segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Clássicos do Cancioneiro Popular (Pitoco)


Pitoco era um cachorrinho
 qu'eu ganhei do meu padrinho
 numa noite de Natá-
 era esperto, muito ativo,
 tinha dois zóio bem vivo,
 sartando pra-cá, pra-lá.

 Bem cedo me levantava.
 Pitoco que me acordava
 c'os latido, sem pará,
 me fazia tanta festa,
 lambia na minha testa,
 quiria inté me bejá.

 Nos dumingo, bem cedinho,
 pegava meu bodoguinho, 
 os pelote no borná.
 Pitoco corria na frente,
 dano sarto de contente,
 rolano nos capinzá.

 Aquele devertimento 
 de grande contentamento
 ia inté no sor entrá.

 Era dumingo de mêis
 e dia de Santa Ineis: --
 tinha festa no arraiá.
 Minha mãe, as criançada
 tudo de rôpa trocada,
 na capela foi rezá;
 fugino por ôtra estrada
 c'o Pitoco fui caçá.

 Hoje, dói minha concência,
 pra morde a desobidiência.
 Pitoco latia... latia,
 mostrano tanta alegria,
 sem nada podê cismá;
 i eu tacava um pelote,
 fazeno virá cambóte,
 um pobre cara-cará. 

 Pitoco me acumpanhava;
 de veis in quano sentava
 e quiria adivinhá...

 De repente fiquei fria
 Gritei pr'a Virge Maria,
 que pudia me sarvá.
 Uma urutu das dorada,
 num gaio dipindurada
 tava pronta pra sartá!

 Pitoco ficô arrepiado,
 ficô c'o zóio vidrado
 e deu um sarto mortá: --
 se cumbateu c'a serpente,
 repicô tudo de dente,
 mais num pôde se escapá.

 Pitoco morreu latindo,
 os zóio vivo, tão lindo,
 foi fechano devagá;
 parece qu'inté se ria
 da minha patifaria
 de num podê le sarvá.

 E neste mundo tão oco,
 unde os amigo são pôco,
 despois que morreu Pitoco
 nunca mais tive outro iguá!

Fonte:
Nhô Bentico e Abílio Victor. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140.Edição Especial de Aniversário. 

Claudia Werneck (Não Somos Figurinhas!)


Uma menina muito ressabiada. Era como se tivesse medo de gente. Família, padrinhos, vizinhos e professores não conseguiam entender o que a impedia de viver em paz com seus iguais. 

"Mas o problema é justamente esse", gesticulava ela, amaciando com seus dedinhos o pêlo macio de seu gato magro, branco e preto — o Bandidão. "Não somos iguais, não somos iguais, é tudo mentira. Eu olho para a Pati, o Ivan, o Ademir, a Tatá e só vejo diferenças." 

Os adultos se entreolhavam desanimados e pediam mais explicações. "Como diferentes, minha filha? Somos seres humanos, gente igual a você, iguais entre nós: duas pernas, dois bracinhos, dois olhos, uma língua, um cérebro, dez dedos na mão, dez no pé..."

Bandidão não estava nem aí para aquela conversa sempre tão óbvia. Entediado, deu um pinote, abandonando o colo de sua dona. Mas, ainda no ar, enquanto preparava suas patas para uma aterrissagem em segurança, ouviu sair dos lábios dela, também como um pinote, algo que a garota nunca havia dito: "E quem não tem duas pernas? Ou não escuta? Ou tem dois olhos mas um é de vidro? Ou é muito feio? Aí não é gente? Para ser gente não basta nascer? E os bebês, não são diferentes? Por que vocês insistem em me convencer de que somos iguais? Gente não é como figurinha, que nós arrumamos em fila, deixando de lado as amassadas e as rasgadas para decidir o que fazer com elas depois".

Bandidão estava emocionado. Entendera tudo, ora pois pois. A menina não tinha medo de gente. Acuada, sofria por outras razões. Faltava-lhe era coragem para discordar do pensamento dos adultos. 

Confiante por ter conseguido, enfim, explicar sua angústia para os pais, ela experimentou uma sensação nova: sentiu pressa, muita pressa de ir para a escola. Pela primeira vez, sentia prazer em ser gente. Dedicou um último olhar de amor para Bandidão e seguiu pela rua. 

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Soares de Passos (O Anjo da Humanidade)


Era na estância cristalina e pura,
Que além do firmamento rutilante
Se ergue longe de nós, e está segura
Em milhões de colunas de diamante;
Jerusalém celeste, onde fulgura
Do eterno dia o resplendor constante,
E onde reside a glória e majestade
D'Aquele que povoa a imensidade.

Na mansão mais recôndita e profunda
A soberana Essência o trono encerra,
Donde a fonte de amor brota fecunda,
Os astros animando, os céus e a terra;
Um mar de luz seus penetrais circunda,
Que o próprio arcanjo deslumbrado aterra,
Luz que em triângulo ardente se condensa
Quando o Eterno os oráculos dispensa.

Por toda a parte o azul e as pedrarias
Na cidade divina resplandecem;
Mil arcadas de sóis, mil galerias
De brilhantes estrelas a guarnecem;
Os anjos em lustrosas jerarquias
Nas harpas d'ouro melodias tecem,
Outros em coros adejando voam
E d'aromas e canto o céu povoam.

Eis de repente nos umbrais divinos,
Sobre as asas pairando, um anjo entrava,
Parecendo de sítios peregrinos
Que às regiões celestes assomava;
Cruzando o empíreo, as legiões, e os hinos,
Qual rápido luzeiro perpassava,
Té que chegando ao trono do Increado,
Nus últimos degraus ficou pousado.

Pelos ebúrneos ombros o cabelo
Em aneladas ondas lhe caía;
A safira das asas sobre o gelo
Das roupagens reluzentes refulgia.
Mais brilhante não é, não é mais belo,
Comparado com ele, o astro do dia,
Ou a estrela que brilha quando a aurora
De purpurina luz o céu colora.

Ao trono augusto levantou a frente,
Mas com as asas a toldou ansioso,
Não podendo suster o brilho ardente
Que despedia o foco luminoso.
A milícia dos anjos resplendente
Fixou atenta seu irmão formoso;
Os concertos pararam, e ele entanto
Assim falou entre o geral espanto:

«Eterno Ser, que as divinais moradas
«Enches de glória em majestoso assento,
«Fonte de vida e criações variadas,
«Que dás ao mundo poderoso alento;
«A cujo aceno tremem abaladas
«As colunas do etéreo firmamento,
«E cujo nome, que o universo entoa
«No céu, na terra, e nos abismos soa!

«Por teu mando supremo destinado,
«A conduzir a humana descendência,
«Desde que a mancha do cruel pecado
«A fez cair da primitiva essência –
«Venho afinal, Senhor, de teu mandado
«Dar-te conta fiel, após a ausência;
«Fazer-te ouvir da humanidade os prantos,
«E aguardar teus preceitos sacrossantos.

«Ordenaste-me, ó Deus, que sempre atento
«Prosseguisse na terra a lei sob'rana
«Que rege, na amplidão do firmamento
«A criação que de teu seio emana:
«Essa lei do progresso e movimento
«Tenho cumprido na família humana,
«Desde que ao mundo, a combater seu fado,
«O desterrado do éden foi lançado.

«Primeiro, sobre a terra esclarecendo
«Seus duvidosos passos vacilantes;
«Depois, o justo c seu baixel sustento
«Nas águas do dilúvio sussurrantes:
«De novo à terra de pavor tremendo,
«Conduzindo mais puros habitantes:
«Mais tarde junto ao berço do Messias,
«Anunciando ao mundo novos dias.

«Agora, sobre as ruínas dum império
«Outro império de novo edificando;
«Agora, as povoações dum hemisfério
«Sobre as doutro hemisfério derramando:
«Já do teu Verbo o divinal mistério,
«Com as santas doutrinas propagando;
«Já mostrando por fim à humanidade
«Nova luz de justiça e de verdade.

«Quantos velhos sofismas desterrados!
«Quantos ídolos falsos em ruínas!
«Quantos sábios triunfos alcançados!
«Quantas conquistas imortais, divinas!
«Calcando o pó dos séculos passados,
«O homem corre ao fim que lhe destinas;
«Mas ah! Senhor, no meio da tormenta
«Seu amor esmorece e desalenta.

«Seu valor esmorece! tantas lidas,
«Tanto lutar contínuo das idades,
«Tanto sangue e martírios, tantas vidas,
«Tantas ruínas d'impérios e cidades:
«E o homem sofre, e as gerações perdidas
«Se revolvem num mar de tempestades,
«Sem ver luzir esse fanal jucundo
«Que por teu filho prometeste ao mundo.

«Quantos males ainda! a lei sublime,
«A lei d'amor que derramou teu Verbo,
«Sobre a face da terra, à voz do crime,
«Sucumbe e morre por destino acerbo.
«O férreo jugo que as nações oprime,
«Os humildes abate, ergue o soberbo,
«E o rei da terra, sobre a terra escravo,
«Sofre mesquinho seu eterno agravo.

«Por toda a parte, em lastimoso acento,
«Se ouve gemer a humanidade aflita.
«A terra, a mãe comum, nega alimento
«Dos filhos seus a à multidão proscrita:
«Enquanto folga em vícios o opulento.
«A indigência cruel na choça habita,
«E a mãe, a mãe ao peito, em desalinho,
«Aperta morto à fome o seu filhinho.

«Entanto a guerra, que a ambição ateia,
«Ensanguenta as campinas e as cidades;
«A crua peste, que ninguém refreia,
«Converte as povoações em soledades;
«Destes males cruéis a terra cheia,
«Cobre-se inda de mil iniquidades;
«O vício, o crime, a corrupção devora
«A pobre humanidade, como outrora.

«Ao ver tanta miséria, o bom padece,
«O mau blasfema de teu nome santo,
«A voz dos inspirados esmorece,
«O futuro se envolve em negro manto...
«Eu mesmo, eu mesmo, recolhendo a prece
«Que a humanidade te dirige em pranto,
«Subi confuso ao eternal assento,
«A depor a teus pés meu desalento.»

Disse, e um gemido d'aflição pungente,
Semelhante a dulcíssona harmonia,
Soltou do peito, reclinando a frente
Com celeste e ideal melancolia:
Assim pendendo ao longe no ocidente,
Se reclina saudoso o astro do dia;
Assim reclina a pálida açucena,
Açoutada do vento, a fronte amena.

Depois, continuando: «Ó Deus, quem há-de
«Sondar mistérios que teu seio esconde?
«Tuas leis divinais, tua vontade
«Cumprirei sobre a terra. Eia, responde:
«Os passos da mesquinha humanidade
«Aonde os levarei, Senhor, aonde?"
Uma voz retumbou do céu radiante.
Que ao anjo respondeu, dizendo: – AVANTE!

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Coelho Neto (Mano) Parte 4


SAUDADE

PRIMAVERA

Alma da Vida, Primavera, tu que sempre ressurges da neve carregada de flores, tantas que as espalhas profusamente pelos campos, enfeitas com elas serras e penhascos, enches os vales, assoalhas lirialmente as águas, alegras as charnecas, animas os areais estéreis e, porque ainda te sobram nas mãos viçosas, lançá-las pelos velhos muros das ruínas, pelas covas humildes dos cemitérios, forrando-os com a tua generosidade, por que havias de vir ao meu canteiro pequenino talar a flor que era o encanto e o conforto de dois corações, que a defendiam, como as folhas defendem o botão que, entre elas, nasce e vai desabrochando?

Rica, procedeste como o avaro que, possuindo tesouros, enverga olhares de inveja para o mealheiro do pobre e, enquanto o não consegue haver a si, não lhe aquieta a ganância.

O que arrebataste pouco vale na abundância da tua riqueza e era tudo no lar, agora mísero.

Era o calor e a luz; era a alegria e a força de duas fragilidades; era a esperança de dois simples; era a religião de dois crentes; um presente de Deus no altar de dois devotos; a luz de dois felizes que, agora, de olhos sem pupila, caminham às apalpadelas, como cegos a quem houvessem levado o guia, deixando-os ao desamparo, assentados na lápide de um túmulo.

Cruel ambição a tua, Primavera! Nem sabes o que possuis, tão copiosa é a tua florescência, e roubaste o pouco que era a riqueza de um lar.

Tendo um rio, sorveste a gota de orvalho que se achava engastada entre dois corações.

Sendo esplendor, como o sol, roubaste a pequenina chama da nossa lâmpada doméstica

Sendo fertilidade para a Natureza toda, passaste por nós como ceifadora.

Dantes, no evento do teu mês, minha alma rejubilava antegozando o espetáculo, sempre novo, do rebentar dos gomos e do chilreio dos ninhos desempolhados e as primícias da tua feracidade, antes que aparecessem na terra verde, anunciava-as eu em louvores jucundos.

Agora, quando as brumas do inverno forem-se, a pouco e pouco, diluindo e os dias clarearem e aquecerem em sol e embalsamarem-se com o teu hálito, os nossos corações, transidos de saudade, ir-se-ão velando e aos novedios da terra responderão neles os espinhos das dores com que, sem pena, os alanceaste.

E quando todos, em júbilo, exaltarem, felizes, a tua vinda, agradecendo as mercês generosas que lhes distribuíres, nós, lembrados do que nos fizestes, fugiremos de ti, das tuas flores, do teu aroma, da tua claridade, surdos aos galreios dos implumes, ao murmúrio sonoro dos córregos vivazes, e o límpido azul do céu parecer-nos-á retinto em roxo, a terra florida se nos afigurará sepulcro imenso e o teu prestígio, renovadora da vida, não terá efeito em nossas almas. 

Tu, que, só com a magia dos teus eflúvios, fazes brotar no lesim da pedra a saxífraga; tu, que dás viço à duna árida cobrindo-a de folhagens vindes, como a piedosa mãe enfeitou de acanto o túmulo do filho; tu, que tudo animas, não conseguirás, como todo o teu poder divino, reviçar a alegria nos corações que enlutaste.

Tu, que vences o inverno, não vencerás a nossa tristeza, ó Força eterna, eterna criadora que foste para nós a Morte.

Primavera, que mal te fizemos nós?

Quanto mais bela e vicejante fores mais nos ressentiremos da tua crueldade.

Criadora de lírios e de rosas, que mal te fizemos?

Tudo que produzires e despertares será, para nós, motivo de melancolia, porque nos relembrará a traição do teu sorriso.

Quando, na aragem das noites taciturnas, vier a nós o aroma das campinas, virá também a imagem do que se foi e nós, sentindo-o no perfume, amaldiçoaremos o teu poder maléfico, Primavera.

Antes o inverno com os seus dias lacrimosos e as suas noites regeladas!

Que nos importavam os rigores da ventania gemendo no escampo, a névoa álgida velando o arvoredo, os aguaceiros copiosos formando torrentes pelos caminhos, todo o cortejo lúgubre dessa funerária estação de morte se tínhamos conosco o filho amado, aquecendo-nos a alma, como a chama aquecia o corpo, participando do pão de nossa mesa, ele que era o nosso dia de amanhã, o nosso futuro, que rebentara em nossa velhice?

E vieste, entraste-nos pela casa coberta de flores, como noiva, e levaste-o contigo escondendo-o na cova para sempre!

O lavrador, que enterra a semente no alfobre, fá-lo para a Vida. E tu, Primavera, que fizeste do que levaste?

Que dirão de nós os que virem de luto no festival da tua era, cobertos de crepe entre as tuas flores, chorando lamentosamente no coro de risos da Natureza?

Quiseste uma flor nova e viera buscar a que tínhamos tão escondida e não temíamos a morte. E fomos traídos pela Vida, porque foste tu que no-lo roubaste, Primavera.

Tu, que reenfolhas, troncos que o lenhador despreza na floresta tendo-os por mortos e apodrecidos; tu, que dás vida em flor aos pântanos, estagnados; tu, que realizas milagres de ressurreição em toda a natureza; tu, onipotente, tu, vivificadora; tu, antagonista da Morte; tu, inspiradora do Gênese; tu, que és o verbo de Deus, ó estação da benção! tu, que és o raio do Sol dentro do qual erram em átomos as messes; tu, que és a Juventude, Primavera fecunda, flor da Eternidade, que mal te fizemos nós para que no entrasse pela casa coberta de flores, como em festa, para matar, com o teu veneno, o filho do nosso amor, consolação das nossa horas tristes e arrimo de nossa velhice?

Por que nos traíste, Primavera, Vida da Natureza e Morte da Ventura nossa?

CONTRASTE 

Quando o levaram de nós o estádio começava a encher-se para um dos mais renhidos jogos do campeonato sul-americano.

Ao alto da muralha da mole atlética, trapejada a bandeiras e flâmulas, que espadanavam ao vento, borrifadas de chuva, apareciam os primeiros vultos.

O movimento das duas ruas que se cruzam dissemelhava-se em contraste irônico. Em uma, o borborinho alacre da multidão desensofrida, que afluía ao espetáculo da luta: veículos e turba, pregões, estropeada de patrulhas, correrias de retardatários que se apinhavam tumultuosamente junto da bilheteira como se a quisessem tomar de assalto.

Na outra rua, silêncio: gente à espera, em grupos nas calçadas, às portas e às janelas; duas longas filas de automóveis e o coche fúnebre parado diante da nossa casa em pranto.

Na minha sala de trabalho, de janelas abertas, revestida de luto, com um altar armado, jazia sobre a minha mesa, entre círios e flores, o maior desastre da minha vida.

Toda a casa regurgitava de gente: era a solidariedade dos corações amigos na desgraça, a doce esmola de amor trazida à nossa miséria.

Por toda a parte, profusamente, flores: sobre os móveis, pelos cantos, fora, no jardim: em palmas, ramos e grinaldas e ainda esparsas, aqui, ali. Nunca a primavera fora tão pródiga com o meu jardim.

Foi preciso que a Morte nele entrasse para que os meus canteiros se adornassem tanto. Por tal preço não os quisera eu tão vegetos.

Longo, perduradouro vozear no estádio anunciava o início do jogo quando o sacerdote, o mesmo que o ouvira de confissão, aproximou-se para encomendá-lo a Deus.

Era o sinal da partida.

Uma voz sussurrou-me:

“Que iam fechar o caixão”.

Estremeci. Seria possível! Encheu-se-me o peito de tanta agonia que me senti opresso como se o coração se me houvesse petrificado

Que fazer?

Último adeus ao filho, último beijo à fronte gélida, bênção derradeira.

Retiraram-lhe o crucifixo do peito.

Como o que embarca entrega no portaló o bilhete de passagem, assim já lhe não era necessário o símbolo da Fé, porque o seu corpo tinha a câmara à espera e o seu espírito suave já devia achar-se na presença de Deus.

Tomei-lhe, a furto, o que dele me podia ficar - algumas flores que lhe haviam murchado sobre o peito, mortas com ele, bem em cima do seu coração. 

Um a um alguém foi apagando os círios.

Eram as últimas esperanças que se extinguiam. A sua eterna manhã rompera. Para que luzes noturnas?

Fecharam o caixão florido. Que mais?!

Eu olhava em volta de mim em busca de uma esperança e só via lágrimas em todos os olhos. Tudo estava acabado. Dali ao túmulo, nada mais.

Levaram-no.

E a casa foi, pouco a pouco, esvaziando-se - vazia da gente, vazia das flores, vazia, principalmente, da felicidade, que ia com ele.

E tive coragem de o acompanhar até à estância derradeira e vi-o baixar ao fundo da sepultura, profundidade só comparável à do azul infinito.

E o abraço brutal da terra sonora. pouco a pouco encerrando em si o corpo amado, fechando-se sobre ele, abafando-o, sumindo-o até possuí-lo todo, só dela.

E ali fiquei a olhar como quem, de cima de uma rocha, vê perder-se no horizonte a vela da última esperança.

E, diante daquele deserto, eu era como um náufrago em ilhéu estéril na vastidão do oceano.

Arrancaram-me do presídio. Era a vida que me reclamava como a morte o levava, a ele.

E vim, sem consciência, até a casa, onde revi os meus, como se uma vaga me houvesse arrojado à praia e eu acordasse atônito.

A tarde estiara. Dir-se-ia que a chuva fora apenas para chorar o morto, como os olhos dos que me haviam acompanhado no doloroso transe.

Águas que não cessam são as que jorram das fontes e dos corações. Águas que se formam nas nuvens passageiras e nos olhos indiferentes depressa o sol e o esquecimento secam; as que brotam das rochas e das profundas do amor, essas não estancam nunca! Se estancassem como se mataria a sede, como se mitigaria a saudade?

No jardim, restos de flores: ainda na minha sala os círios da vigília.

Já haviam despido do luto as paredes, já haviam desarmado a essa e o altar e a minha sala de trabalho voltara ao seu aspecto natural. Pairava apenas no ambiente um cheiro morno de cera e de flores murchas. E na casa era tudo. Os corações, esses...

Onde quer que se passasse ouvia-se convulso tremor de pranto.

Uma figura inerte, de negro, estatelada, estéril, jazia apagada a um canto, como aqueles círios que ainda lá estavam, de morrões negros, também apagados, sem lágrimas.

Não parecia sentir: olhava pasmada, como alguém que se visse em um patíbulo, condenada sem culpa e, em tamanha injustiça, não achasse palavra para bradar a sua inocência.

Pobre mãe!

Aproximei-me dela, unimos os nossos corações feridos do mesmo golpe e as nossas dores comunicaram-se. 

Assim um rio cresce assoberbado e na violência em que investe derruba árvores e barrancas e tais destroços represam-no até que outro rio, nele despejando-se, engrossa-o e, os dois, juntos, forçam, levam de vencida o empeço e correm alagadoramente.

Chorávamos humildes quando trovejou no estádio clamor imenso de triunfo e o coliseu longamente atroou o estrondo das aclamações vitoriosas.

Ouvindo aquele tronejo heróico lembramo-nos de tardes, outras, iguais àquela e parecia-nos que o nome proclamado estrepitosamente era o dele, dele que ali se fizera desde pequenino, brincando naquele campo, nele crescendo em força e garbo, nele batendo-se pelas cores, que eram o seu orgulho.

E seria dele o nome que ouvíamos nas aclamações ovantes da multidão em delírio?

Sim, era o seu nome, não saía do estádio, mas do fundo dos nossos corações porque, embora estrondosas, todas aquelas vozes de milhares de bocas não estrugiam tão alto como nos soavam intimamente os apelos doloridos da nossa imensa saudade.

E, no final do jogo, com o escoar da turbamulta, a nossa rua encheu-se e os que passavam, comentando os lances mais brilhantes da partida, não se lembravam do enterro que dali saíra.

E, para o seu espírito, foi melhor assim.

Era em tal alvoroço que ele gostava de ver o seu clube, cheio, empavesado, ressoando músicas e clamores. Quanta vez...

A casa, fechada, em silêncio, tremia com o rumor da rua. Pobres corações!

E a tarde daquele dia, que fora de tristeza lúgubre, desanuviara-se a pouco e pouco, galeando-se do sol. Dir-se-ia que o céu despia o luto por aquele que chorava ou, quem sabe! talvez assim se transfigurava para recebê-lo festivamente.

Nós é que em nada mudamos: tal como ele nos deixou jazemos: na mesma desolação, na mesma saudade.

E como não há de ser assim se a nossa alegria era ele e ele foi-se, não torna, não tornará nunca! nunca mais!
––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

Isidro Iturat (Arte Poética) parte 3

2.8. O bloqueio

 2.8.1. Tipos

           1º. Total. Quando não conseguimos escrever nada, nem começar uma obra nova, nem dar continuidade a partir de qualquer ponto de uma já iniciada ou mesmo mudar o gênero discursivo (por exemplo, muitas vezes nos sentimos bloqueados escrevendo em verso, mas conseguimos produzir se passamos a escrever em prosa).

           2º. Específico. Podemos nos sentir bloqueados em algum ponto específico de uma obra em curso na hora de expressar uma determinada ideia, de encontrar uma palavra que falta, um tom, um estilo, de continuar com a construção da psicologia de uma personagem, de um espaço etc.

2.8.2. Algumas causas

1º. Pela falta de conhecimento

          Soluções:

           - Aprendendo mais sobre o assunto, evidentemente. Através do estudo, da leitura de outros autores que já tenham abordado a matéria, tentando acumular novas experiências vitais...

           - Dando tempo ao tempo. Temos que levar em consideração que o inconsciente possui a faculdade de guardar o desejo de expressar algo durante muito tempo. Por exemplo, pode acontecer que em um primeiro momento, não consigamos achar a forma adequada para uma determinada ideia que surgiu. Mas caso ela seja significativa para nós, ficará guardada, como uma semente que espera as condições adequadas para germinar, de modo que o texto definitivo que expresse essa ideia apareça inclusive anos depois do primeiro desejo de materialização.

           Às vezes, o texto não sai no momento em que a ideia surge, simplesmente porque ainda não adquirimos a maturidade literária ou vivencial necessárias para isso. A melhor forma de encarar a situação é com tranquilidade e paciência, conscientes de que no futuro o dilema será resolvido e que não haverá problema algum se, momentaneamente, nos ocuparmos com outras questões.

2º. Pelo desequilíbrio emocional ou mental. Estresse, depressão, fadiga, desmotivação, medos etc. A solução é determinar e resolver as causas dos sintomas.

3º. Pelo descenso natural no ciclo da energia criativa. Há épocas que estamos naturalmente mais predispostos para tarefas de introspecção e outras para a extroversão. Este fenômeno é cíclico e perante ele não há outra opção além da espera. Devemos nos adaptar de acordo com a exigência de cada momento.

2.9. Evolução e mudança

          Uma das grandes preocupações para o autor costuma ser a sua própria evolução. Diante disto, pode-se dizer que a poesia muda apenas quando o ser do poeta muda.

           Claro que, se queremos a mudança, será indispensável um certo grau de abertura para o novo. No entanto, isso supõe um esforço, porque de forma natural tendemos a criar o que se chama “zona de conforto”, ou seja, que queremos desenvolver a nossa ação no mundo dentro de determinados limites espaciais e mentais nos quais nos sintamos à vontade, bem adaptados, inclinando-nos assim a manter estáticos nossos valores e ideias. Sair desta zona significa encarar o desconhecido e isso produz, na maioria dos casos, medo.

           Porém,  o estancamento associado ao fator mudança pode vir tanto por causa da não ação quanto pelo seu excesso, isto é, quando nos vemos submetidos a estímulos e situações indutoras de mudança a uma velocidade superior à assimilável pela mente. Alguns dos sintomas dessa dinâmica podem ser, por exemplo, os estados de confusão mental, de ansiedade ou de pressa “eterna”.

           Tomar consciência de tais processos é fundamental para adquirir domínio sobre eles, para decidir o que deve ser mudado ou não em nós mesmos, quais elementos devem ser incorporados e quais descartados.

2.10. Criação, prazer, coragem

          A criação está inerentemente ligada a estes outros dois fenômenos: o prazer e a coragem.

           O ato criativo produz prazer na obra vital, mas também quando expressa realidades dolorosas, mesmo que isso possa parecer paradoxal. Podemos encontrar as causas disso em fenômenos como o desabafo, a catarse, o gozo estético, as sensações de verdade e liberdade, o prazer por adquirir conhecimento, de transgredir, de surpreender-se, de resgatar a inocência, de achar e expandir os limites da própria emoção e conhecimento, de levar ao limite a função criadora...

           E também está ligado à coragem porque implica que deveremos assumir os riscos de engendrar um objeto suscetível de receber a confrontação de outros indivíduos. O objeto afirma nossa personalidade, a faz visível, e por isso mesmo, nos obriga, para bem ou para mal, a assumir a responsabilidade e as repercussões da sua existência.

3. TRABALHAR O TEXTO
  
                                           Ama tu ritmo y ritma tus acciones,
                                                                                     Rubén Darío

3.1. Tensão versal

          Dentro do poema se produz todo um jogo de tensões e distensões, acelerações e decelerações entre as estrofes, frases, palavras, sílabas, letras e silêncios. Não há regra lógica que possa medir o fato, mas ele pode ser sentido perfeitamente. Por exemplo, a falta de tensão versal é percebida no poema cujo discurso soa “flácido demais”, “sem vitalidade”  e o excesso de tensão é sentido naquele que condensa excessivas figuras semânticas e fônicas.

3.2. Ler em voz alta

          É o que permite sentir a tensão versal, o ritmo adequado, a harmonia do poema. O verso eficaz, lido em voz alta, oferece uma pronúncia fácil, que flui.

3.3. O ritmo

3.3.1. Ritmo versal e ritmo prosaico

          Um fato que distingue radicalmente a poesia de outras formas de discurso é a sua natureza musical. Em síntese, pode-se dizer que a poesia é, seguindo a expressão do gramático espanhol Tomás Navarro y Tomás[3], “palavra ritmicamente organizada”.

           O elemento mais importante que lhe imprime um grau de ritmo diferenciado de qualquer outro tipo de expressão verbal é a sua disposição em linhas poéticas ou versos, que apresentam áxis rítmico, ou seja, a última sílaba acentuada em cada verso, onde a curva melódica alcança a sua máxima intensidade, não acontecendo o mesmo na prosa (ver BALBÍN, Rafael de. Sistema de rítmica castellana. Madrid: Biblioteca románica hispánica, Editorial Gredos, 1975[4]).

           Além disso, o autor de um poema sabe que a linha do verso pode parar sempre antes do limite que se estabeleceria no parágrafo da prosa. Ele tem “consciência de verso”, o que por si próprio criará uma cadência rítmica que diferencie o poema de um texto em prosa, mesmo se tratando de uma composição visual ou em verso livre. Isto confere ao primeiro caso um sentido de verticalidade/partição que contrasta com o de horizontalidade/continuidade do segundo.

           A respeito de certas composições que relativizam estas ideias, cabe mencionar, por exemplo, o caso extremo onde parágrafos em prosa alternam-se ou aparecem inseridos entre versos. Diante de tal fenômeno, podemos afirmar que, estando presentes linhas com áxis rítmico, estas composições deverão  ser consideradas poemas.

3.3.2. Ritmos de quantidade, intensidade, timbre e tom

          Mencionaremos agora os quatro elementos considerados fundamentais que imprimem ritmo ao poema[5]:

           1º. Ritmo de quantidade. Determinado pelo número de sílabas.

           2º. Ritmo de intensidade. Determinado pela colocação, regular ou não, dos acentos intensivos no verso.

           3º. Ritmo de timbre. Determinado pela rima.

           4º. Ritmo de tom. Determinado pelas pausas (que podem ser estróficas, versais, médias, ou constituir cesura). Caso os grupos fônicos sejam longos, o tom do poema desacelera e tende a adquirir um ar mais solene, cerimonioso. Caso os grupos fônicos sejam curtos, o tom se agiliza e tende a adquirir um ar vivaz, popular.

           Na cadeia fônica prosaica (prosa), estes quatro elementos de ritmo apresentam uma distribuição livre e assimétrica, já na cadeia fônica rítmica (verso) tendem à regularidade.

3.3.3. Versos em cláusulas silábicas

          As cláusulas silábicas[6] são agrupações de sílabas que comumente se formam com duas ou três delas, chegando a quatro em alguns casos (dentro do grupo, pelo menos uma sempre é tônica). No verso, as sinalefas e sinéreses podem ser contadas como apenas uma sílaba.

           Existem cinco tipos básicos de cláusulas, atendendo à alternância entre as suas sílabas átonas (o) e tônicas (ó), isto é, ao seu ritmo de intensidade, que pode ser:

           1º. Trocaico (ó-o)

 Ella enreda piernas, brazos.

E-lla en / re-da / pier-nas / bra-zos. 
    ó-o       ó-o        ó-o         ó-o

           2º. Iâmbico (o-ó)

 Rubén, azur navío,

 Ru-bén, / a-zur / na-ví-o,
   o-ó        o-ó      o-ó-o

           3º. Dactílico (ó-o-o)

 Corre mil millas horrísono grito.

Co-rre-mil / mi-llas-o / rrí-so-no / gri-to. 
    ó-o-o         ó-o-o       ó-o-o       ó-o          

           4º. Anfíbraco (o-ó-o)

 Soñé: una mujer de color de azafrán.

 So-ñé: u-na / mu-jer-de / co-lor-de a / za-frán.   
      o-ó-o          o-ó-o         o-ó-o          o-ó

           5º. Anapéstico (o-o-ó)

 Tienes ojos de gata de angora,

 Tie-nes-o / jos-de-ga / ta-de an-go-ra, 
     o-o-ó        o-o-ó          o-o-ó-o

           Caso queiramos compor versos utilizando estas cláusulas regulares, não devemos ficar excessivamente preocupados com o cálculo exato das sílabas no momento inicial do surgimento do verso, pois facilmente nos sentiremos bloqueados.

           Para conseguir realmente que o verso flua é preciso, antes mesmo de calcular, sentir a cadência rítmica. É indispensável escutar a música do verso: primeiro sentir o padrão rítmico, depois o ritmo chamará a palavra e a palavra conformará a imagem e a ideia. Antes de procurar a frase, o ritmo deve  estar bem interiorizado mentalmente. Para isto, a cadência rítmica pode ser inclusive cantarolada antes de começar a inserir as palavras na mesma.
  
           Já em um momento posterior, na hora de refinar o poema, poderemos dedicar especial atenção ao cômputo silábico para conseguir que a distribuição das cláusulas fique perfeita.

           Especialmente neste tipo de composição, ritmo, palavra, imagem, emoção, ideia, cálculo, caminham juntos.

           Nota: Os poemas correspondentes aos versos dos exemplos, podem ser consultados no artigo de minha autoria Formas del indriso (3. Con uso de cláusulas silábicas)[7], na seção Ensayos y entrevistas em www.indrisos.com.

3.4. Insuficiências poéticas

          Não se pretende vetar as formas que aqui serão descritas, mas facilitar apenas a contemplação consciente dos seus possíveis efeitos sobre o poema. Trata-se de inclinações que são parte do processo natural de aprendizagem da maioria dos poetas e que costumam estar presentes, principalmente, durante as fases de formação. Desse modo, sugerimos o auto-exame, ver se as mesmas são identificadas na própria obra e se devem entender-se como algo que deve ou não ser superado.

3.4.1. As palavras “profundas”

          Frequentemente, o versificador iniciante tem a ideia errônea de que deve ostentar um pensamento profundo para que o texto seja poético e que, para alcançá-lo, deve incluir vozes tais como: ser, infinito, universo, eterno, alma...

 3.4.2. As palavras gastas

          Além das que já foram citadas anteriormente, seguem algumas que também estão extremamente gastas, principalmente no poema intimista ou amoroso: rosa, arco-íris, borboleta, sol, lua, céu, mar, estrela, noite, pássaro, beijo, coração, amor, olhos... Ou no poema niilista: morte, grito, escuridão, vazio, Deus, sangue, medo, nada...

           A grande maioria dos poetas neófitos recorre às mesmas intensamente, e qualquer leitor que tenha certo conhecimento da tradição literária perceberá o resultado do seu uso como pouco original. Porém, a questão não será apenas  utilizá-las ou não, mas como utilizá-las.

           Seja como for, servir-se de tais palavras para escrever um poema nos dias de hoje e não incorrer no lugar comum pede, realmente, uma boa dose de maestria.

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Continua…

Fonte:
http://www.indrisos.com/ensayosyarticulos/artepoeticaportugues.html#4