sábado, 19 de outubro de 2024

Vereda da Poesia = 137=


Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Poemas
são pássaros
livres,
que de vez
em quando
pousam
em nossos 
corações.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Enquanto a guerra inundar
num dilúvio, a Terra inteira,
onde a pomba irá buscar
outro ramo de oliveira?!…
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Filigrana

Nem sempre o que sinto é o que escrevo...
Atrevo-me a pensar, perco o poeta,
Poesia é amor em alto-relevo...
Desejo é só ânsia... incompleta.

Nem sempre o que escrevo é o que eu sinto,
Não minto - todavia - as emoções,
O amor é uma taça, o vinho... tinto
É a transfusão do sangue das paixões.

Nem sempre o que me mata é o que me inspira,
Mas há, na minha dor, tanto sentido,
Que quando estou ferido, agindo a lira
Transformo em canção, o meu gemido.

Nem sempre o meu sempre é poesia,
O tempo fantasia a abstração...
O amor dilui a dor na alegria
E tudo flui em forma de emoção.

Meu sempre é ter, dentro da retina,
A luz que ilumina quem respeito...
O amor é uma doce bailarina
Que dança... cristalina... no meu peito.

O amor é sempre um sempre... e é tão bonito
Sonhar... com a ingenuidade de um menino,
Que crê que todo amigo é infinito
E é mais que um presente do destino.

Meu sempre é tão... singelo... e natural,
E o meu sorriso triste, tão... humano...
Que quando me maltrata algum... igual,
O meu amor se ri do desengano.

No fundo, tudo é fina porcelana
Que enfeita a solidão de uma estante,
O amor é muito mais que a filigrana
Que não precisa mais de um diamante.

Amar requer afeto... aceitação
E não um sentimento possessivo,
Que faz do egocentrismo, uma prisão
E a libertação me mantém vivo.

Meu sonho é real ou impreciso,
Porém nunca me encanta o desencanto...
Se choro, a semente do meu riso
Irriga-se no sal que vem do pranto.

O sempre é fugaz... o tempo corre
E escorre como o sangue em cada veia,
Mas minha esperança, que não morre,
Aguarda o diamante na bateia.

Porém o inequívoco anseio
De ter a inspiração brotando em mim,
Dilui meu sonho bom no que semeio
E afaga a brotação do meu jardim.
= = = = = = 

Trova Premiada em Irati/PR, 2023
EDY SOARES 
Vila Velha / ES

Lembrança doce e singela
enchendo o peito de afago:
eu e meu pai na pinguela,
jogando pedras no lago…
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Há dias assim...

A lembrança do seu olhar,
Do perfume permanece.
A música da última dança...
E a saudade insiste!
Há dias assim
E noites também...
= = = = = = 

Trova Popular

Eu casei-me e cativei-me,
inda não me arrependi;       
quanto mais vivo contigo, 
menos posso estar sem ti.
= = = = = = 

Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

História antiga

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube porque foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

Desde então, transformou-se, de repente,
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la…
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Canarinho, quando canta, 
que será que o faz cantar? 
– Sei lá... mas a mim me espanta 
que ele cante sem cobrar... 
= = = = = = 

Sonetilho de
EUCLIDES DA CUNHA
Cantagalo/RJ, 1866 – 1909, Rio de Janeiro/RJ

Comparação

"Eu sou fraca e pequena..."
Tu me disseste um dia.
E em teu lábio sorria
Uma dor tão serena,

Que em mim se refletia
Amargamente amena,
A encantadora pena
Que em teus olhos fulgia.

Mas esta mágoa, o tê-la
É um engano profundo.
Faze por esquecê-la:

Dos céus azuis ao fundo
É bem pequena a estrela...
E no entretanto — é um mundo!
= = = = = = 

Trova Humorística de
HELENA KOLODY
Cruz Machado, 1912 – 2004, Curitiba

Cresceu estranho tumor
no pé descalço do Zé.
Será que eu tenho, doutor,
apendicite no pé?
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Pedra bruta

Pedra bruta que sou, me dá trabalho
Tirar de mim as lascas a cinzel...
Quantas vezes que eu já errei o malho,
Deixando a outra mão feito um pastel!

Quantas vezes também eu me atrapalho,
Mandando o que já fiz pro beleléu...
E o recomeço deixa-me em frangalho,
Pois bem sei eu como isto é cruel!

Já foram, assim, dez lustros de labuta,
Mas continuo ainda pedra bruta...
E mil pedaços já arranquei de mim!

Vou ter que contratar alguém bem destro
Que a essa lapidação coloque um fim,
E eu volte a trabalhar só com meu estro!
= = = = = = 

Trova de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Em noite alta... madrugada,
contemplo a lua contrito:
- Barca de prata aportada
nos segredos do infinito.
= = = = = = 

Soneto de
FLORBELA ESPANCA 
(Flor Bela de Alma da Conceição Espanca)
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos

A um livro

No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.

Estranho livro aquele que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!

Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
O livro que me deste é meu, e salma
As orações que choro e rio e canto! …

Poeta igual a mim, ai que me dera
Dizer o que tu dizes! … Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto! …
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Sempre foste minha estrela,
eu com gosto te seguia,
na tormenta te apagaste,
fiquei sozinho e sem guia.
= = = = = = 

Poemeto de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

As folhagens agitadas
sentem o frescor
do crepúsculo
que vai de encontro
ao horizonte, enquanto
gaivotas repousam
no por do sol.
= = = = = = 

Trova de 
GERSON CÉSAR SOUZA
São Mateus do Sul/PR

Não julgue alguém pela imagem,
pois muitos fazem de tudo
para esconder na “embalagem”
a falta de conteúdo.
= = = = = = 

Poema de 
CATULO DA PAIXÃO CEARENSE
São Luís/MA, 1863 — 1946, Rio de Janeiro/RJ

Recorda-te de mim

Recorda-te de mim quando de tarde
Gloriosa a morrer na luz do dia
E nos seios da noite a serrania
Em candores de neve se ocultar
Recorda-te de mim nesse momento
As estrelas saudosas do penar.

Recorda-te de mim quando alta noite
Escutares um canto de tristeza
Descontando por toda a natureza
Nos formosos harpejos do luar
Recorda-te de mim quando acordares
E sentires no peito do adolescente
Um espirito em mágoa florescente
Uma hora em teu peito a suspirar.

Recorda-te de mim quando no templo
Numa prece serena, doce e fina
Sob o altar florescido de Maria
Teus segredos à Virgem confiar
Recorda-te de mim nesse momento
Para que minha dor tenha um alento
E me deixe morrer com o pensamento
De que morro feliz só por te amar.
= = = = = = 

Trova de
MERCEDES LISBÔA SUTILO
Santos/SP

És o livro de poesias
de amor, a mim dedicadas!
Se me abraças, irradias
vida às frases arrojadas!
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Poeta à antiga

Quando o enxergam passar - passos pequenos,
a face magra, quieto, entristecido -
lançando às vezes , no ar, mudos acenos
em gestos de abraçar o indefinido;

Quando o enxergam passar(e o seu ouvido
não atende aos insultos dos terrenos)
todos, num quase acento comovido,
dizem: "deve ser louco, mais ou menos..."

Um dia (nem eu sei como se deu)
conversamos...Contou-me todo o seu
viver, cheio de angústias e revezes...

É poeta!...Arrependo-me dizê-lo
pois eu sei que dirão, agora, ao vê-lo:
-"Poeta?... Então é louco duas vezes!"
= = = = = = 

Poetrix de
SÍLVIA MOTA
Belo Horizonte/MG

perda de tempo

de tempos em tempos
enquanto homens resmungam
renova-se o Tempo.
= = = = = = 

Poema de
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ

Confidência do itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/ SP

- Vamos ao circo sozinhos
e, por favor, fiquem calmas.
E as mães dos dois mosquitinhos:
- É que o povo... bate palmas!
= = = = = = 

Poema de 
GERRIT KOUWENAAR
Amsterdam/Holanda, 1923 – 2014

É um dia claro

é um dia claro é um mundo escuro
entre a verde erva a carne é vermelha
homens deixam-se vergar por um naco de pão
é um dia escuro é um mundo claro
riem os homens e tudo é possível

percorri o caminho para colher uma maçã
mas no caminho havia uma cobra

a vida é boa mas a vida podia ser melhor
todas essas guerras entre tréguas eternas
todo esse morrer para viver ainda mais
a vida é boa mas a vida podia ser melhor
a carne é dura de roer mas mais tenra que os ossos

percorri o caminho para escapar à morte
mas no caminho havia um homem de ferro

enquanto a boca mastiga o ar rarefaz-se
enquanto o pão se digere a mão invalida-se
enquanto falamos na casa ela incendeia-se algures
é um dia escuro é um mundo escuro
os jornais noticiam como aconteceu e como não acontecerá

percorri o caminho para construir uma cidade
mas projetei torres em subterrâneos

no quadro o mestre-escola escrevia futuro amor e deus
salve a nossa pátria, e eu todo lábios e olhos
imitava-o na lousa
mas lá fora dançava a rapariga tangível
flutuando como se não houvesse leis da gravidade

percorri o caminho para encontrar o caminho
mas atrás do pudim havia um prato vazio
= = = = = = 

Trova de
ANTONIO SALOMÃO
Altinópolis/SP, 1921 – ???, Curitiba/PR

Eu vejo a terra cansada,
a cada passo mais linda,
sofrendo golpes de enxada,
e dando frutos ainda.
= = = = = = 

Hino de 
Macaíba/RN

Foi nas margens do Rio Jundiaí
Onde o sonho de um povo começou
E nas sombras de uma palmeira
Que Fabrício seu nome elegeu
Foi na luta de gente que ama
Sua terra, seu povo, seu porto torrão;

Em batalhas e lutas ferozes
A aurora de grandes vitórias
No cultivo do chão da esperança
No horizonte queremos chegar
E agora queremos saudar
A uma terra que luta
Mas glórias terá;

Refrão
Eu te saúdo, óh Macaíba
Eu te saúdo, antiga Coité
Esperança é uma semente
Que nasce, que brota
Neste lugar;

É uma terra de gente de glórias
De Severo e o Pax seu balão
Defensores da nossa cultura
Aliados da educação
São poetas, são homens da Lei
Que viveram sonhando
Buscando ideais;

As riquezas do povo potiguar
Pelas águas do nosso rio passou
Pelas mãos desse povo valente
Que tirou o sustento do chão
E tão valioso ouro branco
De nossos engenhos da cana tirou;

Refrão
Eu te saúdo, óh Macaíba
Eu te saúdo, antiga Coité
Esperança é uma semente
Que nasce, que brota
Neste lugar.
= = = = = = 

Trova de 
NEIDE ROCHA PORTUGAL
Bandeirantes/PR

Sem usar o pão sobre a mesa,
eu não reclamo, porquê…
em meio a tanta pobreza 
minha fortuna é você!
= = = = = = 

Poema de 
ALVES COELHO
(José Adalberto Alves Coelho)
Lisboa/Portugal

Olhos Castanhos

Teus olhos castanhos
de encantos tamanhos
são pecados meus,
são estrelas fulgentes,
brilhantes, luzentes,
caídas dos céus,
Teus olhos risonhos
são mundos, são sonhos,
são a minha cruz,
teus olhos castanhos
de encantos tamanhos
são raios de luz.

Olhos azuis são ciúme
e nada valem para mim,
Olhos negros são queixume
de uma tristeza sem fim,
olhos verdes são traição
são cruéis como punhais,
olhos bons com coração
os teus, castanhos leais.
= = = = = = 

Trova de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Faça do livro, criança,
a rota dos sonhadores.
O livro é o barco que alcança
o porto dos vencedores.
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

Os dois homens e a Fortuna

Dois amigos numa aldeia
Viviam; um a cantar;
O segundo, volta e meia,
Descontente, a suspirar.

«Aqui, amigo, a abastança
Nos nega a sorte importuna;
Mas de lugar a mudança
Faz que se encontre a Fortuna.

— Não te quero dissuadir,
Vai ver mundo, vê se a apanhas,
Que eu ficarei a dormir,
À espera de que tu venhas.»

O ambicioso, neste intuito,
Lembrou-lhe a corte; partiu,
Chegou lá, procurou muito,
Mas a Fortuna não viu.

Busca monção oportuna,
Vai ao Mogol, mas em vão;
Dizem-lhe lá que a Fortuna
Se encontrava no Japão.

De novo ele sulca os mares,
E, não vendo a deusa amada,
Volta aos seus antigos lares,
Dando ao diabo a cartada.

E a Fortuna, seu castigo,
Veio encontrá-la a sorrir,
Sentada à porta do amigo,
Que dormia a bom dormir.

Arthur Thomaz (O velho e o vento)

Aqui fora, conversando com o sol e com as plantas, percebo a chegada do vento mansamente sem causar alarde.

Arrisquei um "buenas tardes”, mas me disse que podia falar na minha língua, pois ele percorrera os mais distantes rincões do planeta e conhecia todos os idiomas e dialetos.

Então perguntei a ele que bons ventos o traziam (não resisti a essa brincadeira). Indaguei se ele estava com alguma dúvida.

Respondeu que sim, se era verdade que uma mulher quis tentar me estocar.

Após muitas risadas respondi que não era uma mulher e sim uma alienígena, portadora de apenas dois neurônios, e que não deveria ser levada em conta.

Mais risadas.

Nisso uma garça branca chegou, vestida de bombacha e com uma cuia de chimarrão, e depois de saudar a todos perguntou ao vento se ele já tinha lido o texto do Luís Fernando Veríssimo, o qual afirmava que pessoas tristes ouvem o vento gemer e pessoas alegres, ouvem o vento cantar.

Nesse momento, o amigo vento entoou uma maravilhosa canção encantando todos nós.

Um quero-quero e uma maritaca, que observavam a cena, vendo a boa acolhida que a garça branca teve, juntaram-se a nós. 

Formada a roda de chimarrão continuamos nossa conversa. O quero-quero, que também veio lá do sul do Brasil, disse com orgulho que tinha lido a trilogia "O tempo e o vento" de Érico Veríssimo. A maritaca já foi logo perguntando se ele tinha participado do filme "O vento levou". O vento sorriu e soprando levantou as penas da falante ave. Risadas de todos na roda.

Eu pedi que contasse algumas de suas peripécias mais atuais.

Com face de criança arteira perguntou se eu soube do cargueiro que com uma lufada o fez ficar atravessado e interromper a passagem do canal de Suez.

– Consegui o maior congestionamento de navios de todas as épocas: mais de quatrocentos.

Disse também que, às vezes, apenas se divertia levantando saias das moças ou arrancando a peruca de carecas e, há pouco tempo, levou areia do Saara e jogou nos olhos de pessoas em países que estavam atrapalhando a paz mundial.

Imaginando as cenas, rimos juntos por algum tempo.

Ele afirmou que vagara por bilhões de anos antes da vida surgir no planeta e necessitava umas peraltices para acalmar a tempestade interior (devolveu com outra brincadeira).

Um tanto nostálgico, falou que durante esses bilhões de anos no planeta, ainda sem nenhuma forma de vida, contou com a companhia de um fiel amigo: o tempo.

Ficaram tão unidos que pensaram em formar uma dupla sertaneja, Éolo & Cronos, mas desistiram porque o rádio ainda não havia sido inventado e não haveria audiência. Risos.

Indaguei o motivo de andar tão mal-humorado. 

Calmamente, ele disse que não. E que até já convocara uma coletiva de imprensa para explicar e desmentir esse boato. Tudo inútil, mal prestaram atenção no que eu disse, distraídos olhando o celular.

Já havia implorado aos seres humanos que parassem de testar bombas atômicas, que não poluíssem o meio ambiente, que não jogassem lixo nos mares e rios. Explicou que isso aquecia o ar e o jogava em correntes diferentes do seu curso normal. Quando percebia, já se transformara em ciclones ou devastadores furacões.

Eu lhe disse, com ar consternado, que não via possibilidade desses ditos humanos alterarem esse tipo de conduta. 

Que se preparem para acontecimentos piores, vaticinou.

Ele, então, me envolveu em um tépido abraço e assobiando deslocou-se para outras paragens, prometendo voltar para outras conversas.

E, de longe, brincou que por mais força que fizesse jamais despentearia o meu topete.

A borboleta, pousando em meu joelho, indagou se o vento tinha debochado de minha careca.

Até as plantas ao redor gargalharam.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Santos/SP: Bueno ed., 2021. E-book enviado pelo autor.

Recordando Velhas Canções (Se todos fossem igual a você)


(samba canção, 1957)

Compositores: Tom Jobim e Vinícius de Moraes

Vai tua vida,
Teu caminho é de paz e amor
Vai tua vida é uma linda canção de amor
Abre os teus braços
E canta a última esperança
A esperança divina de amar em paz

Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver
Uma canção pelo ar,
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar,
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar
Como o sol,
Como a flor,
Como a luz
Amar sem mentir,
Nem sofrer

Existiria verdade,
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você

A Utopia do Amor e da Paz em 'Se Todos Fossem Iguais a Você'
A música 'Se Todos Fossem Iguais a Você', de Vinicius de Moraes, é uma ode à paz, ao amor e à esperança. A letra começa com um convite à vida, destacando que o caminho a ser seguido é de paz e amor. Vinicius sugere que a vida é uma linda canção de amor, e que devemos abrir nossos braços e cantar a última esperança, que é a esperança divina de amar em paz. Essa introdução estabelece um tom otimista e idealista, onde o amor é visto como a solução para os problemas do mundo.

No refrão, Vinicius imagina um mundo onde todos fossem iguais à pessoa amada. Ele descreve esse mundo como um lugar maravilhoso para se viver, onde a música e a alegria estariam presentes em todos os lugares. A imagem de uma cidade inteira cantando e sorrindo reforça a ideia de uma sociedade harmoniosa e feliz. A beleza de amar é comparada a elementos naturais como o sol, a flor e a luz, simbolizando pureza e verdade. Amar sem mentir nem sofrer é apresentado como um ideal a ser alcançado.

A música também aborda a questão da verdade, sugerindo que a verdade que ninguém vê existiria se todos fossem iguais à pessoa amada. Isso implica que a falta de amor e compreensão é o que impede a verdade de ser percebida. Vinicius de Moraes, conhecido por suas poesias e canções que exploram temas de amor e existencialismo, utiliza essa música para expressar uma visão utópica de um mundo melhor. A simplicidade e a beleza da letra refletem a profundidade dos sentimentos humanos e a busca por um ideal de vida baseado no amor e na paz.

Em meados de 56, Vinícius de Moraes estava com a peça "Orfeu da Conceição" pronta, faltando somente conseguir um compositor para musicá-la e, se possível, orquestrá-la. Achava Vinicius que o nome ideal para a tarefa seria o de Vadico (Osvaldo Gogliano), parceiro de Noel Rosa que, convidado não aceitou.

Atendendo, então, a uma sugestão do crítico musical Lúcio Rangel, o poeta convidou Antônio Carlos Jobim, na época um jovem compositor e arranjador ainda pouco conhecido.

Começava assim a parceria Tom/Vinicius, uma das mais importantes da música brasileira, juntando o talento de um grande músico ao de um poeta consagrado e que deu como primeiro fruto "Se Todos Fossem Iguais a Você". Romântica, requintada, até com uma certa tendência para o monumental, "Se Todos Fossem Iguais a Você" é a melhor composição do repertório criado para a peça. Lançada por Roberto Paiva no final de 56 chegaria ao sucesso no ano seguinte, quando recebeu várias outras gravações.

Fontes:
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, A Canção no Tempo. vol. 1. 1997.
https://www.letras.mus.br/vinicius-de-moraes/49284/

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

José Feldman (Poetizando) * 4 *


 

Geraldo Pereira (Colombinas Enternecidas)

As minhas saudades estão guardadas agora em dourados guizos das fantasias dos meus outroras e revivem lembranças dos carnavais que se foram e nunca mais hão de voltar. Ah, recordações dos tempos pretéritos, de amores rompidos assim, sem as antecipações dos rumores e das dores! 

Onde andarão as enternecidas colombinas de meus anos, que encantavam pierrôs apaixonados e inquietavam arlequins desesperados? E os palhaços, de roupas largas e de muitas cores, de máscaras risonhas, tocando castanhola e acompanhando o frevo de bloco ou o rasgado dos acordes?

Nem as serpentinas jogadas bem longe, nas distâncias que embalam os nostálgicos sonhos do imaginário, recuperam aqueles tempos: os salões enfeitados e os pares rodopiando alegria. E nem os confetes, com o espectro todo do arco-íris da vida, flutuando nos ares ao sabor dos ventos, vão trazer de volta os beijos roubados das mascaradas moçoilas, que escondiam a face, mas não podiam negar as formas do corpo! Se o lança perfume evaporou-se para sempre, deixou pelo menos gravado na memória das épocas o aroma gostoso que aproximava os corações ardentes, inflamando as paixões! E o mais do que tradicional corso, como uma serpente enorme, espalhando-se e se espraiando, carro após carro, caminhões enfeitados com faixas de pano, batucadas improvisadas e músicos de ocasião? O bate-bate de maracujá e a animação tomando conta do mundo pequeno dos meus dias de menino desapareceram também nos ares da vida! Era o frevo no pé e o pé no frevo, contanto que houvesse alegria na fanfarra das horas!

Revejo, então, o sacrário das minhas saudades, depositário das minhas lembranças, para acender os meus devaneios pueris, guardados ali, naquele canto das recordações dos pretéritos do existir terreno. A fantasia azul de marinheiro, da cor do céu, de gola branca e larga estava lá, engomada e passada, pronta para ser usada. Foi a minha mãe quem a manteve assim, embalando as divagações e os sonhos da criança do antes, oníricos, sobretudo diurnos, preservando os mais particulares desejos, de ver e de rever esse tempo encantado. Não adianta querer vestir a roupinha de palhaço, de fazenda estampada, com um coração muito grande preso no pano, representando os amores de uma infância feliz e bem vivida. E de que serve querer ouvir, na velha radiola de casa, os acordes dos frevos de bloco, a musicalidade de Nelson e de Capiba, tão presentes naqueles dias?

O disco de 78 rotações não tem mais em que agulhinha rodar, porque cedeu lugar aos avanços e perdeu o espaço na corrida do tempo: 

“Ah!/Saudade!/Saudade tão grande!/Saudade que tenho...” . Na madrugada do domingo, agora, não posso mais ver chegar a musa de minha rua, vestida com a fantasia de capitão, da mais pura e branca seda, aos beijos e aos abraços com o pretendente emergente, num amor de causar dor e dó a todos que a tinham na mais do que franca maneira de promover no imaginário as enlevações do espírito. Se casou ninguém sabe, ninguém viu! Sabe-se, apenas, que ficou na lembrança de muita gente!

Faço hoje mesmo o itinerário sentimental do corso e viajo pelas ruas do Recife, sem me ater aos indicativos de trânsito, às proibições do tráfego, postas aqui e ali sinalizando a modernidade, contanto que possa rever os meus passos e os meus passados, as minhas andanças, afinal, em tempos idos, acolhidos já na enorme distância das saudades! Posso ouvir o batuque cadenciado dos tamborins daqueles outroras, que no caminhão, ao fundo, animava a meninada toda! E na velha Casa de Detenção descortino os antigos sinais dos encarcerados, da gente presa ali, pendurada às grades, dando adeus à liberdade dos outros. Passo pela a rua da Concórdia inteira, o meu paço da folia à época, do começo à praça, cumprimentando em pensamento os passantes todos, as colombinas e os arlequins, os pierrôs e os palhaços, os mascarados e os papangus* que assombravam os meninos nas ruidosas manhãs de sábados encantados. Sento-me, porém, num banco qualquer e vou rebuscar encontros e desencontros dos meus derradeiros corsos! Foi aqui, relembro, falando quase, que vi a musa dos meus dias, que identifiquei o peculiar sorriso, alvo e puro, de incisivos levemente oblíquos, dando vida à beleza nascente, que a vi crescer e desenvolver na corrida do tempo, do implacável relógio marcando as horas e rodando os dias. Quando os nossos olhares se cruzavam nos ares da fanfarra, o riso adornava-lhe a face bem desenhada das esculturas forjadas pelas mãos do Criador! Tomei a mim a missão de amá-la! Melindrosa dos meus dias!

Posso, então, cantar, com o menestrel do amor: “Os melhores dias de minha vida/Eu passei contigo/Minha querida...”. Assim, atualizo as minhas saudades, lembrando os carnavais do ontem e amando a musa do hoje!
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* Papangus = Pessoa que sai à rua mascarada ou com certa fantasia, no carnaval ou em reisados.

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público