quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 46

CAPÍTULO XXVI

Foi em tal estado que ele, atravessando certa noite uma das ruas menos frequentadas da cidade velha, sentiu, da rótula de uma casinha de porta e janela, baterem-lhe no ombro.

— Abrigue-se da chuva, disse uma voz de mulher.

Teobaldo afastou-se, mas não tão depressa que não chegasse a reconhecer quem o provocara.

Era Leonília.

Uma rápida nuvem de desgosto tingiu-lhe logo o coração. Parou. Ela não o tinha reconhecido, graças à circunstância de que Teobaldo levava o sobretudo com a gola levantada e o guarda-chuva aberto. Sua primeira intenção foi dar-lhe dinheiro e seguir caminho sem lhe falar; mas tomado de súbito por uma outra ideia, olhou em torno de si, fechou o guarda-chuva e transpôs a porta que Leonília havia já aberto.

Ah! Que terrível impressão experimentou S. Exa. ao achar-se em meio daquela pequena sala, sistematicamente preparada para o vício barato! Que doloroso efeito lhe causaram aquelas pobres cortinas de renda, aquelas cadeiras encapotadas de musselina branca, para fingir mobília de luxo; aqueles dois consolos cobertos de crochê e guarnecidos por um par de bonecos de gesso colorido; aquela mesinha de centro, onde havia um candeeiro de querosene e ao lado deste um maço de cigarros Birds's eye!

Teobaldo, sem tirar o chapéu, considerava entristecido tudo isto, enquanto a dona da casa passava para uma alcova que havia ao lado da sala, deixando correr atrás de si uma cortina de lá vermelha.

— Que transformação, pensava. ele. — Que transformação.

E, a despeito de tudo, sua memória o transpunha ao passado reconstruindo os extintos aposentos da cortesã, outrora tão luxuosos, e nos quais ele tantas vezes viu palpitar de amor nos seus braços aquela mesma mulher, quando era moça. Então, a beleza de Leonília, a mocidade de ambos, o luxo que os cercava, punham-lhe no amor um lânguido reflexo de romantismo, um picante sabor orgíaco, um quer que seja, que agradava à vaidade dele e satisfazia em segredo ao temperamento dos dois. Então, atiravam-se um contra o outro, sem se envergonharem da sua loucura; bebiam pela mesma taça o vinho de sua mocidade, e os beijos estalavam entre seus lábios como o estribilho de uma canção de amor.

Oh! Mas a prostituição é contristadora, ainda mais quando precisa trocar a túnica de seda pelos andrajos da mísera; a prostituição é pavorosa quando não gira sobre diamantes e não tem a seu serviço a beleza e a mocidade.

— E quanto ela era bela dantes! Que partido não sabia tirar de todos os seus tesouros! Com que graça não se embriagava, mostrando o colo e deixando-se cair em gargalhadas nos braços dos seus amantes! E agora... Uma velhusca, muito gorda, o rosto coberto de rugas mal disfarçadas pelo alvaiade, os olhos cansados, os olhos descaídos, os dentes sem brilho, o cabelo reles, o hálito mau. Que diferença!

Quando Leonília tomou da alcova e viu Teobaldo já com a cabeça desafrontada, soltou um grito e voltou-se para o lado contrário, escondendo o rosto.

— Entrei, porque a reconheci... Disse ele, tirando dinheiro do bolso. Tome, e se quiser deixar esta vida, eu lhe darei o necessário para não morrer de fome.

Ela soluçava, sem descobrir os olhos.

— Então? Perguntou o ministro ao fim de algum silêncio, eu não vim aqui para a fazer chorar! Vamos, recolha este dinheiro e creia que não me esquecerei de sua pessoa. Adeus.

— Não, não! Disse afinal a cortesã, não preciso; prefiro nunca mais ter noticias suas! O senhor fez mal em entrar aqui! Devia fazer que não me reconhecia e ir seguindo o seu caminho! Vá, vá-se embora e nunca mais se lembre de mim!

— Se entrei, foi porque a minha consciência me obrigou a entrar. Cumpro um dever.

— Não! É muito tarde para isso. Vá-se embora! Deixe-me!

— Desejo ser-lhe útil naquilo que puder.

— Fez mal em entrar; eu não lhe merecia ainda mais esta maldade! Basta o muito que já sofri por sua causa, quando este corpo valia alguma coisa! O que o senhor acaba de fazer é uma profanação! Para que mexer nas sepulturas? Por que não me deixou apodrecer sossegada neste meu aviltamento, nesta antecâmara do hospital? O senhor foi o homem que eu mais amei e também o que eu mais odiei; agora já não, lhe tenho nenhuma dessas coisas; estamos quites; já não lhe devo nada, nem o senhor a mim; contudo preferia nunca mais lhe por a vista em cima! Vá embora! Vá.

— Mas, recolha ao menos esse dinheiro.

— Não, não quero; protestei que de suas mãos nunca mais aceitaria o menor obséquio!

— Lembre-se de que precisa.

— Deixe-me em paz! Não vê que a sua presença me faz mal? Não vê que fico neste estado?

E Leonília soluçava, não com a mesma graça dos outros tempos, mas com uma sinceridade que seria capaz de comover o diabo.

— Mas, filha, aceite, é um favor que me faz! Insistia o conselheiro.

— De suas mãos — Nada! O senhor é um homem mau! É um egoísta, é um fátuo! Prefiro morrer de fome, prefiro ir acabar em um hospital, mas deixe-me, deixe-me, por amor de Deus!

CAPÍTULO XXVII

Teobaldo abandonou a casa de Leonília e, depois de vagar ainda pelas ruas, recolheu-se mais aborrecido do que nunca.

Uma indomável necessidade de companhia, mas de companhia amiga e consoladora, o assoberbava a ponto de irritá-lo. Foi com o coração desconfortado e o espírito oprimido que ele atravessou as salas desertas de sua casa. Dir-se-ia que ali não morava viva alma; um silêncio quase completo parecia imobilizar o próprio ar que se respirava; os quadros, as estatuetas e as faianças nunca para ele haviam sido tão mudos, tão frios e tão imperturbáveis.

Meteu-se no gabinete, disposto a trabalhar qualquer coisa, para ver se conseguia distrair-se; mas aquela solidão tirava-lhe o gosto para tudo; aquela solidão o aterrava, porque o desgraçado já não podia, como dantes, fazer companhia a si mesmo; já não podia entreter-se a pensar em si horas e horas esquecidas, e também já não tinha ilusões, porque o principal objeto de suas ilusões era ele próprio, e ele estava desiludido a seu respeito.

Seu ideal era como um espelho, onde só a sua imagem se refletia; quebrado esse espelho, ele não tinha coragem de encarar os pedaços, porque em cada um via ainda, e só, a sua figura, mas tão reduzida e tão mesquinha que, em vez de lhe causar orgulho como outrora, causava-lhe agora terríveis dissabores.

Como a vida é horrível! Pensou ele; como tudo que ambicionamos nada vale, uma vez alcançado! Como eu me sinto farto e desprendido de tudo aquilo que até hoje me interessava e me comprazia! Afinal, do que serve existir? Para que viver? Que lucramos em atravessar estes longos anos que atravessei? Onde estão os meus gozos? As minhas regalias? Que espero fazer amanhã melhor do que fiz hoje? Que há em torno de mim que possa me dar um instante de ventura? Ah! Se eu não tivera sido tão mau! Tão mau para mim, pensando que o era para os outros!.

E ouviu bater três horas.

— Três horas da madrugada! E não trabalhei, nem li, nem fiz coisa alguma. E nem posso dormir, e tenho de suportar a mim mesmo, sabe Deus até quando! E sinto-me doente! A febre escalda-me o sangue!

Levantou-se do lugar onde estava e, cambaleando, fez algumas voltas pelo quarto.

— Oh! Este isolamento me aterra!

Pensou então na mulher: — Ela nessa ocasião dormia, com certeza...

Naquele momento daria tudo para a ter junto de si. Mas ele a queria, não como ela era ultimamente, porém, como dantes, quando o amava, quando vinha recebê-lo à porta da rua e não o abandonava senão quando ele tornava a sair de casa.

Assim é que a queria — Companheira, amiga, unida e inseparável.

— Ah! Se eu não tivesse me incompatibilizado com ela!... Se pudesse ir buscá-la, traze-la aqui para o meu gabinete, desfrutar a sua companhia, gozar o seu coração!... Oh! Mais tudo isto já não pode ser! Está tudo perdido! Ela continua a ver em mim um vaidoso, um fátuo, um homem ainda menor que o mais vulgar! Nunca mais poderei ser para Branca o que fui, o que ela me julgou na cegueira do seu primeiro amor!

E Teobaldo deixou-se cair de novo na cadeira, com o rosto escondido entre as mãos, a respiração convulsa, os olhos ardendo como se fossem duas chagas.

— Se eu não tivesse sido para ela o que fui, talvez, quem sabe? tivéssemos agora um filhinho?

Esta idéia lhe trouxe uma golfada de soluços. E, no seu desespero, ele via esse filho imaginário; esse ente que nunca existira e de quem ele tinha saudades, porque entre os vivos não encontrava um coração que o recebesse.

Chorou muito ainda, depois ergueu-se e saiu do gabinete.

Atravessou como um sonâmbulo os aposentos da casa, ate chegar ao corredor por onde se ia ao quarto de Branca.

A porta estava fechada.

— Se ela soubesse quanto eu sofro!... Ela, que é tão boa, tão compassiva e tão casta, talvez, tivesse compaixão de mim!...

Mas não se animou a bater. Havia tanto tempo que não se falavam senão em público!... Ele tantas vezes desdenhara dos seus carinhos; tantas vezes fingira não compreender as lágrimas dela!...

Abandonou de novo o corredor, na intenção firme de recolher-se à cama. Chamou o criado, pediu conhaque, bebeu, despiu-se e deitou-se. Não conseguiu dormir. Tocou de novo a campainha.

— Meu amo chamou?

— Sim. Vê roupa. Torno a sair.

— Mas V. Exa. parece incomodado; creio que faria melhor em...

— Vê roupa! Não ouves?!

E, quando o criado ia de novo a sair, depois de cumprida aquela ordem:

— Olha!

— Senhor!

— Chama o Caetano.

Era uma idéia que lhe acudira com vislumbres de inspiração.

— O Caetano... Repetiu o criado, saiba V. Exa. que o Caetano está de cama.

— De cama?... Que tem ele?

Amanheceu há quatro dias com muita febre e ainda não melhorou.

— Achava-se nesse estado, e nada me diziam! Canalha!

— Peço perdão, mas devo notar que o senhor conselheiro há muito tempo que não aparece a ninguém.

— Cala-te. Sou capaz de apostar que deixaram sozinho o pobre do velho!...

— Saiba V. Exa. que a Sra. D. Branca, que o tem ido ver muitas vezes todos os dias, deu ordem ao Sabino para não sair do lado dele.

— Bem. Previne ao Sabino que eu quero ir ver o Caetano.

O criado, surpreso com estas palavras, mas sem o dar a perceber, afastou-se  imediatamente; ao passo que o amo, vestindo-se às pressas e, contra o seu costume, em desalinho, abandonou ainda uma vez o gabinete e ganhou em direitura ao quarto do enfermo.

Não era, como ele próprio supunha na sua necessidade de fazer bem, o interesse pelo velho servo de seu avô e companheiro de seu pai o que o impelia àquele ato de piedade, mas simplesmente a urgência de falar com alguém que ainda o estimasse; alguém que lhe arrancasse o coração do lastimável estado em que se achava naquele instante.

Recebeu um logro. O pobre velho não dava mais acordo de si e só dizia palavras desnorteadas pelo delírio da febre.

— Não me reconheces, amigo velho? Perguntou-lhe o conselheiro, amparando-se-lhe das mãos hirtas e nodosas.

— Sim, Nho Miló? Meta a espora no cavalo, que os Saquaremas, embicando por este lado, hão de encontrar homem pela proa!

E os olhos do velho torciam-se nas órbitas com um aceso de cólera senil.

— Sonha com meu pai e com as revoluções de Minas!... Pensou Teobaldo entristecido. Ah! O Barão do Palmar foi ao menos um homem! É justo que este desgraçado lhe dedique os seus últimos pensamentos em vez de os dedicar a mim, que nem isto mereço. É justo! É justo!

E saiu dali para esconder o seu desespero contra aquele maldito velho, que, no delírio da morte, não achava uma palavra de consolação para lhe dar. Atravessou a chácara sem levantar a cabeça, o ar muito sombrio e pesado, os olhos fundos e cheios de sangue. Quando chegou à rua, estacou e pôs-se a olhar para as águas da baía que se douravam aos primeiros raios de sol. Pôs-se a andar pela praia, vagarosamente, quase que sem consciência do que fazia. E o dia, que apontava, um dia triste e cheio de névoas, um dia sem horizonte, como o próprio espírito de Teobaldo, ainda mais lhe agravava o mal-estar.

Ele sentia frio e dores por todo o corpo.

Caminhou assim durante uma hora; cabeça baixa, mãos nas algibeiras do sobretudo e uma secura enorme a lhe escaldar a garganta. Três vezes tentou fumar e de todas lançou fora o charuto, porque não podia suportar o cheiro do fumo. Afinal viu um carro de praça, chamou-o, meteu-se dentro dele e mandou tocar para a casa do Coruja. Todavia, depois mesmo de estar em caminho, hesitava em lá ir. O seu procedimento para com o pobre amigo não podia ser pior e mais ingrato do que fora, ultimamente.

Nada fizera do que lhe prometera; não lhe dera o tal emprego, nem mandara publicar a célebre história do Brasil.

— E havia tanto tempo que já não se viam!... Em que disposição estaria André a respeito dele?... Qual teria sido nessa ausência a sua vida, com uma família às costas e sem meios de ganhar dinheiro?... Quem sabe até se ele tivera estado doente?... Quem sabe se já não teria morrido?...

Davam sete horas quando Teobaldo entrava em casa do Coruja.

O aspecto do corredor, o silêncio que aí reinava, entristeceram-no, pondo-lhe  no coração um vago sentimento de remorso.

— Com um bocadinho de esforço, pensou a sua consciência, ter-se-ia restituído a esta pobre gente a primitiva felicidade!...

Foi Inês que veio recebê-lo, e, posto que surpresa com a visita, ela deixava transparecer no semblante as contrariedades de sua vida.

— Como está a senhora sua mãe? Perguntou Teobaldo.

— Mal, Sr. conselheiro; há mais de um mês que ela não faz outra coisa senão gemer. Está cada vez pior. Agora tudo lhe dói: são as pernas, os braços, a caixa do peito, as costas, o pescoço e a cabeça! Coitada, chega a fazer dó!

— E o André? Como vai?

— Não sei, não senhor, mas também não anda bom! Ultimamente quase que não dá uma palavra a pessoa alguma; entra da rua e sai de casa, sem tugir nem mugir; às vezes mete-se no quarto às seis da tarde e só dá sinal de si no dia seguinte.

— E como vão os negócios dele? Sabe?

— Sei cá! Se ele não fala com pessoa alguma! Não dá uma palavra!

— Tem trabalhado muito?

— Trabalhado?

— Pergunto se tem escrito.

— É natural; pelo menos leva um tempo infinito metido no quarto.

— Ele está aí?

— Está, sim, senhor; faz favor de entrar.

Teobaldo foi bater à porta do Coruja e ficou gelado defronte do ar frio que este o recebeu.

— Como vais tu? Disse.

André sacudiu os ombros e resmungou alguns sons que não lhe passaram da garganta.

— Que diabo tens hoje? Acho-te mudado.

— Nada.

— Não! Tens alguma coisa que te aflige!

— Aborrecimento. Entra. Já tomaste café?

— Ainda não, e quero, porque não me sinto bem.

— Estás doente? Nunca te vi tão amarelo e tão abatido.

— É! Efetivamente não tenho passado bem! Apoquentações... Agora mesmo creio que sinto febre! Não imaginas a vida que levo! Um martírio!

Coruja afastou-se para ir buscar café e o outro então o considerou melhor. O desgraçado estava muito mais acabado e mais feio: caía-lhe agora, todo o cabelo sobre os olhos, que se sumiam debaixo das pálpebras; a boca envergava-se para baixo em uma expressão constante de desgosto e ressentimento; as costas arqueavam-se-lhe como as de um patético, e o peito afundava-se-lhe cavernosamente, tornando-o mais encolhido, mais mesquinho e mais reles.

— Pois, meu amigo, confesso-te, disse Teobaldo, quando ele voltou com as xícaras, que te procurei, porque preciso de ti, como de pão para a boca. Preciso da tua companhia. Aqui onde me vês, sou uma vítima do isolamento e do tédio!

André não respondeu e foi assentar-se a um canto do quarto, sobre um caixão vazio.

— Ah! Meu bom Coruja, prosseguiu S. Exa., não calculas como ando! Um inferno! Sinto-me farto, inteiramente farto da vida! Sinto-me devastado! Preciso de ti! Quero-te ao meu lado! Venho buscar-te, e não volto para casa sem te levar comigo!

— Impossível! Respondeu o outro seca mente.

— Impossível?! Repetiu o ministro, fulminado por esta palavra. Como impossível?! Pois tu não queres vir comigo?

— Não posso.

— E por quê?

— Porque me sinto inutilizado! Já não presto para nada! Já não posso suportar a companhia de ninguém!

— Ora essa! Então tu também estás desgostoso?

— Mais do que podes supor. E peço-te que mudemos de assunto.

Fez-se um grande silêncio entre os dois; cada um fitava o seu ponto, sem ânimo de trocarem um olhar entre si.

Teobaldo perguntou afinal, erguendo-se:

— Não devo então contar contigo?

— Não, não posso ir. Desculpa-me.

— Está bom! Paciência!

E, depois de dar em silêncio uma volta pelo quarto, disse meio hesitante:

— É verdade! E a tua história do Brasil? Terminaste-a?

O Coruja, sem desviar os olhos do lugar em que estavam presos, apontou para um grande montão de papéis rotos, acumulados ao fundo do quarto.

— Que é isto? Interrogou o conselheiro.

— Desisti.

— Como assim?

— Abandonei por uma vez!

— Não concluíste o trabalho?

— Não.

— Mas foi loucura de tua parte.

Coruja sacudiu os ombros, indiferentemente, e pousou os cotovelos sobre os joelhos, ficando com as duas mãos abertas contra o queixo, sem dar mais uma palavra. Causava estranha e viva impressão aquela figura tétrica e sofredora, que parecia agora mergulhada nesse estado comatoso que às vezes acomete os loucos.

Embalde tentou o outro puxar por ele e, vendo o egoísta que, em vez de consolações, encontrara ali ainda maior desânimo que o seu, despediu-se e saiu arrastando até à casa a negra túnica das suas aflições.

— Até este! Pensava ele já na rua, até o Coruja me vira as costas! Só o público, essa besta insuportável e estúpida, só o público me abre os braços! E do que me serve o público, se não tenho a quem amar? Do que me serve o público, se vivo neste isolamento pior que tudo? Do que me servem admiradores, se não tenho amigos?

Durante o caminho, Teobaldo, justamente ao contrário do que sucedia com André, encontrou mil pessoas que corriam a saudá-lo, apertar-lhe a mão, que o abraçavam, que o felicitavam "mais uma vez" por tais e tais gloriosos feitos. Mas em todas essas fisionomias só viu e percebeu: — em umas, a adulação; em outras o fingimento; em outras a má vontade invejosa e sem ânimo para se patentear; e em nenhuma encontrou o que ele procurava com tamanho empenho, aquilo que ele dantes descobria em quantos o amavam e a quem afastou de si, para sempre; isto é, a dedicação, o desinteresse, a verdadeira amizade.

— Ah! Não valia a pena sacrificar àquela besta esse inestimável tesouro, que agora lhe fazia tanta falta!

E era tarde! O egoísta já não podia encontrar em torno de si senão a sombra de si mesmo. E todos que o idolatravam com tanto desinteresse e aos quais ele só respondeu com a ingratidão, perpassavam agora em torno de seu espírito como espetros de remorso que se erguiam para o fazer mais infeliz, mais inconsolável e mais revoltado contra o seu isolamento.

Ainda como o Coruja, ele desejava fugir do público e ao mesmo tempo sentia medo de meter-se em casa. A rua e o lar eram para ambos um tormento de gênero diverso, mas de iguais efeitos.

Foi, pois, completamente aniquilado, que ele chegou ao portão da sua chácara.

Um criado veio dizer-lhe logo, que o velho Caetano estava agonizante. Teobaldo apressou-se a ir ter com ele, apesar da prostração, em que se achava. O quarto do moribundo parecia agora ainda mais sombrio do que à noite. Um quarto estreito, enterrado no porão da casa, mas dignamente arranjado e limpo. Era tudo de uma simplicidade austera e pobre. Na parede via-se um retrato do Barão do Palmar, sobre o qual dependurava-se uma grinalda de rosas murchas, contrastando com uma espada enferrujada e um jogo de pistolas antigas, que guarneciam a parte inferior do quadro; por cima deste, em um intervalo talvez de dois palmos, havia ainda um pequeno crucifixo de metal branco.

Dir-se-ia que aquilo era a célula de algum fidalgo vitimado pela revolução. Ao fundo do quarto, sobre uma cama estreita e sem cortinas, destacava-se a longa figura de Caetano. Parecia agora muito mais comprido e mais magro; sentiam-se-lhe os ângulos do corpo por detrás do lençol.

O amo, se demora um pouco mais, já não o encontrava com vida. Assentou-se ao lado da cama e ajudou o moribundo a segurar uma vela de cera, que lhe haviam posto entre as mãos extensas e descarnadas. Entretanto, o velho agonizava, quase sem o menor movimento de corpo ou a menor contração de rosto. Era uma figura imóvel, hirta, com os membros duros, os olhos cravados no ar, fixos e já turvados pela morte.

O conselheiro debruçou-se sobre ele, disse-lhe em voz baixa algumas palavras de consolação, que não foram ouvidas, e afinal quando a morte chegou de todo, retirou-se para o seu gabinete, sem conseguir resolver em lágrimas o peso enorme que se lhe fora acumulando por dentro.
–––––––––
continua…final

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A. A. de Assis (Poeminhas à moda de haicais) Parte 1


01.
O haicai o que é?
Três passinhos de balé.
Leve, leve, leve.

02.
Repousa a lagoa.
Atira-lhe um beijo a Lua.
O poeta voa.

03.
Já não posso vê-la.
Some a gaivota no céu.
Foi virar estrela.

04.
Aguinha da bica.
Pousa o melro, beberica.
Louva a vida – canta.

05.
Florzinha caipira.
Até o girassol, tão nobre,
ao vê-la suspira.

06.
Pombinha no fio.
Horas e horas, de graça,
vigiando a praça.

07.
Lançada a semente,
tem sequência a permanente
criação do mundo.

08.
Se tivesse apoio,
quem sabe algum dia o joio
fosse pão também.

09.
A pombinha desce
numa imagem de Jesus.
Pousa a paz na luz.

10.
Mão de jardineiro.
Num leve toque de amor,
faz do esterco a flor.

11.
Beija o beija-flor.
Beija inteirinho o jardim.
Por ele e por mim.

12.
Tão miudinha a fonte.
E desce, e quanto mais desce,
mais serve e mais cresce.

13.
Velhinhos na grama
jogando conversa fora.
Também jogam dama.

14.
A pomba e a rolinha.
Uma é grande, outra é pequena.
Mas de paz é a cena.

15.
Cheirosa manhã.
Já de longe se adivinha.
Safra da maçã.

16.
Palmeiras solenes.
Guardais nas velhas cidades
saudades perenes.

17.
Ilhazinha branca.
A paineira na floresta
em traje de festa.

18.
Me desperta a neta:
– Olha, vô... é a do poeta.
Borboleta azul.

19.
Toda prosa e airosa,
brinca de vitória-régia
numa poça a rosa.

20.
Um ato de fé.
Lavrador, olhando o céu,
abana o café.

21.
No meu sonho vives.
Na pracinha um cavaquinho
trina o Autumn leaves.

22.
Um pingo... dois pingos...
não parou mais de pingar.
E se fez o mar.

23.
Acorda a esperança.
Nos quintais da vizinhança
dá a notícia o galo.

24.
Pari passu venho.
Paro. Com ternura abraço
o meu par e passo.

25.
Sujaram meu rio.
Ele, que lavava as gentes,
não lavou as mentes.

26.
Um pulo, medalha.
Milhões de cabeças boas
tão longe das loas.

27.
Livros à mão-cheia.
Saúde, alegria e pão.
Que revolução!

28.
Apress
a-se o mar.
No capricho, porque a noite
será de luar.

29.
Gostosa estação.
Teu beijo, fondue de queijo,
pipoca, pinhão.

30.
Cerração na serra.
Súbito some no espaço
o planeta Terra.

31.
La nieve en la noche.
Vino tinto, un viejo tango.
Sueño em Bariloche.

32.
O orvalho, na relva,
Nem nota que o rio enorme
vai rasgando a selva.

33.
A roda-gigante
roda, roda, roda, roda.
Me refaz infante.

34.
A Lua passeia
boêmia no cio e cheia.
Namorando o mar.

35.
Sempre assim supus.
Pirilampo ou vaga-lume,
tanto faz: é luz.

36.
Relampeja e... trooom!,
ronca forte a trovoada.
Estoura a boiada.

37.
A sibipiruna
seus fartos cachos derrama.
Deixa o asfalto em chama.

38.
Um pingo de chuva
brincando em cima da uva.
Rola e rega o chão.

39.
O tempo se foi.
Distante passa cantante
um carro de boi.

40.
Vento sobre o trigo.
Louro oceano ondulando.
O pão madurando.

41.
Levanta o avestruz
o pescoço. Periscópio
procurando luz.

42.
A semente grá-
vida leva a vida impá-
vida para a frente.

43.
Delicadas, belas,
rosas brancas, amarelas...
Que poeta é Deus!

44.
Cai, haicai, balão.
Traz o céu, o azul, a luz:
põe na minha mão.

45.
Desce o rio a serra.
Leva as lágrimas da terra
pra fazer o mar.

46.
Chocadeira elétrica.
Fornadas de pintainhos
sem colo, tadinhos.

47.
Quero-quero-quero.
A bem-querida aparece.
O amor acontece.

48.
Lua nova e meia.
Tão crescente, logo casa,
vira lua cheia.

49.
O boi e o arado.
Joga veneno o avião
por sobre o passado.

50.
Rude perobeira.
Dá-lhe a orquídea um leve toque
de namoradeira.

Fonte:
A. A. de Assis. Poeminhas (à moda de haicais). Marinha Grande/Portugal: Biblioteca Virtual "Cá Estamos Nós". Outubro de 2004

Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 1 – A Reforma da Natureza

Quando a guerra da Europa terminou, os ditadores, reis e presidentes cuidaram da discussão da paz. Reuniram-se num campo aberto, sob uma grande barraca de pano, porque já não havia cidades: todas haviam sido arrasadas pelos bombardeios aéreos. E puseram-se a discutir, mas por mais que discutissem não saía paz nenhuma. Parecia a continuação da guerra, com palavrões em vez de granadas e perdigotos em vez de balas de fuzil.

Foi então que o Rei Carol da Romênia se levantou e disse:

- Meus senhores, a paz não sai porque somos todos aqui representantes de países e cada um de nós puxa a brasa para a sua sardinha. Ora a brasa é uma só e as sardinhas são muitas. Ainda que discutamos durante um século, não haverá acordo possível. O meio de arrumarmos a situação é convidarmos para esta conferência alguns representantes da humanidade. Só essas criaturas poderão propor uma paz que satisfazendo a toda a humanidade também satisfaça aos povos, porque a humanidade é um todo do qual os povos são as partes. Ou melhor: a humanidade é uma laranja da qual os povos são os gomos.

Essas palavras profundamente sábias muito impressionaram àqueles homens. Mas onde encontrar criaturas que representassem a humanidade e não viessem com as mesquinharias das que só representam povos, isto é, gomos da humanidade?

O Rei Carol, depois de cochichar com o General de Gaulle, prosseguiu no seu discurso.

- Só conheço - disse ele - duas criaturas em condições de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas. A pequena república que elas governam sempre nadou na maior felicidade.

Mussolini, enciumado, levantou o queixo.

- Quem são essas maravilhas?

- Dona Benta e tia Nastácia - respondeu o Rei Coral - as duas respeitáveis matronas que governam o Sítio do Pica-pau Amarelo, lá na América do Sul. Proponho que a Conferência mande buscar as duas maravilhas para que nos ensinem o segredo de bem governar os povos.

- Muito bem! - aprovou o Duque de Windsor, que era o representante dos ingleses. - A Duquesa me leu a história desse maravilhoso pequeno país, um verdadeiro paraíso na terra, e também estou convencido de que unicamente por meio da sabedoria de Dona Benta e do bom-senso de tia Nastácia o mundo poderá ser consertado. No dia em que o nosso planeta ficar inteirinho como é o sítio, não só teremos paz eterna como a mais perfeita felicidade.

Os grandes ditadores e os outros chefes da Europa nada sabiam do sítio. Admiraram-se daquelas palavras e pediram informações. O Duque de Windsor começou a contar, desde o começo, as famosas brincadeiras de Narizinho, Pedrinho e Emília no Pica-pau Amarelo. O interesse foi tanto que pouco depois
todos aqueles homens estavam sentados no chão, em redor do Duque, ouvindo as histórias e lembrando-se com saudades do bom tempo em que haviam sido crianças e, em vez de matar gente com canhões e bombas, brincavam na maior alegria de "esconde-esconde" e " chicote-queimado."

Comoveram-se e aprovaram a proposta do Rei Carol.

Eis explicada a razão do convite a Dona Benta, tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa para irem representar a Humanidade e o Bom-Senso na Conferência da Paz de 1945.

Com grande naturalidade Dona Benta aceitou o convite e deliberou seguir com todo o seu pessoalzinho - menos a Emília. Emília recusou-se a partir porque estava com a idéia que lhe veio pela primeira vez quando ouviu a fábula do Reformador da Natureza. Fazia já meses que Dona Benta havia contado essa fábula assim:

O Reformador da Natureza Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de botar defeito em todas as coisas. O mundo para ele estava errado e a Natureza só fazia tolices.

- Tolices, Américo?

- Pois então?!... Aqui neste pomar você tem a prova disso. Lá está aquela jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas e mais adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas - punha as jabuticabas na aboboreira e as abóboras na jabuticabeira. Não acha que tenho razão?

E assim discorrendo Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

- Mas o melhor - concluiu - é não pensar nisso e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?

E Américo Pisca-Pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, inteirinho reformado pelas suas mãos. Que beleza!

De repente, porém, no melhor do sonho, plaf! uma jabuticaba cai do galho bem em cima do seu nariz.

Américo despertou de um pulo. Piscou, piscou. Meditou sobre o caso e afinal reconheceu que o mundo não estava tão mal feito como ele dizia. E lá se foi para casa, refletindo:

- Que espiga! ...     Pois não é que se o mundo tivesse sido reformado por mim a primeira vítima teria sido eu mesmo? Eu, Américo Pisca- Pisca, morto pela abóbora por mim posta em lugar da jabuticaba? Hum! ...     Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está que está tudo muito bom.

E Pisca-Pisca lá continuou a piscar pela vida em fora, mas desde então perdeu a cisma de corrigir a Natureza.

Ao ouvirem Dona Benta contar essa fábula todos concordaram com a moralidade, menos Emília.

- Sempre achei a Natureza errada - disse ela - e depois de ouvir a história do Américo Pisca-Pisca, acho-a mais errada ainda. Pois não é um erro fazer um sujeito pisca-piscar? Para que tanto "pisco"? Tudo que é demais está errado. E quanto mais eu "estudo a Natureza" mais vejo erros. Para que tanto beiço em tia Nastácia? Por que dois chifres na frente das vacas e nenhum atrás? Os inimigos atacam mais por trás do que pela frente. E é tudo assim. Erradíssimo. Eu, se fosse reformar o mundo, deixava tudo um encanto, e começava reformando essa fábula e esse Américo Pisca-Pisca.

A discussão foi longe naquele dia; todos se puseram contra a reforma, mas a teimosa criaturinha não cedeu. Berrou que tudo estava errado e que ela havia de reformar a Natureza.

- Quando, Marquesa? - perguntou ironicamente Narizinho.

– Da primeira vez em que me pilhar aqui sozinha.
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continua...

Folclore dos Estados Unidos (A Banshee dos Sertões)

A Banshee aparece com os cabelos esvoaçantes no alto do planalto, parece querer dizer algo, mas se alguém pergunta o que ela quer, ela grita e foge.

“O inferno, com suas chamas”, é assim que os sertões de Dakota sempre foram chamados. A nomenclatura  se encaixa no lugar. É um local onde antes era o fundo do mar, com suas camadas de barro moldadas pelas geadas e inundações em formas como pagodes, pirâmides e cidades geminadas. Cânions em forma de labirinto varridos pelo vento aparecem entre esses picos fantásticos, que são brilhantes na cor, mas sombrios, selvagens, e opressivos.  Cursos traiçoeiros sobre as colinas acasteladas, cascavéis se aquecem nas bordas das cratera que ficam acima de jazidas de carvão, e os homens selvagens estavam aqui, desesperados tentando se esconder contra o avanço da civilização.

A banshee (1) que aqui habita, pode ter sido alguma mulher branca vítima do ciúme de um pele vermelha e agora assombra a região da chapada chamada de “Watch Dog”, ou ela pode ter sido uma mulher índia que foi morta por lá. De qualquer forma,  há uma banshee no deserto cujos gritos têm congelado o sangue daqueles que não temeriam a visão de um urso ou uma pantera.  Ao luar, quando o cenário é mais sugestivo e sobrenatural, e os ruídos de lobos e corujas inspiram sentimentos desconfortáveis, o fantasma é visto em uma colina uma milha a sul de Watch Dog, os cabelos soprando ao vento, lançando os braços em gestos estranhos e desconexos.

Se o grupos de guerreiros,  emigrantes,  vaqueiros, caçadores, qualquer um que bem ou mal estiver passando por este lugar, acabar passar pelo chapadão assombrado durante a noite, as rochas são iluminados por flashes de fósforo e a banshee corre para cima delas.  Como se quisesse dizer, ou como se espera de uma pergunta que tenha ocorrido a ninguém a pedir, ela fica ao lado deles, em atitude de apelo, mas se perguntam o que ela quer ela arremessa os braços no ar e com um grito que ecoa através das ravinas amaldiçoadas por um quilômetro, ela desaparece e um instante depois se vê torcendo as mãos no topo da colina. Gado não pasta perto dessa colina assombrada e os vaqueiros mantém distância dela, pois até agora não foi dita a palavra que vai resolver o mistério da região ou acalmar a infeliz banshee.

A criatura às vezes tem um companheiro, às vezes, que é um esqueleto desencarnado que cambaleia sobre as cinzas e argila e assombra os acampamentos em busca de música. Se ele ouvir alguma melodia ele vai sentar-se à sua porta e fica acenando a cabeça para ela um tempo, se um violino é deixado ao seu alcance, é avidamente pego e será tocado até o meio da noite. A música é maravilhosa:  tão suave como a agitação do vento nas árvores,  mas tão dura como o grito de um lobo ou surpreendente como o agitar de uma cascavel. Quando o leste começa a clarear a música vai ficando fraca, e fica leve até que cessa completamente.  Mas quem a escuta não deve  seguir o violinista, porque o esqueleto se afasta, é vai levá-lo para uma  armadilha rochosa, de onde é impossível escapar, e a música vai te intoxicar, enlouquecer, e finalmente arrancar a alma de seu corpo.
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Nota:
(1) Um espírito feminino do folclore gaélico que se acredita, que ao uivar, está pressagiando a morte de alguém na família.  Origem do termo: gaélico irlandês bean sídhe, mulher das fadas; banshee: bean, mulher (do irlandês arcaico ben) + sídhe, fada (do irlandês arcaico síde)


Fonte:
Myths And Legends Of Our Own Land, Charles M. Skinner.
http://www.gutenberg.org/files/6615/6615-h/6615-h.htm#2H_4_0205
Texto em portugues, disponivel em http://www.casadecha.wordpress.com

Ciranda da Primavera (Parte 1)

ANGELA TUDISCO
Primavera de Angela


 Numa linda manhã de primavera,
 o céu estava azul, azul.
 O Sol brilhava como nunca,
 as borboletas pousavam nas flores
 e um arco-íris com as sete cores.

 Era tudo numa paisagem,
 tudo num só verde.

 Mas ainda bem que existe ela,
 a mais bela,
 a Primavera.

 É linda como uma rosa,
 bela como a margarida.
 Cheirosa e muito gostosa,
 que até parece infinita!

 O importante é cuidar,
 é preservar.

 Para mais tarde, tê-la como a vida.

 Angela Tudisco - 12 anos - São Paulo - SP
 essa poesia, eu fiz com 8 anos... foi a minha primeira!!!

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SIMONE BORBA PINHEIRO
Encantos da Primavera


 Hoje, acordei com meu amor me chamando,
 para ouvir os pássaros cantando e
 o sol alto convidando para
 dar as boas vindas à primavera.
 Primavera de alegrias,
 estampada em cada rosto sorridente
 que passa e diz: bom dia!
 Primavera de sonhos
 de amores até então escondidos
 na caixinha da timidez,
 e na magia da primavera se revelam,
 assim como a vontade de cantar,
 fazer planos, comprar roupas novas,
 redecorar a casa, ser feliz!
 Primavera de Vivaldi,
 convidando para dançar
 aos sons da natureza
 que elevam a alma
 num cântico de paz.
 Primavera de muitas flores
 desabrochando em todas as cores
 perfumando o ar, enfeitando a vida
 de muitos amores.
 È a estação mais linda do ano,
 é a primavera de flores,
 antes, sementes frágeis e perseverantes
 que romperam a rigidez do solo
 e a aridez do tempo para
 transformarem-se em lindas
 flores primaverís.
 È a primavera chegando,
 è a primavera à cantar!

ADELIA MATEUS
Chegando a Primavera


 Está chegando a primavera
 com seu manto colorido
 exalando o perfume no ar.

 A vida se torna mais alegre
 Os corações transbordam amor
 Em sonhos amorosos e coloridos.

 Ah! Primavera que me seduz...
 quando caminho pelos jardins
 feitos em aroma de felicidade.

 A natureza renasce em multicolores
 Nas lindas manhãs convidativas...
 a vida se transforma em novo sonho.

ALE OVIEDO
Primavera


 No quiero que mi vista pierda
 semejante paisaje que se abre a la tierra
 con verdes nacientes y luces de hechizos
 ...hoy vienes primavera regalando a mis años...
 tiernas pasiones en brotes mágicos.
 Añoro nutrir esta piel cautiva
 surcada por marcas que deja la vida
 tildando destellos con sabor a esperanza
 renaciendo sueños, borrando nostalgias.
 Sentimientos puros con colores nuevos
 me pide mi cuerpo atravesando el deseo
 de crear de la nada una historia latiente
 colmada de soles inmensos... perennes.
 No quiero que mi vista pierda
 la estampa vibrante de la primavera...

ANA MARIA BRASILIENSE
Primavera Chegando


 Com ela trazendo lembranças tuas.
 No amanhecer um convite...
 Sentir na brisa teu perfume.
 Caminho em campos floridos de lembranças,
 onde posso em cada flor sentir teu toque.
 No sol aquecendo meu corpo,
 sinto teu sorriso iluminando meu dia.
 No canto dos pássaros ouço teu sussurrar
 falando de amor...
 Sinto saudades de teus beijos
 quando vejo o colibri beijando a flor...
 Nesse perfumado campo florido,
 com as borboletas multicoloridas
 sinto saudades do colorido que davas aos meus dias...
 Solitária caminho entre flores,
 pássaros,borboletas e lembranças tuas.
 A primavera esta chegando
 e eu ainda
 TE AMO MEU AMOR

ANA MARIA ZACAGNINO
Primavera


 Primavera es Amor,
 Amor que abre las Flores
 y alumbra el corazón,
 del Ser que ama la Vida.
 Del Hombre que ama a Dios,
 llega cual golondrina,
 al nido que anheló.

 Eso es Primavera,
 Amar, Nacer, Amor,
 que palabra tan bella
 que Dios nos concedió.
 ¡Pues con una sonrisa,
 ya nace nuestro Amor!

ANNA MÜLLER
Minha Primavera


 A primavera a chegar me faz recordar,
 o colorido sorriso que deixastes;
 e nessas flores que estão a desabrochar,
 com tua saudade ainda me invades.

 Noutras primaveras só havia tristezas,
 de um cravo orgulhoso plantado a finco;
 pois tú, fostes dos cravos a pura beleza,
 que fazes crescer o calor que ainda sinto.

 Misturam-se brisa com aroma de flores,
 do orvalho ao jasmim, um sabor diferente,
 seus olhos saudosos se mostram em cores...

 E mesmo que ainda te sintas ausente,
 não quero plantar no jardim outros amores;
 apenas um cravo, que és tu, quero presente.

ANTONIO CÍCERO DA SILVA
Linda Primavera


 Como você é linda
 É a primavera
 No jardim da Bem Vinda
 Há flores lindas e belas.

 Na primavera
 Surgem as rosas e os cravos
 A natureza impera
 No sítio do Rosalvo.

 O ar fica cheiroso
 Faz bem para as narinas
 Tudo se torna formoso
 Paraíso das meninas.

 Linda primavera
 Com pétalas a abrir
 A coisa mais singela
 Que podemos assistir.

 Época de alegria
 Que transmite muita calma
 Nada disso existiria
 Se não houvesse a alma.

 Desabrocham lindas flores
 E cheirosas também
 De onde surgem os frutos
 E excelentes ares contêm.

ANTÓNIO ZUMAIA
Primavera


 Primavera é renascer…
 Vida, que é tal como a flor,
 o perfume de viver;
 Desabrochando em amor.

 Nos campos nasce a beleza,
 nos seus dias sempre iguais.
 Vamos esquecer a tristeza,
 Primavera é muito mais.

 É a vida de mil cores.
 Há alegria no ar.
 O homem sonha amores,
 na passarada a cantar.

 No meu jardim nasce a rosa,
 que te vou oferecer…
 Porque esta flor tão formosa,
 é minha razão de ser.

 É nesse ar que respiro,
 que eu sinto a Primavera.
 Por ela… sempre suspiro.
 Viver nela… quem me dera.

 Sines – Portugal

Fonte:
Seleção por Simone Borba Pinheiro. in http://www.familiaborbapinheiro.com

Machado de Assis (Pílades e Orestes)

Quintanilha engendrou Gonçalves. Tal era a impressão que davam os dois juntos, não que se parecessem. Ao contrário, Quintanilha tinha o rosto redondo, Gonçalves comprido, o primeiro era baixo e moreno, o segundo alto e claro, e a expressão total divergia inteiramente. Acresce que eram quase da mesma idade. A idéia da paternidade nascia das maneiras com que o primeiro tratava o segundo; um pai não se desfaria mais em carinhos, cautelas e pensamentos.

Tinham estudado juntos, morado juntos, e eram bacharéis do mesmo ano. Quintanilha não seguiu advocacia nem magistratura, meteu-se na política; mas, eleito deputado provincial em 187..., cumpriu o prazo da legislatura e abandonou a carreira. Herdara os bens de um tio, que lhe davam de renda cerca de trinta contos de réis. Veio para o seu Gonçalves, que advogava no Rio de Janeiro.

Posto que abastado, moço, amigo do seu único amigo, não se pode dizer que Quintanilha fosse inteiramente feliz, como vais ver. Ponho de lado o desgosto que lhe trouxe a herança com o ódio dos parentes; tal ódio foi que ele esteve prestes a abrir mão dela, e não o fez porque o amigo Gonçalves, que lhe dava idéias e conselhos, o convenceu de que semelhante ato seria rematada loucura.

- Que culpa tem você que merecesse mais a seu tio que os outros parentes? Não foi você que fez o testamento nem andou a bajular o defunto como os outros. Se ele deixou tudo a você, é que o achou melhor que eles; fique-se com a fortuna, que é a vontade do morto, e não seja tolo.

Quintanilha acabou concordando. Dos parentes alguns buscaram reconciliar-se com ele, mas o amigo mostrou-lhe a intenção recôndita dos tais, e Quintanilha não lhes abriu a porta. Um desses, ao vê-lo ligado com o antigo companheiro de estudos, bradava por toda a parte:

- Aí está, deixa os parentes para se meter com estranhos; há de ver o fim que leva.

Ao saber disto, Quintanilha correu a contá-lo a Gonçalves, indignado. Gonçalves sorriu, chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o ânimo; não valia a pena irritar-se por ditinhos.

- Uma só coisa desejo, continuou, é que nos separemos, para que se não diga...

- Que se não diga o quê? É boa! Tinha que ver, se eu passava a escolher as minhas amizades conforme o capricho de alguns peraltas sem-vergonha!

- Não fale assim, Quintanilha. Você é grosseiro com seus parentes.

- Parentes do diabo que os leve! Pois eu hei de viver com as pessoas que me forem designadas por meia dúzia de velhacos que o que querem é comer-me o dinheiro? Não, Gonçalves; tudo o que você quiser, menos isso. Quem escolhe os meus amigos sou eu, é o meu coração. Ou você está... está aborrecido de mim?

- Eu? Tinha graça.

- Pois então?

- Mas é...

- Não é tal!

A vida que viviam os dois, era a mais unida do mundo. Quintanilha acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com ele. Jantavam juntos, faziam alguma visita, passeavam ou acabavam a noite no teatro. Se Gonçalves tinha algum trabalho que fazer à noite, Quintanilha ia ajudá-lo como obrigação; dava busca aos textos de lei, marcava-os, copiava-os, carregava os livros. Gonçalves esquecia com facilidade, ora um recado, ora uma carta, sapatos, charutos, papéis. Quintanilha supria-lhe a memória. Às vezes, na rua do Ouvidor, vendo passar as moças, Gonçalves lembrava-se de uns autos que deixara no escritório. Quintanilha voava a buscá-los e tornava com eles, tão contente que não se podia saber se eram autos, se a sorte grande; procurava-o ansiosamente com os olhos, corria, sorria, morria de fadiga.

- São estes?

- São; deixa ver, são estes mesmos. Dá cá.

- Deixa, eu levo.

A princípio, Gonçalves suspirava:

- Que maçada que dei a você!

Quintanilha ria do suspiro com tão bom humor que o outro, para não o molestar, não se acusou de mais nada; concordou em receber os obséquios. Com o tempo, os obséquios ficaram sendo puro ofício. Gonçalves dizia ao outro: "Você hoje há de lembrar-me isto e aquilo." E o outro decorava as recomendações, ou escrevia-as, se eram muitas. Algumas dependiam de horas; era de ver como o bom Quintanilha suspirava aflito, à espera que chegasse tal ou tal hora para ter o gosto de lembrar os negócios ao amigo. E levava-lhe as cartas e papéis, ia buscar as respostas, procurar as pessoas, esperá-las na estrada de ferro, fazia viagens ao interior. De si mesmo descobria-lhe bons charutos, bons jantares, bons espetáculos. Gonçalves já não tinha liberdade de falar de um livro novo, ou somente caro, que não achasse um exemplar em casa.

- Você é um perdulário - dizia-lhe em tom repreensivo.

- Então gastar com letras e ciências é botar fora? É boa! - concluía o outro.

No fim do ano quis obrigá-lo a passar fora as férias. Gonçalves acabou aceitando, e o prazer que lhe deu com isto foi enorme. Subiram a Petrópolis. Na volta, serra abaixo, como falassem de pintura, Quintanilha advertiu que não tinham ainda uma tela com o retrato dos dois, e mandou fazê-la. Quando a levou ao amigo, este não pôde deixar de lhe dizer que não prestava para nada. Quintanilha ficou sem voz.

- É uma porcaria, insistiu Gonçalves.

- Pois o pintor disse-me...

- Você não entende de pintura, Quintanilha, e o pintor aproveitou a ocasião para meter a espiga. Pois isto é cara decente? Eu tenho este braço torto?

- Que ladrão!

- Não, ele não tem culpa, fez o seu negócio; você é que não tem o sentimento da arte, nem prática, e espichou-se redondamente. A intenção foi boa, creio...

- Sim, a intenção foi boa.

- E aposto que já pagou?

- Já.

Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou rindo. A vida tem muitas de tais pagas.

Demais, uma letra de Gonçalves que se venceu dali a dias e que este não pôde pagar, veio trazer ao espírito de Quintanilha uma diversão. Quase brigaram; a idéia de Gonçalves era reformar a letra; Quintanilha, que era o endossante, entendia não valer a pena pedir o favor por tão escassa quantia (um conto e quinhentos), ele emprestaria o valor da letra, e o outro que lhe pagasse quando pudesse. Gonçalves não consentiu e fez-se a reforma. Quando, ao fim dela, a situação se repetiu, o mais que este admitiu foi aceitar uma letra de Quintanilha, com o mesmo juro.

- Você não vê que me envergonha, Gonçalves? Pois eu hei de receber juro de você...?

- Ou recebe, ou não fazemos nada.

- Mas, meu querido...

Teve que concordar. A união dos dois era tal que uma senhora chamava-lhes os "casadinhos de fresco", e um letrado, “Pílades e Orestes”. Eles riam, naturalmente, mas o riso de Quintanilha trazia alguma coisa parecida com lágrimas: era, nos olhos, uma ternura úmida. Outra diferença é que o sentimento de Quintanilha tinha uma nota de entusiasmo, que absolutamente faltava ao de Gonçalves; mas, entusiasmo não se inventa. É claro que o segundo era mais capaz de inspirá-lo ao primeiro do que este a ele. Em verdade, Quintanilha era mui sensível a qualquer distinção; uma palavra, um olhar bastava a acender-lhe o cérebro. Uma pancadinha no ombro ou no ventre, com o fim de aprová-lo ou só acentuar a intimidade, era para derretê-lo de prazer. Contava o gesto e as circunstâncias durante dois e três dias.

A letra sacada contra Gonçalves tinha o prazo de seis meses. No dia do vencimento, não só não pensou em cobrá-la, mas resolveu ir jantar a algum arrabalde para não ver o amigo, se fosse convidado à reforma. Gonçalves destruiu todo esse plano; logo cedo, foi levar-lhe o dinheiro. O primeiro gesto de Quintanilha foi recusá-lo, dizendo-lhe que o guardasse, podia precisar dele; o devedor teimou em pagar e pagou.

Quintanilha acompanhava os atos de Gonçalves.

- Você por que não se casa? - perguntou-lhe um dia; um advogado precisa casar.

Gonçalves respondia rindo:

- Agora só me resta você.

Quintanilha um dia acordou com a idéia de fazer testamento. Sem revelar nada ao outro, nomeou-o testamenteiro e herdeiro universal.

- Guarde-me este papel, Gonçalves - disse-lhe entregando o testamento. – Sinto-me forte, mas a morte é fácil, e não quero confiar a qualquer pessoa as minhas últimas vontades.

Foi por esse tempo que sucedeu um caso que vou contar.

Quintanilha tinha uma prima-segunda, Camila, moça de vinte e dois anos, modesta, educada e bonita. Não era rica; o pai, João Bastos, era guarda-livros de uma casa de café. Haviam brigado por ocasião da herança; mas, Quintanilha foi ao enterro da mulher de João Bastos, e este ato de piedade novamente os ligou. João Bastos esqueceu facilmente alguns nomes crus que dissera do primo, chamou-lhe outros nomes doces, e pediu-lhe que fosse jantar com ele. Quintanilha foi e tornou a ir. Ouviu ao primo o elogio da finada mulher; numa ocasião em que Camila os deixou sós, João Bastos louvou as raras prendas da filha, que afirmava haver recebido integralmente a herança moral da mãe.

- Não direi isto nunca à pequena, nem você lhe diga nada. É modesta, e, se começarmos a elogiá-la, pode perder-se. Assim, por exemplo, nunca lhe direi que é tão bonita como foi a mãe, quando tinha a idade dela; pode ficar vaidosa. Mas a verdade é que é mais, não lhe parece? Tem ainda o talento de tocar piano, que a mãe não possuía.

Quando Camila voltou à sala de jantar, Quintanilha sentiu vontade de lhe descobrir tudo, conteve-se e piscou o olho ao primo. Quis ouvi-la ao piano; ela respondeu, cheia de melancolia:

- Ainda não, há apenas um mês que mamãe faleceu, deixe passar mais tempo. Demais, eu toco mal.

- Mal?

- Muito mal.

Quintanilha tornou a piscar o olho ao primo, e ponderou à moça que a prova de tocar bem ou mal só se dava ao piano. Quanto ao prazo do luto, lembrou uma composição elegíaca. Camila abanou a cabeça.

- Não, não, sempre é tocar piano; os vizinhos são capazes de inventar que eu toquei uma polca.

Quintanilha achou graça e riu. Depois concordou e esperou que os três meses fossem passados. Até lá, viu a prima algumas vezes, sendo as três últimas visitas mais próximas e longas. Enfim, pôde ouvi-la tocar piano, e gostou. O pai confessou que, ao princípio, não gostava muito daquelas músicas alemãs; com o tempo e o costume achou-lhes sabor. Chamava à filha "a minha alemãzinha", apelido que foi adotado por Quintanilha, apenas modificado para o plural: "a nossa alemãzinha". Pronomes possessivos dão intimidade; dentro em pouco, ela existia entre os três, - ou quatro, se contarmos Gonçalves, que ali foi apresentado pelo amigo. Mas fiquemos nos três...

Que ele é coisa já farejada por ti, leitor sagaz. Quintanilha acabou gostando da moça. Como não, se Camila tinha uns longos olhos mortais? Não é que os pousasse muita vez nele, e, se o fazia, era com tal ou qual constrangimento, a princípio, como as crianças que obedecem sem vontade às ordens do mestre ou do pai; mas pousava-os, e eles eram tais que, ainda sem intenção, feriam de morte. Também sorria com freqüência e falava com graça. Ao piano, e por mais aborrecida que tocasse, tocava bem. Em suma, Camila não faria obra de impulso próprio, sem ser por isso menos feiticeira. Quintanilha descobriu um dia de manhã que sonhara com ela a noite toda, e à noite que pensara nela todo o dia, e concluiu da descoberta que a amava e era amado. Tão tonto ficou que esteve prestes a imprimi-lo nas folhas públicas. Quando menos, quis dizê-lo ao amigo Gonçalves e correu ao escritório deste. A afeição de Quintanilha complicava-se de respeito e temor. Quase a abrir a boca, engoliu outra vez o segredo. Não ousou dizê-lo nesse dia nem no outro.

Antes dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha. Adiou a revelação por uma semana. Um dia foi jantar com o amigo, e, depois de muitas hesitações, disse-lhe tudo; amava a prima e era amado.

- Você aprova, Gonçalves?

Gonçalves empalideceu, - ou, pelo menos, ficou sério; nele a seriedade confundia-se com a palidez. Mas, não; verdadeiramente ficou pálido.

- Aprova? - repetiu Quintanilha.

Após alguns segundos, Gonçalves ia abrir a boca para responder, mas fechou-a de novo, e fitou os olhos "em ontem", como ele mesmo dizia de si, quando os estendia ao longe. Em vão Quintanilha teimou em saber o que era, o que pensava, se aquele amor era asneira.

- Não me pergunte nada; faça o que quiser.

- Gonçalves, que é isso? - perguntou Quintanilha, pegando-lhe nas mãos, assustado.

Gonçalves soltou um grande suspiro que, se tinha asas, ainda agora estará voando. Tal foi, sem esta forma paradoxal, a impressão de Quintanilha. O relógio da sala de jantar bateu oito horas, Gonçalves alegou que ia visitar um desembargador, e o outro despediu-se.

Na rua, Quintanilha parou atordoado. Entrara e falara, disposto a ouvir do outro um ou mais daqueles epítetos costumados e amigos, idiota, crédulo, paspalhão, e não ouviu nenhum. Ao contrário, havia nos gestos de Gonçalves alguma coisa que pegava com o respeito. Não se lembrava de nada, ao jantar, que pudesse tê-lo ofendido; foi só depois de lhe confiar o sentimento novo que trazia a respeito da prima que o amigo ficou acabrunhado.

- Mas, não pode ser - pensava ele. - O que é que Camila tem que não possa ser boa esposa?

Nisto gastou, parado, defronte da casa, mais de meia hora. Advertiu então que Gonçalves não saíra. Esperou mais meia hora, nada. Quis entrar outra vez, abraçá-lo, interrogá-lo... Não teve forças; enfiou pela rua fora, desesperado. Chegou à casa de João Bastos, e não viu Camila; tinha-se recolhido, constipada. Queria justamente contar-lhe tudo, e aqui é preciso explicar que ele ainda não se havia declarado à prima. Os olhares da moça não fugiam dos seus; era tudo, e podia não passar de faceirice. Mas o lance não podia ser melhor para clarear a situação. Contando o que se passara com o amigo, tinha o ensejo de lhe fazer saber que a amava e ia pedi-la ao pai. Era uma consolação no meio daquela agonia, o acaso negou-lha, e Quintanilha saiu da casa, pior do que entrara. Recolheu-se à sua.

Não dormiu antes das duas horas da manhã, e não foi para repouso, senão para agitação maior e nova. Sonhou que ia a atravessar uma ponte velha e longa, entre duas montanhas, e a meio caminho viu surgir debaixo um vulto e fincar os pés defronte dele. Era Gonçalves. "Infame, disse este com os olhos acesos, por que me vens tirar a noiva de meu coração, a mulher que eu amo e é minha?” Afinal o amigo ergueu os braços e estendeu-lhe as mãos com o gesto de maldição que ele vira nos melodramas, em dias de rapaz; logo depois, brotaram-lhe dos olhos duas imensas lágrimas, que encheram o vale de água, atirou-se abaixo e desapareceu. Quintanilha acordou sufocado.

A ilusão do pesadelo era tal que ele ainda levou as mãos à boca, para arrancar de lá o coração do amigo. Achou a língua somente, esfregou os olhos e sentou-se. Onde estava? Que era? E a ponte? E o Gonçalves? Voltou a si de todo, compreendeu e novamente se deitou, para outra insônia, menor que a primeira, é certo; veio a dormir às quatro horas.

De dia, rememorando toda a véspera, realidade e sonho, chegou à conclusão de que o amigo Gonçalves era seu rival, amava a prima dele, era talvez amado por ela... Sim, sim, podia ser. Quintanilha passou duas horas cruéis. Afinal pegou em si e foi ao escritório de Gonçalves, para saber tudo de uma vez; e, se fosse verdade, sim, se fosse verdade...

Gonçalves redigia umas razões de embargo. Interrompeu-as para fitá-lo um instante, erguer-se, abrir o armário de ferro, onde guardava os papéis graves, tirar de lá o testamento de Quintanilha, e entregá-lo ao testador.

- Que é isto?

- Você vai mudar de estado, não vai? - respondeu Gonçalves, sentando-se à mesa.

Quintanilha sentiu-lhe lágrimas na voz; assim lhe pareceu, ao menos. Pediu-lhe que guardasse o testamento; era o seu depositário natural. Instou muito; só lhe respondia o som áspero da pena correndo no papel.

- Entendo - disse Quintanilha subitamente, - ela será tua.

- Ela quem? - quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava, escada abaixo, como uma flecha, e ele continuou as suas razões de embargo.

Não se adivinha todo o resto; basta saber o final. Nem se adivinha nem se crê; mas a alma humana é capaz de esforços grandes, no bem como no mal. Quintanilha fez outro testamento, legando tudo à prima, com a condição de desposar o amigo. Camila não aceitou o testamento, mas ficou tão contente, quando o primo lhe falou das lágrimas de Gonçalves, que aceitou Gonçalves e as lágrimas. Então Quintanilha não achou melhor remédio que fazer terceiro testamento legando tudo ao amigo.

O final da história foi dito em latim. Quintanilha serviu de testemunha ao noivo, e de padrinho aos dois primeiros filhos.

Um dia em que, levando doces para os afilhados, atravessava a Praça Quinze de Novembro, recebeu uma bala revoltosa (1893) que o matou quase instantaneamente. Está enterrado no cemitério de S. João Batista; a sepulbeu uma bala revoltosa (1893) que o matou quase instantaneamente. Está enterrado no cemitério de S. João Batista; a sepultura é simples, a pedra tem um epitáfio que termina com esta pia frase: "Orai por ele!"

É também o fecho da minha história. Orestes vive ainda, sem os remorsos do modelo grego. Pílades é agora o personagem mudo de Sófocles. Orai por ele!

 Fonte:
Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 45

CAPÍTULO XXIV

Teobaldo, durante o pouco tempo em que esteve no ministério, granjeou as simpatias de toda a nação. Parecia ser querido e apreciado desde pelo seu monarca, até pelos últimos serventes de secretaria; os empregados das repartições sujeitas ao seu mando
adoravam-no.

A todos conquistara ele com aquela proverbial afabilidade e com aquela sua irresistível sedução de maneiras; os velhos chamavam-lhe colega na prudência e na reflexão; os moços no entusiasmo e no modernismo das ideias; a uns e outros cegara o seu inestimável talento de adoção, que era toda a sua força e a sua principal arma de conquista. Sem fazer nada, parecia fazer tudo, porque nas câmaras a sua palavra era sempre a mais destacável entre os colegas.

Além de que, afetava uma grande atividade espetaculosa; não havia inauguração de estrada de ferro, ou de qualquer fábrica industrial ou coisa deste gênero, que ele não acompanhasse de corpo presente, fingindo ligar a isso grande atenção e derramando-se em longos discursos talhados ao sabor do auditório que encontrava.

E ainda uma circunstância, independente de sua vontade, veio completar o prestígio dele e solidificar a simpatia que o público lhe dedicava, acrescentando-lhe à fama, já não pequena, uma glória que lhe faltava ainda e que, pela raridade, seria talvez a melhor e mais desejada — A glória de ser um ministro notoriamente honrado. Até aí era aclamado como bom patriota, ministro de talento progressista e ativo; de então em diante ficou tendo, além de tudo isso, o prestígio de homem de bem.

Foi o caso que um inglês, representante de certa companhia, desejava obter do governo concessão para uma empresa, da qual Teobaldo fruiria lucros de sócio, ou quando não, uma recompensa de trezentos contos de réis.  Depois de várias negadas de parte a parte, o ministro convidou o inglês e mais outros interessados no negócio para um pequeno jantar em sua casa.

Antes da sobremesa quase ou nada se conversou a respeito do único assunto que os reuniu ali; apenas alguma frase destacada fazia desconfiar que entre eles havia qualquer intenção escondida; mas, quando Branca, que presidia ao jantar, erguera-se da sua cadeira, pedindo licença para deixá-los em liberdade, o inglês entrou abertamente na questão e declarou que estava disposto a não se separar de Teobaldo sem levar consigo uma resposta definitiva.

— O Sr. ministro, concluiu ele na sua meia língua, se proteger o negócio só pode com isso fazer bem, tanto a si como aos outros.

Teobaldo lembrou que ia expor o seu nome; talvez desmoralizar-se para sempre.

— Sim, talvez, volveu o inglês, mas com certeza V. Exa. fica com a vida segura e garantida. Além de que, semelhante particularidade jamais cairá no domínio público! Oh! A política do Brasil está cheia de exemplos muito mais escandalosos, e não me consta que nenhum dos seus autores ficasse desmoralizado; ao contrário criam novo e maior prestígio quando enriquecem!

Afinal, Teobaldo prometeu dar no dia seguinte uma decisão. O inglês que o procurasse na secretaria à hora da audiência.

E, ao despedir-se, acrescentou no ouvido do pretendente:

— Vá descansado, que tudo se há de arranjar pelo modo mais conveniente a todos nós.

Logo, porém que as visitas saíram, Branca apareceu na porta do seu quarto.

— Ouvi, disse ela, toda a conversa que tiveram depois que eu me levantei da mesa.

— Ah! Ouviu?

— Ou, melhor, escutei; escutei por detrás daquela cortina.

— E então?

— Então, é que amanhã o senhor dirá a esse especulador que não se acha disposto a mercadejar com a sua posição. Dir-lhe-á que não é ministro para proteger velhacadas, mediante uma gratificação de dinheiro, e que, se ele insistir nos seus planos, o senhor o denunciará perante a nação...

Teobaldo posto estivesse já habituado ao gênio seco e orgulhoso da mulher, estranhou-a mais ainda desta vez e tentou justificar-se aos olhos dela.

— Convença-se, disse-lhe ele, de que a senhora ouviu mal ou não compreendeu o que ouviu.

— Mal ou bem ouvido, juro que, se o senhor não fizer o que acabo de ordenar, terá em mim o mais terrível de seus inimigos.

— Mas não posso compreender esta solicitude por mim, à última hora...

— Engana-se: não é de sua pessoa que se trata, mas de seu nome, que desgraçadamente também é o meu. Não quero ser a esposa de um traficante!

— Faz muito bem.

— Isto quanto ao lado moral, porque pelo lado prático acho que o senhor faz um mau negócio. Que poderá aproveitar uma soma tão desonestamente adquirida? Do que lhe servirão esses miseráveis contos de réis senão para fazer a mortalha com que o senhor cairá na vala comum dos patoleiros? O senhor, que já é ministro nulo, quer ser agora um político desmoralizado? Ou quem sabe se o senhor teve a pretensão de acreditar um instante que com o seu suposto talento havia de escapar ao anátema dos homens de bem?... Se o senhor não arranjar prestígio pelo lado do caráter, por quê lado então conta arranjá-lo? Acaso fez o senhor alguma coisa tão grande, tão útil, tão genial, que com ela possa esconder as falhas da sua honra? Esquece-se porventura, de que neste fato casual da sua entrada para o ministério foi o senhor o único afortunado? Esquece-se de que o chamaram, não porque o senhor fora singularmente necessário, mas sim porque era o mais à mão entre todos aqueles de quem podiam dispor?

— Pois bem! E daí? Perguntou Teobaldo, ardendo de impaciência.

— Daí, continuou Branca, sem se alterar, é que o senhor faria mau negócio cedendo a troco de dinheiro esta boa ocasião, boa e única, que a fortuna lhe proporciona para se distinguir de qualquer modo entre seus colegas.

— Distinguir-me?

— Sim, na qualidade de homem verdadeiramente honrado. Acho que o senhor, mesmo por interesse prático, não deve inutilizar os meios de que dispõe agora como ministro para por em relevo as suas qualidades morais; qualidades que ficariam eternamente ignoradas, se o senhor não estivesse no poder.

Teobaldo pôs-se a meditar.

A esposa disse ainda:

— E é semelhante homem, que se julga ambicioso; um homem capaz de vender-se a um especulador vulgar! Um homem que não percebe que seu nome amanhã seria muito maior e respeitado, quando dissessem que um ministro preferiu continuar pobre a ter de transigir com os princípios da sua honra!

Teobaldo ergueu a cabeça, olhou por algum tempo a esposa e, estendendo-lhe a mão, disse:

— Obrigado.

— Não tem que me agradecer, respondeu ela; já lhe expliquei que não é pelo senhor que levanto esta luta, é por mim mesma; não quero, ser esposa de um traficante! E, agora, é despachar o cavalheiro de indústria, e ter de hoje em diante um pouco mais de escrúpulos nos seus atos e em suas palavras!

Teobaldo não se contentou com repelir energicamente a proposta do inglês, mas explorou o fato quanto pode, metendo-o logo em circulação pela imprensa e transformando-o no melhor ornamento das suas glórias políticas.

Daí há poucos meses, não tinha já a seu cargo a pasta da Agricultura, mas seu nome era apontado na lista tríplice para a primeira eleição de senador.

CAPÍTULO XXV

Que mais podia desejar?

Aos quarenta e tantos anos havia já percorrido a enorme gama das classes sociais e experimentado, uma por urna, toda a impressão capaz de fazer vibrar o coração humano. Desde os seus primeiros tempos de colégio até aquela elevada posição a que chegara, sua vida fora uma série de conquistas fáceis, uma interminável cadeia de bons acasos.

Mas agora justamente que mais nada lhe faltava a conquistar; agora que ele, dispondo ainda de uns restos de mocidade para ser amado como homem, era já celebrizado como medalhão; agora que ele possuía tudo; agora que todas as classes do seu país haviam já lhe tributado a melhor parte do seu entusiasmo; agora é que ele se sentia menos satisfeito, porque, à medida que se alargavam os horizontes da sua ambição tanto mais a consciência da sua mediocridade o estreitava em um terrível círculo de inconsoláveis desgostos.

Pouco a pouco foi-se tornando invejoso. Afinal já não podia ouvir falar dos homens verdadeiramente grandes, sem ficar com o coração apertado por um punho de ferro que o estrangulava. As grandes e legitimas reputações, os nomes universais, fossem de artistas, de poetas, de descobridores, de filósofos ou de guerreiros, o irritavam acerbamente e enchiam-no de um ódio surdo, inconfessável e assassino.

Principalmente ao voltar dos seus relativos triunfos, quando no círculo mesquinho das suas glórias ouvia o próprio nome aclamado e coberto de ovações, é que mais desabrida lhe roncavam por dentro a dor da inveja e a consciência da sua incapacidade.

— Oh antes nunca chegasse a ser nada, nem tivesse pensado em ser alguma coisa!

Ser tão pouco, quando tanto se ambiciona; ambicionar tanto e ter certeza de nunca ir além da própria pequenez, é muito mais doloroso, é muito mais cruel do que ficar eternamente sucumbido ao peso da primeira desilusão! Era isto que agora o fazia mau de todo; era isto o que agora o tornava infeliz, desconsolado e triste.

Nunca houvera penetrado dentro de si mesmo e, quando, graças à franqueza da esposa, o fizera pela primeira vez, achou-se tão vazio e tão ridículo aos próprios olhos, achou-se tão de gesso, que sentiu ímpetos de reduzir-se a pó. E, com o correr de mais algum tempo e com a percepção da sua inferioridade, veio-lhe o tédio, o desprezo próprio, a grande moléstia dos que sobem na convicção e sem causa; veio-lhe o desfalecimento dos que vencem sem ter lutado, dos que olham para trás e não encontram no passado sequer uma boa recordação, à sombra da qual repousem o espírito fatigado e o coração desiludido; veio-lhe o fastio e o cansaço dos que nunca amaram, dos que nunca sofreram nem se sacrificaram por ninguém; veio-lhe enfim o desespero dos egoístas, o desespero dos que se vêem isolados no meio do público que os aclama vitoriosos, mas que, está pronto a virar-lhes as costas logo que o menor interesse particular chama a sua atenção para outro lado.

E, da mesma forma que o Coruja sentia-se cansado de ser tão bom, tão dos outros e precisava cometer uma ação má para repousar; assim Teobaldo, reconhecendo o seu egoísmo e a sua indiferença pelos que o amaram, desejou pela primeira vez em sua vida praticar o bem.

Mas, se àquele era impossível cometer uma ação má, a este não seria mais fácil praticar um rasgo de abnegação e de heroísmo.

Os extremos encontraram-se de novo; as duas criaturas, que o isolamento unira no colégio, fugiam agora dos homens, homens tão caprichosos, tão ruins e tão pequenos como os seus condiscípulos de outrora. E, ainda como o Coruja, Teobaldo pensou na morte, não como ele por não conseguir abominar seus semelhantes, mas por não conseguir amá-los. E fez-se cada vez mais sombrio, mais concentrado e mais doente.

Agora passava horas e horas esquecidas no seu gabinete, sozinho, fechado por dentro, a cismar; ou enterrado sombriamente no fundo de uma poltrona, ou passeando de um lado para outro, com as mãos nas algibeiras e os olhos postos no chão. E a sua figura, ainda elegante e altiva, mas prematuramente envelhecida e gasta, havia de impressionar a quem o surpreendera pelas horas silenciosas da madrugada nessas profundas meditações.

— Afinal que fiz eu?... Interrogava ele a si mesmo em um desses momentos; sim, qual foi a minha obra?... Qualquer homem, por mais pequeno, por mais obscuro, tem sempre um ideal na sua vida: uns dedicam-se à família, e cada filho é um poema, bom ou mau que eles deixam à pátria; outros trabalham para enriquecer, e depois da morte, ainda são lembrados pelos seus herdeiros; outros nos legam um livro de suas memórias, ou uma casa comercial, ou uma empresa que criaram, ou uma idéia a que se sacrificaram por toda a vida! Todos deixam alguma coisa atrás de si: um nome ou uma recordação, só eu não deixarei nada, por que todo o meu ideal durante a minha vida inteira fui eu próprio! Nunca fiz nada aos outros; nunca amei pessoa alguma que não fosse eu mesmo. E, de tudo que apresentei durante a vida como produto do meu esforço, e de tudo que me engendrou este nome transitório que possuo, nada foi obra minha Eu nada fiz!

Depois pensou nos entes que mais o estremeceram e, defronte da memória de cada um, seu coração sentiu-se envergonhado e arrependido. E, dai em diante, quem o visse, apesar de tão profundamente abatido pelos seus padecimentos morais, ainda assim não podia calcular os desgostos que iam por aquela pobre alma.

A sua larga fronte, já despojada de cabelos até ao meio do crânio, raiara-se de longas rugas paralelas, como um horizonte no crepúsculo que se enfaixa de nuvens sombrias; seus grandes olhos, dantes tão insinuativos e lisonjeiros, amorteciam agora em uma profunda expressão de mágoa sem esperanças de consolo; seus lábios pareciam cansados de tanto sorrir vara todo o mundo e como já não tinham forças para fingir, quedavam-se em uma imobilidade cheio de tédio e desdém; e todo o seu aspecto, ao contrário do que fora, servia agora muito mais para fazer pena do que para seduzir.

E daí principiaram todos a notar a sua ausência nos lugares em que ele era dantes mais freqüente; afinal já nunca o encontravam em parte alguma onde houvesse um pouco de alegria ou um pouco de prazer; agora o riso lhe fazia mal, ao passo que ao cair da tarde viam no sempre nos arrabaldes mais solitários, passeando a pé, vagarosamente; as mãos cruzadas atrás, a cabeça baixa, o ar todo preocupado como de um mísero pai de família que vai sentindo faltar-lhe a vida e treme defronte da morte, não por si, mas pelos entes que lhe são caros e que aí ficam no mundo abandonados.

Todavia era justamente o inverso o que se dava com Teobaldo; sucumbia à falta da família; sucumbia à falta de afeições sinceras e à falta de carinhos legítimos. E quanto mais, com o correr do tempo, a falta de tudo isto lhe apertava o coração e lhe ensombrava os dias, tanto mais insuportáveis se lhe faziam as tredas amizades da rua, as falsas relações políticas, os frívolos protestos dos seus admiradores e o palavreado venal daqueles que mendigavam a sua proteção.
–––––––––––––
continua…

´Vocabulário de termos e expressões regionais e populares do Centro Oeste (Mato Grosso e Goiás) A e B

ABISCOITAR — Receber dinheiro, herdar, apropriar-se de…

ACAUÃ — Ave inimiga das cobras, tida como agourenta.

ACEIRO — Terreno debastado ao redor dos postes de cerca a fim de evitar que o fogo os queime.

ACERAR — Vedar o pasto com a capina em torno.

ACERO — Capina ao redor do pasto, ou da roça, para vedar a passagem do fogo.

ADJITÓRIO (corruptela) — Adjutório, auxílio.

AFOGADO — Refogado (expressão culinária).

AGACHAR-SE — Rebaixar–se, humilhar-se. Viver agachado: hábito de servilismo.

AGRAVAR — Ofender, desagradar. "Não gosto de agravar ninguém".

ÁGUAS — Tempo das águas: tempo das chuvas.

ANEIXAR, ANEIXO (popular) — Anexar, anexo.

ANIMAL — Equino ou muar.

APÁ — Pá. Dizem: "o apá".

ARAPUÁ — Abelha mansa, de cor preta, que faz colmeia no oco das árvores.

AROEIRA — Madeira de construção, muito usada no Brasil antigo, pesada e incorruptível. As casas antigas não usavam cantos de tijolos ou adobes e sim esteios de aroeira.
Diz-se que a casa começa pelos alicerces, mas antigamente e ainda hoje no sertão, faz-se a armação da casa toda de aroeira, cobre-se-a, depois é que se fazem as paredes. Em Mineiros, cidade do sudoeste goiano, a primeira casa construída sem esteios e de cantos de tijolos, fêz muita gente ficar com receio de entrar.

ARREADO — Incivil, grosseiro, ignorante. "Indivíduo arreado".

ARREPARAR (corrupt.) — Reparar.

ARRIBABA — Desgarrada do rebanho; desguaritada.

ARTIFÍCIO — O conjunto do aparelho de tirar fogo: binga, pedra e fuzil.

ASSUCEDER — Acontecer, acontecido.

ASSUNGAR — O mesmo que sungar, levantar. "Sungar os braços…"

ASSUNTAR — Pôr sentido em uma conversa; refletir.

AULA — Escola.

AVEXAR — Apertar. Estou avexado pra ir embora.

AZAGAIA — Arma de caçar onça, como uma forca. O caçador entra na grota com um facho aceso de canela-de-ema que, além de clarear, protege-o, pois onça não gosta de fogo: perturba-a e mete-lhe a azagaia no pescoço, espetando-a.

AZANGAR — Estragar-se; deteriorar-se.

B

BACURI — Palmeira de fruto oval de mais de dez centímetros; produz fibras que servem para a calafetação; o caule produz boa madeira e com as folhas cobrem-se os ranchos.

BADULACOS — Utensílios pobres de casa.

BAFUME — Abafamento, aflição, opressão do peito.

BAGERÊ — Parte superior e estéril do cascalho aurífero ou diamantífero.

BAGUÁ — Baguá é pessoa arredia, de pouco trato; potro ou outro animal recém-domado, meio arisco ainda.

BAIXEIRO — Saco de aniagem que vai no lombo do animal, ao arreá-lo.

BALANGAR — Balançar.

BAMBURRAR — Quando o garimpeiro encontra o que procura: uma gema compensadora.

BANDA — Lado; de banda; de lado.

BANDEIRA — Monte de milho na roça.

BANGÜÊ — Defunto enrolado em um cobertor e amarrado num pau roliço, conduzido em ombros dos companheiros.

BARBEIRAR, BARBEIRO — Inexperiente; agir sem o necessário conhecimento.

BARRADÃO, BARRADO — Bulcão; grossas nuvens de chuva, no horizonte.

BERÊM — Mingau sólido de maizena com leite e açúcar.

BESTUNTO — Burrice; cabeça oca; falta de reflexão.

BEBA — Pequena lagartixa de cor acastanhada, pele lisa e brilhante, mui vivaz, que se aninha em fendas de esteios.

BILRO — Peça para fiar renda; consta de um coco macaúba ou tucum espetado num palito, que vem a ser a agulha. As mulheres rendeiras manejam vários bilros, ao mesmo tempo.

BINGA — Isqueiro, "cornim-boque", parte do "artifício" em que se coloca a isca.

BISCOITO DE GOMA — É o biscoito de polvilho paulista ou a pipoca mineira.

BITELO — Grande; enorme.

BOCAINA — Passagem estreita e funda entre duas serras.

BOIOTA (ó) — Tolo, imbecil.

BOQUEIRÃO — Passagem entre barrancos altos, ou em corte na mata.

BOTINA TESTA-DE-TOURO — Botina ringideira, mateira; de elástico e sempre amarela.

BRAÇA — Medida de 2,20 m..

BRIQUITAR — Labutar; teimar em um labor. "Estou briquitando para ver se acerto".

BROCHA — Tira de couro cru que une as pontas dos caízis, por baixo da barbela do boi.

BUCHA PAULISTA — Pelota de bucha que serve para separar a pólvora do chumbo no carregamento das armas de fogo

BUGRADA — Ação própria de bugre; selvageria.

BUGRE — índio, tapuia, selvagem.

BURITI — O buriti é uma palmeira linda, abundantíssima nos altiplanos do Brasil Central.

Fonte:
Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. . Ed. Literat. 1962

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Pablo Neruda)

nascimento do poeta em 12.7.1904

Li seus Poemas e a Canção Desesperada,
há quantos anos, quando enfrentei a paixão
que invadiu minh´alma e não fiz quase nada,
porque não contrariei a voz do coração...

E fui andando... andando e a vida abandonada,
às vezes me deixou na dor da solidão,
pensando na mulher que fora minha amada
e que só me causou uma desilusão...

Quem pôde cantar, ainda sendo moço,
em plena juventude os cânticos de amor
que senti produzir o maior alvoroço

no peito varonil onde o sonho não muda?!
O Poeta Genial, de saudades e dor
produzindo poesia... O irmão Pablo Neruda !

Fonte:
O Autor

Pedro Bial (Morrer é ridículo)

A morte, por si só, é uma piada pronta.

Você combinou de jantar com a namorada, está em pleno tratamento dentário, tem planos pra semana que vem, precisa autenticar um documento em cartório, colocar gasolina no carro e no meio da tarde morre.

Como assim? E os e-mails que você ainda não abriu, o livro que ficou pela metade, o telefonema que você prometeu dar à tardinha para um cliente?

Não sei de onde tiraram esta ideia: MORRER!!!

A troco?

Você passou mais de 10 anos da sua vida dentro de um colégio estudando fórmulas químicas que não serviriam pra nada, mas se manteve lá, fez as provas, foi em frente. Praticou muita educação física, quase perdeu o fôlego, mas não desistiu. Passou madrugadas sem dormir para estudar pro vestibular mesmo sem ter certeza do que gostaria de fazer da vida, cheio de dúvidas quanto à profissão escolhida, mas era hora de decidir, então decidiu, e mais uma vez foi em frente...

De uma hora pra outra, tudo isso termina numa colisão na freeway, numa artéria entupida, num disparo feito por um delinquente que gostou do seu tênis.

Qual é?

Morrer é um chiste.

Obriga você a sair no melhor da festa sem se despedir de ninguém, sem ter dançado com a garota mais linda, sem ter tido tempo de ouvir outra vez sua música preferida.

Você deixou em casa suas camisas penduradas nos cabides, sua toalha úmida no varal, e penduradas também algumas contas.

Os outros vão ser obrigados a arrumar suas tralhas, a mexer nas suas gavetas, a apagar as pistas que você deixou durante uma vida inteira.

Logo você, que sempre dizia: das minhas coisas cuido eu.

Que pegadinha macabra: você sai sem tomar café e talvez não almoce, caminha por uma rua e talvez não chegue na próxima esquina, começa a falar e talvez não conclua o que pretende dizer.

Não faz exames médicos, fuma dois maços por dia, bebe de tudo, curte costelas gordas e mulheres magras e morre num sábado de manhã!

Isso é para ser levado a sério? Tendo mais de cem anos de idade, vá lá, o sono eterno pode ser bem-vindo. Já não há mesmo muito a fazer, o corpo não acompanha a mente, e a mente também já rateia, sem falar que há quase nada guardado nas gavetas.

Ok, hora de descansar em paz.

Mas antes de viver tudo? Morrer cedo é uma transgressão, desfaz a ordem natural das coisas. Morrer é um exagero.

E, como se sabe, o exagero é a matéria-prima das piadas. Só que esta não tem graça.

Por isso viva tudo que há para viver.

Não se apegue as coisas pequenas e inúteis da Vida... Perdoe... Sempre!!!

Adiar... Adiar... Adiar... será sempre o melhor dos caminhos?

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : O Nariz Perante os Poetas)

Cantem outros os olhos, os cabelos
E mil cousas gentis
Das belas suas: eu de minha amada
Cantar quero o nariz.

Não sei que fado mísero e mesquinho
É este do nariz,
Que poeta nenhum em prosa ou verso
Cantá-lo jamais quis.

Os dentes são pérolas,
Os lábios rubis,
As tranças lustrosas
São laços sutis
Que prendem, que enleiam
Amante feliz;
É colo de garça
A nívea cerviz;
Porém ninguém diz
O que é o nariz.

(As faces são tintas
De rosa e de liz,
Ou já têm de jambo
Mimoso matiz;
São cor de safira
Os olhos gentis
E a cor do nariz
Ninguém vo-la diz.)ii

Beija-se os cabelos,
E os olhos belos,
E a boca mimosa,
E a face de rosa
De fresco matiz;
E nem um só beijo
Fica de sobejo
P’ro pobre nariz;
Ai! pobre nariz,
És bem infeliz!

Entretanto, — notai a sem-razão
Do mundo, injusto e vão: —
Entretanto o nariz é do semblante
O ponto culminante;
No meio das demais feições do rosto
Erguido é o seu posto,
Bem como um trono, e acima dessa gente
Eleva-se eminente.

Trabalham sempre os olhos; mais ainda
A boca, o queixo, os dentes;
E — míseros plebeus — vão exercendo
Ofícios diferentes.

Mas o nariz, fidalgo de bom gosto,
Desliza brandamente
Vida voluptuosa entre as delícias
De um doce far-niente.

Sultão feliz, em seu divã sentado
A respirar perfumes,
De bem-aventurado ócio gozando,
Não tem inveja aos numes.

Para ele produz o rico Oriente
O cedro, a mirra, o incenso;
Para ele meiga Flora de seus cofres
Verte o tesouro imenso.

Amante fiel sua, a mansa aragem
As asas meneando
Anda p’ra ele nos vergéis vizinhos
Aromas apanhando.

E tu, pobre nariz, sofres o injusto
Silêncio dos poetas?
Sofres calado? não tocaste ainda
Da paciência as metas?

Nariz, nariz, já é tempo
De ecoar o teu queixume;
Pois, se não há poesia
Que não tenha o seu perfume,
Em que o poeta às mãos cheias
Os aromas não arrume,
Por que razão os poetas,
Por que do nariz não falam,
Do nariz, p’ra quem somente
Esses perfumes se exalam?

Onde, pois, ingratos vates,
Acharíeis as fragrâncias,
Os balsâmicos odores,
De que encheis vossas estâncias,
Os eflúvios, os aromas
Que nos versos espargis;
Onde acharíeis perfume,
Se não houvesse nariz?
Ó vós, que ao nariz negais
Os foros de fidalguia,
Sabei, que se por um erro
Não há nariz na poesia,
É por seu fado infeliz,
Mas não é porque não haja
Poesia no nariz.

Atenção pois aos sons de minha lira,
Vós todos, que me ouvis,
De minha bem-amada em versos d’ouro
Cantar quero o nariz.

O nariz de meu bem é como... oh! céus!...
É como o quê? por mais que lide e sue,
Nem uma só asneira!...
Que esta musa está hoje uma toupeira.

Nem uma idéia
Me sai do casco!...
Ó miserando,
Triste fiasco!!

Se bem me lembra, a Bíblia em qualquer parte
Certo nariz ao Líbano compara;iii
Se tal era o nariz,
De que tamanho não seria a cara?!...

E ai de mim! desgraçado,
Se o meu doce bem-amado
Vê seu nariz comparado
A uma erguida montanha:
Com razão e sem tardança,
Com rigores e esquivança,
Tomará cruel vingança
Por essa injúria tamanha.

Pois bem!... Vou arrojar-me pelo vago
Dessas comparações que a trouxe-mouxe
Do romantismo o gênio cá nos trouxe,
Que p’ra todas as cousas vão servindo;
E à fantasia as rédeas sacudindo,
Irei, bem como um cego,
Nas ondas me atirar do vasto pego,
Que as românticas musas desenvoltas
Costumam navegar a velas soltas.

E assim como o coração,
Sem ter corda, nem cravelha,
Na linguagem dos poetas
A uma harpa se assemelha;

Como as mãos de alva donzela
Parecem cestos de rosas,
E as roupas as mais espessas
São em verso vaporosas;

E o corpo de esbelta virgem
Tem feitio de coqueiro,
E só com um beijo se quebra
De tão franzino e ligeiro;

E como os olhos são flechas,
Que os corações vão varando;
E outras vezes são flautas
Que de noite vão cantando;

P’ra rematar tanta peta
O nariz será trombeta...

Trombeta o meu nariz?!! (ouço-a bradando)
Pois meu nariz é trombeta?...
Oh! não mais, Sr. poeta,
Com meu nariz s’intrometa.

Perdão por esta vez, perdão, senhora!
Eis nova inspiração me assalta agora,
E em honra ao teu nariz
Dos lábios me arrebenta em chafariz:

O teu nariz, doce amada,
É um castelo de amor,
Pelas mãos das próprias graças
Fabricado com primor.

As suas ventas estreitas
São como duas seteiras,
Donde ele oculto dispara
Agudas flechas certeiras.

Em que sítios te pus, amor, coitado!
Meu Deus, em que perigo?
Se a ninfa espirra, pelos ares saltas,
E em terra dás contigo.

Estou já cansado, desisto da empresa,
Em versos mimosos cantar-te bem quis;
Mas não o consente destino perverso,
Que fez-te infeliz;
Está decidido, — não cabes em verso,
Rebelde nariz.

E hoje tu deves
Te dar por feliz
Se estes versinhos
Brincando te fiz.

Giselda Laporta (Livro: Pássaro contra a Vidraça)

Igor era um jovem que tinha quase tudo exceto o amor. Seus pais eram ricos e davam a ele tudo do mais caro mais que não preenchia o vazio no seu coração, sua mãe muito vaidosa mal olhava  para cara do seu filho, o seu pai  só trabalha e mal ficava em casa..

    Em um certo dia quando seus pais estavam viajando desesperado ele discou um número qualquer de sua imaginação, em busca de alguém que se dispusesse a ouví-lo. Pois ele estava na busca por algo ou alguém que lhe preenchesse o enorme vazio de sua alma, ele havia escolhido o caminho para as  drogas que era um caminho prazeroso no começo mais não no final. Essa Foi uma trágica e perigosa escolha da qual Igor já não poderia se livrar sozinho. Estava praticamente á mercê das drogas, chegando ao fundo do poço, de onde talvez não pudesse mais sair sozinho. Depois da alegria vinha o desespero e tudo poderia ser como um passo para a morte.

   Encontrou na moça que atendeu o telefone chamada  Juliana um conforto como se ela fosse sua segunda mãe e amiga que lhe ouvia sem  fazer criticas alguma ela simplesmente lhe abria os olhos pra que ele não se perdesse de uma vez, com jeito talvez ela tenha conseguido apenas acalmar o pobre jovem que lhe pedirá ajuda, mas é certo de que daquele dia em diante Igor seria ou tentaria ser uma nova pessoa, certamente uma pessoa bem melhor. Bastava-lhe apenas acreditar em si mesmo. Afinal, ainda tinha uma vida toda pela frente e depois de ter conversado com Juliana ao telefone, sentia-se mais confiante. Juliana também sentiu-se muito mais leve e calma por ter lhe aconselhado a um recomeço de vida. Juliana ficou muito feliz pois ela tinha um filho da idade de Igor, que poderia estar passando pela mesma situação, sem uma mãe para lhe aconselhar. Ela se sente muito bem por ajudar um jovem que tanto precisa de alguém para lhe ajudar a viver de novo.

Fonte:
http://clickdoscolegas.blogspot.com.br/2012/11/livropassaro-contra-vidraca.html