segunda-feira, 23 de maio de 2022

Leandro Bertoldo Silva (O silêncio mais gostoso de ouvir)

Certa vez, em um texto de Rubem Alves, li o seguinte: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória.” E mais adiante ele parafraseia Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, e diz: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma”. Fiquei pensativo. Não porque aquilo não fazia sentido para mim; pelo contrário, fazia muito, muito mesmo. Lembrei-me, inclusive, de uma experiência vivida e é a ela que recorro.

Sou uma pessoa muito ligada à espiritualidade à minha maneira... Gosto de ler, meditar, fazer minhas orações e práticas diárias, mas, confesso, não sou muito de ir a Igrejas, embora as respeite profundamente. Sou de enxergar todos os lugares e ocasiões como perfeitos para uma imersão profunda com nós mesmos — e isso inclui meu travesseiro — e acredito que, se somos partículas do todo, como a gota é de um rio, somos o todo e, portanto, não necessitamos de momentos e locais propícios ao encontro, embora, repito: respeito quem pense o contrário.

Um dia, porém, estava a passar em frente uma Igreja e, na ocasião, até um pouco atormentado, triste mesmo. Ao ver a porta aberta, senti uma imensa vontade de entrar naquele templo e assim fiz, com tranquilidade e a mais absoluta simplicidade. Sentei em um dos enormes bancos de madeira e, para a minha surpresa, não havia absolutamente ninguém lá dentro. Eu estava completamente só. Não poderia ser melhor, pois todo o meu desejo era estar em minha própria presença sem “conselhos” e sermões de quem, fosse um padre, ministro ou pastor, jamais saberia dos meandros dos meus propósitos e eu não estava disposto a dizer. Desculpe a sinceridade, mas naquele momento a minha conversa era mesmo com o “Dono da casa”.

Imerso aos meus questionamentos e com tantas coisas a dizer fechei os olhos, e... Não me veio nada que eu pudesse verbalizar. Até tentei, forcei, busquei uma sentença, uma palavra ao menos e nada. Falta de inspiração ou de educação? Não sei... Resignei-me. Ao perceber meu insucesso, não quis e nem pretendia maquiar o meu sentimento e mantive disposto a aceitar a minha dor nua e crua em silêncio. Embora eu estivesse calado, minha cabeça era um tumulto de vozes, mas naquele momento, curiosamente, se aquietava. Estaria a ser escutado? Certamente não foi por aquela única senhora ao entrar furtivamente por uma portinhola e sair por outra, quase como um fantasma a soar alto o batido não de correntes, mas de suas sandálias pelo interior da nave, fazendo não sei o quê e sequer prestou atenção em minha presença. Sozinho estava e sozinho fiquei. As pessoas simplesmente passam sem perceber e às vezes é o melhor que podem fazer por nós.

Não sei quanto tempo fiquei ali. Perdi os ponteiros das horas. Mas digo efetivamente, excetuando os passos da senhora de há pouco, ter sido o silêncio mais delicioso que eu já ouvi em toda a minha vida. Lá dentro, ao usufruir do inexplicável, senti o quanto precisava dele e não imaginava o tanto que me acolhia como um acalento de mãe, um colo de pai, um afago de avó. Ao sair já não era mais a mesma pessoa de outrora, mas alguém a celebrar um encontro. Foi quando disse (finalmente consegui) ao Ilustríssimo Anfitrião sem mesmo vê-lo, mas certamente senti-lo: "Por favor, entenda esse silêncio como a minha oração". Tenho comigo que Ele entendeu, porque eu compreendi perfeitamente...

Fonte:
Texto do site Árvore das Letras, enviado pelo autor.

domingo, 22 de maio de 2022

Isabel Furini (Poema 26) O silêncio do autista

 

Aparecido Raimundo de Souza (Pequeno tratado sobre o amor)

MEU CARO LEITOR AMIGO, uma pergunta surge neste momento: Você já teve ou tem, vive ou viveu, um amor muito profundo e apaixonado, um amor cego, um amor arrebatador que tenha sido, ou que seja o seu pensamento, a sua alegria constante de todos os momentos, se transformando, por assim dizer, na sua única razão séria de ser e de se manter vivo?

Cá entre nós, não precisa responder. Não importa! O que conta, na verdade, o importante se traduz apenas e tão somente num detalhe quase imperceptível. Se você está vivendo um amor, se o tem, de verdade, ao alcance das mãos, conserve-o à sete chaves. Tranque-o bem, num lugar secreto, não no sentido de fazê-lo prisioneiro. Jamais!

Pense. Raciocine friamente. O amor não se aldrava, não se encarcera. Apenas se vive. Pois bem! Oculte a sua chama carinhosamente dentro do seu “mais íntimo” e a sua vida será um mar de rosas num oceano de águas eternas.

Naturalmente o amigo já tentou explicar às pessoas que o cercam, por que esteve ou está apaixonado? Por que o dia inteiro, sem um dedinho de folga só faz pensar na pessoa amada, e não a afasta um minuto sequer da sua vida, ou da sua mente?

Por qual motivo a pessoa que está a seu lado é tão importante e indispensável? Também não é relevante trazer à público! O que faz a roda da alegria girar, a distinção, aliás, todo o desvario e a exaltação é que você continue assim: amando, gostando, se entregando, se renovando, se remoçando cada vez mais alucinadamente a cada minuto, a cada segundo... mais e mais... e mais... perdidamente...

O Amor e o Amar, creia, leitor amigo, são mundos diferentes. Contudo, perceba, apesar deste particular, ambos se entrelaçam entre si num amplexo único. E, por ser assim, só o coração apaixonado consegue manter a harmonia da Felicidade plena em toda a sua Formosura. Cultive sem pestanejar, sem esfuzilar este amor. Cuide dele com carinho e afeição, estima e confiança, requinte e cordialidade.

Não deixe que se perca nas raias do tormento, do descalabro, da adversidade. Lute com tenacidade para que ele nunca bata de frente com a infelicidade. A infelicidade, às vezes, é um caminho bonito, de via larga, cheio de paisagens deslumbrantes. Todavia, sem volta. Não permita que nada o manche ou deteriore. Uma vez alterado, viciado, invertido, o final se fará imediato e catastrófico.

Depois que se perde, que se esvai, que se esfria, um amor, por mais grandioso e opulento que seja, ou tenha sido, a sua vida cotidiana nunca mais será ou retrocederá ao como se fazia antes de ser bancarrotado.

As dicas para mantê-lo a todo vapor, são bucólicas e simples: saiba vivenciar o amor da sua vida com a solenidade dos deuses e o carinho dos apaixonados. Creia: o amor é infinito, vitalício, constante, perpétuo, duradouro, e tudo merece.

Via outra, mas igual, não deixe que ele perca a força, a robustez, o Poder Misterioso de Transformar a Capacidade cabalística de mudar a sua vida, de soberanear seu hoje, ascender seu agora e edificar o seu amanhã. O amor opera júbilos e regalos. Faz prazeres e maravilhas acontecerem.

O amor, em resumo, renova, efetiva milagres, cura feridas, transforma, arrebata, modifica e não só modifica: perpetua o nosso Universo Particular, compondo, dentro dele, um PARAÍSO ÚNICO E GRACIOSAMENTE IMPORTANTE AOS OLHOS DO PAI MAIOR.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) – 23


SECA NORDESTINA


A seca nordestina é inevitavelmente associada ao sofrimento e à desesperança.

Após causar desencantos
e nos fazer peregrinos,
a seca faz chover prantos
nos olhos dos nordestinos...
Ademar Macedo (RN)
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O sertão está molhado...
Não de chuva... mas do pranto
desse povo abandonado
que a seca castiga tanto!...
Gonzaga da Silva (RN)
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Fugindo à seca que o vence,
busca pousada e guarida
o sertanejo cearense,
pelos caminhos da vida...
João Sobreira (CE)
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No sertão, se a chuva some,
a seca traz desencanto:
resta a palma para a fome,
para a sede resta o pranto.
Hildemar de Araújo Costa (BA)
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Sentindo o peso da mágoa,
o camponês baixa a fronte:
nos seus olhos tem mais água
do que nas veias da fonte!...
Manoel Cavalcante (RN)
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Que quadro desolador
na caatinga do sertão:
- chora o homem a sua dor
de pobreza no seu chão.
Francisco Bezerra (RN)
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Desolação, fome, mágoa.
Apenas o sol a pino,
restaram dois pingos d'água
nos olhos do nordestino.
Orlando Brito (MA)
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Se a seca nos traz a mágoa,
seca total não existe:
sempre cai um pingo d'água
dos olhos de um povo triste.
Aprygio Nogueira (MG)
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A terra inteira secou!...
E a dor me fez sofrer tanto,
que quando a chuva voltou,
tinha secado o meu pranto!
Professor Garcia (RN)
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Quando o sol se faz mais forte
e a chuva responde... não!
A silhueta da morte
se espraia pelo sertão.
Francisco José Pessoa (CE)
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A seca nordestina tem gerado o fenômeno do retirante. Não há cena mais triste do que a do sertanejo partindo da sua terra para não morrer de fome e sede nos anos em que a seca assola o Nordeste brasileiro.

Lá se vão os retirantes!
Deixam seus campos, seus bois...
- O coração morre antes,
o corpo morre depois!…
Aparício Fernandes (RJ)
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Quando parte o retirante,
em busca de outra paragem,
a miséria em seu semblante
é toda a sua bagagem.
Luiz Rabelo (RN)
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Os hirtos mandacarus,
espalhados no sertão,
lembram tristes corpos nus
de retirantes sem pão...
Luiz Rabelo (RN)
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Ao migrante maltrapilho,
que cruza o adusto sertão,
só resta, ao morrer-lhe o filho,
o consolo da oração...
Santiago Vasques Filho (CE)
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Se é pena ver o semblante
de um Nordeste sem matriz,
mais pena é ver retirante
dentro do próprio País!
Sebastião Soares (RN)
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A pior seca nordestina documentada foi a de 1915, retratada no romance de Rachel de Queiroz, O Quinze.

E se não fosse uma raiz de mucuna arrancada aqui e além, ou alguma batata-branca que a seca ensina a comer, teriam ficado todos pelo caminho, nessas estradas de barro ruivo, semeado de pedras, por onde eles trotavam trôpegos se arrastando e gemendo [...].


Pela seca castigado,
o nordestino sofrido
já está acostumado
a viver desassistido.
Francisco Mota (RN)
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Nas extensões do sertão,
este drama secular
da seca sem solução
continua a envergonhar.
Francisco Bezerra (RN)
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A seca em nosso sertão
tem sinônimo de "sacola":
- ao invés de solução
o que nos mandam é esmola...
Paulo Roberto da Silva (RN)
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O que seria esperado e razoável é que as chamadas autoridades brasileiras executassem algum projeto sério para minimizar as consequências da seca. Como este projeto não existe, o sertanejo apela à providência divina.

Quando a seca dilacera
a paisagem nordestina,
todo sertanejo apela
à providência divina.
Luciano Marinho (RN)
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Triste, ajoelhada, chora
a família nordestina,
pra que a seca vá embora
por intervenção divina.
Hélio Alexandre Silveira e Souza (RN)
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Ao ver a morte de frente,
sem esperança de chuva,
todo o sertão chora e sente
a terra ficar viúva...
Raimundo Andrade de Paiva (CE)
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Obrigado a conviver com a seca o nordestino sabe dar valor aos menores sinais de chuva. Esta é vista como uma verdadeira bênção:

As chuvas que vêm caindo
no mês de junho, tão finas,
transformam, como sorrindo,
as plantações nordestinas.
Antídio de Azevedo (RN)
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A chuva traz esperança
ao nordestino sofrido
que, ao ver comida e bonança,
a Deus ora... agradecido.
Joamir Medeiros (RN)
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Pela ameaça da fome,
quando a seca teima e avança,
a chuva ganha outro nome,
passa a chamar-se... esperança!
Héron Patrício (SP)
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O agricultor, na incerteza,
roga por chuva ao além...
Chora quando a natureza
responde e chora também.
Hélio Pedro Souza (RN)
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Meu sertão só se refaz,
quando a chuva, volta e meia,
traz, em seus pingos, a paz
e põe seus rastros na areia!
Professor Garcia (RN)
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Se a chuva cai no sertão
deste solo nordestino,
o inverno se faz canção
e tudo mais é divino...
João Vasconcelos (CE)
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A chuva é bênção divina
sobre o sertão sofredor,
mesmo uma simples neblina
faz eclodir uma flor.
Gonzaga da Silva (RN)
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Às vezes acontece também o contrário, quando a chuva em excesso leva à destruição, atingindo principalmente os habitantes das periferias das cidades e os ribeirinhos.

O meu sofrido Nordeste
tem castigo permanente,
é depois da seca agreste
que a chuva produz enchente.
Hildemar de Araújo Costa (BA)
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É água o singelo nome
da preciosa matéria
que, se escassa, gera a fome,
se excede, gera miséria...
Alba Helena Correa (RJ)
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O nosso amado sertão,
tão sofrido e castigado,
sofre agora a maldição
de um inverno exagerado.
Ana Maria Nascimento (CE)
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O simbolismo do mandacaru
O mandacaru [Cereus jamacaru), também conhecido como cardeiro ou cacto, é planta típica da caatinga, símbolo de resistência do Nordeste brasileiro. Já foi inspiração de poetas, celebrizado no Xote das meninas, de Zé Dantas e Luiz Gonzaga; Mandacaru quando fulora na seca é o sinal que a chuva chega no sertão [...]. O trovador também se inspira em seu simbolismo:


Se o mandacaru floresce
nos longes do meu torrão,
a nossa esperança cresce
de ver chuva no sertão!...
Gonzaga da Silva (RN)
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Mandacaru é Nordeste
na sua rude canção,
em que o homem se reveste
das asperezas do chão.
Francisco Bezerra (RN)
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Mandacaru cismarento,
sentinela do sertão,
testemunhas o lamento
de um povo a estender a mão!
Francisco Bezerra (RN)
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Quando o inverno a terra veste,
uma flor ao sol reluz:
é o mandacaru do agreste
que abre seus braços em cruz!
Fernando Câncio (CE)
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O sertanejo resiste, tal como o mandacaru.

Sertanejo, bravo e forte,
enfrenta a seca e os horrores
sem temer a própria morte,
vencendo os próprios temores!
Joamir Medeiros (RN)
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A força do sertanejo
é feita de sofrimento,
chega o tempo, eu antevejo,
de resgatar seu talento.
Gonzaga da Silva (RN)
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A força do sertanejo
pelo seu trabalho medra:
– É um trovão em arpejo
em cada cerca de pedra!
Gilda Moura (RN)
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Por mais que a seca lhe creste,
como resposta, o sertão,
queima-se em incenso agreste,
a clamar chuva em seu chão.
Ubiratan Queiroz (RN)
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Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor

sábado, 21 de maio de 2022

Versejando 112

 

A. A. de Assis (Pobreza de rico)

Numa viagem de ônibus de Curitiba para Maringá, sentou-se na poltrona a meu lado um senhor de cabelos brancos. Era um professor aposentado e vinha visitar parentes que moravam num sítio perto de Itambé. No meio da conversa contou uma experiência muito interessante vivida por ele no início dos anos 1990, quando passara cerca de dois anos na Dinamarca fazendo pós-graduação.

Em Curitiba participava de um grupo de vicentinos, com os quais praticava caridade ajudando famílias carentes. Chegando à Europa, quis dar continuidade ao seu apostolado, porém logo de início percebeu um “problema”: a quem ajudar?

A Dinamarca é conhecida como “um país onde há pouca riqueza... e muito menos pobreza”. Isso mesmo: lá não há ninguém carente de alimento, agasalho, escola, assistência médica, remédio, proteção à infância, amparo à velhice etc. O estado garante tudo.

Felizmente já existem no mundo vários lugares assim, onde a sociedade se aprimorou de tal modo que os dramas resultantes da pobreza praticamente zeraram. Bons governos, boa legislação, alto nível de cultura e honestidade são algumas das razões desse progresso.

Como então, num país como esse, praticar aquilo que ele estava habituado a chamar de caridade? A quitinete onde morava em Copenhague dava frente para uma pequena praça. Da janela começou a observar um senhor idoso que toda manhã aparecia lá, sentava-se num banco e passava horas olhando os passantes.

Um dia resolveu descer e ir lá bater um papo. Não entendia ainda quase nada de dinamarquês, mas por sorte o homem era fluente em inglês. Era um engenheiro aposentado, bem-informado, bem-agasalhado, enfim uma pessoa aparentemente sem do que se queixar. Único problema: não tinha com quem conversar. Viúvo, os filhos e netos distantes, morava sozinho, comia em lanchonetes ou restaurantes, contava apenas com uma diarista que ia uma vez por semana lavar suas roupas e dar uma limpadinha no apartamento.

Meia hora depois o rapaz despediu-se do novo amigo, prometendo voltar outras vezes. Nos olhos do velhinho notou uma escancarada alegria. Era a resposta que procurava. Nem só de carência material se faz a pobreza. Nos países ricos e socialmente bem-resolvidos ninguém morre de fome, de frio ou de doença facilmente curável. Há, todavia, outros males igualmente dolorosos, entre os quais, em primeiro lugar, a solidão.

O então jovem professor acabara de descobrir de que maneira se faz caridade em países como a Dinamarca: além de papear frequentemente com o amigo da praça, passou também a visitar, sempre que possível, instituições que davam assistência a alcoólicos, depressivos, idosos solitários, refugiados etc., aos quais levava simplesmente isto: palavras de compreensão e esperança e bons ouvidos para ouvi-los com ternura e amor.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 12-5-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XV

A CARTA

(Lendo o Soneto “A Carta interrompida”, de COLOMBINA - 1882-1963)

A carta interrompi. Ninguém resiste
que tanto amor acabe desprezado.
Meu mundo colorido ficou triste,
quando escrevi: “Está tudo acabado.”

O trauma deste amor inda persiste,
— por que viver assim amargurado?
A minha mão se agita e ainda insiste
em terminar o show já começado...

Basta postar a carta já escrita,
tudo acabou, a vida é só desdita,
vou aprender viver no meu limite...

No envelope lacrado — quanto medo,
o correio há de levar o meu segredo,
mas o meu coração já não permite!
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AMOR E PAZ

Hoje, pensei na paz do teu amor
que a minha vida triste, ganharia
e lembrando que fui um sofredor,
não sinto mais o fel dessa agonia.

Não desejei ser grande nem senhor,
que o teu amor a mim já bastaria,
hoje sou mais feliz, sou servidor
e cultuo o teu ser, estrela guia.

O amor que nos uniu na caminhada
trouxe-nos paz, ventura à nossa estrada
e a água que faltava em meu deserto.

E ao recordar vitórias alcançadas,
meu desejo é sonhar nas madrugadas
sabendo que estarás aqui bem perto!
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CAPRICHO

Quis o destino, caprichoso, um dia,
que eu sofresse, na terra, grande dor.
Conspiração dos astros da poesia
que me fizeram crer no teu amor.

Ingênuo, acreditei na fantasia
que me ofertou teu lábio sedutor,
e vi morrendo, aos poucos, a alegria
quando partias como o beija-flor.

Eras a estrela vésper do meu sonho
povoavas meu céu sempre risonho
em noites de fulgor e de luar...

Mas me deixaste assim, cama vazia,
sem ter ninguém na madrugada fria,
um condenado à morte por amar.
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DESPEDIDA

É tempo de partir... Quanta amizade
a gente vai deixando para trás.
Meu coração recorda com saudade
os tempos idos que a memória traz.

Vão-se os amores, sonhos e a vaidade,
tudo passou tão rápido e fugaz,
são lembranças da própria mocidade,
são saudades dos tempos de rapaz.

A esperança que outrora me seguia
transformou-se em desgosto e nostalgia
ao recordar a mágoa que me oprime.

Chegando ao fim deste roteiro santo,
que eu possa ser a Luz que brilha tanto
que no meu verso a Inspiração sublime.
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ETERNA BUSCA

Nunca quis navegar por outros mares
que a vida, por acaso, me levou,
nem quis rezar também noutros altares,
pois tua imagem nunca me deixou.

Mas parti procurando outros pilares
para atracar do barco, o que sobrou,
porque no temporal dos meus azares
só saudade, no mundo, me restou.

E agora, já no fim desta procura,
confesso que não tive essa ventura
de esquecer, para sempre, a minha dor.

E tudo que busquei nesta jornada
se resumiu, talvez, num quase nada:
- felicidade, eu sei, só com amor.

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Pedro Melo (Eu e a freira)


Nessa época eu já morava no Paraná, mas tinha ido a São Paulo por alguma razão. Como participaria de um evento em Maringá, onde teria oportunidade de reencontrar, entre outros, meus queridos amigos Assis, Eliana, Olga, Nilsa e Jeanette, em vez de viajar para União da Vitória, peguei o ônibus para Maringá.

Perto de mim se sentou uma senhora alta, esguia, muito elegante e sorridente. Ao olhar para ela, intuí que fosse freira. Não tinha nenhum adorno ou detalhe físico que indicasse isso, mas havia algo nela que me levava a achar que fosse uma religiosa. Sempre gostei muito de conversar com padres e freiras. No curso de Magistério (o antigo Normal), tive aulas de Filosofia da Educação com um padre diocesano e uma colega minha do primeiro ano era uma freira scalabriniana. E aquela senhora parecia freira.

Até cogitei a possibilidade de puxar conversa com ela, mas como sou tímido fiquei com vergonha. A troco de quê eu puxaria conversa com uma desconhecida no ônibus? Mas chegou a oportunidade.

O ônibus fez uma parada na cidade de Santa Cruz do Rio Pardo e, por alguma razão, estava atrasado. Foi o pretexto para puxar conversa com ela nesse lugar da parada. E aí não paramos mais.

De fato, ela era freira mesmo. E que freira! Era teóloga, com pós-graduação na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. Poliglota, servia a Igreja fazia muitos anos. E conversamos muito, não tanto sobre teologia, mas sobre questões sociais e as relações da Igreja com a Sociedade. Falamos muito sobre algumas figuras da Igreja pelas quais eu sempre tive profunda admiração e descobri que ela comungava de minha opinião: o bispo salvadorenho Oscar Romero, assassinado em 1980 devido à sua atuação pelos pobres, e figuras da Igreja brasileira como Ivone Gebara, Leonardo Boff, Dom Hélder Câmara e, na época ainda vivos, Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Pedro Casaldáliga.

Acho fascinante conversar com pessoas inteligentes, cultas, de mente aberta, com as quais posso aprender. Conversamos animadamente de Santa Cruz do Rio Pardo até Maringá! E aquela simpaticíssima freira, cujo nome infelizmente não recordo, ficou na minha lembrança por ter me proporcionado uma das viagens mais agradáveis e momentos de maior aprendizado que fiz em minha vida!

Em Maringá, durante os festejos do evento a que fui assistir, o poeta A. A. de Assis, com seu jeito bonachão de sempre, brincou com a situação:

- E depois de tanta prosa, a freira não converteu você?

Olhei para ele, sorri, pensei um pouco e respondi:

- A conversa foi muito boa, mas não consigo me imaginar usando um hábito... Acho que não levo jeito pra ser freira!

Piadista incorrigível, ele emendou:

- Mas se a irmã não usava hábito, você também não precisa... ainda dá tempo...

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (A lenda pessoal)

Ele era um bom pastor de ovelhas da região de Santa Luzia. Se cumprisse com o destino escolhido pelo pai, logo se tornaria padre. Mas o pastor, um rapaz chamado Santiago, não entendia como poderia ser possível alguém servir a Deus vivendo num único lugar. E,  por essa razão, sua meta de vida era viajar o mundo inteiro. Conhecer novos povos, novas línguas, historias, e não viver apenas como as ovelhas do seu pastoril, que se contentavam apenas com água e comida.

Então, tomando as rédeas de sua vontade, junto de suas ovelhas e sempre carregando um casaco, um pouco de vinho e um livro, ele dá inicio ao seu projeto de se aventurar pisando novos territórios.

Em uma de suas andanças, ao crepúsculo da tarde, chegou com seu rebanho numa  velha igreja abandonada. O teto tinha despencado há muito tempo, e um enorme sicômoro havia crescido no local que antes abrigava a sacristia. Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem pela porta em ruínas, e então colocou algumas tábuas de modo que elas não pudessem fugir durante a noite. Naquele local, por três noites seguidas Santiago teve o mesmo sonho. Nestes sonhos ele recebeu a mensagem de que havia um tesouro esperando por ele nas pirâmides do Egito. Após uma cigana interpretar o significado do sonho, ele parte rumo ao seu tesouro. E logo em seguida quando estava tentando se concentrar para ler um livro num banco de praça, um misterioso velho senta ao seu lado. O senhor se apresentou como sendo um velho sábio, Rei de Salém. Demonstrou conhecer toda a vida do jovem pastor, lhe ensinou sobre os mistérios dos sinais. E disse que sempre aparecia para aqueles que ousam apostar na  LENDA PESSOAL.  Santiago não sabia o que era lenda pessoal. E o velho disse:

-  “ É aquilo que sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no começo da juventude, sabem qual é sua Lenda Pessoal. Nesse período, tudo é claro, tudo é possível, e elas não têm medo de sonhar e desejar tudo aquilo que gostariam de ter na vida. Entretanto,  à medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa força começa a tentar provar que é impossível realizar a Lenda Pessoal.”  

“Quando você quer alguma coisa com toda a força de sua alma, todo o universo conspira para que você realize o seu desejo.”

Rumo ao tesouro, Santiago passa por muitas dificuldades, é roubado por um estranho que parecia ser honesto e arranja um emprego em uma loja de cristais para recuperar o dinheiro perdido e continuar sua viagem. Partiu em caravana rumo a um oásis . Lá, encontra uma moça chamada Fátima e por ela se apaixona. Durante a sua jornada, Santiago conhece o alquimista que promete guiá–lo até o local do seu sonho. Fátima o incentiva e fica a sua espera. Depois de muito tempo, ele finalmente chega às pirâmides do Egito. Procura pelo tesouro e não o acha. Então recebe a revelação de que o tesouro estava em Santa Luzia, debaixo da árvore onde teve os sonhos repetidos. Só depois de todo o sacrifício pode entender que, os verdadeiros tesouros podem estar bem diante do nosso nariz. Ele volta ao lugar onde tudo começou. Descobre o tesouro e retorna ao deserto para viver feliz com o seu amor.

Sei que a história dispensa apresentações, pois estou falando sobre um dos livros mais famosos do mundo: O Alquimista, de Paulo Coelho e do seu personagem principal, Santiago que vem nos despertar para a nossa verdadeira realidade. Essa realidade nada tem a ver com a maioria das coisas que costumamos ouvir e muito menos com os projetos que algumas pessoas idealizam para nossas vidas. Ao contrário, nos faz imergir na alma do mundo, entender a linguagem de Deus através de sinais que podem indicar os caminhos certos a seguirmos em direção aos objetivos sonhados e, principalmente, a entender a linguagem do coração. A relembrar que na infância tínhamos a mais absoluta certeza do que queríamos de fato para nossas vidas. Que precisamos esquecer os medos, arriscar, lutar, superar, vencer, viver, assumir a lenda pessoal porque sim, é verdade: ela existe e prova que TUDO É POSSÍVEL...

Fonte:
Texto enviado pela autora.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Daniel Maurício (Poética) 30

 

Carlos Leite Ribeiro (Bolo de Aniversário)

(um conto real)


Naquela noite de 29 de Dezembro de um ano que já não me lembro, cheguei em casa já tarde, pois tive de fazer serão no jornal, a preparar edição especial Fim de Ano. Era um trabalho sempre chato, mas que felizmente só acontecia uma vez por ano. Fazer pesquisas culinárias (ainda não havia Internet); entrevistar chefes de cozinha e afamados cozinheiros; pequenas entrevistas a políticos e a figuras públicas (e não só). Fazer as listas de restaurantes, bares e outros locais de divertimentos, etc.   

Tudo isto além dos noticiários normais que de hora a hora tínhamos que dar à antiga Emissora Nacional. Era um trabalho como dizíamos "do diabo".

Portanto, cheguei em casa muito cansado e com fome. Logo na entrada, veio a meu nariz um cheirinho agradável de bolo. Passei pelo quarto para ver se a mulher estava a dormir, e em seguida, dirigi-me à cozinha de onde vinha aquele maravilhoso cheirinho de bolo quente.

Logo descobri o Pão-de-ló numa forma grande (tínhamos dois tipos de formas cada qual com seu diâmetro). Contente com qualquer pedaço, prestes a comer um pedacinho de queijo, retirei o tal bolo da "estufa" onde estava a "secar" e cortei uma generosa fatia; confesso que tive vontade de comer o bolo todo, mas como é óbvio, tinha que contar com a esposa que estava a dormir.

Dirigi-me ao quarto e delicadamente acordei a esposa, querida: “Tu hoje caprichaste ao fazer o bolo Pão-de-ló! Já comi uma fatia e trago-o aqui para nós o devorarmos.”

Nem pude acabar a frase, pois ela acordou e logo vi que não muito bem disposta:

- Oh seu guloso, o que fizeste ao bolo?!...

- Comi uma fatiazinha!

- Esse bolo era para o aniversário da Maria Figueiredo. Estava a secar para logo de manhã o barrar com molho branco, colocar aquelas bolinhas de enfeite prateadas além das vinte e duas velas. Prometi à moça e agora o que vou fazer?

- Levanta-te e vamos fazer outro. Eu ajudo se puder comer este todo…

- Olha que não estou a brincar … Levas tudo na brincadeira. E eu que prometi à moça que lhe faria o bolo de aniversário. Sai daqui do quarto e vai para a cozinha; mas não comas mais nenhuma fatia de bolo. Guloso …

Vestiu o robe e foi ter comigo à cozinha. Calados só olhávamos para o bolo, eu, intimamente pensava: "que pena não ser todo para mim…".

- Olha, Carlos, parece-me que descobri como safarmos desta enrascada”.

Com uma faca afiada, vou cortar outra fatia do lado oposto e assim, o bolo em vez de ficar redondo vai ficar oval. Como já está quase "seco" vou fazer o molho e tu vai ajudar-me a barrá-lo e a colar com o açúcar em ponto.

Horas depois o bolo estava na perfeição na sua forma oval, e muito bem decorado com as tais bolinhas e os castiçaizinhos para as velinhas.

- Vês, querida, tu és uma enorme artista criativa. Parabéns! Agora posso comer esta fatia, não posso? Ajudei a minha querida …

A resposta veio em tom cortante:

- Nãoooo!!! Quem a vai comer sou eu.

Nem protestei para não ouvir alguma coisa de que não desejaria.

No outro dia fomos ao aniversário da Figueiredo e levamos o bolo que fez grande sensação pelo seu formato oval.

Uma vizinha chegou perto de minha mulher para lhe perguntar:

- Onde é que a senhora comprou esta forma tão fora do comum?

Eu afastei-me logo antes de dar uma sonora gargalhada, enquanto a esposa dizia à senhora, numa cara muito cômica a tentar não se rir.

- Estas formas (metálicas) não se vendem em Portugal. Foi uma amiga que me trouxe de França …

Hinos do Brasil (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul)

MATO GROSSO
O termo “qual novo colosso”, presente na primeira estrofe faz uma comparação entre Mato Grosso e o Colosso de Rodes, uma das sete maravilhas do mundo antigo, e que já não existe mais.
Há ainda uma referência ao pássaro Fênix, que segundo a mitologia, é queimado e ressurge das cinzas. A parte “teu progresso imortal como a Fênix” representa o Estado que, mesmo passando por dificuldades, renascia sempre para o progresso.


 

HINO DO MATO GROSSO
Letra por Dom Aquino Corrêa
Melodia por Emílio Heine


I
Limitando, qual novo colosso,
O ocidente do imenso Brasil,
Eis aqui, sempre em flor. Mato Grosso,
Nosso berço glorioso e gentil!
Eis a terra das minas faiscantes,
Eldorado como outros não há
Que o valor de imortais bandeirantes
Conquistou ao feroz Paiaguás!

Salve, terra de amor, terra do ouro,
Que sonhara Moreira Cabral!
Chova o céu dos seus dons o tesouro
Sobre ti, bela terra natal!

II
Terra noiva do Sol! Linda terra!
A quem lá, do teu céu todo azul,
Beija, ardente, o astro louro, na serra
E abençoa o Cruzeiro do Sul!
No teu verde planalto escampado,
E nos teus pantanais como o mar,
Vive solto aos milhões, o teu gado,
Em mimosas pastagens sem par!

Salve, terra de amor, terra do ouro,
Que sonhara Moreira Cabral!
Chova o céu dos seus dons o tesouro
Sobre ti, bela terra natal!

III
Hévea fina, erva-mate preciosa,
Palmas mil, são teus ricos florões,
E da fauna e da flora o índio goza,
A opulência em teus virgens sertões.
O diamante sorri nas grupiaras
Dos teus rios que jorram, a flux,
A hulha branca das águas tão claras,
Em cascatas de força e de luz.

Salve, terra de amor, terra do ouro,
Que sonhara Moreira Cabral!
Chova o céu dos seus dons o tesouro
Sobre ti, bela terra natal!

IV
Dos teus bravos a glória se expande
De Dourados até Corumbá,
O ouro deu-te renome tão grande
Porém mais, nosso amor te dará!
Ouve, pois, nossas juras solenes
De fazermos em paz e união,
Teu progresso imortal como a fênix
Que ainda timbra o teu nobre brasão.

Salve, terra de amor, terra do ouro,
Que sonhara Moreira Cabral!
Chova o céu dos seus dons o tesouro
Sobre ti, bela terra natal!
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MATO GROSSO DO SUL
 
O hino ressalta as belezas naturais do estado e traz diversos personagens históricos. São eles:

Vespasiano Martins: Político que lutou pela divisão do estado, foi prefeito de Campo Grande e também senador;

Camisão e Antônio João: Heróis que lutaram na Guerra do Paraguai em defesa das terras sul-mato-grossenses;

Guaicurus: Conhecido como índios cavaleiros, são lembrados pela habilidade em lutar, resistindo a influência de outros povos;

Ricardo Franco: Protetor do Forte Coimbra.

 


HINO DO MATO GROSSO DO SUL
Letra por Jorge Antonio Siufi e Otávio Gonçalves Gomes
Melodia por Radamés Gnattali

Os celeiros de farturas
Sob um céu de puro azul
Reforjaram em Mato Grosso do Sul
Uma gente audaz

Tuas matas e teus campos
O esplendor do Pantanal
E teus rios são tão ricos
Que não há igual

Estribilho:
A pujança e a grandeza
De fertilidades mil
São o orgulho e a certeza
Do futuro do Brasil

Moldurados pelas serras
Campos grandes: Vacaria
Rememoram desbravadores heróis
Tanta galhardia!

Vespasiano, Camisão
E o tenente Antônio João
Guaicurus, Ricardo Franco
Glória e tradição!

(Estribilho)

Fonte:
Wikipedia

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Varal de Trovas n. 559


 

Stanislaw Ponte Preta (Desastre de automóvel)

Diz que aconteceu mesmo. O cara que me contou falou que o caso era verídico e ficou até de me apresentar o Cravino, personagem central desta lamentável historinha de cunho conjugal.

É que esse tal de Cravino tem uma mulher que eu vou te contar: se ele fosse casado com um tamanduá estava mais bem servido. Há uns 50 quilos atrás ela ainda era mais ou menos, isto é, tinha um rebolado não de todo desprezível e um rostinho bem razoável. Mas depois que casou, a distinta só fez engordar e embuchar. Hoje em dia, se o Cravino pudesse, dava ela de entrada em qualquer crediário.

E, como se não bastasse, a mulher do Cravino é mais ciumenta que um pierrô. Por qualquer coisinha, parte pra ignorância. A coisa foi num crescendo de amargar. No começo, o Cravino olhava pro lado e levava uma cuatucada nas costelas, porque a mulher achava que ele estava dando bola para alguma desajustada social. Depois, passou da cutucada ao beliscão, que é muito mais doloroso e, ultimamente, diante da complacência do marido (complacência essa ditada por total incapacidade física diante da mulher), iniciou, com bastante êxito, o chamado festival de bolacha. O pobre do Cravino, por qualquer besteira, apanha mais em casa que o time da Portuguesa no campeonato.

O pobre coitado é um conformado de sousa. Até já esqueceu como é mulher e a impressão que se tem é a de que, se alguém mandar ele desenhar uma mulher, o Cravino não vai saber desenhar de cor. Para falar francamente, a única coisa que ainda interessa um pouco o Cravino é automóvel. O rapaz é tarado por um carro bacana, um modelo esporte, um carro de corrida.

E foi mais ou menos por causa de um desastre de automóvel que foi parar num hospital. Não que o Cravino estivesse dentro de um carro acidentado; nada disso. O desastre de automóvel dele foi diferente.

O negócio foi o seguinte: o Cravino tem um amigo que comprou a maior Mercedes-Benz. Um carro alinhadíssimo, o fino da máquina, e, sabendo que o seu cupincha ama carro assim, telefonou para ele e perguntou se não queria dar uma voltinha na Mercedes.

Ora, tá na cara que o Cravino ficou assanhado e topou logo. Seu entusiasmo foi tal que esqueceu a mulher que tinha. O amigo chegou com o carro na porta da loja onde o Cravino é gerente e entregou-lhe a chave:

– Pode rodar pela aí quanto quiser. - falou.

O Cravino, encantado, pegou o carro e saiu rodando pelo asfalto, feliz como um passarinho. Tão entusiasmado estava que esqueceu a hora de voltar. Quer dizer, ele esqueceu, mas a mulher não. Bastou passar cinco minutos da hora normal do marido chegar, que ela começou a pensar o pior:

- Deve estar metido em algum canto, com mulheres! - falou a monstra para si mesma.

Quando já fazia uma hora da hora do Cravino chegar, a mulher já estava queimando óleo 40. Sua indignação era tanta que começou a babar numa bela coloração arroxeada. E o Cravino, nem nada, passeando na Mercedes do amigo.

Só deu as caras em casa duas horas depois. Vinha alegre, de alma lavada, amando o carro do outro. Nem se lembrou do perigo que corria e, ao abrir a porta e dar com a megera indomada à sua frente, ficou estupefato.

– Com que mulherzinha você estava, cretino? – berrou a mulher.

- Eu estava com a Mercedes... - mas nem chegou a dizer Benz. Levou uma traulitada firme por debaixo das fuças e não viu mais nada. Só soube o quanto apanhou no dia seguinte, no hospital, lendo sua ficha médica.

Foi ou não foi um desastre de automóvel?

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Gol de padre. Atica, 1997.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLIII

PALAVRAS AO VENTO


MOTE:
Como preces fugidias,
minhas palavras ao vento,
dobram esquinas vazias
nas curvas do firmamento...
Analice Feitoza de Lima
Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP


GLOSA:
Como preces fugidias,
emana do coração,
em prantos, ou alegrias,
uma serena oração!

Vou jogando com carinho
minhas palavras ao vento,
que ecoam, no meu caminho,
de encontro ao meu pensamento!

Às vezes, saem tão frias,
cheias de desilusão,
dobram esquinas vazias
em ruas sem emoção!

Vendo a tristeza a chegar,
novas palavras invento,
que se perdem pelo ar
nas curvas do firmamento…
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GASTEI SORRISOS...

MOTE:
Só agora vou sentindo
como a vida me feriu;
gastei sorrisos sorrindo
a quem nunca me sorriu...

Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG

GLOSA:
Só agora vou sentindo

um mar de pranto em meu peito,
e uma angústia que vem vindo
aninha-se no meu leito!

Vê meu pobre coração,
como a vida me feriu;
e sem qualquer emoção,
o meu coração partiu!

O sorriso é sempre lindo,
quando a gente está amando...
Gastei sorrisos sorrindo
nem sei para quem, nem quando!

Terminou a fantasia:
tudo que era bom, fugiu;
entreguei minha alegria
a quem nunca me sorriu…
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A VIDA É BELA

MOTE:
No coração esperanças
na alma desejos de amar,
jamais pensar em vinganças...
A vida é bela a cantar.
Célia Lamounier
Itapecerica da Serra/SP

GLOSA:

No coração esperanças
que dão força ao nosso dia,
são sempre as boas lembranças
que nos trazem alegria!

Devemos ter, com fartura,
na alma desejos de amar,
essa emoção linda e pura,
devemos alimentar!

Fazer novas alianças,
cultivar sempre a amizade,
jamais pensar em vinganças...
pois dão infelicidade!

São esses doces desejos
que nos fazem continuar.
Cantemos aos doces beijos,
a vida é bela a cantar.
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QUANTA...

MOTE:
Quanta tristeza me invade
nesta vida amargurada...
- Eu quero sentir saudade,
sem ter saudade de nada!
Clenir Neves Ribeiro
Nova Friburgo/RJ

GLOSA:

Quanta tristeza me invade
quanta dor, quanta lembrança,
mas não esqueço, é verdade,
esse fio de esperança!

Sofri tanta solidão
nesta vida amargurada...
que o meu pobre coração
é rosa despetalada!

Eu me sinto na orfandade,
mas preciso de alegria...
- Eu quero sentir saudade,
não me deixes só, poesia!

O meu tempo envelhecendo,
se aninha em minha morada:
sigo, mesmo assim, vivendo,
sem ter saudade de nada!
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PEDAÇO DO NADA

MOTE:
Uma luz quase apagada...
Um sonho chegado ao fim...
Eis um pedaço do nada
que tu fizeste de mim!
Conceição Parreiras Abritta
Crucilândia/MG, 1934 - 2015, Belo Horizonte/MG


GLOSA:
Uma luz quase apagada...
num lusco-fusco fraquinho,
deixa uma angústia aumentada
no meu coração sozinho!

Eu sou somente tristeza,
um sonho chegado ao fim...
Meus olhos não vêm beleza,
eu sou quase nada, enfim.

Sigo chorando, alquebrada,
de tudo que um dia fui,
eis um pedaço do nada
que do pranto ainda flui!

Sou mesmo um farrapo triste,
uma bomba, um estopim,
o quase nada que existe
que tu fizeste de mim!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2005.

Nilto Maciel (Reportagem)

Há três dias na cidade, quase nada fizera, a não ser alugar a casa, conversar com o fotógrafo e andar pelas ruas. Puxava conversa com um ou outro, à cata de informações. Todos lhe fugiam. Os que não podiam fugir alegavam muitos quefazeres. Procurasse pessoas menos ocupadas.

Acordou, abriu os olhos. O sol já devia clarear tudo. Pôs-se a relembrar um sonho. Levantava-se, dirigia-se ao quintal. Onde andavam o galo e as galinhas? Lavava o rosto numa pia.

Lembrou-se do fotógrafo. A cama vazia. À noite passada dissera-se cansado de tanta monotonia. Iria bebericar por aí, procurar mulheres. Onde andaria? Talvez ainda dormisse no quarto de alguma rameira.

Silêncio assustador. Nenhum galo cantava. As galinhas não cocoricavam. E os vizinhos, os transeuntes, os cachorros, os burros por que não davam sinal de vida? Melhor deixar o sonho para trás e cuidar das obrigações. Talvez outra criança tivesse desaparecido. Ou mais uma jovem tivesse sido raptada.

Espreguiçou-se e caminhou para o quintal. Sim, o sol já clareava tudo. E os galos e as galinhas dos vizinhos por que não cantavam e cocoricavam? Lavou o rosto na pia. Pensou num café. Comprara bolachas e biscoitos. Todo o dia pela frente. Mais conversas, tentativas de conversas.

E o sonho? Preparava um café, abria um pacote de biscoitos. Não, o sonho não tinha a menor importância. Não adiantava relembrá-lo. Afinal, quem não sonha? Melhor sair à rua. Talvez outro homem tivesse ido embora da cidade. E mais uma vez ninguém saberia explicar o motivo dessa fuga misteriosa. A mulher apavorada, triste, revoltada. Os filhos chorosos. Os vizinhos cheios de maledicências. “Fugiu para juntar-se à amante. Um sem-vergonha.”

Procurou a cafeteira. Pareceu-lhe ouvir um canto de galo. Imobilizou-se, agarrado à vasilha. Nada, nem o mais ameno cocorico. Voltou ao quintal. O vento balançava os galhos do limoeiro. O galo seria do vizinho da direita ou da esquerda? E se olhasse por cima do muro? Preferiu ir à porta da rua. Olhou para os dois lados, para as casas em frente. Todas as portas fechadas. Ninguém na rua. Talvez fosse cedo demais. Não, o sol já ia bem alto. Hora de estarem todos bem acordados. As mulheres varrendo calçadas, os meninos brincando. E os jumentos? Pelo menos o do leiteiro. E os cachorros? Pelo menos um deles revirando latas de lixo. E os gatos? Talvez catassem borboletas nos quintais.

Voltou-lhe à mente o sonho. Ouvia um canto de galo. Seria o galo do quintal da esquerda ou da direita? Melhor deixar o sonho para depois. Precisava averiguar aqueles estranhos acontecimentos. Por que tantas crianças e moças desaparecidas? Existiriam mesmo gangues de raptores na cidade? Segundo a polícia e a imprensa, as crianças eram vendidas no exterior. E as moças? Quem as raptava? E os homens, seriam também raptados ou abandonavam suas famílias?

Teve vontade de cantar para acordar os vizinhos. Talvez não soubessem ser dia já. E se todos estivessem nas igrejas? Aquele povo vivia rezando, aos pés dos padres, cheio de pavores. Olhou na direção da igreja matriz. Viu apenas as torres e o relógio. Os ponteiros nas mesmas posições dos ponteiros do seu relógio.

Retomou o sonho. Chegava ao quintal. Nada de cantos e cocoricos. Apenas os galhos do limoeiro balançando-se.

Tolice aquele sonho. Na realidade as coisas eram muito mais buliçosas. Turbulentas até. Não tanto depois de sua chegada à cidade. Os raptos, as fugas não mais haviam ocorrido após sua chegada. E o fotógrafo onde andava? Teria voltado à capital? E se estivesse morto, assassinado num salão de cabaré? Deveria procurá-lo. Não, melhor ir até a igreja. O povo da cidade rezava por sossego. Fechou a porta e saiu. Todas as portas e janelas fechadas. Apressou o passo. Precisava chegar logo à matriz. Nas ruas nenhum sinal de vida. E se assobiasse uma canção? Aproximou-se do templo. As grandes portas fechadas. O povo todo estaria dentro? O padre poderia ter falado de abrigo divino.

Encostou o ouvido a uma das portas. Silêncio absoluto. Onde estaria o povo? Voltou-se para a cidade. Passarinhos e pombos voavam e pousavam nos fios da rede elétrica, nas árvores, nos telhados. Olhou para o céu. Sentiu-se tonto. Pensou em sentar-se no chão. Melhor buscar uma sombra. Um banco de praça. Sentiu sono. Não, não deveria dormir na rua. Voltaria para casa. Talvez o fotógrafo já tivesse retornado. Pôs-se a caminhar. Não queria mais ver as pessoas. Parecia voar. Como se o vento o conduzisse, o arrastasse. Quando cuidou, abria a porta da casa. Cambaleava. Iria morrer? Sentou-se à beira da cama. Onde andava o fotógrafo? Deitou-se. Retomou o sonho. Chegava à porta da rua. Todas as portas e janelas fechadas. Vontade de cantar, acordar os vizinhos. E se todos estivessem na igreja? Fechava a porta e saía. Ninguém na rua. Punha-se a assobiar uma canção. As grandes portas do templo fechadas. Pombos e passarinhos voavam. Sentia-se tonto. Olhava para o céu. Melhor regressar à casa. Voava. Num átimo chegava ao ponto de partida. Abria a porta e corria ao quarto. Sentava-se à beira da cama. Onde andava o fotógrafo? Deitava-se. Logo se punha a sonhar. Acordava, abria os olhos e dirigia-se ao quintal.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo author.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 4

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 53

Ouvidor-mor? Não. Sou o mor ouvidor. E que delícia, e que ouvidos, e que ouvinte eu sou destes faladores, destes falares, das vozes da experiência, do conhecimento, da sabedoria.

Aquela saída para uma volta na quadra enseja momentos sempre desejados. Um amigo que há dias não se vê, uma criança querendo um livro, um passante que entabula conversa.

A audição fica mais aguçada quando se ouve os diaristas da arte de caminhar. Enquanto andam, desfiam bom papo, humorados, histórias e estórias que o tempo não paga.

Momentos fugazes, eternizados, de alguém livre do jugo do relógio, palavras ao vento, semeando conhecimentos de vida.

Bem-fazeres, aulas que não se tem em faculdades, professores da escola da vida borrifando as ideias de quem ouve, jorrando lições simples de bem viver, mostrando que a vida sempre foi feita de bebericos do saber que é oferecido.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Sammis Reachers (O sítio (mal-assombrado) de Seu Pedro)

Alguns dos melhores dias da infância aqui no Jardim Nazareth foram passados no Sítio do seu Pedro. O sítio era na verdade de um japonês misterioso – do qual seu Pedro era o caseiro. Ou semidono, pois o tal japonês quase nunca aparecia.

No grande sítio, tomei o primeiro contato – não numa gôndola de supermercado, não numa sacola de compras de meu pai, mas pegando nas mãos, no próprio pé – com diversas frutas como jambo, carambola, jabuticaba. Até um pé de caqui havia, e curiosidades como uma árvore de cortiça. Mas a principal “lavoura” ali eram as mangas: Dezenas de pés, um carnaval, um tsunami, um apocalipseragnarok-mahapralaya de tanta manga.

O sítio também possuía um equipamento esportivo misterioso para todos nós àquela época: Uma quadra de tênis, em saibro, e isso mais de década antes de Gustavo Kuerten popularizar nos meios de informação o que era o tênis, e, claro, o que era uma quadra de saibro.

Seu Pedro e sua família eram em geral simpáticos e tolerantes – deixavam, a quem pedia com educação, entrar no sítio. Havia regras básicas: Não podia quebrar galhos das árvores, e nem arrancar frutas e deixar no chão (pois limpar aquela imensidão era uma tortura, e desperdiçar comida, como hoje, já era duro pecado naquela época). O acesso livre dependia também da época do ano e de que temporada/ano era aquele. Tinha momentos em que não havia ainda mangas maduras, ou sequer manga alguma, nos pés. Mas, nos melhores anos e na alta temporada, já vi aquele velho senhor negro e franzino, de fala mansa e pausada, abrir covas profundas de uns quase dois metros de profundidade por dois de largura e bem uns quatro de extensão – ou seja, suficiente para sepultar quase um elefante! – apenas para jogar mangas podres (uma tonelada? Duas? Três!?), pois não havia o que fazer com tanta manga. Nem a população do bairro dava conta.

Bem, independentemente de haver mangas e outras frutas ali ou não, a molecada amava entrar no sítio e tentar peneirar alguma coisa. Por vezes a solicitação de entrada era negada, e então os mais afoitos não se faziam de rogados, adentrando no sítio por um dos muitos pontos de acesso “encobertos”.

Foi numa dessas abordagens ou penetrações não autorizadas que me vi, em companhia de Renato e mais uns quase quinze garotos, dentro do sítio, onde entramos lá pela extremidade oposta à daquela em que ficava a casa de seu Pedro.

Seu Pedro também tinha sua espingarda de sal, e miseravelmente um cachorro que, de manso virava perdigueiro quando atiçado por seu dono. Sinistro e opressor padrão!!! Assim, era preciso entrar no sítio bem “na encolha”, e estar atento.

Ali estávamos todos embaixo de um pé de manga espada que, temporão, tinha já suas frutas. A árvore ficava em linha direta com a parte mais sinistra do sítio – Um pequeno casebre abandonado, construído ao lado da tal quadra de tênis. A casa era habitável, e não entendíamos por que ficava vazia, até que um dia um dos moleques ali daquela área – sim, a cada rua, poucos metros de distância, havia uma “galera” mais ou menos independente e, quando queria, hostil – nos informou que aquela casinha era mal assombrada. Para uma criança, aquela informação de mau agouro caía nas costas como uma jaca de inquestionável certeza e medo...

A hora era quase a do almoço, por volta das 11 da manhã, com o sol a pino. Foi quando o sexto sentido de Renato se manifestou, com garbo e brilhantismo. Me cutucando e a alguns outros moleques, ele apontava para um enorme pé de tamarindo, que fazia sombra sobre parte da quadra de saibro. É ridículo relatar isso e, acredite, foi ridículo naquele próprio momento: O que vimos foi uma sombra – sim, um ente perfeitamente translúcido – segurando uma vara de bambu e cutucando a árvore, como quem tranquilamente arrancasse tamarindos para chupar.

Não é piada, nem invenção. Eu VI – foi a única vez em minha vida que vi alguma manifestação do sobrenatural – e olha que hoje e há muito tempo sou um crente pentecostal, e alguns de nós veem com certa rotina coisas do arco da velha... Mas não eu.

Aquela visão inacreditável, surpreendente, inoportuna, cozida e fervida em nonsense foi apontada a um por um dos moleques ali presentes. Todos viram. A sombra, impassível, continuava a lentamente mover aquele bambu.

Após uns breves segundos de incredulidade, de tentar divisar se aquilo era aquilo mesmo, a ficha caiu. O que se seguiu foi a mais espetaculosa corrida com obstáculos que o bairro Palha Seca já viu – e ele viu muitas!

Todos voamos na direção contrária da sombra, de encontro à cerca de arame que nos daria acesso à salvação que era a rua. A cerca, banguela, tinha um espaçamento entre os fios de arame que permitia a uma criança ou jovem não muito alto passar agachando-se – devagar, de um a um, claro. Mas naquele momento, moleques jogavam-se pela abertura como se fossem mísseis ou torpedos, pouco se importando com os resultados. No empurra-empurra desesperado – alguns, mais sensíveis, gritavam de terror – muitos tentavam passar ao mesmo tempo, embolando-se e lanhando-se nos arames da cerca. Na minha vez, a pressa e um baita empurrão que levei fizeram minha camiseta ganhar um belo rombo naqueles arames...

Como disse, foi a única vez em minha vida que vi um fantasma, ou demônio, ou um alienígena que seja, pois como entender um diabo que, dentre o universo de coisas passíveis de entreter um espírito, se preste a arrancar tamarindos? Doravante e até a adolescência, jamais entrei novamente naquele sítio sozinho. E, mesmo acompanhado, evitava aquela casa mal-assombrada e aquele pé de tamarindo como o cramunhão (diabo) evita a cruz!

Anos depois, infelizmente o sítio foi vendido. O comprador foi um jogador de futebol do Flamengo, o Luiz Alberto, que murou o sítio e o transformou num tipo de complexo esportivo, alugando quadras para peladeiros de fim de semana e fazendo festas para seus amigos.

Seu Pedro não ficou desamparado: Sua casinha e parte do terreno lhe foram concedidas, justificadamente pelos serviços prestados. E, neste momento em que escrevo, o espaço foi novamente vendido, e agora um enorme condomínio de apartamentos populares se ergue naquele lugar, já prontos para a habitação. Os novos moradores provavelmente jamais saberão de tudo o que já aconteceu naquele terreno em que habitam...
*** *** *** ***

Um parágrafo para acrescentar um causo sobre aquele lugar. A fama de mal-assombrado do tal sítio era de conhecimento corrente de boa parte da população do local. Durante a noite, a maior parte da rua que fazia frente ao sítio mergulhava na escuridão, pois a iluminação pública não chegava até ali. Em frente a este sítio, cabe dizer, havia outro sítio menor, o Cariri, este murado. Ou seja: Por um bom trajeto, aquele que ali passasse de noite teria de um lado as muitas e sombrias árvores do sítio do seu Pedro, e do outro, um inoportunamente longo e frio muro. Nenhuma casa alcançável, nenhuma vida, nenhum refúgio ou lâmpada de 60 watts. Era apavorante!

Certa noite, aproveitando-se da fama do lugar, numa época em que não havia muita coisa pra se fazer, um indivíduo – que hoje é um seríssimo pastor evangélico, o Gilson – subiu numa das mangueiras do sítio que margeavam a rua e, lá de cima, na mais profunda escuridão, balançava os galhos e emitia sinistros gritos, a cada alma desafortunada que por ali passasse.

Muita coragem embolada com muita safadeza do então jovem Gilson! Já na rua, era tanta correria que aquele chão ficou compactado, de tanta patada de medroso em fuga!

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Manuel du Bocage (Sonetos) VIII

Que ideia horrenda te possui, Elmano ?
Que ardente frenesi teu peito inflama ?
A razão te alumie, apaga a chama,
Reprime a raiva do ciúme insano:

Esperanças consome, ou vive ufano,
Ah! Foge , ou cinge da vitória a rama:
Ama-te a bela Armia, ou te não ama?
Seus ais são da ternura, ou são do engano?

Se te ama, não consternem teus queixumes
Os olhos de que estás enfeitiçado,
Do puro céu de Amor benignos lumes:

Se outro n'alma de Armia anda gravado,
Que fruto hás de colher dos vãos ciúmes?
Ser odioso, além de desgraçado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Às águas e às areias deste rio
Às flores, e aos Favórios deste prado,
Meus danos conto, minhas mágoas fio,
Dou queixas contra Ismene, Amor e o Fado:

A paz do coração posta em desvio,
O gosto em desenganos sufocado,
Lágrimas com lembranças desafio,
E pela tarda morte às vezes brado;

Tão maviosos sãos meus ais mesquinhos,
Tanto pode a paixão que em mim suspira,
Que se esquecem das mães os cordeirinhos:

O vento não se mexe, nem respira;
Deixam de namorar-se os passarinhos,
Para me ouvir chorar ao som da lira.
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O céu, de opacas sombras abafado,
Tornando mais medonha a noite feia;
Mugindo sobre as rochas, que salteia,
O mar, em crespos montes levantado:

Desfeito em furacões o vento irado,
Pelos ares zunindo a solta areia,
O pássaro noturno, que vozeia
No agoureiro cipreste além pousado;

Formam quadro terrível, mas aceito,
Mas grato aos olhos meus, grato à fereza
Do ciúme, e saudade, a que ando, afeito:

Quer no horror igualar-me a Natureza;
Porém cansa-se em vão, que no meu peito
Há mais escuridade, há mais tristeza.
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Nos torpes laços de beleza impura
Jazem meu coração, meu pensamento;
Esforçada ao servil abatimento
Contra os sentidos a razão murmura:

Eu, que outrora incensava a formosura,
Das que enfeita o pudor gentil, e isento,
A já corrupta ideia hoje apascento
Nos falsos mimos de venal ternura:

Se a vejo repartir prazer, e agrado
Àquele, a este, co’a fatal certeza
Fermenta o vil desejo envenenado;

Céus! Quem me reduziu a tal baixeza?
Quem tão cego me pôs? ...Ah! Foi meu fado,
Que tanto não podia a Natureza.
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Perdi tudo (ai de mim!) perdi Marfida,
Marfida, a glória minha, a minha amada;
Tenra flor, a esperança malograda
Do mimoso matiz caiu despida:

Pede meu coração mortal ferida,
Só aos ditosos a existência agrada;
Vida entre angústias equivale ao nada,
No risonho prazer consiste a vida.

Eia, amante infeliz, teu fim procura!
Fantástico terror não te reporte,
Nos túmulos não reina a formosura.

Diga triste letreiro a minha sorte;
Dai-me piedosa sombra à sepultura
Teixas, ciprestes, árvores da morte.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. SP: FTD, 1994. Disponível na Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro