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segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Estante de Livros (“O apartamento de Paris”, de Lucy Foley)


Novo livro de Lucy Foley traz suspense imprevisível ambientado em um prédio chique na capital francesa

Após os best-sellers A última festa e A lista de convidados, Lucy Foley agora apresenta uma trama instigante sobre uma jovem inglesa que vai à França em busca de um recomeço. 

Na história, conhecemos Jess. Ela está sozinha, sem emprego, sem dinheiro e, agora, em busca de um recomeço. Por isso, ela vai para a França. Lá, ela pede ajuda do meio-irmão, Ben. Mas ele não está muito animado em abrigá-la em seu apartamento de Paris. Ainda assim, ela chega na cidade e descobre que o lugar em que o irmão mora não é bem o que ela imaginava. O problema maior é que não há sinal dele, apenas suas chaves e carteira estão na casa.

Assim, Jess começa a seguir os passos deixados pelo irmão, para descobrir o que aconteceu com ele, enquanto outras perguntas vão surgindo. Afinal, os vizinhos de Ben formam um grupo bem eclético, e nem tanto amigável. Ou seja, Jess acaba se envolvendo em uma investigação que também a deixa em situações delicadas. Logo, ela descobre que o futuro do irmão está em jogo e todos os vizinhos são suspeitos.

Lucy Foley divide a narrativa em vários personagens, mas o foco é Jess, que narra suas partes em primeira pessoa. Eventualmente, todos os envolvidos acabam tendo algum destaque, mesmo Ben. Assim, os capítulos são mais curtos, o que dá mais velocidade à leitura. Por isso ela avança rapidamente, num ritmo muito interessante, comum em thriller desse gênero e em livros de Lucy.

Fato é que a autora constrói seu romance de maneira incrível. Cada capítulo é uma surpresa, ela cria uma expectativa diferente a cada um e quando chegamos na sequência do ato anterior, não é nada do que pensamos. Mas ela mexe com o leitor, ela cria essa expectativa de maneira muito inteligente. Então, não é um simples suspense. É uma história que mexe com o psicológico de personagens e leitores.

Como disse, Jess é a protagonista e narra suas partes. Portanto, ela nos revela muito sobre si, seus medos e como é uma pessoa que também tem segredos, assim como os outros personagens. Além disso, as demais personagens parecem sempre saber de algo, ou esconder algo, enquanto o nome do meio-irmão de Jess sempre aparece também em suas versões. E o mais interessante: eles dão a entender que Ben é o vilão, aquele que trouxe o “mal”.

Por isso, Lucy vai jogando pistas, que podem tanto confundir como deixar o leitor mais próximo de uma resposta para o enigma que vai se formando. Ao mesmo tempo, cada vizinho, cada personagem revela um pouco sobre si, sua relação com Ben, e seus próprios segredos. Aos poucos, esse labirinto vai ficando mais claro e, ao mesmo tempo, intrigante. Como se não fosse bem isso que imaginávamos.

Outro ponto importante é a ambientação da história. Isso foi primordial nos primeiros livros e aqui a autora segue na mesma linha narrativa. Esse prédio de apartamentos em que o irmão de Jess vive, na capital francesa, é quase um personagem da história. Afinal, ele mesmo hospeda segredos tão bem quanto as pessoas responsáveis por eles. Há, nisso, um simbolismo muito interessante e bem trabalhado pela autora.

Mas há uma diferença nesse ponto. Isso porque, nos primeiros livros, a autora trouxe locais mais remotos, seja pela localização ou por condições ambientais. Aqui, é no meio de Paris, em um prédio de apartamentos que, pelo que descrevem, tem um ar de suspense, de fato. Mas é o cenário mais “normal” que Lucy traz, também explorando as ruas e outros locais de Paris.

Sem dúvida, esse livro é surpreendente e com uma estrutura complexa. Mas Lucy Foley consegue desenvolver ele com maestria, sem pontas soltas. Tem um ar de suspense muito interessante, de deixar o leitor tenso mesmo. Como um filme, na verdade, o que é muito interessante. E é incrível como a autora brinca com o leitor, esconde coisas nas entrelinhas, pois todos vão se revelando suspeitos de alguma forma, com motivo e oportunidade.

Enfim, é isso. Um romance que vale a pena a leitura, só para trazer aquela adrenalina e nos tirar da ressaca literária.

Fontes: 
Resenha por Douglas Oliveira para a Estação Imaginária, 23.07.2022. https://estacaoimaginaria.com/

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Estante de Livros (“Labirinto”, de Kate Mosse)


Fenômeno literário na Inglaterra com mais de 750 mil exemplares vendidos no país, o romance histórico Labirinto, da premiada escritora inglesa Kate Mosse, reúne todas as qualidades que o leitor espera encontrar em um bom livro de ação e mistério. Há verdades além das verdades buscadas, viradas e reviravoltas, memórias a serem recuperadas e reivindicadas, desentendimentos de amantes a serem reconciliados, fragmentos do passado a serem salvos e antigas traições a serem vingadas. 

Inspirado em rigorosa pesquisa sobre importante período da história medieval europeia - a cruzada religiosa contra a seita cristã dos cátaros no século XIII que significou uma importante mudança na história da França - Labirinto tem como protagonistas e heroínas duas mulheres separadas pelo tempo, mas unidas por um destino comum. 

Em julho de 1209, na cidade francesa de Carcassonne, a adolescente Alaïs recebe do pai um misterioso livro, que ele diz conter o segredo do verdadeiro Graal. Embora Alaïs não consiga entender as estranhas palavras e símbolos escondidos naquelas páginas, sabe que seu destino é proteger o livro. Serão necessários enormes sacrifícios e uma fé inabalável para preservar o segredo do labirinto - um enigma que remonta a milhares de anos e aos desertos do antigo Egito. 

Julho de 2005: durante uma escavação arqueológica nas montanhas ao redor de Carcassonne, a jovem professora Alice Tanner descobre dois esqueletos. Dentro da tumba na qual repousavam os antigos ossos, experimenta uma sensação de maldade impressionante e percebe que, por mais impossível que pareça, de alguma forma, ela é capaz de entender as misteriosas palavras ancestrais gravadas nas pedras. Porém, é tarde demais - Alice acaba de desencadear uma aterrorizante sequência de acontecimentos incontroláveis, e agora, seu destino está irremediavelmente ligado à sorte dos cátaros, oitocentos anos atrás.
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Análise de Hérida Ruiz

Labirinto é o primeiro volume da  trilogia Languedoc escrita por Kate Mosse. Ao ler esse exemplar provei sentimentos de entusiasmo, fascínio e algumas vezes um certo desapontamento. Labirinto não é um livro fácil, se o leitor não estiver completamente disposto e envolvido, provavelmente não perceberá o quão prazerosa é a obra de Kate Mosse.

O que mais me impressionou foi a narrativa, Kate Mosse abusou da criatividade e dos detalhes, eu quase consegui tocar com os dedos as personagens, sentir o aroma das ervas de Alaïs, o sabor do vinho ou a apreensão e curiosidade de Alice.

Como pano de fundo, Labirinto, explora a perseguição da igreja católica contra os fieis da igreja catara. Kate Mosse fez uma pesquisa extensa sobre a cruzada religiosa aos chamados bons homens, estes possuíam opiniões diferentes dos cristãos que foram consideradas heréticas na Idade Média. Isso desencadeou uma "caçada" da igreja católica para exterminar os hereges e com o apoio do exército profano "A Host" do norte da França, praticaram horrores inimagináveis. Mas por traz dessa carnificina e massacre, os governantes do norte tinham o interesse na posse e conquista das terras do sul, na antiga região do Midi.

Eu consegui sentir o terror provocado pelo exército "A Hoste", a crueldade e sede de sangue me causou uma certa apreensão durante a leitura. Alaïs foi um presente... inteligente, carismática, leal e guerreira, me conquistou desde a primeira palavra dedicada à ela. Alice é bem diferente, achei a personagem meio confusa, apática e, apesar de sua determinação na busca do segredo, ela o faz com certa timidez.

A autora introduz muitos personagens secundários na trama e me questionei sobre a necessidade e os motivos, mas ao longo do livro tudo se converge e se torna claro... são todos necessários. 

Há pontos contraditórios na narrativa, não quero ser critica demais, mas... durante todo o livro Alice é bombardeada por instintos, pensamentos, sonhos e visões e em vários momentos a narrativa faz alusão à vidas passadas, mas terminei o livro sem saber com certeza se Alice é ou não reencarnação de Alaïs.

Excerpto do texto sobre o livro por Hérida Ruiz, para o site Lendo nas Entrelinhas. 11.9.2009.

domingo, 17 de dezembro de 2023

Estante de Livros (“O vencedor está só”, de Paulo Coelho)

Antes de começar a falar do livro, acho que o mais justo seria dar uma introdução a obra falando sobre o autor. Paulo Coelho é o escritor brasileiro que teve mais exemplares vendidos em todo o mundo, de acordo com pesquisa feita em 2014 ele já havia ultrapassado os 150 milhões de exemplares. O que poucos sabem é que antes de se dedicar apenas a literatura, Paulo Coelho foi diretor, autor de teatro, jornalista e compositor.

Sempre ouvi de amigos leitores que Paulo Coelho é o tipo de autor que você ama ou odeia, não existe um meio termo. Não que eu concorde inteiramente com isso, mas o autor é polêmico, aborda temas diferentes e o desconhecido sempre causa medo, ou nesse caso algum tipo de repulsa. Mesmo existindo um grande preconceito com suas obras por parte dos brasileiros, internacionalmente ele é muito reconhecido. Notamos isso com o número de exemplares vendidos que citei mais acima. Meu primeiro contato com o escritor foi com a obra Brida e logo de cara me apaixonei pela sua escrita e profundidade, quando li O diário de um mago tive certeza que iria para o lado de quem aprecia suas obras e sua maneira maravilhosa de tocar a alma de cada leitor.

O Vencedor Está Só é um livro de tamanho considerável, hoje em dia poucas pessoas conseguem ler 400 páginas sem uma obrigação estipulada, aqui já encontramos algo bem interessante, o livro se passa em um período muito curto, apenas 24h! Você ficara impressionado com quantas coisas podem acontecer em um espaço de tempo tão curto. O cenário é o festival de Cannes e temos uma mistura muito interessante de personagens.

A história tem seu início muito antes do festival de Cannes com o então casal Igor e Ewa, ele um ex-militar que após a guerra conseguiu vencer na vida com muito esforço e dedicação ao seu trabalho, investindo na criação de uma empresa de telefonia em uma Rússia abalada, onde ninguém mais acreditava em seu potencial de vencer. Ewa no começo é apenas a esposa dele, uma figura secundária que vai ganhando cada vez mais destaque quando conhecemos melhor Igor, vamos notando que toda a sua base e sua estrutura advém do amor incondicional que ele sente por sua mulher. O sonho dos dois é construir uma casa bem afastada dos centros urbanos e viverem apenas dos lucros e do amor, mas esse sonho fica cada vez mais distante a medida que Igor fica mais viciado em seu trabalho. Esse é um dos motivos para que Ewa fique deprimida, enquanto seu marido está em reuniões de negócio, em viagens pela empresa, ela permanece só em casa, sem um propósito de vida, sem um motivo para prosseguir. Sentindo a aflição de sua esposa Igor tenta de todas as maneiras melhorar seu animo, em uma conversa ela revela que seu sonho era trabalhar com moda e seu marido para alegrar seus dias abre uma gigantesca loja para ela. Talvez se Igor soubesse que esse seria seu maior erro não teria feito isso. Sua esposa então torna-se uma viciada no trabalho igual ele e em uma das viagens para desfiles de moda acaba conhecendo Hammid H., costureiro da elite que acaba se apaixonando por ela. Por motivos sombrios que serão esclarecidos com a leitura do livro, Ewa decide deixar Igor e ir morar com Hammid, a pior decisão de sua vida. Temos formada a história que antecede o fatídico reencontro dos três no festival de Cannes.

Com a traição de sua esposa Igor se vê perdido, sem chão, não te mais motivo para prosseguir a sua vida então se vicia ainda mais no trabalho, é a única coisa que restou de sólido no meio do turbilhão. Quando Ewa vai embora leva consigo uma promessa de Igor, ele diz que vai destruir universos para ter ela novamente. Sabendo do que seu ex-marido é capaz de fazer ela permanece sempre alerta, mas o tempo vai passando e nada de ruim acontece, fazendo com que ela acredite que Igor a esqueceu, infelizmente para si estava enganada e após 2 anos de sua traição Igor começa a executar seu plano friamente calculado.

Com a passagem de ida e volta já garantida e apenas um objetivo em mente Igor vai atrás de Ewa decidido a destruir universos para ter sua amada novamente. Algo que achei muito lindo e é marca do Paulo Coelho é a definição de universo que Igor utiliza no livro, foi um dos poucos pontos que me reconfortaram com a leitura.

Sua primeira vítima é uma garota que vende artesanatos e esse personagem vai ganhar extrema importância na trama, o que achei super válido. A menina conta sua história quando percebe que vai morrer, tenta de alguma maneira tocar o coração de Igor que não será abalado. Utilizando uma técnica marcial ele a mata de maneira limpa e deixa seu corpo em um banco próximo esperando que alguém a encontre. Após cometer o crime manda uma mensagem para sua ex dizendo que destruiu o primeiro universo por ela. Ela será o primeiro de vários outros delitos que Igor irá cometer até chegar no seu objetivo.

Pode parecer que nosso personagem principal é um maníaco, que não tem nenhum sentimento de humanidade, mas fica claro que ele age por amor. De uma forma doentia mas é por amor. Ewa quando percebe o que esta acontecendo fica apavorada, sabe que seu ex é capaz de tudo e tenta alertar Hammid, que não lhe dá ouvidos nenhum, não sabe do que Igor é capaz.

Com o decorrer das páginas vemos um Igor beirando a insanidade até que um fato o demonstra que Ewa não merece todo o sacrifício que ele esta fazendo, sua missão deve ser concluída mas não da maneira como foi planejada anteriormente. Os planos mudam, os alvos não. O desfecho da história acabou me surpreendendo, valeu a pena deixar de lado a vontade de abandonar o livro.

Tem pontos positivos, tem citações e pensamentos maravilhosos como é de se esperar do autor, mas não chega a ser tão profundo como Veronika Decide Morrer ou até mesmo O Diário de um Mago.

Fonte: Texto de Igor Matheus. Disponível no Cinemundo. 3 ago 2015.
https://cinemundo.com.br/resenha-o-vencedor-esta-so-paulo-coelho/

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Estante de Livros (“A casa assombrada e outros contos”, de Virgínia Woolf)

 Além dos romances, Virginia Woolf (1882 – 1941) foi um exímia escritora de contos, que estão presentes em várias coletâneas organizadas por ela mesma, quando viva; e outras organizadas por editoras do mundo inteiro mesmo após a sua morte. Portanto, Casa Assombrada sempre faz parte dessas tantas coletâneas.

Aqui no Brasil há uma coletânea com todos os contos da extinta Cosac Naify, lançada em 2005, que leva o título de “Contos Completos”; outra, menos volumosa chama-se “A marca na parede e outros contos”, que a editora lançou em 2015.

Há outra, ainda mas antiga, lançada em 1984, chamada “A Casa Assombrada e outros contos“, lançada pela primeira vez em 1944 pela editora Hogarth Press, do casal Leornad e Virginia Woolf.

O conto que dá título a essa coletânea pode ser considerado um dos mais curtos da autora. São apenas 692 palavras que relatam a vida de dois fantasmas. Assim, é um conto breve, mas que conduz o leitor para um espaço muito rico porque o cenário é desenhado na mente com facilidade a cada palavra que Virginia Woolf coloca em seu texto.

Se por um lado o leitor pode achar que uma história de fantasmas pode ser assustadora, o lado que Virginia Woolf nos mostra é muito diferente e mais interessante que isso.

Os fantasmas, conectados de um jeito sutil com a natureza, estão ali buscando a mesma coisa, caso estivessem vivos – um tesouro no sótão, no entanto, algo mais sublime.

É essa a primeira impressão, seguida da gentileza estética que a autora promove, ao fornecer para nós belas frases, recheadas de figuras de linguagem inusitadas.

Fachos fortes de luar cruzam pelo chão e a parede e, ao se encontrarem, mancham as faces que se dobram; as faces que ponderam; as faces que revistam os dormentes e buscam sua oculta alegria.

Virginia Woolf entre 1912 e 1919 realmente morou em uma casa que ela considerava assombrada.

A casa ficava no interior da Inglaterra, chamava-se Asheham House e foi a primeira moradia quando casou-se com Leonardo Woolf, que também compactuava da ideia de fantasmas morarem na residência, o que divertia os dois.

Nesta compilação de alguns dos seus contos navegamos pela mente sombria da autora e estas histórias, curtas, mas complexas, falam de um variadíssimo leque de assuntos, guiando-se pelas divagações do narrador, sendo fragmentos de várias vidas numa só. Nesta obra temos sete contos de Woolf, todos eles muito diferentes ainda que com um tom muito semelhante. Este tom é relativo ao ambiente sombrio e às palavras melancólicas que podem refletir a vida – e a morte da escritora.

Os contos em si têm uma escrita muito semelhante na medida em que todos são escritos a partir do pensamento dos personagens. Assim sendo, para mim, um aspecto positivo, pode, no entanto, ser o que torna alguns destes contos um pouco confusos. Ainda assim, uma análise rápida permite-nos perceber o porquê desta confusão – o pensamento humano não é linear: ora estamos a pensar numa coisa, ora estamos a pensar noutra e assim constantemente. Woolf utiliza várias metáforas e faz muitas reflexões filosóficas acerca de temas da sua contemporaneidade.

Para além disso, alguns destes contos são como divagações, uma vez que o narrador se deixa levar pelo seu próprio pensamento, ou seja, não há propriamente um fio condutor, mas antes uma linha com várias ramificações. Neste sentido, a experiência da leitura e de absorção são elevadas a um patamar diferente de muitos contos clássicos.

O conto mais marcante seria talvez “Lappin e Lapinova”, que nos fala de Rosalind e Ernest, jovens recém-casados que criam um mundo só deles a partir de duas alcunhas, Ernest é Lappin e Rosalind Lapinova. Este “segredo” entre os dois foi criado com a intenção de escapar um pouco do mundo de ilusões e de falsas aparências regido pela família rica de Ernest. Com o passar dos anos, Ernest vai saindo lentamente da pele de Lappin e vai-se tornando igual aos membros da sua família, deixando Rosalind destroçada.

Esta história é incrivelmente simples em termos de leitura (talvez das menos confusas) e, por isso, torna-se muito fácil perceber como o amor entre os dois se foi esmorecendo e sendo esquecido. É uma realidade muito vivida ainda nos dias de hoje, pois, ao início, todas as relações têm aquele ar maravilhoso de novidade, no entanto, se não houver um cuidado mútuo, o amor acaba por morrer.

A escrita de Virginia Woolf não é propriamente de leitura fácil e os seus romances são, sem dúvida, mais conhecidos que os seus contos. Apesar disso, esta compilação reflete muito bem o seu universo sombrio e talvez a esperança que ainda residia na sua alma, no amor que esta transportava. Aquando da sua morte, carregada de dor e de pedras nos bolsos, deixou uma carta ao seu marido na qual lhe dizia: “Se alguém pudesse salvar-me serias tu (…) Não creio que dois seres pudessem ser mais felizes do que nós fomos“. Esta última frase é uma referência ao seu primeiro romance.

Fontes:
– Excerto de texto de Francine Ramos para Livro & Café. 01.2017.
– Excerto do Texto de Lorena Moreira, para O Barrete. 17.03.2021.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Estante de Livros (“Contos índios”, de Ruth Guimarães)


Com sua visão antropológica da cultura, Ruth Guimarães, dedicou seus escritos e estudos para abordar o cotidiano caipira na literatura, o que, particularmente envolve os nossos antepassados indígenas. Citando a autora “O índio, nós trazemos em nós”
 
Como povo, somos uma mistura de raças, e o livro traz essa valorização e engrandecimento para com as nossas origens ameríndias. Fato que vem proporcionar ao leitor um momento de autoconhecimento sobre o seu espaço. 
 
Para quem ainda não conhece a obra de Ruth Guimarães, para elaborar as histórias, ela se auxilia basicamente no povo, essa gente simples, que assim como ela gostam de ouvir e contar causos. Buscando sempre a forma descontraída para ilustrar os acontecimentos e mistérios que envolvem o mundo. 
 
Tanto que ao coloca-las no papel, a autora sempre prezou por essa mesma simplicidade em sua linguagem ao registrá-las. 
 
“Quanto à linguagem, claro, recontei à minha moda. Sou portador. Sou caipira. Tenho direito”. 
 
Em seu conteúdo, as histórias começam com os “Contos dos curumins”, que apresentam os índios Puris, primeiros habitantes da região valeparaibana, e por diante o seu cotidiano se envolve com a dos animais e figuras folclóricas das florestas. 
 
“Que conheciam os índios? O sol, a noite, o rio, o macaco, a preá, a onça. Que queriam eles? Viver. Além do comer, do beber, do reproduzir-se, queriam também saber quem os tinha feito. Que faziam eles neste mundo”.
 
Assim, as divisões dos capítulos seguem com os ciclos do macaco, do jabuti, da onça, curupira e da cobra-grande. Ao final de cada fábula há uma consideração da autora sobre a sua pesquisa de acordo com o assunto, apontando as suas variações nas demais regiões e a modificação na grafia de alguns nomes. 
 
Sobre isso, o escritor Daniel Munduruku, apresenta no prefácio um belo texto sobre as versões de histórias que ocorrem entre os povos, devido as diferentes construções. Também coloca a literatura e a produção de livros como atividades essenciais para que as culturais antigas não sejam esquecidas. 
 
“Este importante livro da saudosa Ruth Guimarães é um documento essencial para não esquecermos nossas próprias origens ancestrais”. 
 
Sobretudo, ler e falar sobre Ruth Guimarães é uma grande aprendizagem sobre nós mesmos. Além disso, quem se dispõe a conhecer sua ampla obra, abre-se para um universo simples do respeito pela diversidade dos povos. Como também é uma ponte de apego pela nossa gente: a que gosta de comer iça e mantém o seu vínculo com a sabedoria dos antepassados. 
 
Diante da avançada modernidade e suas tecnologias a distância de um toque, Contos índios, é uma maneira intima de se ver a vida.

Fonte:
texto de Renisse Ordine para o Potiguar Notícias. 14/01/2021

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Estante de Livros (“Os trabalhadores do mar”, de Victor Hugo)

Para Victor Hugo, as três lutas do homem são definidas como suas necessidades básicas: a religião, a sociedade e a natureza. Destarte, o homem precisa ultrapassar os conceitos dos dogmas; lutar por leis justas e; sobreviver em natureza, tanto social quanto mundanal. O primeiro conceito é trazido pelos escritos do Corcunda em Notre Dame, o segundo conceito; elevado pelos Miseráveis, e o terceiro conceito, natural, descrito nos Trabalhadores do Mar. Todavia, o personagem principal da obra não poderia deixar de seguir os moldes de Victor Hugo ao alinhar seus percalços, tanto em sociedade, quanto quando luta por sobrevivência meio ao resoluto mar.

RESUMO

A história se passa na ilha de Guernesey, na costa norte da França, durante o século XIX. O solitário Gilliatt, órfão de mãe e cujo pai é desconhecido, mora numa casa tida pelos moradores locais como assombrada, próxima a uma encosta do mar, afastada do centro do vilarejo de Saint-Sampson. Exímio pescador e homem do mar, porém mal compreendido pela sociedade local, que é muito supersticiosa, vive para si e para seu amor platônico, a jovem e bela Déruchette, sobrinha do mais famoso e bem-sucedido homem da região, Mess Léthierry.

Mess Léthierry é dono da Durande, o primeiro barco a vapor da região que, justamente por possuir mais velocidade, realiza a viagem no Canal da Mancha mais rapidamente e consegue, portanto, manter um comércio mais próspero com a Inglaterra. Consequentemente, a atividade faz de Mess Léthierry o homem mais rico da ilha. Anos antes, havia confiado em seu sócio Rantaine, mas este o traíra e levara consigo a fortuna de ambos. Foi Durande, o barco que ele mesmo construiu, que lhe trouxe a glória. Por isso, tem pelo barco o mesmo amor que tem por sua sobrinha, a quem educa para ser uma esposa dedicada e muito doméstica. O velho homem sonha ter para capitão do barco um genro que seja apaixonado por Déruchette e tão bom homem do mar quanto ele, que possa amar Durande com a mesma intensidade. Enquanto isso não acontece, ele deixa Durande a cargo do capitão Clubin, tido como lobo do mar, ou seja, extremamente experiente e sem medo das águas repletas de rochedos da região.

Os destinos de Mess Léthierry, Déruchette e Gilliatt se cruzam quando o capitão Clubin leva a embarcação ao mar em dia de tempestade e entra num nevoeiro, chocando-se com os rochedos escarpados que coalham o mar em torno da ilha. O desesperado dono do barco acredita que Clubin morrera no mar e ouve dos marinheiros que a embarcação está parcialmente destruída, mas seu motor se encontra intacto, preso entre dois altos e afiados rochedos. Sem esperança, oferece a mão de sua sobrinha ao corajoso homem que salvar a Durande. Escutando sob a janela, Gilliatt, que ama secretamente Déruchette há anos, se oferece para empreender a viagem à embarcação. Durante semanas, ele enfrenta o sol inclemente, a sede, a fome, a febre, os tremores e o cansaço, e consegue construir uma espécie de estrutura elevadiça com a madeira do barco, com a qual consegue içar o motor e colocá-lo em sua chalupa.

Além da luta que Gilliatt trava contra as intempéries, ele enfrenta um novo perigo mortal: um gigantesco polvo que o ataca de surpresa. Segue-se uma luta encarniçada de Gilliatt pela vida, e grande parte do mistério em torno de Clubin e do sócio desaparecido de Mess Léthierry são desvendados. De uma forma quase miraculosa, Gilliatt mata o polvo e consegue voltar à ilha. Sujo, descabelado, doente, magro, com a pele descascando, exausto, com fome, e com suas energias drenadas, consegue amarrar sua chalupa atrás da casa do tio de Déruchette. Quando Mess Léthierry descobre ali a alma de sua embarcação, - o que lhe salva a posição política e a fortuna - reconhece Gilliatt perante a sociedade local como seu salvador e concede a mão de Déruchette a ele.

Gilliatt descobre que Déruchette ama o jovem reverendo inglês Ebenezer Caudray, que havia chegado há poucos meses em Guernesey, e é correspondida. Sua decisão é heroica. Ele dá a ela o baú de enxoval que sua mãe lhe deixara como herança para dar à sua futura esposa, providencia com o pároco mais velho o casamento dos jovens apaixonados sem que Mess Léthierry o saiba e os vê partirem no navio Cashmere, já acomodado em uma pedra recortada numa encosta, cujo formato é de uma cadeira e onde a maré encobre quando o dia anoitece. Ali, sentado e sozinho, espera o mar chegar e cobri-lo, pois para ele, socialmente marginalizado e eternamente infeliz porque sua amada não o ama, o que resta é o mar, e a ele se entrega definitivamente.

Fontes: Página do Ricardo. Resumo escrito por Ricardo Moraes em 08 junho 2020.
Canal Ciências Criminais. Escrito por Iverson Kech Ferreira em 11 agosto 2022.

domingo, 19 de novembro de 2023

Estante de Livros (“Os contos de Canterbury”, de Geoffrey Chaucer)


Os Contos de Canterbury (também chamado Contos da Cantuária), é uma coleção de histórias (duas delas em prosa, e outras vinte e duas em verso) escritas a partir de 1387 por Geoffrey Chaucer, considerado um dos consolidadores da língua inglesa. Na obra, cada conto é narrado por um peregrino de um grupo que realiza uma viagem desde Southwark (Londres) à Catedral de Canterbury para visitar o túmulo de São Thomas Becket. A estrutura geral é inspirada no Decamerão, de Boccaccio.

A coleção de personagens dos Contos da Canterbury é muito rica, com representantes de todas as classes sociais, e os temas são igualmente variados. Os contos são recheados de acontecimentos curiosos, passagens pitorescas, citações clássicas, ensinamentos morais, relacionados à vida e aos costumes do século XIV na Inglaterra. Escrita em inglês médio, a obra foi importante na consolidação deste idioma como língua literária em substituição do francês e do latim, ainda utilizados na época de Chaucer em preferência ao inglês.

Não se sabe ao certo quando foram escritos os Contos da Cantuária, mas menções em outras obras de Chaucer permitem concluir que a maior parte dos contos foi redigida a partir dos últimos anos da década de 1380 até a morte do autor, em 1400. De acordo com o que Chaucer explica no Prólogo Geral da obra, o plano original previa que haveria quatro contos por cada personagem. Chaucer morreu sem conseguir completar esse imenso plano, e assim a obra pode ser considerada inacabada. Além disso há um conto, o do Cozinheiro, que permaneceu sem o final.

Existem atualmente 83 manuscritos medievais dos Contos, com textos mais ou menos completos. Esse grande número de manuscritos é evidência da grande popularidade da obra ao longo do século XV na Inglaterra. Nenhum deles é do punho do próprio Chaucer, mas alguns parecem haver sido copiados por escribas pouco tempo depois da sua morte. Um dos mais importantes é o manuscrito Hengwrt, copiado entre 1400 e 1410 e quase completo, que preserva a linguagem de Chaucer com bastante exatidão. O manuscrito mais famoso, apesar de ter muitas edições que o afastam do original de Chaucer, é o manuscrito Ellesmere, belamente decorado com iluminuras.

A primeira versão impressa dos Contos foi publicada em 1476 por William Caxton em Westminster, seguida de outra em 1483. A obra foi, assim, a primeira grande obra em língua inglesa a ser impressa. Seguiram-se muitas outras edições ao longo dos séculos seguintes.

Os diferentes manuscritos da obra apresentam os contos em diferente ordem, não sendo sabido a ordem pensada por Chaucer. Alguns, porém, apresentam clara relação um com o outro, o que ajuda a estabelecer uma ordem de alguns contos, agrupados em "fragmentos".

Linguagem

Chaucer escreveu em inglês médio, mais especificamente no dialeto londrino, que com o tempo contribuiria para o dialeto adotado como padrão para a burocracia inglesa (o Padrão da Chancelaria - Chancery Standard). A pronúncia na linguagem dos Contos difere em muitos aspectos da pronúncia do inglês atual, o que dificulta a leitura do original pelo leitor moderno. A maior causa destas diferenças é que a chamada Grande Mudança Vocálica não havia ainda ocorrido completamente e, como consequência, muitas das vogais de Chaucer eram pronunciadas de uma maneira mais parecida com o latim, o italiano ou o português do que com inglês moderno. Por exemplo, a palavra "been" (particípio passado do verbo to be) era pronunciada "ben" (/be:/, com um longo "e") ao invés de "bin" (/bi:/, longo "i") como no inglês moderno.

Chaucer era um homem de letras culto e seus escritos demonstram grande conhecimento de obras como a Bíblia e o Romance da Rosa e autores como Ovídio, Dante, Petrarca e Boécio (deste último chegou a traduzir a Consolação da Filosofia ao inglês). Também era grande conhecedor de escritores ingleses contemporâneos, como seu amigo John Gower, e textos morais e religiosos diversos. Há referências a várias destas obras e autores nos Contos de Canterbury.

Em relação à forma narrativa geral, considera-se que a fonte mais importante de Chaucer na composição dos Contos foi o Decamerão, de Bocácio. Esta última obra também apresenta uma coleção de contos narrada por um grupo de pessoas, e vários dos contos do escritor inglês tem um paralelo na obra do italiano. A grande originalidade de Chaucer está no universo dos contos e dos personagens: enquanto no Decamerão os narradores de contos são nobres fugidos da peste negra, na obra de Chaucer encontram-se personagens de todas as classes sociais, desde o povo comum (moleiro, cozinheiro etc), religiosos (monge, prioresa) e nobres (cavaleiro, escudeiro). Cada um destes personagens narra um conto de acordo com sua visão de mundo, evidenciando a grande capacidade narrativa de Chaucer.

Argumento

A obra centra-se num grupo de viajantes que, saindo da pousada Tabard em Southwark (Londres), se dirigem à Catedral de Canterbury, com o objetivo de prestar homenagem ao santuário de São Thomas Becket, um bispo católico assassinado, em 1170, por partidários do rei Henrique II de Inglaterra.

Entre os viajantes está o próprio Chaucer. No Prólogo, o autor descreve em primeira pessoa os peregrinos reunidos na pousada, das mais variadas posições sociais e ofícios. As descrições são muito detalhadas, incluindo a aparência física, defeitos e virtudes de personalidade e dados da biografia. Os personagens incluem um cavaleiro e seu escudeiro, um mercador, monges, um frade mendicante, uma prioresa, um pároco, um vendedor de indulgências, um estudante, alguns profissionais liberais (um médico, um advogado, um jurista), um moleiro, um feitor, um cozinheiro, um marinheiro, um carpinteiro, um tintureiro, um tapeceiro, um marujo, um lavrador e uma viúva de cinco maridos. Assim, quase toda a sociedade medieval está retratada entre os peregrinos.

Ainda na pousada, por sugestão do hoteleiro, os personagens decidem passar o tempo durante a viagem contando histórias. Aquele que contar o melhor conto, na opinião da maioria, ganhará um jantar grátis. A partir desse ponto cada personagem conta um conto, de uma grande variedade temática, de acordo com a posição social de cada um. Muitos dos relatos são precedidos por um pequeno prólogo, e muitos são comentados entre os personagens depois de serem contados.

A variedade dos contos é evidente desde o início. O primeiro conto é o do cavaleiro, que narra uma história heroica típica dos romances de cavalaria da época, em que os valores principais são o amor cortês, a coragem e a honra. Segue-se o relato do moleiro, que conta uma história totalmente diferente, de caráter mundano e erótico e com uma linguagem de baixo calão, sobre como um estudante universitário engana o proprietário de sua casa para dormir com a mulher deste. Os contos que se seguem são de grande variedade, segundo a personalidade e o estrato social do narrador. O conto da Mulher de Bath, em especial, divide-se em duas partes: um prólogo, que cobre boa parte do capítulo e no qual a narradora, de nome Alice, fala de sua história e dos cinco matrimônios que contraiu ao longo da vida; e o conto propriamente, no qual se relata um episódio alegadamente ocorrido na corte do Rei Artur, em que um cavaleiro, após deflorar uma donzela, foi condenado a buscar a resposta de certa pergunta dentro de um ano ou seria condenado à morte.

No final da obra Chaucer incluiu uma retratação, em que desculpa-se a Deus e aos leitores pelo baixo nível moral de alguns contos.

Influência

Diz-se frequentemente que as obras de Chaucer em geral e Os Contos da Canterbury em particular contribuíram para que a língua inglesa se popularizasse como língua literária, uma vez que desde a conquista normanda da Inglaterra até o século XIV as línguas de maior prestígio no país foram o latim e o francês. É verdade, porém, que outros escritores contemporâneos de Chaucer também escreveram em inglês, de maneira que também é possível considerar os Contos como uma parte - importante - da tendência de adoção da língua vernacular como língua literária na Inglaterra de finais do século XIV.

Evidência da importância dada aos Os Contos da Canterbury é a existência de continuadores que adicionaram material à obra inacabada ou criaram contos novos. O Conto do Cozinheiro, deixado inacabado, foi completado por um escriba anônimo. Outra adição é o Conto do Camponês (Plowman's Tale), um conto anônimo do século XV incorporado a alguns manuscritos. Já o anônimo Conto de Beryn (Tale of Beryn), também do século XV, narra a chegada dos peregrinos à Canterbury e as aventuras amorosas do vendedor de indulgências. Um contemporâneo de Chaucer, o escritor John Lydgate, escreveu o Cerco de Tebas (Siege of Thebes, 1420) como um conto adicional dos Contos da Canterbury, incluindo a si mesmo como um dos peregrinos.

Os Contos foram impressos várias vezes a partir de fins do século XV, garantindo assim a influência da obra nas seguintes gerações de escritores ingleses. Um exemplo dessa influência é a peça teatral Os Dois Nobres Parentes, de William Shakespeare e John Fletcher, uma adaptação do Conto do Cavaleiro de Chaucer datada do início do século XVII. A escritora inglesa J. K. Rowling, reconhecida pela sua série Harry Potter, disse ter se inspirados nos contos para criar o livro Contos de Beedle, o Bardo, parte do universo da série.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Estante de Livros (“Roque Santeiro ou O Berço do Herói”, de Dias Gomes)


I- Introdução

A peça O berço do herói deveria ter sido encenada pela primeira vez em 1965, mas o Brasil passava pela ditadura militar e, duas horas antes da estréia, a peça foi proibida pela censura. Mais tarde, com o nome de Roque Santeiro, quase virou novela, mas também foi censurada. Toda essa perseguição deve-se ao fato da peça abordar o tema do mito [herói militar], desconstruindo esse mito. Esse era um tema muito delicado para o momento que atravessava o país. Somente em 1985, já com o processo de democratização, a novela foi ao ar, alcançando grande sucesso e tornando personagens inesquecíveis, como o Sinhozinho Malta e a viúva Porcina. É interessante esclarecer que o livro O berço do herói tem o formato de uma peça teatral.

II- Tempo

A história acontece no período da Segunda Guerra Mundial e Roque retorna à Asa Branca quinze anos depois do final da guerra, quando o governo concedeu anistia aos desertores. Porém, é claro que Dias Gomes utiliza esse tempo passado, como forma de se referir ao tempo em que o livro foi escrito, na ditadura militar da década de 60. Por falar de um herói militar, Dias Gomes tentou criticar o comportamento das Forças Armadas e só pôde fazer isso através de uma história fictícia, deslocada do tempo real, ao qual ele se referia.

III- Espaço

A cidade de Asa Branca acaba se transformando em uma metonímia do Brasil.

IV- Personagens

CABO ROQUE: Natural de Asa Branca, foi convocado a participar da Segunda Guerra Mundial, contra os nazistas. No meio da guerra, fugiu e se refugiou cerca de 15 anos na Europa. Antes de ir para a guerra, porém, prometeu à Mocinha que voltaria para buscá-la. Anos depois, quando os desertores receberam anistia do governo, voltou para ver Mocinha e encontrou sua estátua na praça e percebeu que tinha se transformado em herói devido a uma confusão. Sua fuga foi interpretada como um ato de coragem e ele foi tido por toda a cidade como herói de guerra morto. Asa Branca enriqueceu às custas desse mito, tornou-se uma cidade do progresso e Porcina, uma empregada que teve um caso rápido com Roque, ganhou status de viúva de herói. Além dela, Chico Malta, Zé das Medalhas e muitos outros exploravam a imagem e, por isso, se interessavam em manter o mito.

PORCINA: é uma mulher de 35 anos, muito vulgar e despudorada. Morava em Salvador, onde era arrumadeira e se envolvia com os soldados que iam ficar na hospedaria em que ela trabalhava. Foi assim que se relacionou por uns dias com Roque. Um dia, conheceu Chico Malta, morador de Asa Branca e se apaixonaram. Chico decidiu levá-la para Asa Branca, mas tinha medo de ter problemas, porque era casado. Para resolver tudo, ambos inventaram a estória de que ela era a viúva do falecido Cabo Roque que morrera lutando na guerra. Assim, ela ficou rica e respeitada na cidade toda.

SINHOZINHO MALTA [CHICO MALTA]: Fazendeiro rico e chefe político de Asa Branca. Corrupto e sem caráter, enriqueceu explorando o mito de Roque Santeiro.

FLORINDO ABELHA: Prefeito de Asa Branca, sem personalidade, é o homem de confiança de Chico Malta, pois depende de seu prestígio e se submete a ele. Tenta ser um administrador moderno, mas não manda em nada.

DONA POMBINHA: mulher do prefeito e mãe de Mocinha. Sua religiosidade se aproxima do fanatismo.

MOCINHA: Filha de Dona Pombinha e Florindo. Foi a primeira namorada de Roque e depois que ele foi para a guerra e espalhou-se a notícia de sua morte, decidiu ser casta. Tem um temperamento marcado pela frustração sexual. Encarna a figura da ‘virgem abandonada’. É desencantada com o amor, porque acha que Roque a traiu, casando-se com Porcina.

PADRE HIPÓLITO: é uma figura contraditória [representa a contradição da Igreja no período militar]. É a única pessoa da cidade que possui uma visão crítica sobre o desenvolvimento desigual da cidade. Combate também as prostitutas da cidade.

ZÉ DAS MEDALHAS: é o mais bem-sucedido de todos os moradores da cidade. Enriqueceu fabricando medalhinhas do herói Roque. Monopoliza esse comércio e quer expandir seus negócios para o exterior.

MATILDE, NINON E ROSELI: Prostitutas da cidade, Matilde é a proprietária do bordel. Querem construir uma boate chamada Sexual, porém são impedidas pelo padre e pelas beatas.

TONINHO JILÓ: representa o povo. É manipulado pelos políticos e figurões da cidade.

GENERAL: representa os militares. Ao ser comunicado por Chico Malta sobre a volta de Cabo Roque, vai à Asa Branca atrás dele e não admite que o exército passe pelo vexame de ter reverenciado um covarde, que fugiu da guerra.

V- Enredo

- 1º ATO

1º quadro A peça tem início com uma batalha. Soldado Roque, que carregava em uma das mãos um fuzil e na outra a bandeira brasileira, foge da trincheira, com medo. Sua fuga é interpretada como um ato corajoso , como se ele tivesse decidido enfrentar o exército inimigo sozinho, e tivesse sido metralhado. Essa morte trágica encoraja os outros soldados, que avançam em massa e derrotam as tropas nazistas na Itália. [Essa é a versão que se espalhou por toda a cidade. Na verdade Roque, fugiu no meio de um bombardeio e não morreu].

2º quadro Toninho Jiló [o povo] inicia esse quadro cantando:

Vamos, minha gente, vamos / melhorar nossa cultura / o ABC de Cabo Roque / A estória que vão ler / se passou lá nas Oropa / e demonstra que na guerra / brasileiro não é sopa / quando entra numa briga / não teme sujar a roupa.

Nessa parte, o autor passa a demonstrar a vida da cidade de Asa Branca. Percebemos que o suposto feito heróico do cabo Roque elevou sua cidade à categoria de berço do herói. O lugar passou a ser visitados por muitas pessoas e ali foi construída uma estátua de Roque. Além disso, faziam festas para comemorar data de nascimento, data de morte, data da primeira comunhão e outras mais, tudo isso para explorar a figura do herói. Foi feito até um filme contando sua história e medalhas eram vendidas por todos os lados.

3º quadro A história praticamente começa nesse quadro, pois Porcina está em casa com seu amante, Chico Malta. Conversavam sobre o lucro que Roque dava àquela cidade, até pensavam em uma maneira de transformá-lo em santo. Malta demonstra preocupação em esconder seu envolvimento com Porcina, pois ele é casado. Ressalta que ela precisa ser vista por todos como a viúva do morto, uma mulher virtuosa. Enquanto conversavam, Matilde, a dona do bordel, bate na porta e Sinhozinho Malta sai pela porta dos fundos. Matilde comenta com Porcina sua vontade de abrir uma boate e entrega dinheiro para Porcina levar à igreja. Matilde convida Porcina a ir no bordel e ela responde: Oxente, eu sou a viúva de Cabo Roque, viúva de um herói. Tenho que manter a dignidade.

4º quadro Zé das Medalhas vai visitar o bordel e leva medalhas de ouro de Roque para as meninas. Nessa quadro, o autor localiza o leitor no estilo de vida dos moradores ilustres da cidade, todos os que viviam em função do mito.

5º quadro É o início da complicação, pois chega na cidade um rapaz de uns trinta e cinco anos, com uma maleta de viagem nas mãos. Surpreso, pára diante da estátua aonde está escrito: 'O povo a seu herói'. Ao cruzar com Matilde na praça, pergunta o que é aquilo e ela explica que é o herói da cidade, que fazia de Asa Branca um lugar importante. Acrescenta ainda que Seu Chico Malta era quem cuidava de tudo. O rapaz decide procurá-lo e vai á casa da viúva Porcina, pois Matilde indica esse lugar.

6º quadro Porcina abre a porta e quando encara o rapaz, grita: Meu Deus!... Não, não pode ser! Tou vendo a alma de um defunto... Como é que eu podia esquecer? Roque... Diante dessa situação, Roque responde: ...Nunca poderia esperar encontrar você, tanto tempo depois, na primeira casa em que eu entro. Como veio parar aqui? Me disseram que aqui mora uma viúva... É a sua patroa?

Na verdade, Roque se dirigiu à casa de Porcina, sem saber que ela era a viúva dele. Eles se conheceram na época em que ele foi convocado para o exército. Porcina era a empregada de uma pousada e eles chegaram a ter um romance rápido.

Roque e Porcina relembram os velhos tempos e Porcina procura omitir muita coisa, com medo da situação. Começa a seduzi-lo e o leva para dentro. Cansado da viagem, Roque acaba dormindo.

7º quadro Sinhozinho Malta chega na casa de Porcina e se espanta com a história. Vai ao quarto dela, onde Roque dorme e verifica que realmente é ele:

MALTA: Espere, também não é assim. Um homem vira estátua, vira fita de cinema, de repente aparece de cueca, de bunda pra cima, na cama da minha amante.

PORCINA: Sou viúva de um homem que nunca morreu e que nunca foi meu marido. Agora o falecido taí. Quero ver como vamos explicar isso a ele. A ele e a todo mundo, porque amanhã a notícia vai correr de boca em boca.

MALTA: Ninguém deve saber. É preciso que ele não saia daqui, que não apareça a ninguém. Até eu decidir o que vamos fazer. Não é só o seu caso. A volta desse rapaz vai criar muitos casos.

Depois dessa conversa, Malta vai embora desesperado e ambos prometem pensar rapidamente em uma solução.

8º quadro Roque acorda cedo, antes de Porcina, e vai passear pela praça onde encontra o padre Hipólito. O padre não o reconhece, mas ele insiste: Não se lembra mais de mim? Fui seu coroinha... seu aluno de catecismo. O padre finge lembrar, mas sai apressado para sua caminhada. Logo em seguida, Porcina vem correndo e pede que ele não saia de casa, para que a cidade não descubra que ele voltou e está vivo. Sem entender nada, Roque pensa que ela se refere ao fato de ele ter abandonado a guerra, pensa que foi tido como desertor. Percebendo isso, Porcina explica que a estátua da cidade era para ele e que, para todos de Asa Branca, ele morreu lutando, dando a vida pela pátria, o primeiro soldado brasileiro que morreu pela democracia. Roque se espanta ao descobrir que é um herói.

Malta chega e Roque conta como fugiu da guerra, no meio de um bombardeio, ficando apenas ferido no ombro. Confessa que foi um covarde e completa: Talvez tenha feito coisas ainda piores pra não morrer. E o que fizeram comigo, em nome da democracia, da liberdade, da civilização cristã e de tantas outras palavras?

No meio dessa constatação, percebendo a chegada de alguém, Roque se esconde. É o padre Hipólito que veio buscar o dinheiro que a prostituta Matilde deu à Porcina e aproveita para comentar com Malta o encontro na praça. O padre explica que lembrou quem era depois e que era o Roque. Além disso, afirma que já comentou com o prefeito e com Zé das Medalhas. Logo em seguida, chegam os dois apavorados. Diante da comprovação, procuram o que fazer:

MALTA: Há quinze anos que a cidade vive de uma lenda. Uma lenda que cresceu e ficou maior que ela. Hoje, a lenda e a cidade são a mesma coisa. Na hora em que o povo descobrir que Cabo Roque tá vivo, a lenda tá morta. E com a lenda, a cidade também vai morrer. Tou certo ou tô errado?

Todos chegam à conclusão que se o povo descobrir a verdade, Asa Branca vai acabar e com ela a fonte da riqueza de todos ali. Resolvem então chamar Roque e propor que ele volte à Itália.

ROQUE: [eu vou embora] E todos continuam aqui cultuando a memória do herói. E vivendo à sombra de uma mentira. Já disse que não tenho vocação para mártir. Não acredito nisso, não posso acreditar que um homem seja mais útil morto do que vivo. Do contrário ia ter que acreditar também que todos aqueles infelizes que morreram na guerra foram muito úteis. E que a guerra é uma necessidade porque fabrica heróis em série.

Diante da negação dele, Malta decide ir ao Rio denunciá-lo ao exército.

9º quadro [encenação] todos cantam

À sombra dessa estátua / uma cidade cresceu / cresceu, cresceu, cresceu / à sombra dela cresceu / E agora que fazer / Que a estátua virou / virou, virou, virou / de novo gente virou.

- 2º ATO

10º quadro O autor começa descrevendo a praça, que está toda enfeitada com faixas e cartazes: Bem-vindo Cabo Roque – A cidade recebe com orgulho seu heroico filho. O comentário geral é que Roque sobreviveu á guerra e que está voltando para sua cidade.

No meio dessa confusão Chico Malta volta do Rio com um general e fica surpreso diante da decoração do lugar. Porcina o chama e explica que na ausência dele, todos decidiram contar para a cidade que ele está vivo e inventaram a história de que ele ia chegar com todas as glórias que merece. Malta gosta da ideia, chama o general e explica que Roque é um herói militar e por isso merece as honras do exército. O general entretanto, não aceita ser cúmplice dessa mentira e diz que essa decisão é incompatível com a dignidade militar.

11º quadro Mocinha desconfia que Roque Santeiro já estava em Asa Branca e entra na casa de Porcina escondida. Encontra Roque na sala. A moça o questiona, inconformada porque acha que ele realmente é casado com Porcina. Roque se surpreende com essa informação, mas não tem tempo de se explicar para o seu grande amor, porque Porcina chega e a menina sai correndo. Ele descobre finalmente, porque chamam a mulher de viúva: ela é viúva dele. Porcina conta para Roque essa invenção de Malta para levá-la à Asa Branca sem despertar a desconfiança da mulher do Sinhozinho. Entretanto, se oferece para ser sua mulher de verdade, mas ele não aceita, alegando que é ele quem decide sua vida. Porcina acaba deixando escapar que o general está na cidade e Roque decide fugir para o bordel.

12º quadro As prostitutas o recebem e querem saber o que ele fez durante todos esses anos. O autor se utiliza dessa cena para fazer algumas reflexões sobre a questão do herói militar:

ROQUE: Profissão? Herói! [arrumei essa profissão] Na guerra! Lutei sozinho contra Hitler, Mussulini...Sozinho contra os alemães...Ah, mas é muito dura a profissão de herói. Se eu tivesse morrido, era fácil. Ou se eu tivesse sido herói por acaso, sem querer, como muitos. Mas sou um herói por convicção. Um herói de corpo inteiro.

TODOS: É um mundo estranho esse / em que o amor ao pêlo pode ser / um gesto revolucionário / e provocar a ira dos que nos querem enterrar.

13º quadro Sinhozinho Malta procura Roque na casa de Porcina e ela fala que ele fugiu. Malta começa a pensar em dar um fim nele, crendo que essa é a melhor solução. Para a cidade que espera sua volta devido às faixas espalhadas por todos os lugares, eles falariam que era um louco que se fez passar por Roque. Porcina pede que o deixe fugir, mas Malta acha melhor não.

14º quadro Chico Malta, Florindo e o general procuram o fugitivo e vão ao bordel. Lá, o general passa a questioná-lo e ele confirma ser o Cabo Roque. Isso deixa o militar com raiva, porque Roque era da sua tropa na guerra. Além disso, havia um batalhão do exército que tinha o nome dele. Percebendo que sua vida estava por um fio, o Cabo pergunta se eles querem que ele volte para a Itália, porém, o general responde que não, pois ele pode querer chantagear o exército e a honra militar não pode ficar nas mãos de um canalha.

GENERAL: A verdade é que não tem nenhum sentido ele estar vivo. A morte dele consta da ordem de dia 18 de setembro de 1944 do 6º Regimento de Infantaria. Foi uma morte heróica, apontada como exemplo de bravura do nosso soldado. Atentem bem os senhores o que significa: há um batalhão com o nome dele. Isso é definitivo. Para o exército ele está morto e deve continuar morto.

ROQUE: Parece que a única maneira de não desmentir o boletim do meu Regimento é eu dar um tiro na cabeça ou beber formicida. Só que me falta coragem...Sabem o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Hoje o mundo é outro. E vocês ficam aí cultuando a memória de um herói absurdo. Absurdo sim, porque imaginam ele com qualidades que não se pode ter. Caráter, coragem, dignidade... não vêem que tudo isso é absurdo?

Malta deixa os dois discutindo e sobe para conversar com Matilde e promete patrocinar sua boate se ela der uma bebida envenenada a Roque. A proposta é aceita e todos decidem ir embora. Roque fica sem entender nada, mas fica bebendo com as meninas do bordel. Começa a sentir seu corpo cambalear e cai. Isso coincide com a chegada das beatas à porta do bordel para protestarem contra a abertura da boate, jogando pedras lá dentro.

15º quadro Essa cena tem início com o corpo de Roque estendido no bordel, com um lençol acima e velas em volta. Matilde explica que uma das pedras jogadas pelas beatas atingiu a cabeça dele e isso foi fatal. Pouca gente fica sabendo do ocorrido, pois nem sabiam da presença de Roque lá dentro.

PORCINA: Desde que ele chegou que eu senti que alguma coisa ruim ia acontecer

MALTA: A ele ou a todos nós. É nisso que a gente deve pensar. A uma cidade inteira

FLORINDO: Não seria um crime muito maior matar uma cidade? Em compensação, teremos uma estrada

MALTA: Uma estrada asfaltada para chegar na capital em duas horas.

PORCINA: Que bom. Vou a Salvador toda semana.

MALTA: E ninguém constrói uma estrada dessas sem sacrificar muitas vidas. É a paga do progresso.

A culpa do homicídio recai sobre o padre e as beatas, principalmente Mocinha que se sente culpada por também ter jogado pedras. Devido a isso, o padre é obrigado a aceitar a boate na cidade. Malta propõe abafarem o caso, alegando que se ele pudesse escolher, preferiria ter morrido na guerra.

16º quadro As prostitutas conseguem abrir a Boate Sexus. Na abertura o prefeito discursa:

FLORINDO: Declaro inaugurada esta casa que é, em seu gênero, uma das melhores do país, quiçá da América do Sul. Quero declarar também que isso não seria possível sem o espírito empreendedor de dona Matilde... que tanto tem colaborado com o nosso plano de turismo. Plano que, se Deus quiser, há de fazer de Asa Branca uma cidade digna de Cabo Roque, aquele que morreu lutando pela democracia e pela civilização cristã.

A peça termina com uma fala de Malta:

MALTA [canta]: Assim, senhoras e senhores / foi salva a nossa cidade / Com pequenos sacrifícios / de nossa dignidade / com ligeiros arranhões / em nossa castidade / e algumas hesitações / entre Deus e o Demônio / conseguimos preservar / todo o nosso patrimônio.

VI- COMENTÁRIOS

Linguagem: A linguagem do livro é muito coloquial e simples. Dias Gomes inclui em seu texto palavras do linguajar popular, utilizando até mesmo palavra chulas. Além disso, há em diversos fragmentos ressonâncias das cantigas populares do Brasil.

Personagens: As personagens, em grande parte, são caricaturas de tipos que articulavam o poder em nosso país.

Os militares são vistos, através do general, como autoritários. Além disso, queriam manter o que estabeleciam como verdade, mesmo que isso não fosse verdade. A morte de Roque era tida como verdade, então precisava ser, ou seja, Roque vivo precisava morrer para que a palavra do exército não fosse desmoralizada, custasse isso qualquer o preço.

A Igreja por sua vez, tem dois ângulos no livro. Tem um lado crítico, que rejeita omito progresso, que esconde falsos valores, mas também manipula beatas. Dias Gomes deixa bem clara sua opinião: no período da ditadura foi omissa e muitas vezes conivente com os abusos. Sua preocupação era em manter a falsa moral e não a verdade.

Os políticos como Florindo, o prefeito, demonstram que, segundo Dias Gomes, o poder político não estava com quem tinha sido eleito pelo povo, mas sim com aqueles que detinham o poder econômico, como o Sinhozinho Malta. Malta é também o retrato do que ocorre nas cidades do interior do Brasil, onde os poderosos amedrontam e dominam o povo.

Por outro lado, o capitalismo selvagem é analisado através de quem explora a ingenuidade do povo, vendendo medalhas de um falso herói, como é o caso de Zé das Medalhas. Diante de tudo isso, o povo [representado no livro por Toninho Jiló] nunca conhece a verdade e acaba sempre sendo levado por aquilo que os poderosos querem que ele acredite.

Herói: Dias Gomes questiona um conceito muito interessante do herói. No lugar de simplesmente desconstruir essa figura, apresentando o anti-herói, o autor procura demonstrar como o herói é construído.

Seu livro trata da necessidade do brasileiro de criar figuras maravilhosas. Para isso, expõe a carência das pessoas ao crerem em alguém que é o ser humano ‘ideal’, dotado de virtudes que não temos. A partir disso, aqueles que são mais espertos passam a explorar essa imagem e o mito se consolida. Depois de consolidado, entretanto, aqueles que o criaram acabam perdendo o controle sobre ele e ele passa a ter uma importância que ultrapassa até o bom senso. O mito é também incorporado ao progresso.

Roque precisava morrer, porque ele era um ‘herói’ e essa imagem é mais importante do que a realidade. A personalidade verdadeira do Cabo Roque é totalmente diferente da do herói Roque. O primeiro é um covarde, egoísta e o segundo é cheio de virtudes, como a coragem e o nacionalismo. O que complica tudo isso é o fato dele ser um herói militar, de quem se espera bravura. Ele ter fugido da guerra acaba com a idealização em torno das Forças Armadas.

História Real X História Ideal

Temos no livro dois enfoques da história: a real – Roque foi um covarde e fugiu da guerra – e a ideal – Roque foi um herói e deu a vida pelo país.

Desconstrução da guerra

Se os heróis são necessários para o povo, a guerra também é, porque fabrica heróis em série. O autor procura desconstruir isso e demonstra que o povo não precisa de heróis e que a guerra, ao contrário da visão idealizada que se faz dela, é uma destruição.

Fonte: Estudo da Professora Maria Laura Muller da Fonseca e Silva, disponível no site Algo Sobre. http://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/roque-santeiro-ou-o-berco-do-heroi.html, acesso em 2.02.2008.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Jaqueline Machado (“A pequena sereia”, de Hans Christian Andersen)

A Pequena Sereia: um conto sobre sonho, ingratidão e falsos amores...  

A principal versão do conto "A pequena sereia", de Hans Christian Andersen, diz que no fundo do mar havia um reino, com um rei, uma rainha e seis irmãs: as princesas do mar. As sereias eram livres para irem onde quisessem, menos para um lugar: a superfície. Exceto, no 15o.  aniversário, quando teriam permissão para se aventurar na superfície.  Mas só por um dia. 

Na data certa e com a devida permissão, a pequena sereia emerge das águas e vê um príncipe que está a naufragar. Salva sua vida. Sim. Neste conto, a princesa salva o príncipe. E se encanta por ele. A partir deste momento, passa a desejar ter pernas, ser humana.  

Ao acordar, o príncipe se depara com outra princesa ao seu lado, e pensa ter sido salvo por ela. Então, arrasada, a sereia nadou até às profundezas do oceano onde vivia a bruxa do mar. E falou do seu amor e da sua vontade de ter pernas para ser feliz com seu príncipe. A bruxa concede o desejo. Mas alerta: se ao chegar à superfície e não for capaz de encontrar o verdadeiro amor, você se transformará em espuma do mar. A pequena sereia concordou. A promessa foi forjada. O elo, feito. Mas ao encontrar seu príncipe, descobriu que seu coração ainda pertencia à mulher da beira da praia, com quem ele escolhera casar. 

Este conto nos remete a refletir sobre relacionamentos familiares, de amizades e, principalmente, amorosos.  Eis que a sereia sublime em seu habitat, em sua beleza, em seu cantar, se deixa encantar pelas coisas de um mundo que não a pertence. E acaba por ignorar todas as próprias riquezas e poderes, para conquistar o coração de um humano, que não foi capaz de perceber que ela havia salvo sua vida e ainda dá seu coração a outra. 

Com isso, a Pequena Sereia, por amor a alguém, perde-se, e vira espumas do mar. 

A mensagem de Andersen é muito clara ao que se refere a sonho, ingratidão e falsos amores. Vem para nos lembrar que a protagonista do conto era mais livre sem pernas, como sereia, porque essa era a sua natureza, e que somos o nosso próprio reino, e que mesmo quando perdidos de amor, não podemos nos abandonar, nos anular, nem permanecer em longas esperas, caso contrário, corremos o sério risco de deixarmos de ser quem de fato somos, e virarmos espumas do mar…

Fonte: Texto enviado pela autora