa conquista, toda longa caminhada sempre começa com o primeiro passo. Às vezes, esse primeiro passo possa representar muita atitude.

Rotulados de covardes sempre seremos, pela sociedade Quixotesca, porque os Sanchos se recusam a entrar em combates fadados ao fracasso. Rotulados de loucos sempre seremos, pela sociedade Panciana, dos Sanchos que não acreditam que a vida é aquele cenário paradisíaco, palpável, de justiça e ao alcance de todos e de nossos olhos ilusórios de cristal. A trajetória vai sendo escrita e precisa ser lida, relida, pontuada e corrigida diversas vezes. É um verdadeiro percurso sinuoso, que não se conclui em decisões retilíneas. Onde tanto o Cavalheiro como o Escudeiro, precisam interagir-se num bom diálogo interno, pautado com vírgulas do bom senso, exclamações de encantamentos, interrogações, na hora do medo, aspas, para enfatizar cenários específicos, parênteses para repensar situações para, no final da história, fecharmos a última página sem nenhumas reticências, e sim um certeiro ponto final.

Nossas querências jamais serão capazes de responder afinal qual o mundo queremos viver. O mundo de Quixote, ou o mundo de Sancho Pança? Sabemos que muitos são os que nem sequer vivem, apenas sobrevivem!

Mas, diante tudo isso, amigo Don, em pleno século XXI e um mundo tão caótico e repleto de incertezas, de uma coisa eu tenho a certeza, que a verdadeira realidade das escolhas individualistas, não são nem uma coisa nem outra. E como já dizia Martin Luther King “O que mais me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”!

Fonte:
Texto enviado por Leandro Bertoldo, administrador do blog Árvore das Letras

Jaqueline Machado (O coração delator)

Até que ponto nossa lucidez mental pode, de fato, ser considerada lúcida e nossa insensatez uma coisa verdadeiramente insana e irracional? A que tipo de tormentos somos diariamente acometidos pelas adversidades psicológicas da vida?

O personagem do conto O CORAÇÃO DELATOR, escrito por Edgar Alan Poe, convive com tormentos terrivelmente abstratos. E frequentemente ouve coisas que os outros não ouvem.

Por essa razão, ele é tido por muitos como alguém que sofre de doenças mentais. A pessoa em questão, jura apenas sofrer de ansiedade e de uma certa sensibilidade auditiva aguda. De loucura, não. Jamais! Dentre seus tormentos, o principal concentra–se no olhar do Amo com quem vive.

Segundo a sua “visão”, os olhos do velho lhe pareciam aterrorizantes, saltados, embranquecidos, medonhos. Ao seu ver, eram olhos de abutre que lembravam a morte. Aquele olhar lhe incomodava, lhe causava impulsos nervosos, tirava–lhe o sossego e precisava ser eliminado.

Afinal, olhos assim devem ser expurgados do mundo para que os cidadãos permaneçam em paz. Com sagacidade e sentimento de justiça, planejou a morte do homem que nunca lhe fizera mal. Numa certa noite escolhida, o homicídio se fez inevitável. A fim de livrar-se dos sinais do crime, esquartejou e enterrou a vítima embaixo do assoalho da casa.

Os vizinhos, depois de ouvirem barulhos estranhos, acionam a polícia. O crime seria pleno ou quase perfeito não fossem as batidas do coração do ser imolado que parecia martelar a cabeça do assassino. Na verdade, esses sons eram a sua consciência denunciando a culpa de sua alma doente.

Bem sabemos que dessa metáfora podemos extrair muitas verdades...

Exemplo: a sociedade segue adoecida, e o branco que fica aflito com a presença do negro, o rico que menospreza o pobre e o moralista que desvia o olhar da prostituta, discretamente, comete o mesmo crime. Resta-nos saber quando suas consciências os deletarão.

Quem tem ouvidos para ouvir ouça ...E indague-se: Até que ponto nossa lucidez mental pode, de fato, ser considerada lúcida e a nossa insensatez uma coisa verdadeiramente insana e irracional? A que tipo de tormentos somos diariamente acometidos pelas adversidades psicológicas da vida?

Fonte:
Texto enviado pela autora