segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Paraná em Trovas Collection - 14 - Lucilia Trindade Decarli (Bandeirantes/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 13


ESPERANÇA

Entre o Ódio e o Amor, eu vivo a debater-me.
Quando não sangra o Amor, não ruge o Amor, porém,
Quando aos pés me não calca o Ódio, como um verme,
É o Tédio quem me vê com os olhos do desdém.

E oh! das mãos desse fauno cúpido, eu inerme,
Tal que se fosse uma donzela, uma cecém,
Sentindo que me vão ferir, que vão perder-me,
Tento escapar... Em vão! O monstro me detém...

Tudo, tudo me causa horror. A vida, enfim,
Como um castelo desabou neste momento...
Mas, ah! que uma mulher passa a roçar por mim...

E eu esquecido já do mal que ela me fez,
Vendo-a sorrir, assim, mais leve do que o vento
Atrás dela saí correndo, inda uma vez!

BRUXA

Ao Pereira da Silva

Veio uma bruxa um dia, e eu,
Que nesse tempo era menino,
Mostrei-lhe a mão: a bruxa leu
Linha por linha o meu destino...

Leu tudo, leu, e após, os olhos
Cerrando, exclama: é singular!
Que destino cheio de escolhos,
Altos e baixos, como o mar!

É singular, a bruxa diz,
É singular; mas, ó criança,
Espera e crê. Serás feliz,
Muito feliz! Tem esperança!

Olhei a terra, o abismo, a estrela,
A noite imensa, infindos céus:
“Será mais bela, inda mais bela
Tua sorte, crê! Serás um deus!”

Os anos têm-se sucedido
Numerosíssimos, porém,
Cada vez mais surpreendido,
Espero o bem e é o mal que vem.

Anos têm vindo de permeio,
Quem fui, decerto, já não sou;
Às vezes quase que não creio
No que essa bruxa me contou...

Tudo uma triste mascarada,
Tudo ilusão, tudo quimera;
E pois que já não creio em nada,
Meu coração por que é que espera?

Que mais espera esse infeliz,
Que inda lhe possa dar prazer,
Se tudo, tudo quanto quis,
Completamente, hoje não quer?

Não sei. Porém basta lá fora
Vibrar um hino, que sei eu!
Para que logo exclame: é a hora,
É a hora ideal, que floresceu!

E doido, atrás dessa esperança,
Ei-lo a correr: pois apesar
De conhecer que não a alcança,
Quer ver se a pode inda alcançar...

CAVALEIRO

Por esses campos, ligeiro,
Como a luz e o pensamento,
Vem correndo um cavaleiro,
Cabelos soltos ao vento...

Nem à beira do barranco
Nem do abismo se detém
Aquele cavalo branco
Que a todo galope vem.

Ouvindo o doido tropel,
Param as águas do rio:
“Donde vem esse corcel,
E o cavaleiro sombrio?”

A brisa flébil, a brisa
A vê-lo correr: “Olhai,
Não vê onde o cavalo pisa,
Nem p’r’onde o cavalo vai!”

Não ouve a dor, nem o choro,
Nem a tristeza, que sei
Dentro da púrpura e do ouro
Do seu orgulho de rei.

A galope, pela estrada
É como um cego afinal,
Não vê nada, não vê nada,
Nem o bem e nem o mal.

Ao pé dessa natureza,
Debaixo daqueles céus,
Passa como a realeza,
Como um raio, como um deus!

Tudo para ele é um desejo
Que arde e cintila no espaço
Como o relampo d’um beijo,
Como o fulgor d’um abraço.

Doidamente, doidamente,
No meio de temporais,
Em doido corcel ardente
Galopa cada vez mais.

Galopa. Quase se perde
O sinistro domador,
Por entre a folhagem verde,
Por sobre os campos em flor...

Galopa em tal alvoroço
E tamanho orgulho tem,
Que nessa corrida o moço
Não ouve e não vê ninguém...

Corre, corre mais ligeiro
Do que a luz e o pensamento,
Dia e noite, o cavaleiro,
Cabelos soltos ao vento...

A túnica que ele veste,
A túnica aurilavrada,
Tem a cor azul-celeste,
Os frisos da madrugada.

Mas olhe, da mesma seda
Vestido um dia andei eu;
E pois que lhe não suceda
O que a mim me sucedeu!

VERSOS PARA EMBARCAR

Ao Virgílio Várzea

Tudo, tudo vai mal, e tudo é uma viela,
E um beco escuro, e um charco imundo, e um triste horror;
Pois que bom de embarcar, um dia, a toda vela,
E fugir, e fugir, seja para onde for.

Não há como embarcar. A vida é um navio
Doido, a querer partir, mordendo o pé do cais,
Velas estão a encher, sopra o nordeste frio,
Quando é que partes, ó navio, quando sais?

Não há como embarcar. Do alto d’uma equipagem
Ver o mundo! correr o mundo! viajar...
Poder dizer que foi a Vida uma viagem,
Que começou no mar, que se acabou no mar...

Não há como embarcar. É d’um furor tamanho,
É d’um delírio tal que, embora nunca mais
Se tenha de voltar – como um punhal d’antanho,
A esperança reluz, apenas embarcais...

Não há como embarcar. Furiosos d’insônia,
Enervados de dor, que ânsia d’ir para além,
Ó tísicos, morrer aos pés de Babilônia,
Nos muros de Siquém ou de Jerusalém?

Não há como embarcar. Para onde quer que seja,
Para o desterro, mil perigos através,
Quando os míseros vão, é como olhos d’inveja
Que eu os vejo partir, de corrente nos pés...

Sempre que avisto o mar com as ondas inquietas,
Sempre que o vejo assim, não sei por que será,
Mas tenho as ambições mais doidas, mais secretas,
Loucuras de poder inda fugir p’ra lá.

À mercê e ao furor das ondas e dos ventos,
Havia de correr o mar que não tem fim,
Como Ulisses; porém, ó trágicos momentos,
Sem ter uma mulher que chorasse por mim!

De pé no tombadilho, em frente, à minha vista,
Eu veria passar o que não vi jamais,
A não ser através dos meus sonhos d’artista:
– Encarnações febris, diademas imperiais...

E cegueira ideal e vã de quem se esconde,
E loucura de quem fugiu d’uma prisão,
E doido, sem saber de nada, nem para onde,
A correr, a correr atrás d’uma ilusão!

Ó terras de mistério, ó terras de mantilha,
Ó terras onde o céu é como a flor-de-lis,
Quem me dera dormir, folha de mancenilha,
Debaixo de teu manto azul d’imperatriz!

Reinos antigos, ó paisagem de romance,
Como uma rosa que fenece num jardim,
Ah que bom! ah que bom! de vê-los de relance,
Com castelos feudais, com torres de marfim!

Rainhas como flor, graciosas donzelas,
Com gestos e com voz que me causam prazer,
Como seria bom que, ansiando para vê-las,
Eu as vendo uma vez, não as tornasse a ver...

Eu não sei, eu não sei para onde fugiria,
Eu não sei, eu não sei o que ia ser de mim,
Quem me dera, porém, que logo fosse o dia
De poder embarcar e de fugir daqui!

Quem dera que fosse hoje! E enquanto a nau sulcasse
De proceloso mar entre uivos e baldões,
Eu poder, sem terror, olhando face a face
O abismo, descrever as minhas impressões!

É bem possível que eu, arriscando na sorte,
Notasse que por fim só me saía o azar,
E o diabo, e tudo, e o mais, e tudo, e a própria morte,
E ainda tudo; porém, que ânsia de viajar!
Outubro – 1903

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Francisco de Morais Mendes (O Homem que Recolhia o Tempo)


Numa velha sacola de feira, ele recolhia o tempo deixado pelos outros. Como fazia isso, não se sabe. Para ele, homem solitário, que vivia entre a casa e o serviço, a palavra “repartição” não designava apenas o local de trabalho. Cabia-lhe, como servidor público, cuidar das horas, repartir o tempo entre os colegas. Havia quinze anos executava com diligência a mesma tarefa: zelar pelo ponto, abonar as faltas justificadas, converter o excedente de horas em pagamento. O tempo era público.

Contudo, sofria de um mal sem remédio. Pressentia o correr dos dias, dos meses, dos anos, como uma subtração da vida. O tempo escapava-lhe enquanto acumulavam-se coisas por fazer. A perda do tempo é individual, lamentava.

À noite, em casa, recostado à velha poltrona de couro, sentia o peso de dois mil livros não lidos. E lia metodicamente. Olhando à esquerda, um infatigável atlas oferecia-lhe países por visitar. E ele mal saíra da cidade. À direita, centenas de obras aguardavam releitura.

Pensando constantemente no tempo, observava que boa parte do que se fala contém essa palavra vaga, sem peso, sem consistência. Certo dia, num corredor da repartição, ouviu de uma grávida que faltavam quatro meses para o bebê nascer. Então ocorreu-lhe que, durante a gravidez, ela deixava sem uso um outro tempo. O que primeiro pareceu-lhe uma brincadeira, uma anedota, tomou a forma de idéia. Depois de algumas noites em que se pegava pensando na grávida, supondo que estivesse assaltado por uma paixão em todos os sentidos inoportuna, o assunto passou de idéia a teoria. Não era a grávida que o atormentava. Era o tempo.

Formulou, então, a teoria dos tempos laterais, que correm simultaneamente na vida das pessoas. Pela última vez voltou a pensar na grávida, para explicar a si mesmo sua teoria. A vida segue num tempo que ele, como todo mundo, chamava de normal, mas qualquer alteração ou acidente põe em funcionamento um tempo dos que correm lateralmente àquele, que ele chamava de tempo outro. Durante o período da gravidez, tomado como uma alteração, o tempo normal continua a passar, mas em desuso, um cão sem dono vagando por aí.

Durante alguns dias, observou o que classificou de amostras da sua teoria. Há um tempo largado aqui fora pelas pessoas que baixam ao hospital. Há um tempo de ócio enquanto trabalham. Esse tempo ocioso fica com unhas e engrenagens à espreita, aguardando que a pessoa deixe o trabalho; acompanha-a até o ponto do ônibus, e enquanto, após um banho quente, a pessoa decide se liga a tevê ou coloca um disco para tocar, ele está pronto para seguir. Em outra circunstância, enquanto a pessoa mergulha a atenção no noticiário do rádio, fica desocupado o tempo da distração. Nenhum deles deixa de correr.

Certa noite, acomodado na poltrona, voltou a refletir. Era preciso recolher o cão sem dono. A outro, não iria fazer falta. A ele, o livraria da aflição.

Na manhã seguinte, mexendo no quarto de coisas abandonadas, encontrou a sacola que passou a carregar. Das grávidas, subtraía o tempo da não gravidez. Dos colegiais em algazarra à saída da escola, recolhia variadas espécies de tempo. Do sujeito que lia no ônibus, tomava o tempo de olhar pela janela. O mais surpreendente eram aquelas pessoas que parecem pensar em coisa alguma, absolutamente desligadas. Dessas, fluíam, ou melhor, jorravam tempos em profusão. E recolhia, recolhia, recolhia.

Voltara a ler sem ansiedade, sabendo que acumulava considerável reserva de tempo. Em pelo menos um momento, levantou os olhos do livro e pensou na imortalidade. Deu um breve sorriso, sem precisar recorrer ao espelho para encontrar o que supunha um rosto rejuvenescido. Voltou a concentrar-se na leitura. O tempo, agora, não passava; vinha até ele. O cão encontrara o dono.

Certa manhã, depois de ler no jornal sobre um sujeito condenado a muitos anos de prisão, foi tomado de grande ansiedade. Ocupado em juntar os tempos dispersos no presente, não lhe ocorrera tocar num tempo futuro. Nem sequer havia pensado nisso. No entanto, vislumbrava que aquele tempo podia ser recolhido de uma única vez. Tenho que capturar o tempo que ele deixa aqui fora, mas onde estará?, pensou, quase faltando-lhe o ar. Saindo às pressas com a sacola, sem saber exatamente onde buscar aquela fatia esplêndida de tempo, distraiu-se numa travessia e, atropelado por um caminhão de mudanças, teve morte instantânea.

Corroída pelo tempo e pelo uso, ficou a sacola jogada num canto da rua. Os que olhavam em seu interior, de algum modo sabiam que vazia não estava; era um engano dos olhos. Afastavam-se ao sentir uma espécie de sufocação. A que não sabiam nomear.
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Francisco de Morais Mendes é jornalista e escritor. Publicou os livros de contos “Escreva, querida” (Mazza Edições, 1996) e “A razão selvagem” (Ciência do Acidente, 2003). Vencedor dos prêmios “Guimarães Rosa”, do governo do Estado de Minas Gerais, “Cidade de Belo Horizonte”, da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, e “Luiz Vilela”, da Fundação Cultural de Ituiutaba.

Fonte:
Letras e Ponto!

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 12)


GALHOFA
Do espanhol gallofa, migalha ou pão dado como esmola. Gailofa foi formado de uma expressão latina criada nos conventos medievais: gaili offa, bocado de peregrino. Offa era uma pequena bola de massa ou de carne;gallus, gaulês (cidadão de um povo celta que habitava a Gália, antigo país situado no território atual da França), ganhou o sentido de peregrino porque a maioria dos peregrinos de Compostela eram gauleses.
Em português, o significado inicial de galhofa, manifestação alegre e ruidosa (depois virou sinônimo de deboche e de vida vadia), se originou da algazarra feita pelos pedintes, às portas dos conventos, esperando agalli offa, o alimento a ser distribuído.

GARDENAL
Gardenal é o nome comercial da substância fenobarbital, usada como anticonvulsionante e sedativa.
A marca surgiu em 1920 no laboratório Rhône-Poulenc, que já vinha fabricando, com muito sucesso comercial, vários tranqüilizantes, cujos nomes sempre terminavam em -nal, como foi o caso do famoso Véronal (cujo nome veio da cidade de Verona, onde foi descoberto).
Quando o Gardenal já estava pronto para ser comercializado, um diretor da Rhône-Poulenc reuniu os empregados e pediu que eles apresentassem sugestões para batizar o novo produto. Finalizando, recomendou: "Surtout, gardez -nal!" ("Principalmente, não se esqueçam da terminação -nal"). Um dos empregados, achando que o chefe já fazia uma sugestão, exclamou: "Gardenal, por que não?". Pronto, o nome já estava dado involuntariamente. Caso típico de problema que já vem com a solução embutida.

GOL DE PLACA
A palavra gol veio do inglês goal, objetivo, mas nenhuma torcida inglesa grita "Goal!" quando seu time marca um tento. Eles urram alguma coisa que, segundo os antropólogos, fica entre o "oh!" de surpresa de um lorde e o "erghflk" do homem de Neandertal. E a expressão gol de placa?
Rio de Janeiro, estádio do Maracanã, 5 de março de 1961, Torneio Rio-São Paulo, o Santos de Pelé jogava contra o Fluminense de Castilho. Aos 41 minutos do segundo tempo, o Santos vence por 1x0 quando Pelé domina a bola na meia-lua da sua área, lá atrás, na defesa. Ele levanta a cabeça e parte para o gol adversário. Passa por um, dois, três, quatro, cinco, seis adversários e toca a bola para os fundos da rede de Castilho.
Uma das testemunhas do memorável gol foi o então jovem cronista esportivo e hoje famoso colunista de economia Joelmir Beting, que voltou para São Paulo e sugeriu que seu jornal, "O Esporte", mandasse fazer uma placa de bronze que eternizasse o extraordinário lance de Pelé.
A sugestão foi aceita, Joelmir encomendou a placa, pagou e não foi ressarcido até hoje. No domingo seguinte, a placa foi afixada no saguão do Maracanã e descerrada pelo próprio Pelé, com barbante e toalha de banho servindo de cortininha. Surgia a expressão gol de placa. Mais tarde, Joelmir, um craque da palavra, diria: "Nunca fiz um gol de placa, mas fiz a
placa do gol".

GROGUE
Do inglês grog.
No século XVII, quando havia uma grande demanda por açúcar na Europa, os países de clima tropical e solo fértil descobriram que dispunham de uma grande fortuna em potencial: um ambiente natural perfeito para o cultivo da cana-de-açúcar.
Aí por volta de 1650, em Barbados (Pequenas Antilhas, América Central), cana dava mais que chuchu na serra. Alguém ali teve a idéia de aproveitar, de alguma forma, o resíduo que ficava depois da produção do açúcar, o melaço. Com tempo e melaço de sobra, o gênio pensou, pensou e resolveu destilar a substância. O resultado encantou o mundo: rum.
A bebida emigrou de Barbados e virou uma sensação na Europa do século seguinte, na população civil e militar. Os marinheiros ingleses tinham direito a uma quota diária de rum (o costume permaneceu até 1970).
O rum, mais forte que o brandy, provocava um porre devastador, desses de fazer general bater continência para porteiro de hotel.
Em 1740, o almirante inglês Edward Vernon baixou uma ordem: o rum para os marinheiros de seu navio deveria ser diluído em água para evitar bebedeiras a bordo. Estava inventado o aquarrum, cujo mercado ficou restrito à gente das embarcações do Sr. Vernon. E lá se iam seus marinheiros, sóbrios e diarréicos, singrando os mares do mundo. O almirante tinha o apelido de "Old Grog", em alusão à sua habitual capa de gorgorão - em inglês grogram, do francês gros grain, tecido grosseiro. Os marinheiros, revoltados com aquela ordem de seu comandante, decidiram ridicularizá-lo usando seu apelido para batizar o rum aguado de grog. E o marinheiro que, mesmo assim, conseguia ficar bêbado com alguns litros
daquilo era chamado de groggy.
Em português, grogue, além de ser uma bebida alcoólica (rum, aguardente...) diluída em água quente com açúcar e casca de limão, também é sinônimo de atordoado.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Casamento De Narizinho – IV – A chegada


Rodeado de toda a corte e de enorme multidão de povo do mar, veio o príncipe receber a menina. Assim que ela apeou do coche, todos bateram palmas, deram vivas e soltaram peixes fosforescentes, que eram os foguetes lá deles. O príncipe abraçou a sua noiva, nada podendo dizer de tanta comoção que sentia. Beijou-lhe a ponta dos dedos e subiu com ela as escadarias do palácio.

— Deve estar muito cansada — disse o peixinho por fim, depois que recobrou a voz. — Vou levá-la aos aposentos nupciais, onde tudo é pérola e coral.

— Que bonito! — exclamou Narizinho. — E os outros para onde vão?

— Tenho também maravilhosos aposentos para os outros. O Visconde irá para o quarto das algas; o marquês, para o quarto dos corais vermelhos.

Narizinho interrompeu-o com uma risada.

— O senhor príncipe não conhece o gosto dos meus companheiros. O Visconde, que é um sábio, só quer saber de livros. Basta enfiá-lo numa estante. E para o marquês, nada melhor do que um chiqueirinho com três grandes abóboras do mar dentro.

— E o senhor Pedro?

— Esse é deixar solto por aí, com o bodoque. Não mexam com Pedrinho, que ele dana. Emília fica comigo.

— Julguei que a senhora marquesa de Rabicó fosse ficar no chiqueiro do senhor marquês...

A menina achou muita graça naquela idéia.

— Emília é uma emproada, príncipe, que não dá confiança ao marido. Casou-se só por casar, pelo título, e se encontrar por aqui algum duque, é bem capaz de divorciar-se do marquês. A menos que não queira casar-se com o Visconde, concluiu com malícia, voltando-se para a boneca.

Emília replicou sem demora, fazendo a sua célebre carinha de pouco caso:

— “Animal” não casa com “vegetal”... O príncipe ia se retirando para que a menina pudesse descansar à vontade, quando Pedrinho apareceu no quarto.

— E agora, príncipe, que é que vamos fazer agora? – indagou ele.

— Descansar da viagem — respondeu Escamado.

— E se fizéssemos de conta que já estamos descansados?

— Nesse caso, eu os convidaria para a festa de recepção na sala do trono.

— Como é essa festa, príncipe?

— Oh, muito linda! Começa com um bonito discurso oficial; depois, outro discurso...

— Pare, príncipe! Chega de discursos. Prefiro dar um passeio pelo fundo do mar, e Narizinho com certeza prefere ir tratar dos seus vestidos.

— É verdade! — acudiu a menina. — Preciso chegar à casa de dona Aranha Costureira para combinar com ela o meu vestido de casamento e um de cauda bem comprida para a marquesa. Não podemos aparecer na corte nestes trajes, não acha, Emília?

— Pois decerto. Basta a triste figura que fiz da primeira vez em que aqui estive. Em fralda de camisa, lembra-se?...
––––––––
Continua... Apuros do Marquês

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

domingo, 27 de novembro de 2011

Trova Ecológica 53 - Marina Bruna (SP)

Francisco José Pessoa (Mucuripe)


São 4:30 horas...o sol bocejando se espreguiça com um ar de quem está indisposto para a lida. O mar do Mucuripe espelha aquele parto divino.

Sob sinais de cruz e Ave-Marias mal recitadas, após uma última cusparada em terra, que traz o ranço do fumo mastigado, sai o jangadeiro a peitar pequenas ondas que teimam uma após outra roçar-se nas areias mornas daquela praia já cantada e encantada em prosa e verso.

O destino, como todo destino que se preza, só Deus sabe...

Na proa viaja a incerteza da volta, quando o pensamento do caboclo de tez queimada se volta para a terra e vê o acenamento do filho único escanchado no colo da mãe que ora em silencio, entregando a Deus o leme daquela teimosa e valente embarcação.

Acompanhando o caminhar do sol, sentindo-o no mudar da própria sombra que se desenha no terreiro do quintal de casa, a mulher do jangadeiro rastreia entre pensamentos sãos e orações a frágil jangada domada por um braço forte.

Depois que o sol se põe a pino e inicia seu caminho de descanso pro lado de cá da terra, a mulher esperançosa espera o marido que cedo partiu, apruma o olhar pra risca, e o pensar pra bem longe... lá pra trás dela.

Tinge-se o céu de vermelho pálido. O sol, acanhado, com cara de sono, deixa uns poucos rastros de sua luz como para que alumiar o caminho daquela jangada teimosa que, de volta, roça o peito na areia da praia encantada trazendo consigo o destino incerto da partida.

Corpos se entrelaçam à beira-mar. O chapéu do pescador sai-lhe da cabeça num respeitoso agradecimento a Deus. A pescaria rendeu e o pirão escaldado espera o cangulo para a alegria dos dois.

De braços dados, o casal segue no rumo da tapera onde o filho dorme a sono solto. A espera foi cansativa.

Fontes:
Texto enviado pelo autor
Imagem = http://www.arantur.com.br

A. A. de Assis (Status puxa Status)


Um ilustre da cidade, tentando explicar na roda de amigos sua preocupação constante em bem-vestir-se, bem-morar e bem-rodar, quase chega a convencer os demais sobre as razões de ser ele assim. Não é que encontre prazer na esnobação, mas o contexto profissional assim exige.

Poderia levar uma vida mais simples, utilizar automóvel menor e menos bebedor de combustível, morar numa casa que não exigisse tantos cuidados e tantos empregados, vestir roupas comuns, frequentar menos as reuniões sociais e políticas. Isso tem hora que enche, diz ele. Mas não consegue viver modestamente. Sua posição impõe esmeros especiais.

Dá para entender que posar de bacana é imperativo de certos ramos de negócio. Faz parte do ofício. Quanto mais esnoba, mais impressiona. Quanto mais impressiona, mais portas consegue abrir. Quanto mais portas consegue abrir, mais dinheiro ganha.

Não é culpa dele, insiste. É do contexto. Seu ramo baseia-se no “ter”. E para “ter mais” é preciso fazer de conta que já tem mais do que o necessário.

Se ele estacionar em frente ao escritório de um cliente caixa alta num carrinho classe média, talvez nem seja recebido. Chegando num carrão e vestindo terno com gravata e colete, o rosto vistoso, perfumado, o grande cliente vem pessoalmente abrir-lhe a porta, sente-se homenageado com a sua presença, e fecha o negócio na hora. Coisas da vida.

Status puxa status. O mundo é assim, o homem é assim, e não será ele quem vai mudar. Seu papel é realizar bons negócios, não discutir costumes. Se é preciso rodar num carrão, ele roda. Se é preciso vestir ternos caros, ele veste. Para ele não se trata de vaidade, trata-se de investimento.

Os amigos contra-argumentam sugerindo que tudo isso é muito falso. Mas o distinto não está a fim de discutir filosofias. Realista por fora e por dentro, lembra que “ostentação é ferramenta de trabalho”, especialmente para quem lida com clientela abonada. Optar pela simplicidade seria arriscar-se a perder excelentes oportunidades.E como é domingo, e o bate-papo é num botequim, o “esnobador por dever de ofício” esquece as etiquetas, deixa de lado o costumeiro uísque, e manda vir uma pinguinha das boas, com pastel de carne seca.

Fonte:
A..A. de Assis. Vida, verso e prosa. Maringá: EDUEM, 2010.
Também disponível assim como muitos outros textos no blog do Assis em Vida, Verso e Prosa. http://aadeassis.blogspot.com/p/contos-e-cronicas.html

Prof. Garcia (Livro de Trovas)


A dor que se intensifica
e amedronta os dias meus,
é pensar na dor que fica
depois da palavra adeus!

A existência é dividida
em dois extremos da idade:
um, alvorada da vida,
outro, arrebol de saudade!

A insensatez, na verdade,
separou nossos lençóis;
e agora a dor da saudade
dói muito mais entre nós!

A musa chega e me inspira,
num delírio encantador...
Afina as cordas da lira
e enche o meu mundo de amor!

A natureza resiste,
mas a tristeza do monte,
é enxugar o pranto triste
dos olhos tristes da fonte!

As cordas desafinadas
e esta voz chegando ao fim!...
São mimos das madrugadas
guardados dentro de mim!

Cadeira velha!...Esquecida,
sem dono e sem mais ninguém...
Só a saudade atrevida
reclama a ausência de alguém!

De volta ao lar que eu não via,
desde a minha mocidade...
Enquanto a emoção crescia,
crescia a dor da saudade!

Esta aliança que um dia,
já guardou nossos segredos;
hoje guarda a nostalgia
das digitais de outros dedos!

Esta dor que em mim persiste
e não me deixa dormir!...
é "aquela" lembrança triste
do que deixou de existir!

Este amor que em mim fervilha,
quando estamos sempre a sós...
se for bem feita a partilha,
será eterno entre nós!

Eu me curvo ante os conselhos
que recebo todo dia,
quando dobro os meus joelhos
aos pés da Virgem Maria!

Mãe preta! teu negro seio
deu-me o mais puro sabor;
nele eu bebi sem receio
a eternidade do amor!

Minha renúncia...Quem sabe...
não seja a chave secreta,
de tudo quanto só cabe
na inspiração de um poeta!

Morre a tarde!...E ao fim do dia,
na imagem do sol poente,
há tintas de nostalgia
do fim da tarde da gente!

Nesta longa caminhada
que fazemos sempre a sós...
Nem o silêncio da estrada
quebra o silêncio entre nós!

Ó cigarra destemida
o seu disfarce me encanta,
por não ter nada na vida
e ser feliz quando canta!

O que me faz tua ausência,
é causar-me pranto e dor.
Mas no amor há tanta essência,
que sou escravo do amor!

Pelas manhãs vou buscando
minha esperança perdida...
Há sempre um sonho vagando
nas alvoradas da vida!

Porteira velha, o gemido
desta dor que te corrói...
é o teu passado esquecido
que em teu presente inda dói!

Prazer é sentir os dedos
de nossas mãos artesãs
pintando os lindos segredos
das auroras das manhãs!

Quando a minha fé se esmera,
penso que tudo se alcança.
Por longa que seja a espera,
não perco nunca a esperança!

Quando a tarde veste o manto,
torna escura a luz do dia...
Saudade dói outro tanto
do tanto que já doía!

Quase seca...E a fonte insiste
em seu lamento de dor!
É o canto ficando triste
e a fonte jorrando amor!

Rasga o manto que te cobre,
mostra teu riso e esplendor.
Pois, a cortina mais nobre
não cobre um riso de amor!

Revendo entulhos e tacos,
na tapera dos meus sonhos,
chorei por ver tantos cacos
dos meus dias mais risonhos!

Sempre sozinha, aos farrapos,
mas de rosário na mão...
A fé tecida entre os trapos,
remendava a solidão!

Sinalizando o caminho,
do nauta na escuridão;
o farol velho, sozinho
é fantasma e solidão!

Solar dos dias risonhos,
morada da flor da idade!…
Foste o berço dos meus sonhos,
és meus sonhos de saudade!

Só o inverno enxuga o pranto
de uma seca no sertão...
pois, com chuva, em cada canto,
brota uma vida no chão!

Teu amor que me enternece,
que acaba todo meu pranto,
da sobra faço uma prece,
e ainda sobra outro tanto.

Toda tarde o passarinho
bate as asas, quando canta.
Quanto mais longe do ninho,
mais afinada a garganta!

Uma lágrima de orvalho
ao sol, mudando de cor,
depois que beijava o galho,
caía beijando a flor!

Velho sino, és sentinela,
a repetir sem maldade...
a dor da saudade dela,
na dor de minha saudade!

Fonte:
Trovas enviadas por Luis Carlos Simões Neto (PB)

Prof. Garcia (27 Novembro 1946)


Francisco Garcia de Araújo (Prof. Garcia), filho de Lucas Araújo e de Helena Garcia de Araújo, nasceu na fazenda Acari, no Município de Malta-PB, em 27.11.1946.

Em 07.07.1959, foi para Caicó-RN na companhia do tio José Lucas de Barros, onde reside até hoje.

Licenciado em Letras, Bacharel em Direito pela UFPB e Pós-graduado em Teologia e Éticas Especiais, poeta, escritor e compositor, publicou em 1974 o livro TROVAS QUE SONHEI CANTAR.

Foi Bancário, Vereador e Secretário Municipal em Caicó-RN.

Lecionou Português, Francês, Inglês e Espanhol.

Presidente do Clube dos Trovadores do Seridó (CTS) e Delegado da UBT em Caicó-RN.

É sócio efetivo da Academia de Trovas do Rio Grande do Norte e da União Brasileira de Trovadores, Sessão de Natal-RN.

Possui várias premiações em concursos de trovas e outras modalidades poéticas no Brasil e em Portugal.

Em vinte e seis anos de Radioamadorismo, já fez mais de 53 mil contatos internacionais, tendo colaborado em situações extremas para salvar vidas humanas.

Fonte:
Portal CEN