terça-feira, 11 de outubro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 360)


Uma Trova Nacional

Ó, meu irmão do nordeste,
tua dor compreendo bem!
Mas se a tua terra é agreste,
tua fé vai muito além.
–AYDA BOCHI BRUM/RS–

Uma Trova Potiguar

Qualquer inveja revela
uma doença infinita,
que deixa a maior sequela
nos corações onde habita.
–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada

2011 - ATRN-Natal/RN
Tema: VERTENTE - 3º Lugar

Numa montanha de mágoas
há uma vertente escondida
por onde correm as águas
dos prantos da minha vida!
–RENATO ALVES/RJ–

Uma Trova de Ademar

O sal, além de tempero,
junto ao sol, de forma amena,
na praia, com muito esmero,
deixa a mulher mais morena.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Capela do meu sertão,
quanta beleza traduz:
– num pedacinho de chão
um monumento de luz!
ALFREDO DE CASTRO/MG–

Simplesmente Poesia

Munganga do Mulato Maluco.
–MARIVALDO ERNESTO/PB–

"Onde anda você ???"
Perdido na noite alucinante dos espectros.
"E não mais que de repente"
Fugindo da ameaçadora existência,
como quem foge da própria sombra.
Indo ao encontro do nada,
na estrada dos desesperados
quilômetro zero da inércia,
ponto final da ilusão,
dormir com a ingratidão,
"Essa mulher que se arremessa fria"
por pura devoção
numa orgia cataléptica
na noite suja dos malassombrados.

Estrofe do Dia

Quando muito possui é só farinha,
a carteira que mostra é a mão grossa,
quando o êxodo rural tira da roça
no inchaço da rua ele se aninha;
quanta gente reside na rocinha,
quantos pobres desejam sair dela,
e quantos jovens mofando numa cela
por roubarem na rua o próprio pão;
quem escapa da seca do sertão
morre embaixo dos morros da favela.
–EDMILSON FERREIRA/PI–

Soneto do Dia

Reencontro
–LUNA FERNANDES/RJ–

Eu me afastei de mim, de tudo o que eu queria
-as minhas ambições, meus sonhos e ideais...
E sem sentir, decerto eu me afastei demais
desse mundo de paz e amor em que eu vivia.

E arrastado que fui por tantos vendavais,
eu me perdi de mim... E quando enfim, um dia,
eu tentei me encontrar, senti que não podia
pois os rumos de volta eu não sabia mais...

E segui, sendo alguém que seguia, não eu...
Até que um dia achei, entre as rimas, o abrigo
que eu há tanto buscava e tão bem me acolheu...

E aos poucos devolveu-me esse convívio amigo
com tudo o que eu perdera e voltava a ser meu...
E eu me encontrei, então, novamente comigo...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor
Imagem = http://www.infoescola.com

Júlia Lopes de Almeida (A Arte de Envelhecer)


Não somos só nós, minhas amigas, que vemos com terror brilhar por entre as nossas madeixas castanhas, louras ou pretas, o primeiro fio de cabelo branco. As dolorosas apreensões desse momento eram-nos só atribuídas a nós, como se não nascêramos senão para a mocidade e o amor.

O homem envergonhado, e com receio de se confessar vaidoso, sem perceber talvez que a primeira denúncia da velhice tem para nós amarguras mais sutis que a do simples medo de ficarmos mais feias, teve sempre para a nossa decepção um sorriso de inclemente ironia...

Poetas e contistas, valham-nos eles, e que Deus lhes prolongue a raça! engrinaldaram de rimas e períodos suaves a dor desse momento sagrado, em que as nossas esperanças fecham as asas, repentinamente murchas, e a luz dos nossos sonhos esmorece...

Mas se eles adivinharam a delicadeza do nosso sentimento, não nos contaram a espécie do seu, ao ver a luz pálida e fina de um fio prateado coleando por entre as ondas negras da cabeleira, ou as pontas castanhas do bigode. Pensávamos que os primeiros sinais outoniços, que são para as mulheres os mais terríveis, não os alarmassem a eles, sempre embebidos em tão grandes ideais, que nem tivessem vagar para perceber a ruína do próprio corpo. Enganamo-nos ; o homem é também sensível como nós às apreensões que a vista primeiro cabelo branco sugere.

Um fio de cabelo, nada há mais frágil, nem mais quebradiço nem mais leve, e entretanto vê-se que mundo de sensações ele prende e arrasta! Até aqui, eram só as nossas, supúnhamos, mas agora sabemos que são as de toda a gente!

Tenho diante dos olhos uma página de homem — A arte de envelhecer — que se me afigura ter sido escrita diante de um espelho pérfido. Essa página suave e bem feita analisa essa hora delicada e de difícil interpretação, em que há em todos o mesmo estremecimento de susto, e o mesmo estender de mãos para agarrar o que passou e que não voltará jamais — a mocidade.

A mocidade! Aos quarenta anos ainda a sentimos perto, aspiramo-lhes o aroma, como que lhe sentimos o hálito quente; já ela nos deixou, já ela se foi embora, e, todavia recrudesce em nós, mulheres, toda a alacridade vivaz da sua exuberância; há mais calor no nosso peito, mais ardor na nossa paixão, mais firmeza na nossa vontade. É nesse instante de supremo gáudio que um insignificante fio de cabelo branco nos vem lembrar que o bem que gozamos, tão conscientemente como o gozáramos até então com indiferença... Há de acabar!

Supus, não sei por que, à força de ouvir dizer, talvez, que essa hora para os homens chegasse mais tarde. Vejo que não. Sempre é consolador ter bons companheiros na desgraça...

Na arte de envelhecer, tema delicioso e que o autor poderia desenvolver em um volume grosso, há uma pincelada jeitosa e leve na referência à maneira por que sabemos disfarçar os estragos impiedosos do tempo... O que as palavras não dizem, mas a insinuação aponta, é que esse meio é a maquilagem, o artifício, o auxílio das cores sabiamente combinadas, a discrição dos véus e o efeito artístico do penteado... Saber compor a fisionomia, dar-lhe aparência agradável, torná-la bonita quanto possível, é a mais comum das preocupações femininas, para que não a confessemos.

Todavia, há uma revelação a fazer: é que raramente se põe aqui ao serviço desse cuidado o uso das tintas, das pomadas e dos vernizes. A não ser a inglesa, protegida por um clima que lhe aveluda a tez, não conheço mulher que menos recorra aos embustes do toucador que a brasileira. O pó de arroz, contra o qual antigamente alguns pais de família se insurgiam, é o único auxílio de que lançamos mão, mais ainda como um complemento de toilette, que o uso torna indispensável, que mesmo como um elemento de garridice.

O pó de arroz não só atenua o luzidio da pele, afogueada por uma temperatura quase sempre alta, como também suaviza, refresca e aromatiza. Positivamente, ele foi adotado por isto: não só embeleza como sabe bem.

De tal maneira isto é certo, que ninguém o oculta, como a um fator misterioso de formosura, que se quisesse guardar incógnito; ao contrário, damo-lhes caixas vistosas de cristal lapidado onde a luz incide em refrações irisadas. A velhice material, grosseira, ainda não mereceu da maior e melhor parte das mulheres brasileiras o sacrifício inútil da máscara confeccionada em sessões longas, com pincelinhos, camurças, óleos, tintas e esmaltes.

Mas A arte de envelhecer não teve por objetivo a arte de não parecer velho; mas sim de padecer com resignada calma as gradações da mudança. Isso depende, além da vontade, das circunstâncias de cada um...

A felicidade está em envelhecer sem arte, com outras preocupações mais elevadas e menos egoístas... Desde os primeiros anos de escola que os mestres se esforçam por fazer compreender às crianças que a beleza, sendo transitória, menos vale do que a bondade, e que

On ne saít plus que devenir
Lorsque l'on n'a su qu'être belle

O esforço para a perfeição material é sempre improfícuo, e o para o aperfeiçoamento moral sempre bem coroado. A arte de envelhecer é a de exercitar a alma nas doces práticas do benefício e saber derramar em torno a si até à última hora de consciência, a sombra que alivia ou o calor que reanima...

Fontes:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).
Imagem = http://www.ciclovittal.com

Júlia Lopes de Almeida (1862 – 1934)


JÚLIA Valentim da Silveira LOPES DE ALMEIDA, nasceu em 24/09/1862 no Rio de Janeiro e morreu em 30/05/1934 na mesma cidade. Filha do Dr. Valentim José da Silveira Lopes, professor e médico, mais tarde Visconde de São Valentim, e de D. Adelina Pereira Lopes. Passou parte da infância em Campinas - SP.

Seu primeiro livro - Traços e Iluminuras - foi publicado aos 24 anos, em Lisboa. Antes disso já publicara artigos na imprensa, tendo sido uma das primeiras mulheres a escrever para jornais, colaborando com a Tribuna Liberal, A Semana, O País, Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Ilustração Brasileira, entre outros. Com Felinto de Almeida escreveu, a quatro mãos, o romance A Casa Verde.

Com uma linguagem leve, simples, cativou seu público: escreveu e publicou mais de 40 volumes entre romances, contos, narrativas, literatura infantil, crônicas e artigos. Foi abolicionista e republicana além de mostrar, em suas obras, idéias feministas e ecológicas.

Contista, romancista, cronista, teatróloga. Viveu parte da infância em Campinas (SP). Estreou na imprensa em 1881, quando as mulheres mal iniciavam carreira literária em jornais no Brasil, publicando no semanário A Gazeta de Campinas. Fez conferências e colaborou em vários periódicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre eles Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Ilustração Brasileira, A Semana, O País, Tribunal Liberal.

Casou com o poeta e teatrólogo português Filinto de Almeida, com quem dividiu a autoria do romance A casa verde. Seus livros retratam costumes da época e expõem idéias favoráveis à República e à Abolição, destacando-se sobretudo pela simplicidade, o que a tornou bem aceita pelo público e pela crítica. Ocupou a cadeira nº 26 da Academia Carioca de Letras.

Com uma linguagem simples, Júlia Lopes Almeida revela em sua obra a atmosfera suave do ambiente tipicamente familiar.

Em seu livro A árvore (1916), defende com rigor o ambiente natural, afirmando que "cortar uma árvore é estrangular um nervo do planeta em que vivemos", preocupação inusitada para a sua época. Brilhante e sensível, contestava, ainda que de maneira delicada e sutil, a discriminação contra a mulher. No entender de Lúcia Miguel Pereira, a autora deve ser considerada a maior figura entre os romancistas de sua época, não só pela extensão de sua obra, pela continuidade do esforço, pela longa vida literária de mais de 40 anos, como pelo êxito que conseguiu, com os críticos e com o público. Para Josué Montello, "o que sua voz revela, no plano mesmo da superfície narrativa cheia de ações e peripécias, são os movimentos tornados gestos. Gestos ao mesmo tempo cotidiano e cerimoniais.

Seus filhos Afonso Lopes de Almeida, Albano Lopes de Almeida e Margarida Lopes de Almeida também se tornaram escritores.

Romances

· A Família Medeiros
· Memórias de Marta
· A Viúva Simões
· A Felência
· Cruel Amor
· A Intrusa
· A Silveirinha
· A casa Verde ( com Felinto de Almeida)
· Pássaro Tonto
· O Funil do Diabo

Novelas e Contos
· Traços e Iluminuras
· Ânsia Eterna
· Era uma Vez...
· A Isca (quatro novelas)
· A Caolha

Teatro
· A Herança (um ato)
· Quem Não Perdoa (três atos)
· Nos Jardins de Saul (um ato)
· Doidos de Amor (um ato)

Diversos
· Livro das Noivas
· Livro das Donas e Donzelas
· Correio da Roça
· Jardim Florido
· Jornadas no Meu País
· Eles e Elas
· Oração a Santa Dorotéia
· Maternidade (obra pacifica)
· Brasil (conferência)

Escolares
· Histórias da Nossa Terra
· Contos Infantis (com Adelina Lopes Vieira)
· A Árvore (com Afonso Lopes de Almeida)

Fonte:
Escola Júlia Lopes de Almeida

domingo, 9 de outubro de 2011

Nemésio Prata Crisóstomo (Trova Ecológica 29)

Maurício Friedrich (Livro de Trovas)


A trova, quando é bem feita,
tem encanto, traz surpresa;
poesia curta, perfeita,
a nos brindar com beleza!

Curitiba, doce encanto
da Terra dos Pinheirais;
é nela que eu vivo e canto
meus amores e meus ais!

De uma única costela,
nosso Deus fez a mulher;
se há criatura mais bela?
-Desdiga-me quem puder!

És, Curitiba, a cidade
do sorriso, encanto e amor,
que nos dás felicidade,
com teu carinho e calor!

Eu trago, junto do peito,
silente, a lembrar, constante,
o teu retrato, que estreito,
feito uma jóia galante.

No adeus da tua partida
meu coração infeliz
ganhou enorme ferida
e, não parou...por um triz!

Nosso amor foi tão ranzinza
que explodiu como um vulcão,
deixando, somente, a cinza
no meu pobre coração.

Num relógio, vendo a hora,
no outono da minha lida,
sinto que não há demora,
no ocaso da minha vida!

Tenho por certo, em verdade,
bem vivo, embora pungente
que a mais pungente saudade...
é aquela de alguém, presente!

Teve um infarto na cama
a noiva que é tão frajola,
ao ver que, em vez do pijama,
o noivo pôs camisola.
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Fontes:
UBT Nacional
ENNES, Vânia Maria Souza. Paraná em trovas. Curitiba: ABRALI, 2009.

Mauricio Friedrich (1945)


Mauricio Norberto Friedrich, médico e advogado, nasceu no dia 6 de Outubro de 1945, em Porto União, Santa Catarina, sendo o quinto filho de Afonso Luiz Friedrich, empresário do ramo da ourivesaria e de Araceli Rodrigues Friedrich, professora normalista, trovadora e primeira vereadora de Santa Catarina.

É casado com a médica pediatra Neide Terezinha Ceccon Friedrich e pai de Luiz Felipe Ceccon Friedrich.

Em 1972, graduou-se pela Faculdade de Medicina de Campos, RJ e dedicou-se à área de Cardiologia, exercendo, até hoje, suas atividades como autônomo na clinica privada. Trabalhou no instituto de Previdência do Estado(IPE),onde exerceu a Cardiologia e chefiou por 5 anos, a Divisão Hospitalar, quando requereu a sua aposentadoria do Serviço Público.

Atualmente é sócio remido da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Em 1977, entrou no Corpo Clinico do Hospital Erasto Gaertner (Hospital do Câncer), onde trabalha até hoje, atuando na Unidade de Medicina intensiva, Medicina do Trabalho e chefia o Serviço de Cardiologia.

Em 1987, graduou-se como Bacharel em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e, em 1989, ingressou na Ordem dos Advogados- Seção de Curitiba.

Em atividades extra profissionais, trabalhou como chefe no Grupo Escoteiro Nossa Senhora Medianeira, tendo sido agraciado em 2002 com a medalha Gratidão - grau Bronze, por relevantes serviços prestado à União dos Escoteiros do Brasil.

Recebeu, em 2007, na Câmara Municipal de Curitiba, por indicação do Vereador Angelo Batista, o Prêmio Mérito em Saúde, por 30 anos de relevantes serviços prestados à comunidade.

Nas artes, destaca-se como colecionador por sua grande e rica colação de ovos decorados, com exemplares de vários recantos do mundo e por obras de sua criação.

No campo da cultura, Mauricio é atuante no Movimento Trovadoresco do Paraná, tendo presidido e secretariado a União Brasileira de Trovadores (UBT)- Seção de Curitiba e atualmente é presidente da UBT Estadual do Paraná.

Membro efetivo de:
Academia Paranaense da Poesia,
Centro de Letras do Paraná,
Academia de Cultura de Curitiba e
Sociedade Brasileira de Médicos Escritores- Seçao do Paraná.

Fonte:
UBT Nacional

Teófilo Braga (O Boi Cardil)


Um rei tinha um criado, em quem depositava a maior confiança, porque era o homem que nunca em sua vida tinha dito uma mentira. Recebeu o rei um presente de boi muito formoso, a que chamavam o boi Cardil; o rei tinha-o em tanta estimação que o mandou para uma das suas tapadas acompanhado do criado fiei para tratar dele. Teve uma ocasião uma conversa com um fidalgo, e falou da grande confiança que tinha na fidelidade do seu criado. O fidalgo riu-se:

– Porque te ris? – perguntou o rei.

– É porque ele é como os outros todos, que enganam os amos.

– Este não!

– Pois eu aposto a minha cabeça como ele é capaz de mentir até ao rei.

Ficou apostado. Foi o fidalgo para casa, mas não sabia como fazer cair o criado na esparrela e andava muito triste. Uma filha nova e muito formosa, quando soube a causa da aflição do pai, disse:

– Descanse, meu pai, que eu hei-de fazer com que ele há-de mentir por força ao rei.

O pai deu licença. Ela vestiu-se de veludo carmesim, mangas e saia curta, toda decotada, e cabelos pelos ombros e foi passear para a tapada; até que se encontrou com o rapaz que guardava o boi Cardil. Ela começou logo:

– Há muito tempo que trago uma paixão, e nunca te pude dizer nada.

O rapaz ficou atrapalhado e não queria acreditar naquilo, mas ela tais coisas disse e jeitinhos deu que ele ficou pelo beiço. Quando o rapaz já estava rendido, ela exigiu-lhe que, em paga do seu amor, matasse o boi Cardil. Ele assim fez e deu-se por bem pago todo o santíssimo dia.

A filha do fidalgo foi-se embora, e contou ao pai como o rapaz tinha matado o boi Cardil; o fidalgo foi contá-lo ao rei, fiado em que o rapaz havia de explicar a morte do boi com alguma mentira. O rei ficou furioso quando soube que o criado lhe tinha matado o boi Cardil, em que punha tanta estimação. Mandou chamar o criado.

Veio o criado, e o rei fingiu que nada sabia; perguntou-lhe

– Então como vai o boi?

O criado julgou ver ali o fim da sua vida e disse:

Senhor! pernas alvas
E corpo gentil,
Matar me fizeram
Nosso boi Cardil.

O rei mandou que se explicasse melhor; o moço contou tudo. O rei ficou satisfeito por ganhar a aposta, e disse para o fidalgo:

– Não te mando cortar a cabeça como tinhas apostado, porque te basta a desonra de tua filha. E a ele não o castigo porque a sua fidelidade é maior do que o meu desgosto.

Fonte:
UNAMA - Universidade da Amazonia
Imagem = Autor desconhecido

Daladier Carlos (O Que Queremos, poetas!)


Se o que nós poetas fazemos
Não serve para nada,
O que estamos querendo afinal?
Há sentido em assistir de algum lugar,
Quem sabe do fundo da alma,
Aos nossos vizinhos,
Nossos amigos,
Nossos patrões,
Nossos empregados,
Nossos homens e mulheres,
Nossos políticos,
Nossos juízes,
Nossos empresários,
Excluídos os demais,
Ora, são eles:
Os desvalidos,
Os menores abandonados,
Os viciados de toda ordem,
Os moribundos nos hospitais,
Enfim, os que acabam na sarjeta;
Bem, excluídos todos estes,
Há sentido em assistir aqueles outros,
Às carreiras atrás dos dinheiros,
Dos sinais discretos dos bons negócios,
Do marketing coletivo que divide corações?
Nestas circunstâncias, penso que não sou poeta,
Mas talvez um filósofo errante, de cetro e capuz,
Caminhando num deserto onde não há voz,
Exceto a visão do vale dos ossos secos.
Por isso, Senhor, tenha misericórdia de nós, os poetas,
Porém, não julgues com rigor os que somente ouviram
E sonharam com algum prêmio além da tua graça!
----
Fonte:
Poesia enviada pelo autor

As Mil e Uma Noites (Parte 1)


O REI CHAHRIAR E SEU IRMÃO O REI CHAHZAMAN

Conta-se - mas só Alá sabe tudo - que havia nas dobras do tempo e dos séculos um rei da dinastia dos Sassan que reinava nas ilhas da Índia e da China. E tinha dois filhos: Chahriar e Chahzaman. Ambos eram governantes justos, e seus povos amavam-nos.

Certo dia, Chahriar sentiu irresistível saudade do irmão e enviou seu vizir para convidá-lo.

Chahzaman respondeu: "Ouço e obedeço”.

Fez os preparativos necessários, encarregou o vizir de governar na sua ausência e partiu. No meio do caminho, lembrou-se de que havia esquecido um documento que queria mostrar ao irmão e voltou para apanhá-lo. Ao chegar ao palácio, encontrou a mulher deitada no seu leito imperial com um escravo negro.

Pensou: "Se tais coisas acontecem quando ainda não saí da cidade, qual não será a conduta desta devassa se demorar-me muito tempo no reino de meu irmão?" Sacou da espada, cortou as duas cabeças e retomou viagem.

Mas uma grande tristeza apoderou-se dele. Emagreceu, empalideceu.

Ao vê-lo assim, o irmão preocupou-se e indagou-lhe sobre as causas de sua depressão. Ele não quis contar. Para distraí-lo e diverti-lo, Chahriar organizou uma excursão de caça e um safári, em sua honra. Assim mesmo, no último momento, desculpou-se, e seu irmão saiu sozinho com os convidados.

No palácio do rei, havia janelas que davam para o jardim. O rei Chahzaman olhou através de uma delas e viu vinte escravas saírem do palácio acompanhadas por vinte escravos e dirigirem-se para um açude no meio do jardim. E ficou espantado ao reconhecer no meio do grupo a própria esposa do irmão, a qual, num determinado momento, chamou a si um negro gigante e entregou-se a ele na presença de todos, dando assim sinal para que escravos e escravas se juntassem e imitassem a rainha.

Observando tudo isso, Chahzaman pensou: "Por Alá, minha desgraça é menos pesada que a de meu irmão”.

E, instantaneamente, a alegria voltou-lhe ao coração e as cores às faces pálidas.

Quando Chahriar voltou, alegrou-o ver o irmão recuperado e quis saber a causa de mudança tão repentina. "Posso contar-te a causa de minha depressão, não de meu restabelecimento”, disse Chahzaman. E contou-Ihe o que acontecera entre ele e sua mulher. Mas o irmão queria saber também o segredo de seu restabelecimento e insistiu. Chahzaman acabou por lhe contar o que observara da janela do palácio. - Primeiro, gostaria de ver tudo isso com os próprios olhos, disse Chahriar.

-É fácil, replicou o irmão. Proclama que estás viajando para um país longínquo, sai publicamente da cidade e a ela volta em segredo, e poderás assistir a tudo da janela como fiz.

Imediatamente, o rei encarregou um pregoeiro de anunciar a sua ida numa viagem demorada. Os soldados acompanharam-no e instalaram um campo fora da cidade. O rei entrou em sua tenda e ordenou aos criados que não deixassem entrar pessoa alguma. Depois, disfarçou-se em mercador e, voltando
secretamente ao palácio, pôs-se à janela indicada. Menos de uma hora depois, viu vinte escravas e vinte escravos rodearem a rainha, viu o negro gigante e tudo o que seu irmão lhe descrevera.

O rei quase perdeu a razão e disse ao irmão: "Vamos procurar outro destino pelos caminhos de Alá, pois só teremos direito a voltar a nossos tronos se localizarmos homens mais desgraçados que nós."

Saíram do palácio e viajaram dias e noites até que chegaram a um prado à beira-mar. Naquele prado havia um córrego de água fresca. Os dois irmãos sentaram-se debaixo de uma árvore para beber e descansar. Logo, viram o mar agitar-se e dele sair uma coluna de fumaça negra, e a fumaça transformar-se num gênio de enorme estatura, carregando um cofre. Aproximou-se da árvore, sentou-se e abriu o cofre, e os dois irmãos viram nele uma mulher de grande beleza que lembrava as palavras do poeta:

“Apareceu na noite e transformou-a em dia”.

E os viajantes se orientaram pela sua luz. Seus olhos eclipsam os sóis e as luas.
As criaturas dançam de alegria quando ela chega. E a natureza chove lágrimas quando ela se vai.”

O gênio tirou a mulher do cofre e disse-lhe: "Vou dormir um pouco”. E, apoiando a cabeça nos joelhos dela, fechou os olhos e dormiu. Ao ver os dois reis, a mulher acenou-Ihes para se aproximarem. Mas eles explicaram por sinais que tinham medo do gênio.

"Não tenhais medo”, replicou. "Ele nunca acorda antes da hora habitual. Dispondes de muito tempo”.

E como eles continuaram a hesitar, tirou a cabeça do gênio de cima dos joelhos, depositou-a sobre uma pedra e disse aos reis: "Se não vos aproximardes e me furardes, acordarei o gênio que vos submeterá à mais horrível das mortes."

Então eles fizeram o que ela queria. E ela mostrou-lhes um pequeno saco cheio de anéis: - Sabeis o que são estes anéis? Perguntou. São os anéis de 60 homens que copularam comigo sob os comos deste cretino Afrit. Agora, dai-me vossos anéis para que os junte à minha coleção. Acrescentou:

“Este Afrit apaixonou-se por mim, raptou-me na noite de meu casamento e me encarcerou neste cofre, sendo mortalmente ciumento. Mas ele não sabe que seja o que for que uma mulher deseja, nada a impedirá de consegui-lo”.

Disse o poeta:
“Não confies nas mulheres
E não dês fé às suas juras.
Pois seus humores dependem de seus ovários.
Exibem amor fingido
E agem com perfídia.
Que a história de José te ponha de pré-aviso.
Não vês que o demônio expulsou
Adão do paraíso
Por causa de uma delas?”


Os irmãos olharam um para o outro e disseram: "Se a este gênio acontecem coisas assim apesar de sua força e vigilância, podemos sentir-nos consolados”.

E regressaram a seus palácios. Chahriar mandou cortar a cabeça de sua esposa e dos quarenta escravos e escravas. E a fim de prevenir qualquer futura traição, decidiu casar-se cada noite com uma nova donzela e mandar matá-la na aurora. Em três anos, centenas de moças foram assim sacrificadas. A tristeza e o horror encheram o reino. As famílias fugiam para salvar as filhas. Até que, um dia, o vizir, encarregado de conseguir uma nova donzela procurou e
nada encontrou. Voltou para casa abatido e receoso do que o rei faria com ele.

Ora, este vizir tinha ele mesmo duas filhas que superavam todas as demais moças em beleza, charme, finura, educação e inteligência. A mais velha chamava-se Sheherazade, e a mais nova Duniazad. Sheherazade havia lido inúmeros livros e conhecia a história dos povos, reis, poetas dos tempos antigos e modernos. Era eloqüente, e sua voz tinha um timbre melodioso muito agradável.

Vendo o pai assim infeliz, perguntou-lhe qual era a causa de sua infelicidade. Contou-lhe. Então disse Sheherazade:

"Por Alá pai, deve casar-me com este rei. Não importa que morra ou sobreviva, saberei livrar as filhas dos muçulmanos desta calamidade”.

O vizir atendeu à vontade da filha, e levou-a ao rei Chahriar. Entretanto, Sheherazade dera as seguintes instruções à irmã: "Quando estiver com o rei, mandarei chamar-te. Assim que o rei acabar seu ato comigo, dize: Conta-nos, querida irmã, uma daquelas histórias maravilhosas que fazem o tempo passar de maneira tão deliciosa.' Então, contarei minhas histórias, e quiçá resgatarei assim as filhas dos muçulmanos."

Quando o rei se aprontava para deitar com Sheherazade, começou ela a chorar.

- Que tens? Perguntou o rei.

- Ó meu soberano, tenho uma jovem irmã de quem gosto muito e queria despedir-me dela antes de morrer. O rei mandou vir Duniazad. Duniazad chegou e jogou-se nos braços da irmã; depois, ficou encolhida ao pé da cama até que o rei acabasse de arrebatar a virgindade de Sheherazade.

Depois, Duniazad disse à irmã: "Alá te acompanhe, ó querida irmã. Por que não nos contas uma de tuas maravilhosas histórias para que a noite passe mais agradavelmente?”

- Fá-lo-ei com prazer se meu soberano permitir.

- Sim, conta-nos uma de tuas histórias, disse o rei a Sheherazade, esperando suavizar assim sua habitual insônia.

E Sheherazade pôs-se a falar…


O MERCADOR E O GÊNIO

Conta-se, ó afortunado rei, que viveu noutro tempo um mercador que possuía grandes riquezas e negócios em diversos países. Um dia, montou seu melhor cavalo e dirigiu-se a um desses países. No caminho, sentou-se sob uma árvore para descansar e alimentar-se. Ao comer tâmaras, lançava ao longe os caroços. De súbito, apareceu um enorme Afrit que se aproximou dele, brandindo uma espada e gritando:

"Levanta-te que te mato como mataste meu filho!"

Perguntou o mercador: "Quando e como matei teu filho?"

Respondeu o Afrit: "Quando atiraste os caroços, um deles atingiu meu filho no peito, e ele morreu na hora”.

Vendo que não tinha outro recurso, o mercador disse ao Afrit: "Fica sabendo, ó grande Afrit, que sou um crente que nunca falto à minha palavra. Possuo riquezas e filhos e uma esposa e inúmeros depósitos a mim confiados. Concede-me, pois, um prazo para que me despeça de minha família e distribua a cada um o que lhe é devido. Prometo voltar aqui no primeiro dia do ano, e tu disporás de mim como quiseres”.

O gênio confiou no mercador e deixou-o partir. Em casa, ele pôs em ordem suas obrigações, distribuiu suas riquezas e revelou a parentes e amigos a triste sorte que o esperava. Todos choraram, mas nada podiam fazer. No primeiro dia do ano, voltou ao lugar do encontro como prometera. Sentou-se a chorar sobre sua sorte quando apareceu um xeque venerável conduzindo uma gazela presa.

"Por que estás sozinho neste lugar assombrado pelos gênios?" Perguntou ao mercador. "E por que estás chorando?"

O mercador contou-lhe a história.

- Por Alá, retrucou o velho, teu respeito pela palavra dada é coisa rara, e tua história é tão prodigiosa que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, seria matéria de meditação para os que refletem.

Sentou-se, dizendo que ficaria lá até ver o que aconteceria. De repente, apareceu um segundo xeque, conduzindo cães lebréus pretos. Saudou o mercador e o primeiro xeque e perguntou-lhes: "Que fazeis neste lugar assombrado pelos gênios?"

Contaram-Ihe a história, e ele também disse que esperaria lá para ver como acabaria essa curiosa aventura. Logo em seguida chegou um terceiro xeque conduzindo uma mula. Saudou a todos e quis saber o que estavam fazendo naquela terra perigosa. Repetiram toda a história, e ele também se sentou para aguardar os acontecimentos.

Momentos depois se levantou um turbilhão de poeira, e o gênio apareceu com um gládio afiado na mão e os olhos soltando chispas. Agarrando o comerciante, disse-lhe: "Vem que te mato como mataste meu filho, que era o sopro de minha vida e o fogo de meu coração”.

O primeiro xeque, mestre da gazela, criou coragem, beijou a mão do gênio e disse-lhe: "Ó grande gênio, o mais elevado entre os reis dos gênios, se eu te contar a história desta gazela e ficares maravilhado, conceder-me-ás a graça de um terço do sangue deste mercador?"

O gênio concordou, e o xeque começou sua história:

“Ó grande Afrit, esta gazela era a filha de meu tio. Casei-me com ela quando éramos bem jovens e vivemos juntos trinta anos. Mas Alá não nos concedeu filho algum. Por isso tomei uma concubina que, com a graça de Alá, me deu um filho varão lindo como a lua nascente. Quando atingiu quinze anos, tive que viajar a negócios”.

Ora, a filha de meu tio fora iniciada na feitiçaria desde a infância. Aproveitando minha ausência, transformou meu filho num bezerro e a mãe dele numa vaca, e juntou-os a nosso rebanho. Ao voltar, perguntei por eles.

Minha esposa respondeu: “ A mulher morreu, e teu filho fugiu para não sei onde.”

"Um ano inteiro fiquei chorando, o coração reduzido a pedaços. No Dia do Sacrifício, pedi a meu pastor que me trouxesse uma vaca gorda. Trouxe-me a vaca que havia sido minha concubina. Mal me aproximei dela para matá-la, pôs-se a gemer e chorar. Parei, e pedi ao pastor que a degolasse. Cumpriu a ordem, mas não encontramos na vaca nem carne nem gordura, mas apenas pele e ossos.

"Tive remorsos, inúteis como a maioria dos remorsos, e pedi ao pastor trazer-me um bezerro bem gordo. Trouxe-me meu próprio filho enfeitiçado. Quando me viu, rebentou a corda e jogou-se a meus pés com gemidos e lágrimas. Tive pena dele e ordenei que fosse substituído. Mas a malvada filha de meu tio disse:

‘Devemos sacrificar é este bezerro mesmo. Está gordo como convém.' Obedecendo a não sei que instinto ofereci, antes, o bezerro de presente a meu pastor.

"No dia seguinte, o pastor procurou-me e disse: Vou revelar-te um segredo que te alegrará e me valerá sem dúvida uma recompensa.' `O que é?' perguntei.

Respondeu `Minha filha é feiticeira. Ontem, quando me deste o bezerro, levei-o para a casa de minha filha. Mal o viu, cobriu o rosto com o véu e censurou-me:

`Pai, agora estás me expondo aos olhos de homens estranhos?'

Perguntei: `Onde vês homens estranhos?'

Respondeu: `Este bezerro é o filho de nosso amo, mas está encantado. E foi a mulher de nosso amo que o encantou, ele e a sua mãe!'

"Fui imediatamente com o pastor à casa de sua filha, e perguntei-lhe: `É verdade o que contaste a teu pai acerca desse bezerro?'

- Sim, respondeu.

- Ó gentil e compassiva adolescente, se libertares meu filho, dar-te-ei todo meu gado e todas as propriedades que teu pai administra.

"Sorriu e disse: `Ó amo generoso, aceitarei estas riquezas com duas condições: que me cases com teu filho e que me permitas enfeitiçar tua mulher. Sem isso, não tenho a certeza de poder prevalecer contra as suas perfídias.

"- Seja, respondi.

"Apanhou então uma bacia de cobre encheu-a de água e pronunciou conjurações mágicas. Em seguida, aspergiu o bezerro com a água, dizendo-lhe: ‘

Se Alá te criou bezerro, permanece bezerro; mas se estás enfeitiçado, volta a tua forma verídica, com a permissão de Alá.'

Após tremer e agitar-se, o bezerro recuperou a forma humana. Era meu filho! Joguei-me em seus braços e cobri-o de beijos. Depois casei-o com a filha do pastor, e ela encantou a minha esposa e metamorfoseou-a nesta gazela."

Bem espantosa, a tua história, bradou o Afrit. Concedo-te o terço do sangue deste malvado.

O segundo xeque adiantou-se então e disse:

"Ó rei dos gênios, se te contar a história destes dois cachorros e a achares tão espantosa quanto a da gazela, conceder-me-ás um terço do sangue deste homem?"

- Vai falando, disse o Afrit.

"Saberás, ó senhor dos reis dos gênios", disse o segundo xeque, que estes dois cachorros são irmãos meus. Quando nosso pai morreu, deixou-nos três mil dinares. Com a minha parte, abri uma loja e comecei a comprar e vender. "Meus irmãos preferiram a aventura e viajaram com as caravanas por um ano inteiro. Quando voltaram, tinham desperdiçado todo o seu capital. Estavam pobres e tinham aspecto lamentável”.

Tive pena deles. Mandei-os ao hammam, comprei-lhes roupas finas e, pondo meu capital de lado, dividi com eles, em igualdade, todo o lucro daquele ano. E moramos juntos por muito tempo. Mas de novo queriam partir e insistiram para que fosse com eles. Embora os resultados de sua primeira viagem não fossem alentadores, consenti em acompanhá-los com uma condição: dividir o dinheiro que tínhamos - 6 mil dinares -- em duas partes iguais; deixar a metade escondida para nos amparar em caso de necessidade e partilhar a outra metade entre nós três. Concordaram e agradeceram-me.

Com os 3 mil dinares, compramos as mercadorias mais indicadas, alugamos um navio, e embarcamos. Após viajarmos um mês, chegamos a uma cidade portuária onde vendemos nossas mercadorias com um lucro de dez por um. Quando voltamos ao porto para embarcar, encontramos lá uma mulher mal vestida que se aproximou de mim e beijou-me a mão, dizendo:

‘ Mestre, aceitas ajudar-me e me salvar? Por favor, casa-te comigo e me leva, e tudo farei para agradar-te.' Aceitei. Levei-a para o navio, vesti-a com esmero e partimos.

"Pouco a pouco fui tomado de um grande amor por ela. Não conseguia separar-me dela nem de dia nem de noite, e preferia sua companhia à de meus irmãos. Por sua vez, revelou-se uma mulher linda, inteligente, devotada e de nobre caráter”.

Infelizmente, meus irmãos me invejavam cada dia mais e, uma noite, quando estava deitado com minha mulher, insinuaram-se em nosso aposento, apanharam-nos e jogaram-nos em alto mar. Minha mulher despertou nas águas e, de repente, transformou-se numa Afrita e carregou-me nos ombros até uma ilha. Depois, desapareceu e só voltou na manhã seguinte, ainda mais bela, e disse-me:

‘ Não me reconheces? Sou tua esposa. Como vês, sou uma Afrita. Amei-te desde o primeiro instante em que te vi. Tiveste pena de mim e te casaste comigo. Agora salvei-te da morte com a permissão de Alá. Estamos quites. Quanto a teus irmãos, sinto-me cheia de ódio contra eles e vou afundar o navio em que estão e matá-los.'

Muito me custou convencê-la a não os matar. Carregou-me então nos ombros, ergueu-se no espaço e depositou-me em minha casa. Retirei os 3 mil dinares de seu esconderijo, reabri minha loja e comprei novas mercadorias.

"Quando voltei para casa, achei estes dois cachorros presos num canto. Ao me verem levantaram-se e começaram a chorar e agarrar-se às minhas vestes. `

São teus irmãos,' disse minha mulher. `Pedi à minha prima, que é mais versada em encantamentos do que eu, para dar-lhes esta forma, da qual só poderão libertar-se daqui a dez anos.'

"É por isto, ó poderoso gênio, que me encontro neste lugar. Estou a caminho da morada daquela prima de minha mulher a quem vou pedir que restitua a meus irmãos sua forma anterior, pois os dez anos já decorreram.”

Exclamou o Afrit: "Tua história também é surpreendente. De coração, concedo-te mais um terço do sangue deste maldito. Mas vou tirar-lhe o terço que me é ainda devido”.

O terceiro xeque, o da mula, interveio então dizendo: "Ó grande Afrit, se te contar uma história ainda mais maravilhosa que essas duas, conceder-me-ás o último terço do sangue deste homem?"

O Afrit, que gostava muito de histórias raras, acedeu, dizendo: "Qual é a tua história?"

O terceiro xeque falou: “Ó sultão e chefe de todos os gênios, esta mula que vês aí é minha esposa. Uma vez, tive que fazer uma longa viagem, e quando voltei, certa noite, achei-a deitada com um escravo negro na minha própria cama”.

Estavam conversando, rindo, beijando-se e excitando-se mutuamente com pequenos jogos. Assim que me viu, lançou sobre mim uma água mágica que me transformou em cão e me expulsou de casa. Saí a errar pela cidade. Um açougueiro apanhou-me e levou-me para sua família.

"Assim que a sua filha me viu, cobriu a face com o véu e censurou o pai por expô-la a um homem estranho. `Onde vês homens?' perguntou o pai.

Ela respondeu: `Este cão é um homem. Uma mulher o enfeitiçou, e eu sou capaz de libertá-lo.' “

- Liberta-o, então, minha filha, pelo amor de Alá.

"Ela pegou uma vasilha de água, pronunciou certas palavras mágicas sobre a água, aspergiu-me com algumas gotas e disse: `Sai desta forma e retoma tua forma primeira.'

"Logo, voltei a ser homem e, beijando a mão da rapariga, disse-lhe que desejava muito que minha mulher fosse enfeitiçada do modo como me enfeitiçara. "

` É fácil,' disse a filha do açougueiro. E deu-me num vidro um pouco da água que usara para me salvar, dizendo: `Se encontrares tua mulher adormecida, borrifa-a com esta água, e ela tomará a aparência que tu indicares.'

"Fui para casa, encontrei minha mulher dormindo, aspergi-a com a água mágica, dizendo-lhe: `Sai dessa forma e toma a forma de uma mula.'

Num instante, transformou-se numa mula, como podes verificar, ó sultão e chefe dos reis dos gênios."

O Afrit virou-se para a mula e perguntou: "É verdade?" Ela abanou a cabeça como para responder: "Sim, é verdade”.

Ao escutar essa história, na qual o mal era punido, o gênio estremeceu de emoção e prazer e concedeu ao xeque a graça do último terço do sangue do mercador. O mercador, muito feliz, agradeceu aos três xeques e ao Afrit, e os xeques o felicitaram por sua salvação. E cada um voltou para sua terra.
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Continua: O Conselheiro – O Homem e sua Mulher/ O Galo e as 50 Galinhas – As Botas de Abu-Kassim Attanburi – O Carregador e as Jovens Mulheres
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Fontes:
Domínio Público
Imagem = Diario da Manhã

Rosangela Trajano (Poesias para Crianças)


A BICICLETA VELHA

Era uma velha bicicleta
Com placa de venda
Sua dona muito esperta
Queria uma boa renda.

Não tinha freios
Só um acento macio
Um pneu cheio
O outro vazio.

Vivia na garagem
Há muito abandonada
Atrapalhando a passagem
Não servia para nada.

Mas era lembrança do bisavô
Nesse caso a velha bicicleta
Foi colocada como escultura
No meio da sala de leitura.

A BONECA DE ALICE

Alice ganhou uma boneca
Era uma boneca bonita
Logo largou a peteca
Deu-lhe o nome de Anita.

Alice ganhou uma boneca
De laço e vestido vermelho
Presente da sua tia Rebeca
De fome matou seu coelho.

Alice só queria saber
Da sua boneca Anita
Nem pra mim, nem pra você
Ela desenharia uma fita

A CHUVA

Gosto de olhar a chuva
A escorregar pela rua
Na esquina fazer uma curva
Esconder o sol da lua.

Pingos de chuva caem
Pelas janelas de vidro
Curioso dou espiadas
Nas pessoas agasalhadas.

A chuva deixa mais verde
As árvores dos canteiros
Os açudes sem sede
Sorrisos nos lírios dos jardineiros.

A COELHINHA

À Branquinha, com carinho.

É branquinha
É peluda
É pequenina
É sortuda.

Ganhou uma cenoura
Ganhou uma casinha
Ganhou uma vassoura
Ganhou uma mesinha.

A coelhinha
É uma gracinha
Tolinha, tolinha
Fica vermelhinha!

A FLORZINHA

Vive quietinha
Num vaso pequeno
É bem bonitinha
Dorme no sereno.

Suas folhas bailam
À janelinha da sala
Suas pétalas exalam
Cheiro de bala.

Uma florzinha
Me cativou
Mora sozinha
E me dá seu amor.

BARQUINHOS DE PAPEL

Sou um nobre capitão
De um barquinho de papel
Que navega nas minhas mãos
Distante da terra e do céu.

Nesse primeiro cruzeiro
Levo papai e mamãe
Minha tripulação é pequena
Querem levar o guarda-roupa inteiro.

Serei um grande marinheiro
Quando mais tarde crescer
Meu barquinho de papel
No meu coração vai viver.

BOLINHAS DE SABÃO

Vejo minhas bolhinhas subindo
São bolhinhas de sabão
Que vou construindo
Canudo na boca e copo nas mãos.

Mamãe me dá sabão
Fico encantado e contente
Posso gastar de montão
Oba! Bolhinhas pra toda gente.

É fascinante brincar
Com bolhinhas de sabão
Elas são incolor
Dentro delas há amor.

CARROSSEL

Gosto de brincar no carrossel
Com botas e chapéu de couro
Só me falta o troféu
Para desfilar com o tesouro.

São cavalos de madeira
Em parques de diversões
Divertidas brincadeiras
Desperta em mim emoções.

Um dia, quando crescer
Quero um cavalo de verdade
Embora não queira esquecer
Meu carrossel na saudade.

CASTELOS DE AREIA

Sentado à beira-mar
Brinco com a areia clara
Não consigo encher a minha pá
Só quando o vento abrandar.

As ondas se vão
O vento cambaleia
Assim construo castelos de areia
O reino da minha imaginação.

Meus castelos de areia
Abrigam pessoas reais
De bondade verdadeira
Lá, todas são iguais.

EU QUERO UM GATO

Eu quero um gato
Para pegar um rato
Que roeu meu sapato.

Eu quero um gato
Para pegar um rato
Que se acha um pato.

Eu preciso de um gato
Que com um simples salto
Pegue este rato.

HORA DO BANHO

Embaixo do chuveiro
Com sabonete nas mãos
Esfrego o corpo inteiro
Faço festa no banheiro.

Na hora do banho
Jamais faço cara feia
Criança do meu tamanho
Já sabe o que é sujeira.

Seja a água fria ou quente
Uso xampu em meus cabelos
Depois passo o pente
Secar e prendê-los.

OS ANIMAIS

Gato, cachorro, macaco
Os animais precisam de amor
Vaca, elefante, leão
Coloque o reino animal em seu coração.

Beija-flores, bem-te-vis e andorinhas
Não os prenda em gaiolinhas
Precisam de liberdade para viver
São frágeis criaturinhas.

As tartarugas, as baleias,
Os tubarões e os peixinhos
Pedem respeito e carinho
Através do canto das sereias.
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Fontes:
Portal Sao Francisco
Imagem = http//versosdecrianca.blogspot.com

Rosângela Trajano (1971) Autobiografia


Nasci aos 18 de junho de 1971, na cidade de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, no Hospital Luis Soares. Fui uma criança pobre e com pouquíssimos brinquedos, embora feliz. Minha vida estudantil iniciou-se na Escola Municipal Chico Santeiro. Fui uma menina mimada por papai e mamãe. Até que um dia meu pai não quis ser mais meu pai, partiu. Ficamos nós cinco: eu, mamãe e meus três irmãozinhos sozinhos nesse Universo enorme. Mamãe foi uma mulher guerreira, venceu todos os obstáculos à sua frente. Ela foi mãe e pai aos mesmo tempo; esteve presente nos momentos de solidão e de multidão; certo dia, ela nos contou que voltaríamos a ter água gelada, televisão e que não seria difícil comer um pão. Eu adorava os dias de chuva e ficava a correr com as panelas e vasilhas pra baixo e pra cima atrás dos pingos d'água que caíam das telhas dentro da nossa casa. Ah! Mamãe, você foi tão grande! Você nos contou, ainda, que seríamos felizes. Uma fada madrinha um dia traria a nossa felicidade, quando esta fada foi, é, e sempre será VOCÊ, MAMÃE!

O bairro onde nasci e moro até hoje é pequeno, chama-se Bairro Nordeste. Aqui, é o lugar onde encontro inspiração para escrever minhas poesias, histórias, contos, cartas, crônicas e romances. Na nossa casa tinha um cajueiro que nós adorávamos, mas um dia o cupim derrubou a nossa árvore. Dias depois, acordamos com o telhado da casa indo abaixo, o cupim estava destruindo tudo. Os cupins viviam a nos perseguir, eram os nossos piores inimigos depois da fome. Porém, os nossos vizinhos sempre nos ajudaram. Naquela noite cada um dormiu na casa de um parente próximo.

Perto da minha casa tem um grande manguezal. Foi de lá que tiramos a nossa alimentação para sobrevivermos quando papai nos abandonou e o dinheiro da mamãe acabou. Meu irmão, Robério, que hoje, graças a Deus, veste-se de paletó e gravata, voltava da maré todo sujo de lama e com um balde cheio de caranguejos para serem vendidos. Roberto e Rogério vendiam os caranguejos para comprar farinha, café, feijão etc. E mamãe, mesmo com problemas na coluna fazia de tudo um pouco pela nossa sobrevivência: costurava, vendia dindin, cocada, tapioca, etc. O sofrimento era grande, mas nós nunca deixamos de acreditar no futuro. Íamos à escola todos os dias.

Hoje, mais de vinte anos, olhamos para o passado e sorrimos dele. Somos vitoriosos. Nossa casa continua simples, mas já não falta comida. Todos conquistaram seus sonhos. Mamãe é feliz, para mim, isso é muito importante! Ela merece esse sorriso nos lábios até os últimos dias da sua vida.

Eu sou uma curiosa, metida a besta e inteligente. Fiz alguns vestibulares, fui reprovada em alguns e aprovada em outros. Devia ter concluído o curso de Sistemas de Informação, mas abandonei. Larguei esse curso para fazer Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Publiquei meu primeiro livro intitulado Carrossel de Poesias (Poesias para crianças), no dia 01 de dezembro de 1999. Numa noite belíssima, na Capitania das Artes, rodeada de crianças, amigos e familiares. Um coquetel maravilhoso, meus olhos brilhavam mais que todas as estrelas no céu e as pernas tremiam. Esse livro foi um presente às crianças do meu Brasil, porque foi através delas que encontrei a esperança para lutar pela realização dos meus sonhos.

Meu segundo livro intitulado Giges e o anel, também foi publicado no mês de dezembro no ano de 2003, na Bueno Livraria, localizada no Natal Shopping, em Natal-RN.

De lá para cá não parei mais de publicar livros. Acho que já são uns trinta e poucos.

Escrevo para alguns periódicos locais, sou licenciada em filosofia, mestra em literatura comparada, professora de filosofia, inglês e produção textual além de pesquisadora na área de filosofia para crianças e contação de histórias. Gosto de programação de computadores e matemática. Além do mais adoro viver!

Não bebo e não fumo. Adoro nadar! Curto caminhar, também. Algumas pessoas me perguntam porque não me casei ainda, digo-lhes que sou casada com os meus poemas e tenho um grande amor na minha vida: o céu com as suas estrelas.

Quando quero um refúgio vou à praia de Jacumã, lugar de uma rara tranquilidade. Eis-me, um ser humano como outro qualquer, entre qualidades e defeitos, sonhos e realidade.

Fonte:

Raul Pompéia (Amor de Inverno)


Ora, para que havia de dar-me a mania!... Lembrei-me de amar uma velha!...

A gente chega a saciar-se de tudo, até do vinho quente da juventude. Em amor, uma das cousas apreciadas é o amor que custa; pelo menos, o amor que precisa que o busquemos para vir: mil vezes mais apreciado que o amor que vem ao nosso encontro. Maomé, com certeza, não se arrependeu de ir até a montanha. Ora, a juventude é assim. Tem o defeito, em amor, de vir ao nosso encontro. Há o instinto, nos seios rijos da virgindade, que os impele a esmagar-se, amassar-se, emolir-se, de encontro ao peito que se lhes acerca.

A grande idade é já esquiva.

O verão passou. Tem uns dias de sol, como o inverno os tem. Mas, são sugestões tranqüilas da saudade. Os sóis, Os grandes sóis passaram.

Quem sabe? Haverá, talvez, um vivo prazer em ir a gente abrir uma réstea estival de claridade no firmamento nublado desses dias! Espera, S. Medardo, padroeiro dos dias úmidos... guarda o aguaceiro um pouco... que eu vou mandar àquela pobre, de presente uma nesgazinha de bom tempo...

Tomei a sério a minha intenção.

Logo ao terceiro dia, aliás à noite, achei o meu ideal.

Velha, velha, velha, velha...

Imaginem um belo ideal de cabelos brancos, curvo e tremulo, de carnes tenras entre galantina e faisandé.

Dous olhos negros brilhavam como alcaparras em cima daquela iguaria branca.

A minha atenção fervorosa atraiu a dela. Daí a Pouco, seguíamos, trocando olhares. Os dela - de curiosidade, naturalmente.

Mais de perto, com a iluminação pública pude ver-lhe dous cachinhos em espiral gamenha de saca-rolhas, que lhe faziam voltas de S aos lados da fronte.

Com a vista firme, percebi que aqueles caracóis prolongavam-se sutilmente pela velha adentro; enrolavam-se num sorriso que ela tinha nos lábios e iam até à alma, envolvendo-a como a cauda cansada de um velho demônio aposentado.

Abordei-a.

- Não vê que sou respeitável? replicou ela com certa gravidade benevolente.

Respeitável, até veneranda... disse eu comovido, recuando um cumprimento.

E pus-me a caminhar em silêncio ao lado dela (que não se apressou) olhando para a ponta dos meus sapatos que alternadamente eu batia com a ponteira fina da bengala.

Os lampiões iam passando... Embaixo de cada lampião, eu aproveitava o gás, para ver a minha velha. Não estava de má cara.

- Acredita na simpatia? perguntei.

- O que chama simpatia? perguntou-me.

- E a aliança que prende duas pessoas a um simples encontro, sem porquê nem porquê não... Vem do grego syn, com pathos, afeição.

Este grego foi de uma infelicidade a toda a prova; mas, com uma velha, em amor, não há perigo mesmo em falar grego.

Depois, novo silêncio. Os bicos de gás. da calçada vinham de tempos a tempos iluminar o nosso silêncio. Eu estudava de esguelha a minha aventura.

Aventura, vejam lá! Quem me visse ao lado daquele camafeuzinho com quem eu ia, supor-me-ia, entretanto, um numismata a passeio com o seu museu, ou algum jovem fidalgo (permitam) que estivesse a arejar a sua árvore genealógica.

- Então o senhor simpatizou mesmo comigo?

- Sim, respondi-lhe eu, que andava a mil léguas com a imaginação. Sim, minha senhora: do grego syn, com pathos, sentimento.

Ela repetiu a pergunta. Eu respondi-lhe com um sorriso tímido. Daí para diante encaixamos definitivamente um no outro, dous silêncios afetivos do melhor efeito. E fomos.

A minha árvore genealógica, depois de muito tempo, voltou-se para mim e, a meia voz, como se concluísse uma doce frase, cujo princípio lhe ficara no espírito, falou:

- Vou para casa...

Não lhes posso fazer o retrato da fisionomia que, naquele momento, um bico de gás iluminou-me. Era a ternura, a. gratidão, a surpresa, o prazer, e mesmo a lascívia, quem o diria!... Eu senti, oh! vulcões extintos! o corpo inteiro da velha flamejar num incêndio que lhe passava a saia de seda, que me passava a roupa, como um bafejo de fornos, que me bafejava a carne.

Era isso mesmo que me enchia a imaginação havia momentos. Tinha encontrado o sonho. Uma mulher que passava, na sua velhice, esquecida do amor, esquecida do sexo, na idade positiva e anestésica das desilusões. Quando a criatura não é mais que um tubo digestivo por corpo e um terror por alma, o terror da morte que ai vem; quando, ao abandono de cousa imprestável, em que todos nos deixam, soma-se o raivoso egoísmo com que nos agarramos a nós mesmos, esquecidos dos semelhantes, porque a nossa questão não é mais com a vida, que lhes diz respeito, mas apenas com a morte, que só diz respeito a nós; quando a febre religiosa é a única energia moral e o calor cibário o único entusiasmo físico; quando a descrença e o egoísmo multiplicam-se para abrir, em roda de nós, um espaço desesperante de solidão e tristeza... Eu aparecer-lhe, fitá-la, pescá-la no fundo da lagoa frígida dos seus anos; inventar então para mim um amor novo de ressurreição; criar outra vez a mulher e fruir aquela segunda virgindade; cuspir no adjetivo venerando, incendiar de paixão o amianto rebelde dos cabelos brancos; assistir da torre do meu capricho triunfante, a vasta conflagração do país das neves, ver, por um momento, renascerem os enlevos, os êxtases, os delírios mortos surgirem, como fantasmas, dos próprios restos, para saudar ainda uma vez o mundo, num último clamor supremo do que vai perecer em pouco para sempre...

E colher para mim, aquela vasca do último entusiasmo, ouvir nos mais distantes recantos da alma, ouvir e guardar na memória das sensações raras todo aquele coro delicioso dos cisnes em agonia.

Velha, velha, velha, velha...

Ela era feia, pequenina, trêmula, muito branca, muito molezinha, muito crespa de rugas, como a nata de leite soprada, fraca, e de andar vacilante, certo andar balançado de patinha, que mal lembrava uma vivacidade possível dos quadris de outrora.

Num momento, o andar consolidou-se. Ela começou a dar passadas grandes, rijas, nervosas. Tomou-me o pulso. Dir-se-ia levar-me à força para a casa, como um menino fujão. Eu era dela.

Perdeu as considerações. Passou bruscamente a prescindir da minha vontade. Nem mais olhava-me. Levava-me ali como um objeto, quase brutalmente. Havia de ser naquela noite mesmo, na bebedeira do momento. Amanhã tudo estaria perdido. Era preciso não dar tempo à religião de falar; não dar tempo aos cabelos brancos de pensarem em si; não dar tempo ao moço de esfriar a fantasia. Era ali, naquele instante... Tinha muito tempo para se arrepender... depois.

Quando chegamos à casa, depois de andarmos não sei quantas ruas, devia ser tarde. A casa foi uma rótula de venezianas, que eu vi recuar para um buraco negro. Entrei. Faltou-me o pé. O soalho era mais baixo que a rua.

- Não caia! há um degrau, disse-me a velha.

Eu não via mais a velha. Na imperceptível claridade que chegava da rua, entrevia o meu braço, a minha mão, um pouco de outra mão, e depois a escuridão espessa. Parecia que a escuridão puxava-me.

O ar frio encanado denunciou-me um corredor. Deixei-me conduzir pela escuridão no ar frio.

De repente, do fundo de um aposento invisível, alguém tossiu.

Eu estremeci na mão da velha.

- Não faça caso, balbuciou-me ela ao ouvido. É a minha filha... que sofre de asma...

Pouco adiante, uma porta de vidraças vagamente clareada fez-me deter o passo. Um homem escarrou.

- Não faça caso, segredou-me a velha... Meu neto dorme aqui com a mulher...

Adiante ainda rangeu manhosamente o choro de um menino.

- Não faça caso... É o meu bisnetinho...

Outra criança rompeu em choro para acompanhar a primeira.

A velha não me disse se era o tetraneto...

Pois, senhores, fala-se em juventude... primavera... primavera... fala-se em verão... Não acreditem, meus amigos, não acreditem no inverno.

Fontes:
UNAMA - Universidade da Amazônia
Imagem = http://pensamentosrosas.blogspot.com

Poetas del Mundo em Versos Diversos I


CESAR MOURA (SP)
Lascívia


Vivo de olhos abertos à te procurar;
Nesta sua nudez que só de pensar, já me faz pecar...
Veja, eu não sou de ferro!
Quando te vejo, urro e berro sem querer parar.

Desenho o seu corpo perfeito
Nas curvas que invoca as silhuetas mais belas,
Envolvente efeito que me deixa de boca aberta
Tenho na certa mulher, muito amor pra te dar.

Quando o seu busto tão lindo
Veste aquele vestido com decote aberto,
Torna-se o alvo mais certo para o meu olhar.

A tua lascívia minha cara,
Minha tara não para de me atormentar!
Este meu desejo promíscuo não dá nem pra comentar...

HILDA PERSIANI (PR)
Envelhecer Conscientemente


Mesmo depois de tantos anos ter vivido,
De haver perdido os traços, talvez belos,
No espelho os procuro, não consigo vê-los,
Sou feliz por eles terem existido...

O tempo, nosso semblante desfigura,
Recompensa-nos com traços de ternura.
A alma torna-se mais bela, mais pura
E nos deixa mais firmes, mais seguras.

A tolerância toma lugar da presunção,
O interior é mais tranqüilo, temos doçura,
A empáfia deu lugar á brandura.

Nossos comentários vêm do coração.
Quando sorrimos, nosso sorriso é franco,
Não nos aflige nosso cabelo branco.

REGINA MERCIA SENE SOARES (SP)
Envelhecendo


Já estou aqui na frente
Caminhei muito...
Ao longo da estrada da vida
Vida esta muito querida

Nela construí castelos
Uns ficaram em pé
Outros com o tempo desmoronaram

Caminhei muito...
E o tempo passou e eu envelheci
Mas tenho certeza
Que muito aprendi
As vezes chorei
Mas também sorri

Caminhei muito...
Vi meus cabelos ficarem brancos
Com muita beleza e encanto
Vi meus filhos crescerem
E meus netos nascerem

Estou envelhecendo
Mas continuo caminhando
Sempre feliz e cantando

URQUIZA ALVIM (MG)
Estou Envelhecendo


Adoro a melodia da música e o talento,
As boas e sonoras criações artísticas,
A suave e afinada voz na hora de cantar
O orgulho por nossa aparência exterior,

O charme nas relações amorosas,
Respeito o compromisso de casado,
A responsabilidade da paternidade,
O fortalecimento e a união da família,

O gosto pela leitura e pessoas cultas,
Ordem, respeito e disciplina do jovem
O sentimento de patriotismo pela nação.
O rechaço à vulgaridade e a grosseria.

Paciência e tolerância entre as pessoas
Detesto certos políticos que enganam,
Respeito todos e a vida que Deus me deu
Esperando que os outros se respeitem.

ROLDÃO AIRES (SP)
Zelo


Se consciência eu tivesse de
que fosses tão compreensiva
e doce assim,padecido menos
eu teria, com medo, que
houvesse entre nós um fim.
Analisava, cada palavra dita.
Contigo, especial era a atenção.
Quando por mim dei,
eras a dona do meu coração.
Mas mesmo assim ,
o meu cuidado, por ti agora é
maior, pela ternura que és.
Carinhos, flores e beijos que
recebes, sempre pouco será,
comparado , e disso sou sabedor, ,
a doçura, e ao encanto, do teu amor.

DALADIER DA SILVA CARLOS (RJ)
Janelas abertas


O perfume de rosas passou diante da porta,
Logo um coração receberia a mensagem,
Da janela do seu quarto, para renovar esperanças,
Esquentar o dia com a aparição do romance,
Vindo na chegada premente do garboso cavalheiro,
Que traria um amor largado no tempo.

Há canções no fundo da memória, apesar das nuvens,
E os versos se atraem, compõem as mais belas trovas,
Animam o velho amante a ir ter com a sua amada,
Ainda que lhe recomendem não se prolongar à noite,
Vez que a sua face poderá se transformar em medalha,
Então, é preciso sair depressa, ir ao encontro da diva.

As janelas abertas permitem a entrada de ar fresco,
Substituem o odor da caverna pelo aroma do entardecer.
Enquanto a chuva, às vezes miúda, alimenta a vida,
O cavalheiro romântico pode aguardar a chegada do sol,
Porque os raios virão brilhantes sobre toda a matéria,
E um inexprimível prazer permanecerá em longo silêncio.

O dia seguinte mostrará que os amantes amadureceram,
A algazarra das crianças desapareceu no fundo das malas,
E nas bagagens o império do alegre grupo se repartiu.
Hoje, o cavalheiro romântico e a sua amada podem sonhar,
Manter as janelas abertas e se entregar ao amor no casarão.

CARLOS LUCIO GONTIJO (MG)
Vinde a Mim as Criancinhas


Diante da lanchonete da esquina
O Jesus menino pivete
Cristo redivivo na cruz da fome
Construída em seu santo nome em vão
Cristão tecendo lucros e dízimos
Aos olhos de criança pintando céu
Sonhando molhos de estrelas
Deliciando luzes em tom pastel...

MARISA CAJADO (SP)
A Força da Paz


A paz tem uma força imensa
Que a desavença, não tem força pra deter.
É chama que ativa se alteia
Energia que incendeia
As fibras d’alma de quem a quer reter.

Certo é, não se constrói sobre a intriga
Esta cruel inimiga
Que teima em persistir.
Mas a paz, esta doce amiga
É sempre a mão que nos abriga
Que há, de sempre existir.

Sinta poeta esta paz que o abraça
O ego, a intriga, sempre passa,
Não deixe a paz fugir
Vem poeta amigo a paz o chama
Paz é luz que se esparrama
No ontem, no hoje, no porvir.

CARLOS CELSO UCHOA CAVALCANTE (PE)
Queria...


Queria novamente ser criança
ter amiguinhos, brincar sem maldade
não ter que suportar essa saudade
que fez morada na minha lembrança.

Queria soltar pipa, jogar bola,
ter estilingue, pião, também carrinho
sentir mamãe levar-me com carinho
ao ambiente alegre da escola.

Queria se pudesse não ver fome,
não ver a droga que o pudor consome,
queria não temer um desatino.

Queria que os homens, quando eleitos,
mesmo com toda pompa, os direitos
não sonegasse, ao menos, ao menino.

MARIA LUIZA BONINI (SP)
Entre Mordiscos e Açucenas

(homenagem a Federico Garcia Lorca)

" Porém, eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de mordiscos e açucenas.
Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura."
(Federico Garcia Lorca)


Entre mordiscos e açucenas
Jaz a carta de amor que te escrevi
Intácta, permanece, no lugar onde morri
À espera de teu derradeiro poema

Entre mordiscos e açucenas
A teu lado, adormeci meus sonhos
Pelos dias que se tornaram tão tristonhos
Com tua vida ceifada, por injustas penas

Entre mordiscos e açucenas
Fizeste da morte precoce teu eterno leito
Vítima de puros ideais e negros preconceitos

Entre mordiscos e açucenas
Permaneceste nessa imortalidade serena
Por teu cantar, em versos, que se faz perene

SÉRGIO DINIZ BARROS GUEDES (RS)
Loucura do Amar


Enquanto aguardo
a aurora deste dia,
anônimos ventos
sopram meu rosto
fazendo viajar
meu pensamento...
O coração é aceso
pelo desejado amor
que já perdoou
uma incompreensão.
O horrível vendaval
que fazia mal se foi,
agora tudo é sublime,
pétala divina da minha vida!
Doce mel de laranjeira!
amo-te por inteira,
amor é compreensão
e só dele extraímos o perdão.
O pensamento chama,
o amor clama e como pluma
no mesmo lugar,
onde costumamos namorar,
fomos apreciar o mar
e transformar palavras,
num gesto, num olhar,
no querer compreender,
enaltecer o tocar do amar
na loucura do expressivo ficar.

FATIMA MUSSATO (SP)
Poemas e Poetas, Um Caso de Amor!


De que são feitos os Poemas?
De gente sensível,
De mentes não previsíveis,
De mãos à obra,
Que formam aos toques,
Suaves e precisas,
Letras de encantamento,
Em que nos deleitamos
Mesmo a distância...

De que são feitos os Poetas?
De sensibilidade,
De inspiração,
De mãos e teclas,
Que se tocam,
Formando palavras,
Que formam os versos,
Que transmitem sentimentos,
Colorem emoções,
Transportam deleites,
Mesmo a distancia...

Poetas e Poemas,
Pólos que se atraem
E se completam!

PATRÍCIA MONTENEGRO
Imã


Tu me atrais como um ímã,
Puxando-me para ti,
Desde a primeira vez que ‘te vi’,
Eu sabia que não poderia fugir...
Tentei!
Mas não consegui...
Existe uma sintonia entre nós,
Passado, presente e futuro,
Entrelaçados em um mesmo desejo,
- Uma missão -
Como fugir desse elo?
Seja amizade,
Vestida de amor,
Ou o que for...
Fugindo de ti,
Estarei fugindo de mim...
Entrego-me a ti,
-Sem receios-
Apenas me receba em ti...

KEILA MATTIOLI (MS)
INTENÇÕES


Lá adiante um pé de bocaiuva
junta seu cacho baixinho com guavira.
E onde céu tem precedência,
água branca de mata arroja ímpeto
e desce como assobio de saci.
Maritaca sossobra de asa e grito
como criança mijada.
Tudo combina de cor e entre-cor
graça e abandono de mato
como beleza bondade e mistério
de mulher apaixonada.
Zoró de tudo, vento brinca
de esconde-esconde com século.
No aroma dos longes,
criatura-homem se apequena.
Não sabe se ser de bem com coisa feita.
E sofre de dor-de-mágoa quando pasma.
---
Observação:
José Feldman é Consul de Maringá/PR, do Poetas del Mundo

Fonte:
Poesias enviadas pelos autores através do Poetas del Mundo.
Montagem da Imagem sobre logotipo do Poetas del Mundo por José Feldman,

Ivan Carlo (Manual de Redação Jornalística) Parte 4


Agora vou dar um exemplo de uma matéria que teve o lide retirado. A partir das informações que são dadas ao longo do texto, tente reconstruir o lide. Boa sorte!

Motoristas param terminais de ônibus hoje das 9h às 12 h

Lide:
Trata-se do maior protesto no transporte desde que a campanha salarial começou, há cerca de um mês. Segundo o secretário-geral do Sindicato dos Motoristas e Cobradores de Ônibus, Alcides Araújo dos Santos, o movimento deve atingir 2 mil ônibus, que atendem a 200 mil passageiros no período.

A manifestação, aprovada no fim da tarde de ontem numa plenária realizada na sede do sindicato, é contra a “má vontade” do sindicato patronal, o Transurb, em negociar as reivindicações trabalhistas apresentadas por ocasião da data-base da categoria, em 1.º de maio. De acordo a Transurb, o funcionário que aderir à paralisação terá o dia descontado.

A São Paulo Transporte (SPTrans) deve acionar um plano de apoio para as regiões mais prejudicadas (Paese), que consiste na utilização de veículos de empresas que não estão em greve em bairros onde a população enfrenta problemas mais graves com a falta dos ônibus. Os empresários do setor, que ficam sem parte do faturamento do dia, temem que mais veículos sejam depredados, como aconteceu anteontem numa manifestação contra a demissão de um sindicalista da viação Campo Belo. Na ocasião, 37 carros foram depredados e o prejuízo, estimado em R$ 50 mil.

Os metroviários decidiram em assembléia participarem hoje do ato unificado no Estádio do Morumbi, às 14 horas, promovido pela CUT. Amanhã, a categoria irá reunir-se na Avenida Paulista, em frente da Estação Brigadeiro, para discutir formas de luta, como trabalhar sem uniforme, e se entra ou não em greve. Conforme Onofre Gonçalves de Jesus, presidente do Sindicato dos Metroviários, não houve negociação. A pauta tem 104 itens, entre eles o reajuste salarial de 7,38%, produtividade de 11,45% e aumento da estabilidade de 90 dias para um ano.

Atenção: o contrário do lide é o nariz de cera.

Nariz de cera é quando o jornalista usa o primeiro parágrafo para enrolar. Ele não repassa as informações principais sobre o assunto.

Veja um exemplo de lide:

O advogado do prefeito Celso Pitta (PTN), Mário Sérgio Duarte Garcia, classificou ontem como “estratégia política” a decisão da Comissão Processante de dar continuidade ao processo de impeachment na Câmara Municipal. Garcia disse que pretende incluir novos documentos na defesa do prefeito antes de apresentá-la à comissão.

Agora veja como seria um nariz de cera sobre o mesmo assunto:

As pessoas estão cada vez acreditando menos nos políticos. A falta de ética dos políticos tradicionais faz com que as pessoas percam a confiança. Os casos de corrupção são cada vez mais freqüentes. Mas os políticos têm dinheiro e bons advogados e no final tudo acaba em pizza.

Vamos dizer que você vá fazer uma matéria sobre uma rebelião na FEBEM.

Os internos da FEBEM de Tatuapé se revoltaram e fizeram dois reféns na manhã do dia 12 de abril. A polícia entrou no prédio e reprimiu a rebelião. Os reféns foram libertados. Dois internos foram hospitalizados com vários ferimentos.

Essas são as informações.

Veja como seria um nariz de cera dessa matéria:

Os menores infratores estão se tornando um problema cada vez maior. A FEBEM é o melhor exemplo disso. Todo mundo está preocupado, mas ninguém faz nada.

O parágrafo não apresenta nenhuma informação importante para compreender o episódio. Ou seja, o redator usou o texto apenas para enrolar. Tente escrever um lide usando as mesmas informações.

–––––––––-
continua… CAPÍTULO 4 – O JORNALISMO É ESSENCIALMENTE REFERENCIAL


Fonte:
Virtualbooks

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 359)


Uma Trova Nacional

A distância, achando meios
para unir nossas metades,
somou nossos devaneios
e dividiu as saudades!...
–MARIA NASCIMENTO/RJ–

Uma Trova Potiguar


Nesta longa caminhada
que fazemos sempre a sós...
Nem o silêncio da estrada
quebra o silêncio entre nós!
–PROF. GARCIA/RN–

Uma Trova Premiada

2010 - Curitiba/PR
Tema: MADRUGADA - M/E


Na incerteza da jornada
que a vida me faz seguir,
nem mesmo de madrugada
vejo a saudade dormir!
–ELEN DE NOVAIS FELIX/RJ–

Uma Trova de Ademar

Esses meus versos doridos,
o amor, a fé, tudo enfim;
são retratos coloridos
que eu mesmo tirei de mim...
–ADEMAR MACEDO/RN–

.
..E Suas Trovas Ficaram

Quem nunca se desespera
nem pedras atira a esmo
vivendo em busca sincera
encontra a paz em si mesmo!
–ALBERTO FERNANDO BASTOS/RJ–

Simplesmente Poesia

Deus
–CASIMIRO DE ABREU/RJ–


Eu me lembro! eu me lembro! - era pequeno
e brincava na praia; o mar bramia,
e, erguendo o dorso altivo, sacudia,
a branca espuma para o céu sereno.

E eu disse a minha mãe nesse momento:
"que dura orquestra! que furor insano!
que pode haver maior do que o oceano
ou que seja mais forte do que o vento?"

Minha mãe a sorrir, olhou pros céus
e respondeu: - um ser que nós não vemos,
é maior do que o mar que nós tememos,
mais forte que o tufão, meu filho, é Deus.

Estrofe do Dia

Este é um capítulo da história
pelo tempo contada e definida,
um resgate da dívida compulsória
que há tempos atrás foi contraída;
conta estúpida, perversa e esquisita
que com juros o mundo deposita
nos extratos da vida da pessoa;
é um débito guardado em seus arquivos,
no caderno dos saldos negativos
que o gerente do tempo não perdoa.
–Diniz Vitorino/PB–

Soneto do Dia

O Cristo de Marfim
–ANTERO BLOEM/SP–


Quando depões sobre o teu Cristo amado,
- esse Cristo que pende de teu peito,
ungido de ternura e de respeito -
um beijo de teu lábio imaculado,

eu, sacrílego, sinto-me levado
- ou seja por inveja, ou por despeito -
a arrebatar o Cristo de teu peito
e em teu peito morrer crucificado.

Mas, quando vejo, do teu lábio crente,
cair sobre o Jesus a prece ardente,
talvez por nosso amor, talvez por mim,

ardo na chama intensa dos desejos
de, arrependido, sufocar meus beijos
nesse teu alvo Cristo de Marfim.
---
Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XIII – Política de 2228


CAPITULO XIII
Política de 2228

Nessa mesma reunião ministerial, prosseguiu miss Jane, o Presidente Kerlog teve palavras de fazer refletir os ouvintes.

– "O nosso predomínio vejo-o ameaçado, se não de ruína, pelo menos de fundas transformações. Avoluma-se a onda negra — e a ela resistiriamos se a cisão elvinista não viesse enfraquecer o nosso peso político. Mas o eleitorado branco está cindido, e agora mais que nunca vai funcionar a massa negra como o fiel da balança dos destinos da América. Venceremos, pois o concurso de Roy, embora negaceado para nos extorquir concessões, virá infalivelmente à ultima hora. Imagino com que horror não verá ele os progressos do sabinismo!

Mas havemos de confessar que é precária a situação do nosso partido, com a vida assim dependente da boa vontade de um manhoso lider negro...”

– Que concessões queria Jim Roy? perguntei.

– Essa mesma pergunta fez ao senhor Kerlog o ministro da Seleção Artificial. "Quer, respondeu o presidente, uma entente no terreno seletivo. Insiste na atenuação da lei Owen."

Os rigores desta lei tinham-se agravado no ano anterior, com o fim muito claro de fazer cair o índice do crescimento negro. Isso contrariava a política racial de Jim Roy, toda resumida em favorecer a expansão do seu povo até o ponto que lhe permitisse forçar o branco á divisão do país.

Por coisa nenhuma queriam os brancos transigir no terreno restritivo da Lei Owen — seria um suicídio. Mas a situação metera a política naquele buraco: ou ceder ás exigencias de Jim Roy ou assistir á vitória das mamíferas rebeldes.

Quando o presidente terminou a sua exposição calaram-se os ministros por algum tempo, de queixo preso. Qualquer das hipóteses não agradava ao macho branco. Mas como a sabedoria pragmática consiste cm acudir primeiro ao perigo mais proximo, foi acordado ceder ás exigencias do lider negro.

Os ministros retiraram-se dessa reunião de tal modo apreensivos que não viram, no quadro onde se estampavam de minuto em minuto as comunicações dos agentes do governo, um rádio que naquele momento acabava de inscrever-se em letras luminosas: Miss Astor está em conferência com Jim Roy.

O Presidente Kerlog fixou os olhos no quadro informativo e permaneceu uns instantes a morder uma espátula de vidro flexível como aço.

— "Não a entendi", murmurou, "não nos entendemos em nossa conferência. Mas com Jim vai ela falar a velha linguagem inteligível..."

Mordiscou ainda por algum tempo a espátula. Depois ergueu-se, risonho.

– "Mas não vencerá o orgulho sexual de Roy! Jim Roy é homem e vê como eu o perigo da vitória sabina..."

Que curioso devia ter sido esse encontro de miss Astor com Jim Roy, dois seres tão distantes! disse eu.

– Realmente, concordou miss Jane. O vê-los um defronte do outro no gabinete de trabalho da grande elvinista lembrava acareação de garça do Amazonas com raposa branquicenta da Sibéria. Eram dois seres sem a menor aproximação de aparências externas, formando um quadro próprio como nenhum outro para ilustrar a teoria de miss Elvin. Parecia até inconcebível que por tanto tempo fossem as duas criaturas classificadas na mesma espécie pela ciência macha. A radiosa beleza da Sabina mutans (assim a zoologia de miss Elvin classificava a ex-fêmea do Homo sapiens) iradiava um verdadeiro halo de fascínio. Criatura nenhuma envolvida por essa aura conseguia libertar-se dos seus amávios magnetizadores. Miss Astor, se falava, não era por necessidade de falar, porque convencia pela presença. Mas achava-se naquele momento em face do talvez único representante da espécie antagonista imunizado contra a ação catalizadora da beleza. Jim Roy valia pelo símbolo da força. A raça espezinhada confluira-se toda nele, transformando-o num feixe de energias indomáveis. Em toda a sua vida publica jamais esse negro dera um só passo ou pronunciara uma só palavra que se não norteasse pela grande ideia que trazia embutida no cérebro. Não era um indivíduo, Jim. Era a própria raça negra por um milagre de compressão posta inteira dentro de um homem.

Miss Astor o sentiu imediatamente. Percebeu que tinha diante de si uma força insubornável e inseduzível. E, compreendendo o inútil dos volteios de onda em torno de rocha tão dura, abordou de frente o assunto.

— "O choque das raças vai dar-se, disse ela. Precipita-se. Será um conflito tremendo, mas só no caso de estar no poder o homem branco, criador do ódio ao negro. Tudo mudará, se em vez desse implacável inimigo comum estivermos no poder nós mulheres". Jim Roy franziu os sobrolhos.

— "Inimigo comum, sim, prosseguiu miss Astor. Ambas somos suas escravas; mas se a escravização dos teus, Jim, data de séculos, a nossa data de milênios. Caso o poder supremo venha ter ás mãos da mulher, o choque se atenuará, porque saberemos ser conciliantes, e haverá enorme economia de sofrimento futuro, se operar-se sem demora a aliança política do elvinismo com o elemento negro. Acresce uma circunstância: os negros são conhecedores dos processos do macho branco e sabem muito bem o que dele podem esperar. Mas desconhecem os processos femininos; dada a contradição de ideias e sentimentos que hoje afasta as sabinas do gorila evoluído, só têm vantagens a esperar da vitoria elvinista".

E foi por aí além miss Astor. Mostrou-se palavrosa e abundante, visto que sentia falhar ante a firmeza do grande líder negro o prestigio da sua "ação de presença".

Jim Roy ouviu-a com serena impassibilidade, sem que um sorriso ou ruga de apreensão lhe quebrasse a calma das feições, e ao responder limitou-se a promessas ondeantes, fechado em formulas vagas e de duplo sentido.

Finda a conferência, miss Astor permaneceu imovel na sua poltrona, a refletir.

— "Como este diabo assimilou bem a lingua da velha diplomacia, a lingua que parecendo dizer alguma coisa não dizia nada!" E quando naquele mesmo gabinete se reuniram suas amigas e colaboradoras, ansiosas por conhecerem os resultados da enterite com Jim Roy, foi com o olhar cismarento que miss Astor murmurou:

– "Qualquer coisa me diz que o lider negro incuba um plano secreto...”

– "Contra quem?”

– "Ignoro-o. Nada há de deduzir das suas palavras, perfeitas palavras de diplomata. Mas o meu senso divinatório não mente, Jim vai trair..."
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continua… XIV – Eficiência e Eugenia

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.