segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 13)


Como é bom saber que o filho
vida afora alegre vai,
dando forma, força e brilho
aos sonhos do velho pai!
A. A. DE ASSIS – MARINGÁ (PR)
 -
Eu disse pra minha amada,
baseado num estudo,
o amor nasce de um nada
e morre de quase tudo!
ADEMAR MACEDO – NATAL (RN)
 -
O circo segue em viagem
deixando em cada cidade
um círculo de serragem
delimitando a saudade...
ADILSON DE PAULA – JOAQUIM TÁVORA (PR)
 -
Que bom se o tempo na vida
fosse eterno para o amor...
e existisse outra medida
passageira para a dor!
ALBA HELENA CORRÊA – NITERÓI (RJ)
-
Em pedaços fui rasgando
tua foto pela praça;
hoje os procuro chorando,
pedindo ajuda a quem passa.
AMÁLIA MAX – PONTA GROSSA (PR)
 -

Velhos sinos badalando
anunciam minha dor...
– Cada toque ressoando
no meu presente sem cor...
ANTÔNIO MANOEL ABREU SARDENBERG – SÃO FIDÉLIS (RJ)
 -
Infância é um brinquedo usado
que um dia a vida resolve
tomar um pouco emprestado
e nunca mais nos devolve!
ARLINDO TADEU HAGEN – BELO HORIZONTE (MG)
-
De tu boca quiero oír
Tus palabras zalameras
Esas que sueles decir
Que eternamente me esperas.
CARMEN PATINO FERNÁNDEZ (ESPANHA)
-
Encontrei na minha trova
a vontade de escrever.
A paixão por coisa nova
faz a gente renascer.
CECIM CALIXTO –TOMAZINA (PR)
 -
Hoje os rios caudalosos
descem cantando suas mágoas
dos tempos idos, saudosos,
em que eram puras as águas...
CIDINHA FRIGERI – LONDRINA (PR)
-
Partiste... o sonho acabou,
num mistério que revolta...
– E a saudade carimbou
seu passaporte sem volta!...
CLENIR NEVES RIBEIRO – NOVA FRIBURGO (RJ)
-
Olhando fotos antigas,
tenho saudade de mim.
– Hoje, maduras espigas;
ontem, um frágil jardim.
CLEVANE PESSOA – BELO HORIZONTE (MG)
 -
Que tenhas muita ventura
no  universo do teu lar,
que só o amor e a ternura
possam  contigo,  ficar!
DELCY CANALLES – PORTO ALEGRE (RS)
-
Foste embora e, na saudade,
a ofensa se fez lição:
descobri que o amor-verdade
se alicerça no perdão!
DOMITILLA BORGES BELTRAME – S. PAULO (SP)
 -
Coração deixado vago
lamenta ter que informar:
fizeram-lhe tanto estrago,
que não dá mais pra morar.
DOROTHY JANSSON MORETTI – SOROCABA (SP)
-
Utopias!... Por vivê-las
e a elas me aprisionar,
quando desejo as estrelas,
deixo meu sonho voar!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA – RIO DE JANEIRO (RJ)
-
As espadas da descrença
não ferem meu coração,
nem há presságio que vença
o poder de uma oração.
ÉLEN FÉLIX – NITERÓI (RJ)
-
Por ser caboclo do mato,
de capina a vida inteira,
meu mundo tem o formato
de uma roça sem fronteira!
EDUARDO TOLEDO – POUSO ALEGRE (MG)
-
Dominar o medo e o ódio,
a injustiça e o desamor,
são vitórias que, no pódio,
dão mais brilho ao vencedor!
ELISABETH SOUZA CRUZ – NOVA FRIBURGO (RJ)
 -
A  ilusão da  meninice
com  os  meus  netos se  fez,
agora  em  plena  velhice
eu  sou  criança  outra  vez!
FERNANDO CÂNCIO – FORTALEZA (CE)
 -
O sonho que mais me anima,
que me faz bem, me renova,
é sonhar fazendo rima,
compondo mais uma trova.
FRANCISCO GARCIA – CAICÓ (RN)
 -
Nossa humildade se mede
e sempre se medirá,
não com o favor que se pede
mas com o perdão que se dá.
FRANCISCO PESSOA – FORTALEZA (CE)
 -
A frase dura que escapa
da boca de muitos pais
é tão cruel quanto um tapa
e, às vezes, machuca mais!
GERSON CÉSAR SOUZA (PR)
-
A minha vida é uma Trova,
trova de ilusão perdida,
pois a vida é grande prova,
que prova a Trova da vida!
GISLAINE CANALES – PORTO ALEGRE (RS)
 -
A sentença mais atroz
que a solidão concebeu
condenou o nosso “nós”
a ser, apenas, um... “eu”!
HÉRON PATRÍCIO – SÃO PAULO (SP)
-
Começa a lua num traço,
vai crescendo e nos seduz...
Como é formoso, no espaço,
esse trapinho de luz!
HUMBERTO DEL MAESTRO – VITÓRIA (ES)
 -
Seresteiro e trovador
ambos têm equivalências:
porque os dois fazem do amor
o motivo da existência.
IALMAR PIO SCHNEIDER – PORTO ALEGRE (RS)
-
Se a viagem é impossível,
deixo o sonho de nós dois
numa espera indefinível
para um suposto depois...
ISTELA MARINA GOTELIPE LIMA – BANDEIRANTES (PR)
 -
O imortal desaparece
desta vida transitória,
mas seu verso permanece
nas letras vivas da história!
JOAMIR MEDEIROS – NATAL (RN)

 -
Às vezes, Divino Pai,
quando converso contigo,
eu sinto que um anjo vai
orando, também, comigo!
JOSAFÁ SOBREIRA DA SILVA – RIO DE JANEIRO (RJ)
-
Baú velho, tampo torto,
cartas e fotos mofando...
– Refúgio de um sonho morto,
que eu vivo ressuscitando!...
JOSÉ OUVERNEY  – PINDAMONHANGABA (SP)
-
A paz é conquista interna,
pura ausência de ansiedade,
tranqüilidade que externa
prazer e felicidade.
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE – PINHALÃO (PR)
 -
Debruçada sobre o berço
do seu querido filhinho,
busca a mãe, com o seu terço,
indicar-lhe um bom caminho.
LUIZ HÉLIO FRIEDRICH – CURITIBA (PR)
 -
Para a alma aliviar
na dor, conflito, paixão,
a lágrima acalma o olhar;
um poema, o coração!
MARIA ELIANA PALMA – MARINGÁ (PR)
 -
Falar de trovas, meu Deus!
Missão que faz me encantar!
Falar de trovas aos meus!
Ainda não sei trovar!
MARIA GRANZOTO DA SILVA – ARAPONGAS (PR)

Minha boneca de sonho…
vivências da mocidade!
Pensamento que transponho
no meu portal de saudade!
MARIA JOSÉ FRAQUEZA – PORTUGAL
 -
Imortal não sou agora,
mas eu tenho uma alegria:
– Sou poeta e ao “ir-me embora”...
deixo um rastro de poesia!
MARIA LÚCIA DALOCE  CASTANHO – BANDEIRANTES (PR)
-
Sabedoria... só cabe
a quem tem por diretriz
não dizer tudo o que sabe,
mas... saber tudo o que diz.
MARIA MADALENA FERREIRA – MAGÉ (RJ)
-
Poeta arguto e sensível,
vai o inquieto beija-flor
buscar a rima impossível
no coração de uma flor!
MARIA THEREZA CAVALHEIRO – SÃO PAULO (SP)
 -
Na viagem de retorno
eu guardei algo de bom:
no meu lencinho o contorno
de tua boca em batom.
MAURÍCIO LEONARDO – IBIPORÃ (PR)
-
Cupido avisa aos poetas
e também aos namorados
que seus estoques de setas
foram todos renovados!
MIGUEL RUSSOWSKY – JOAÇABA (SC)
-
Sou louco quando preciso
e o remorso não me assalta;
eu nunca tive juízo
e ele nunca me fez falta...
MILTON SOUZA – PORTO ALEGRE (RS)
 -
E’ maldade, insensatez,
marcar com ferro a boiada,
se o nascimento da rês
traz a sentença marcada.
NEIDE ROCHA PORTUGAL – BANDEIRANTES (PR)
-
O namoro é uma viagem
que nos leva ao paraíso;
mas quem for comprar passagem...
na bagagem leve juízo.
NEI GARCEZ – CURITIBA
-
Carrego pouca bagagem
porque na vida aprendi
que, mesmo longa a viagem,
preciso apenas de ti!
OLGA AGULHON – MARINGÁ

Quer sejam feias ou belas,
das mulheres fujo, sim…
Das feias, de medo delas;
das belas – medo de mim!
PAULO EMÍLIO PINTO – CONSELHEIRO LAFAYETTE (MG)
-
Aprendi pelos caminhos
da vida, entre dissabores,
a não deixar que os espinhos
me impeçam de ver as flores!
REGIANE BAGNI ORNELLAS – VALINHOS (SP)
-
Fraternidade é sentir
uma comunhão tão alta
que nos leva a dividir
até mesmo o que nos falta!
RENATA PACCOLA – SÃO PAULO (SP)
-
Não condeno a caminhada,
culpo sim, meus passos falhos.
Bem larga era a minha estrada
fui eu quem buscou atalhos.
RITA MOURÃO – RIBEIRÃO PRETO (SP)
-
Tanto, tanto ela falou
na última temporada,
que da praia ela voltou
com a língua bronzeada!
ROZA DE OLIVEIRA – CURITIBA (PR)
 -
No contraste a dor sentida
dos que não tiveram sorte:
a morte buscando a vida,
e a vida esperando a morte.
SARAH RODRIGUES – BELÉM (PA)
-
Quem, no rumo desta vida,
se distrai na caminhada
pode acertar na partida,
mas pode errar na chegada.
SELMA PATTI SPINELLI – SÃO PAULO (SP)
-
Mais que justa há que ser boa
a resposta a uma agressão,
que o bom é justo e perdoa
mesmo os erros sem perdão!
SÉRGIO BERNARDO – NOVA FRIBURGO (RJ)
 -
Nem me lembro mais do gosto
da tal noite de verão,
e até hoje pago imposto
que ela chama de pensão...
SÉRGIO FERREIRA DOS SANTOS – NOVA FRIBURGO (RJ)
-
A idade impõe seus percalços
e a humildade os ameniza;
quem anda de pés descalços
respeita a terra onde pisa!
SÉRGIO FERREIRA DA SILVA – SÃO PAULO (SP)
-
Tendo o amor por inquilino,
com coragem e artimanha,
meu coração é um menino
que ora bate... que ora apanha!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA -  SÃO PAULO (SP)
-
No mundo das ilusões,
havendo entrega total,
se entrelaçam corações
numa paixão virtual…
VANDA ALVES – CURITIBA (PR)
-
Por mais que a gente conquiste
grande acervo de saber
mais sábio é saber que existe
muito mais para aprender.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ – CURITIBA (PR)
-
De um amor que é só miragem
finjo agora ter o assédio,
para escapar da engrenagem
dessa moenda que é o tédio.
WANDA DE PAULA MOURTHÉ – BELO HORIZONTE (MG)
-
A vida é uma grande viagem
se o excesso de “informação”
não excluir da bagagem
“enlevos” do coração.
WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ – CURITIBA (PR)
 -
Reconheço que a razão
me exerce extremo fascínio,
mas, se acerta o coração...
perco o rumo e o raciocínio!
VÂNIA ENNES – CURITIBA (PR)
 -
Canta a prosa, canta o verso
com esplêndida leveza,
enchendo todo o universo
e louvando a natureza.
VIDAL IDONY STOCKLER – CURITIBA (PR)

Irmaõs Grimm (O Bando de Maltrapilhos)

O galo uma vez disse para a galinha:

- "Agora chegou a época das nozes amadurecerem, então, vamos subir juntos a colina e vamos ser os primeiros a comer até enfartar antes que o esquilo venha e leve todas as nozes embora."

- "Sim," respondeu a galinha. "venha, nós vamos nos divertir muito juntos." Então, eles subiram a colina, e como estava um dia ensolarado eles ficaram até o anoitecer.

Agora eu não sei se era porque eles haviam comido muito e estavam muito pesados, ou se eles eram muito orgulhosos e não queriam voltar a pé para casa, e o galo pretendia fazer uma pequena carroça com as cascas das nozes. Quando a carroça ficou pronta, a galinha se sentou no banco, e disse para o galo:

- “Você poderia ser atrelado à carroça."

- "De jeito nenhum," disse o galo, "eu prefiro ir para casa à pé do que ser atrelado a uma carroça, não, não foi isso que combinamos. Eu não me importaria de ser o cocheiro e ficar sentado na boléia, mas puxar a carroça sozinho eu não vou mesmo."

Enquanto eles estavam assim discutindo, um pato grasnou para eles:

- "Ei, seus pequenos ladrões, quem autorizou vocês a subirem na minha colina de nozes? Esperem só, e vocês vão pagar por isso!"

E correu de bico aberto em direção ao galo. Mas o galo não era medroso, e enfrentou o pato com coragem, e machucou tanto o pato com as suas esporas que ele teve de pedir misericórdia, e permitiu que fosse atrelado à carroça como punição.

O pequeno galo se sentou na boleia como se fosse o cocheiro, e lá foram eles galopando, com o pato, correndo tudo que podia. Depois de terem percorrido uma parte do caminho, eles encontraram dois passageiros que estavam andando a pé, um alfinete e uma agulha. Os dois gritaram:

- "Parem, parem!" e disseram que o dia estava ficando escuro que nem piche, e que eles não conseguiam dar nem um passo sequer, e que havia tanta sujeira na estrada, e perguntaram se eles não podiam subir na carroça um pouquinho.

Eles tinham ido até a cervejaria do alfaiate que ficava perto do portão, e tinham ficado muito tempo lá tomando cerveja. Como eles eram magrinhos, e portanto, não ocupavam muito espaço, o galo permitiu que os dois subissem, mas os dois deviam prometer a ele e à pequena galinha que não pisariam em seus pés. Tarde da noite eles chegaram numa estalagem, e como eles não gostavam de viajar a noite, e como o pato não tinha mais forças no pé, e caía de um lado para outro, eles decidiram entrar.

O estalajadeiro, a princípio, fez algumas objeções, a sua casa já estava cheia, além disso, pensou ele, eles não poderiam ser pessoas muito distintas, mas, finalmente, como a conversa deles era agradável, e haviam lhe dito que ele poderia ficar com os ovos que a galinha havia botado no caminho, e também poderiam ficar com o pato, que botava um ovo todos os dias, o estalajadeiro finalmente disse que eles poderiam ficar aquela noite.

E então, eles foram bem servidos, e festejaram e fizeram muito barulho. Bem cedo de manhã, quando o dia estava clareando, e todos estavam dormindo, o galo acordou a galinha, trouxe o ovo, e comeram juntos, mas a casca eles jogaram no fogão a lenha. Então, eles foram até a agulha que ainda estava sonolenta, pegaram-na pela cabeça, e a espetaram na almofada da cadeira do estalajadeiro, e colocaram o alfinete na toalha dele, e finalmente, sem alhos nem bugalhos, foram embora voando por cima do fogão.

O pato que gostava de dormir a céu aberto e tinha ficado no quintal, ouviu quando eles estavam indo embora, ficou muito feliz, e encontrou um riacho, e por ele foi nadando, porque era um caminho muito mais rápido de viajar do que estando preso a uma carroça. O estalajadeiro só saiu da cama duas horas depois que eles tinham ido embora, ele se lavou e ia se secar, então, o alfinete espetou a sua cara e deixou uma lista vermelha que ia de uma orelha a outra.

Depois disto ele foi para a cozinha e quis acender um charuto, mas quando ele chegou perto do fogão a casca do ovo explodiu em seus olhos.

- "Hoje de manhã todas as coisas estão caindo na minha cabeça," disse ele, e nervoso se sentou na cadeira de seu pai, mas ele deu um pulo novamente e gritou:

- "Ai meu Deus," pois a agulha havia picado num lugar bem pior que o alfinete, e não tinha sido na cabeça.

Agora, sim, ele tinha ficado muito furioso, e desconfiou dos hóspedes que haviam chegado bem tarde na noite anterior, e quando ele decidiu procurar por eles, eles tinham ido embora. Então, ele jurou nunca mais aceitar maltrapilhos em sua estalagem, porque eles consomem muito, não pagam nada, e usam de artifícios desonestos durante a negociação a pretexto de gratidão.

Fonte:
Contos de Grimm

Sueli Donário (Poemas Avulsos)

Amantes distantes

Horas passam em agonia a se arrastar
Na distância entre o anoitecer e alvorecer
Um ainda feliz neste magnífico sonhar
Enquanto o outro deseja só o adormecer

São conflitantes como Sol e Lua sobre o céu
Dificilmente irão se encontrar no mesmo lugar
Enquanto o Sol resplandesce a Lua desce seu véu
Um oceano e fusos teimosos em lhes separar

Mas a suavidade do olhar terá brilhos molhados
Quando delicadamente um boing estiver a pousar
Lágrimas não existirão, só sorrisos apaixonados
Neste pequeno enlevo o oceano estará feliz a secar.
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Amor de perdição

Teu olhar me procurava na multidão
Tua alma viu minha luz perdida
Teu coração me iluminou na escuridão
Meu amor te conduz para a vida

Estranho mundo começou na vastidão
Sem rumo, sem limites, só expectativa
Diferente, tudo parece novo e velho
Nosso caminho, talvez nova alternativa

Dentro de nós dúvidas, medos e paixão
Encobrindo a razão de tanta loucura
Mescla de amor, tesão e solidão
Certeza, o passado demorou sua procura

Outra vida talvez explique a sensação
Meu desejo em teus braços, pareço estar viva
Desespero, pesadelo, Deus tem explicação
Tenho medo de amar, sofrer nesta vida

Fecho os olhos ao pavor do sonho se quebrar
Encontro nele seus olhos e o tempo pára
Volto da vida já vívida, alegria incontida
Agora todo sol, para nós só irá brilhar
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Medo da vida

Tudo era lindo, era esperança
A alegria reinava no mundo
Dos meus pequeninos olhos de criança
Não sei por que cresci
Cresci e vi maldade, vi tanto ódio,
Tanta falsidade, vi uma mulher
Numa sargeta imunda
Vendo sua filha morrer de frio quase nua
Vi a inveja num manto de amizade
ódio destruindo a liberdade
Vi a hipocrisia de um falso sorriso
Vi querra, vi gente correr, vi gente morrer
Fechei os olhos
Fechei-os para não ver
Fechei-os para morrer.
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Noites infinitas

Te espero, a cada momento um tormento
Sonho em devaneios, com teus carinhos
De longe, penso em ti, só acalento
De perto, não posso ao menos pensamentos

Noites frias, com você seriam frívolas
Passadas como lua aos quatro ventos
Solitária e triste, tento protegê-las
De mi mesma e te teus olhares sedentos

Quase não me apercebo, penso em ti
Vivo assim entre amores e desejos
Não quero, mas são todos os momentos
Minha vida é mesmo cheia de medos

Noites infinitas, passo o tempo a esperar
Que você apareça e venha me escutar
Falar e me acariciar, minha sede matar
Não me deixe de novo no infinito a sonhar.
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Porto da canção

Para cada coração, um mandamento
Para cada violão, uma canção
E nos tempos de solidão
Apenas uma ilusão

Neste pensar, me acalento
Apenas a sonhar o que é o vento
Que me traz o sonho ou o sofrimento
vem ou não o mandamento?

E neste embalo solitário
O passar do tempo traz apenas a canção
Dedilhando a imensa solidão,
E o vento, leva a ilusão.
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Saudades de você

Olhar nos teus olhos é sofrimento
Falar com você magoa minha alma
Lembrar dos teus beijos é um tormento
Não ter sua boca me tira a calma

Todo dia, toda hora e a todo momento
Cada pensamento meu, é somente teu
Em todo lugar vejo o desencantamento
Da perda do amor que era só meu

Hoje a vida é só tristeza e amargura
Não posso imaginar agora o meu futuro
Só me lembro dos momentos de loucura
Minha paixão concreta, eterna no obscuro

Teu lado na cama continua à tua espera
Mas o frio de teu olhar me congela
Sei que nada poderá retornar nesta esfera
Lamentável é o vazio ao olhar pela janela.

Fonte:
Casa do Bruxo

Humberto de Campos (Ninho do Curió)

Rosto em brasa, olhos vivos, cabelos alvoroçados, atravessava o Luizinho a praça do povoado, denunciando no desalinho das roupas, no fogo das faces, no susto das maneiras, a sua última travessura, quando, ao passar pela frente da igreja, foi detido suavemente, brandamente, pela bondade do padre Guilherme.

- Venha cá, ó Luizinho!

O garoto tremeu, desconcertado, e o vigário, homem de uns quarenta anos, insistiu:

- Venha cá!

Luizinho chegou-se, respeitoso, de olhos no chão e chapéu entre os dedos, e o sacerdote indagou:

- Então, por onde andou você, hoje?

- Eu?

- Sim, você.

O pequeno corou, envergonhado, e o padre, excelente pastor, pegou-lhe da mão, puxando-o para dentro da igreja.

- Venha cá; venha se confessar.

Um minuto depois estava o Luizinho, com os olhos muito espantados, ajoelhado no confessionário, a contar ao padre Guilherme o seu grande pecado do dia.

- Eu estive hoje na mata do outro lado do rio, tirando uns ninhos de curió... confessava o garoto.

- Ninho de curió? - estranhou o confessor, franzindo a testa. - Você não sabe, então, que é pecado tirar os ninhos das avezitas, roubando os pobres passarinhos ao conchego de seus pais?

Luizinho mantinha-se cabisbaixo, vermelho de arrependimento e de vergonha, e não respondeu. O vigário insistiu, porém:

- E onde foi que você achou esses ninhos de curió?

- Na ingazeira, junto do morro.

- E havia muitos?

- Havia, sim, senhor.

- Pois, não tire mais, não. É pecado, e pecado mortal!

Na manhã seguinte, após uma noite de apreensões aflitivas, ia o garoto procurar urnas vacas na outra margem do rio, quando viu, ao longe, o vulto de padre Guilherme, que se aproximava, cauteloso, da ingazeira de que lhe falara na véspera. Luizinho escondeu-se, de um salto, em uma das moitas das proximidades, e observou tudo. Padre Guilherme chegou, com o breviário nas mãos e nariz no ar, examinou, sondou, olhou para um lado, olhou para outro, e, como não visse ninguém, descansou o livro na raiz da árvore, endireitou os óculos e subiu. Momentos depois, assinalados pelo piar dos passaritos implumes e pelo vôo das aves aninhadas, o servo de Deus descia da ingazeira, sustentando nas mãos os bolsos da batina, repletos de curiós.

Luizinho viu tudo isso, da sua moita, e não disse nada. Padre Guilherme apanhou o seu breviário e foi-se embora para a aldeia. Ele tomou, também, o seu varapau, e lá se pelo mundo ganhar a vida, até que, anos depois, homem feito, voltou, de novo, à terra do seu nascimento.

Forte, moço, querido das moças, ia, uma tarde, o Luiz pela praça da matriz, quando o detiveram pelo braço:

- Olá, Luiz, como vai?

- Oh! o Sr. padre Guilherme! - sorriu o rapagão, feliz.

E travou-se a palestra

- Então, veio à terra para casar, não?

- É verdade, sim, senhor.

O padre deu-lhe parabéns, mas, não satisfeito, insistiu:

- E a noiva?... Afinal, quem é a noiva?

Luiz encarou, firme, o reverendo, e trovejou:

- A noiva? Eu sou tolo, então, para lhe dizer quem é?

E, dando-lhe as costas, indignado:

- Pensa, então, que isto é ninho de curió?...

E afastou-se, resmungando.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze.

Sérgio Telles (Mergulhador de Acapulco)

De longe: Os bicos dos sapatos, meio arredondados, saem fora do caixão. A sola mostra ter andado por muitos caminhos antes de enveredar por este agora para o qual está destinado.

Já mais próximo: O leito de flores. A mão inchada de tantos tubos e agulhas. A face em placidez séria e cérea. O terno azul-claro, combinando com a meia e a gravata, com a camisa de listrinha azul, tudo como ele fazia antes.

 Encostado no caixão: Vertigem, tontura, sensação de desmaio. Como se – de uma altura enorme – fosse cair dentro do caixão. À beira de um penhasco. Mas logo me firmo e, mergulhador de Acapulco, pulo em salto mortífero, riscando o vazio num voo limpo e preciso, o corpo em movimentos gráceis e poderosos, um canivete que se abre e fecha, uma seta certeira fazendo o arco completo até afundar no azul do mar. Subo à tona, estou vivo e me vanglorio de ter conseguido mais uma vez. A beleza da vida, o sol, a ousadia, o criar desafios gratuitos e desnecessários, pelo simples prazer de vencê-los da forma mais bela e justa.

Saindo de perto do caixão: Uma vontade de espancar o morto, de esmurrá-lo, de derrubar o caixão no chão, espalhar flores e velas. Espancá-lo para acordá-lo, trazê-lo de volta, para que venha para cá, para que não nos deixe. Ou ainda, para quebrar a ilusão de que ele apenas dorme, para que caindo no chão o corpo hirto assuma posições grotescas e impossíveis, casca abandonada, inútil. Para que, impossibilitado de acordá-lo, acorde as outras pessoas que ali estão e que agem como se nada de grave estivesse acontecendo, que se recusam a ver o terror nu que ali se expõe cruamente, que – em suave rumor de conversas civilizadas – bebericam café e água em pequenos copos de plástico.

 (Sérgio Telles, Mergulhador de Acapulco)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Sérgio Telles


João Sergio Siqueira Telles (Fortaleza, 1946) formou-se em 1970. Tem livros na área da psicanálise e dois de contos: Mergulhador de Acapulco (1992), menção honrosa no Concurso de Contos do Paraná, 1988, com o título O Décimo Dia e outros contos, e Peixe de Bicicleta (2002), prêmio APCA, 2002. Está incluído na antologia de literatura brasileira Fran Urskog Till Megastad, organizada e publicada por Arne Lundgren, na Suécia, em 1994. Para a antologia O Talento Cearense em Contos teve selecionado “Cicatriz de Bala”. Em 2003, lançou Fragmentos Clínicos de Psicanálise, estudos psicanalíticos. Em 2004, lançou dois livros, um de ensaios psicanalíticos sobre cinema, O Psicanalista Vai Ao Cinema, e Mistura Fina – Contos & Crônicas & Poesias. Em 2006, lançou Visita Às Casas de Freud e Outras Viagens, livro de ensaios de psicanálise e cultura.

Há, pelo menos, quatro tipos de contistas ou narradores. O primeiro deles é constituído de Machado de Assis e outros exemplares raros. Outro tipo forma a grande maioria. A dos que nunca trabalharam em redações de jornal, leram ou ouviram as notícias como qualquer mortal, acompanharam a História de seu tempo como espectadores e aprenderam a narrar fatos ou histórias extraídos de suas memórias e das páginas dos clássicos. Também nunca clinicaram em consultórios de analistas, nunca leram Freud e Young em profundidade e apreenderam dramas psicológicos em casa, nas ruas e nos livros. O terceiro tipo é composto de jornalistas. O quarto é formado de psiquiatras, psicólogos e analistas. Sérgio Telles é um deles. Seus personagens são atormentados e analisados, sofridos e dissecados, uns doentes mentais, outros apenas pacientes.

Em “Amizade”, Clóvis e Jorginho se completam como amigos: um frágil, outro atlético; um inteligente e culto, outro joga futebol de salão, “jogo pesado, de macho”. Até surgir a figura da mãe do primeiro, a nova conquista amorosa do segundo, e o conto ter um desfecho enigmático: após a “traição”, Jorginho se sente “péssimo em relação” ao amigo, que, no entanto, simplesmente diz: “– Clóvis, agora me conta tudo, tudo. Com detalhes”. Ora, somente um analista daria um desenlace como este ao conto. Nunca um jornalista ou um contista não afeito à psicanálise. Como se vê, o conflito entre personagens muitas vezes está somente na expectativa do leitor. Ora, qual seria a reação “normal” de Jorginho, se não a repulsa ao amigo?

Os transtornos que a sexualidade reprimida opera estão presentes em diversas narrativas dos dois livros de Telles. Assim como perturbações de outra natureza, nem sempre esclarecidas. O que sente Paulo, de “Falta de ar”, que não consegue dormir ? Será apenas falta de ar? O que leva o “cantor famoso, rico e importante”, do conto “Na Delegacia”, a ficar nu no palco, até terminar preso pelo tumulto causado e confessar ao delegado as suas angústias? Esses personagens “doentes” terminam em confessionários ou em divãs, rememorando suas vidas, suas dores, seus fracassos, seus medos, suas desilusões. Há até uma narrativa sob o título “Rememorando”, também mergulho no poço interior do personagem, cujo desfecho é a pergunta: “Que mais posso fazer além de tentar domar o tigre louco de meu medo e forçá-lo a se dispor nas entrelinhas do que escrevo?”

Em “Peixe de bicicleta”, um dos contos narrados por personagem feminina, o sexo é mais uma vez o motivo da história. A narradora parece se perder em devaneios eróticos, como se vivesse exclusivamente em função do sexo. O contista faz um retrato de um tipo de mulher e de homem da classe média, seus hábitos, como o  de perambular pelo shopping.

Em “Feita para quem não está morto”, do primeiro volume, o narrador se sente “vivo”, livre da “morte em vida”, ao atropelar, matar uma mulher e conduzir o corpo a uma represa, onde tenciona jogá-lo. Nas suas ruminações, o homem se analisa, se desnuda, se mostra a si mesmo, como se quisesse dizer que o ser humano é uma máquina quase imperfeita.

No segundo livro há que se destacar “Uma coleção de lápis”, uma das mais finas peças do contista. Narrado em primeira pessoa, um homem vai arrumando as malas da separação conjugal e, ao mesmo tempo, ruminando (narrando) fiapos de sua vida. Na apresentação do segundo livro, Malcolm Silverman pondera: “Tudo leva a uma justaposição cronológica, o que reforça o tom confessional das peças de Telles, em sua maioria escritas numa primeira pessoa intimista”.

Leia-se o conto “O colchão de listas azuis”. A vergonha, a humilhação do garoto Júlio, chantageado pelos irmãos, a se comparar aos prisioneiros dos campos de concentração, narradas com simplicidade, dão um toque de leveza quase infantil à narrativa.

Em “Saudades de Francisca Turner”, ao mesmo tempo em que presta homenagem à cantora negra Tina Turner, lembra a empregada de “tantos anos atrás”, a velha Francisca, “indômita e bela”. Mais parece crônica ou poema, não fosse conto escrito com os olhos do mais fino humanismo.

Homens e mulheres são vasculhados em suas intimidades ou se mostram por inteiro, como a paciente Marion L., de “Cara Doutora Frieda”, em carta-confissão-despedida. No conto “Maktub!”, narrado em terceira pessoa, Paulo reencontra um amigo de infância, Juvenal, então transformado em Vivi. Sentado a uma mesa de bar, vê “alguém familiar que não conseguiu reconhecer logo, até constatar divertido que era de Marilyn Monroe a fisionomia conhecida que julgava ver ali”. Sérgio Telles narra e descreve os instantes do reencontro com mão de contista fino e alcança um desfecho dos mais surpreendentes, ao se valer do flashback: quando criança o protagonista Paulo leu o Maktub, de Malba Tahan. E pergunta: “Será que Deus escreve errado em linhas tortas? Maktub, Alá assim o quis, teria dito Malba Tahan em tais circunstâncias – pensou Paulo”.

E assim são outros personagens de ambos os livros.

A linguagem nos contos de Sérgio Telles não apresenta novidades. A narração, tanto do ponto de vista onisciente, como da primeira pessoa ou do narrador-testemunha, flui em frases bem ordenadas, de fácil leitura. Nada de malabarismos verbais. Aliás, a linguagem é quase sempre coloquial, mesmo quando o ponto de vista é do escritor-narrador. Leia-se “Classe Média Blues”. Primeira frase: “Era noite de sexta-feira”. Final: (...) “foi até a cozinha tomar um gole de café”. Quando se serve do monólogo interior, como no conto “Feita para quem não está morto”, a linguagem também é a oral. O protagonista recorda um fato (o atropelamento de uma mulher, a confusão na rua, o corpo estendido no chão, a acomodação do corpo no banco de seu carro, até a chegada à represa de Gaurapiranga etc.) como se falasse para si mesmo. Ora, o contista poderia muito bem tecer a narração de forma arrevesada. No entanto, a linguagem é simples, usual: “Vinha dirigindo numa boa pela Augusta e atravessei a Paulista, acelerando, dentro do zunzum do trânsito da tarde” (...). Observe-se a expressão “numa boa”. Em “Quando Cora cala”, o personagem-narrador, como se narrasse para si mesmo ou para um ouvinte ou um leitor, vai tecendo a malha de seu relacionamento com a mulher Cora, o significado da incessante fala dela, no dia-a-dia, e de quando ela se cala. A fala, o tormento causado pela fala de Cora, a não-fala, o calar-se e o tormento da solidão, do silêncio. “Todo dia – quer chova, quer faça sol – antes de ir trabalhar, pego meu carro e vou até o Ibirapuera correr”. Observe-se a expressão popular. E ainda os hábitos da classe média, tão presentes na obra do contista. E a presença constante da capital paulista como pano de fundo, como cenário das narrativas.

Em “Missão Cumprida”, dois personagens conversam num bar. O narrador  nem chega a lhes dar nomes. São simplesmente “o gordo” e “o homem de meia-idade”. As frases curtas narram pequenos atos e gestos, comuns a mortais urbanos: “respirou fundo”, “puxou a cadeira”, “passava as mãos pelo cabelo” etc. As falas são da linguagem oral urbana: “Prazer em te rever”, “Me conta. Em que pé está?”, “E agora, para onde você vai?” No entanto, essa linguagem comum esconde um mistério: quem seriam os dois homens?

Nas abas do primeiro volume, Claudio Willer observou: “Esta coletânea de contos mostra, entre outras coisas, que há um ciclo da narrativa realista que ainda não se esgotou. Essas amostras do inferno burguês e metropolitano, esses fragmentos do cotidiano brasileiro, no que tem de cruel e de lírico – já vimos isso antes, na literatura e ao vivo. Mas as situações e personagens reaparecem, vitalizados, com mais força, graças ao talento, à capacidade de observação e à sensibilidade do autor”. Acrescente-se: graças também à psicanálise, pois, não fosse Sérgio Telles um estudioso da alma, certamente muitas de suas histórias começariam e terminariam sem nenhuma graça, como simples relatos de fatos sem importância.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 21 – 4 de julho de 1887

Meu Octaviano amigo,
Que idéia foi essa vossa
De deixar que o inimigo
Inda uma vez ganhar possa?

Ruim verso, mas aí fica;
Pior que fosse, ficara;
Não há rima bela ou rica;
Brilhante, sólida ou rara,

Quando o espírito, pasmado,
Mal sabe o que vai dizendo...
E eu sinto-me apatetado
Ante esse conselho horrendo.

Sim, eu penso com Malvino
Que as abstenções são fatais.
É este o melhor ensino
Em cousas eleitorais.

Pois não há aí três pessoas...
Digo mal, duas somente,
Sinceras, válidas, boas,
Que lutem proximamente?

Que é a vida? Uma batalha,
Tiro ao longe, espada à cinta;
Para os barbeiros, navalha;
Para os escritores, tinta;

Para os candidatos, cédula.
Quantas vezes tenho visto
Confessar a gente incrédula
Que não soube atentar nisto!

Sim, eu penso com Malvino
Que as abstenções são fatais;
É esse o melhor ensino
Em cousas eleitorais.

Eu, em rapaz, era dado
Às moças! Lembra-me que uma
Tinha o corpo bem talhado
E olhos feito verruma.

Olhos tais que penetravam
Na gente, em reviradela;
E muitos moços sangravam
Da marcenaria dela.

Quis ver se era amado. Um tio,
Fazendo por dissuadir-me,
Andava num corrupio,
E eu firme, três vezes firme.

Sempre entendi com Malvino
Que as abstenções são fatais.
É esse o melhor ensino
Em cousas eleitorais.

E notem a coincidência;
Essa moça, esse pecado
Tinha a sua residência
Mesmo à rua do Senado.

E notem mais que não era
Uma cadeira, mas duas...
Camões, que falou da hera,
Meta aí palavras suas.

Confesso que, ao recordá-la,
Sinto em mim tais pensamentos,
Que era capaz de arrancá-la
A cinco ou seis regimentos.

Nisto entendo, com Malvino,
Que as abstenções são fatais.
É esse o melhor ensino
Em cousas eleitorais.

Lutei muito. Ela fechava
Muitas vezes a janela,
Quando eu por ali passava
Para ver o rosto dela.

Outras vezes devolvia
Cartas escritas com sangue...
Lembra-me uma, que dizia:
“Anjinho meu, não se zangue,

“Se passo por sua casa;
Menos ainda, se temo
Em alimentar a brasa
Deste fogo em que me queimo.

“Que eu penso, como Malvino,
Que as abstenções são fatais;
É esse o melhor ensino
Em cousas eleitorais”.

E o certo é que fiz tanto,
Tanto andei por essa rua,
Gemi, gemi tanto canto,
Sem lua, e ainda mais com lua,

Que a moça, de compassiva,
Escutou meus ais tristonhos
E pegou da pena esquiva,
Para responder-me aos sonhos.

“Sei que és coração perfeito,
Que me amas e que não cansas.
Mando-te aqui do meu peito,
Não amor, mas esperanças...

“Crê, amigo, com Malvino,
Que as abstenções são fatais.
E' esse o melhor ensino
Em cousas eleitorais.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Aluízio Azevedo (Vida Literária) Literatura Nacional II

Ontem encontrei de novo o meu querido romancista Ernesto Branco. Vinha ainda com o ar enfastiado e, ao ver-me, foi logo me passando o braço pela cintura e levando-me para a confeitaria dos pássaros.

- Estou furioso contigo! disse me ele, quando nos assentamos, e depois que o garçon se afastou para ir buscar uma garrafa de cerveja. - Furioso, mas o que se pode chamar "Furioso!".

- Por quê?

- Por causa do tal artigo de ontem li a tua detestável Vida Literária! Aquilo não se faz! É uma infâmia!

- Mas o que fiz eu?

- Fizeste pilhéria com as letras!

- Ora!

- Ora não! Não admito que se brinque com a cousa mais séria que há no mundo! Não admito que se meta a ridículo a Literatura, a sagrada e imaculada arte de escrever! Sabes tu o que é um poeta pobre, meu amigo? sabes quanto é venerável essa criatura de sapatos rotos, que só vive da amarga desgraça de não ser imbecil ou medíocre, e que vai atravessando cinicamente e corajosamente a dantesca escala de todas as torturas e de todas as misérias, olhos fitos no ideal e pé calcado sobre a convenção burguesa e sobre as conveniências sociais?

Sabes tu o que é esse sombrio boêmio que a multidão acotovela e que os felizes desdenham e odeiam; esse negro espetro que tem a alma branca e palpitante como as estrelas da manhã? Esse, que entre toda essa magra canalha que luta inconscientemente para comer e respirar sobre a terra, é o único que sofre, porque é o único que tem inteira consciência da lama em que se arrasta, com as asas inutilizadas pelo lodo da miséria? esse é o poeta, e ao poeta tu ofendeste com as tuas abomináveis chufas de cabotin de imprensa! Queres fazer graça? Que diabo! imita o Pierrot ou o Clown; toma as marionetes do governo; enfileira-as defronte de ti, sobre a tua mesa de trabalho, e pinta-lhes bigodes; põe-lhes chifres; puxa-lhes pela língua até ao umbigo; rasga-lhes a boca até às orelhas; prega-lhes rabos de papel; dá-lhes piparotes no nariz; toma-as entre as palmas da mãe e boleia-as até reduzi-las a uma grande pílula; atira com esta ao ar, torna a apanha-la, torna a atira-la; deixa-a cair ao chão; levanta-a com ponta do pé; atira-lhe outro antes que ela torne a cair; mas, por amor de Deus, por amor de quem mais ames! não fales de carne seca, quando falares de poesia! não exijas versos aos poetas que dormem para não ver o que vai pela República! não peças gracejando obra literária, quando o nosso país geme apunhalado por um salteador político!

- Mas, por isso mesmo, respondi eu, esquentando-me também. Por isso mesmo que o Brasil chora de dor; por isso que o Brasil é traído, é saqueado, é reduzido a ruínas, é que os poetas deviam erguer-se cheios de indignação e arrancar das liras, ao menos para dar com elas na cabeça do governo! Tu mesmo, que estás aí a declamar a favor deles; porque não atiras agora ao público um livro patriótico, um grito de revolta que fizesse tremer o palácio de Itamarati e gelar nas veias o sangue desses assassinos que acabam de ensangüentar o Ceará?

- Eu? Por uma razão muito simples: porque o talento é como os títulos da bolsa - sobe e baixa conforme a procura.

O meu neste momento está muito por baixo. Ainda ontem quis principiar um trabalho: dispus o papel sobre a pasta, enchi o tinteiro, acendi um charuto, assentei-me corajosamente à mesa, molhei com energia a pena e... em vez de escrever, pus-me a pensar... E em que pensava eu? Pensava em uma carta do meu senhorio que nesse dia me comunicara amavelmente a sua generosa resolução de aumentar-me 5O$OOO no aluguel da casa; pensava na minha rnenagêre que me avisara na véspera que o dinheiro que eu lhe dou agora para as despesas diárias não chega, apesar de ser quase que o duplo do que lhe dava dantes; e pensei nos escandalosos preços que me cobrava agora o alfaiate, e pensei no chapeleiro, e no sapateiro; e, insensivelmente, fui pondo a pena de parte e levantando-me para ir assentar-me à janela, a contemplar o céu.

Fez-se noite e eu continuava a pensar em cousas alheias ao meu trabalho. Lembrei-me com mágoa de um amigo meu, tão bom rapaz, tão simpático e tão bem educado, o Garcia do Amorim, que na véspera tinha sido, como muitos outros, devorado pela maldita febre-amarela; lembrei-me de o ter visto quatro dias antes, bom e esperançoso, a falar-me de seus versos e de sua próxima viagem a Roma.

Fiquei triste com esta idéia, e pus-me então a cismar no estado e no destino desta pobre terra em que vegetamos, acabrunhados pela peste, pelo calor, pela infernal carestia da vida, ameaçados a todos os instantes pela guerra civil... Pobre República viúva! Pobre noiva a quem arrancaram o esposo ainda na lua-de-mel, para entregá-la à prostituição, para entregá-la à torpe sensualidade da maruja! Ah! maldito Floriano! maldita raça de traidores!

E de todos esses negros pensamentos ficou-me no espírito uma surda amargura, uma funda e dura tristeza, um vago desejo de desertar desta infeliz pátria, correndo à procura de um lugar onde se respire um ar menos assassino, onde a vida não seja tão amarga e tão tenebrosa, onde se não vejam cair tantas vítimas da peste e onde se não encontrem pelas praias cadáveres boiando misteriosamente. E uma dor imensa, terrível, sem esperanças de remédio, apoderou-se de mim e fez-me amaldiçoar a hora em que vim ao mundo. Imagina se trabalhei!

- E por que não aproveitaste a tua própria dor para fazer uma obra? Por que não fizeste da tua dor um poema?

- Porque era verdadeira demais para isso! Desconfia das lágrimas descritas em prosa e verso. A dor legítima é egoísta, é besta, é inútil, não serve senão para doer! A arte nasceu para cantar e não para chorar!

Ia replicar, metendo as botas no governo, mas o meu amigo cortou-me a palavra, segredando-me rapidamente:

- Caia-te! Esse sujeito que se assentou agora atrás de ti é um espião de polícia... Cuidado!

Emudeci.

O Combate, 11 de março de 1892.

Fonte:
Biblioteca Virtual de Literatura
Imagem de Aluizio Azevedo, por William Medeiros

domingo, 12 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 11

Acruche é de São Francisco de Itabapoana/RJ 
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Fonte:
Trova formatada obtida no facebook do autor

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) I

Balada do Voluntário da Pátria
Quando a guerra,
mostrou a sua verdadeira face,
beijei minha mãe em despedida,
e fui embora pro “front”.
Minha mãe continuou chorando
na beira daquele cais.
Enquanto o navio singrava
por águas repletas de sais.

Durante três semanas
naveguei naquele oceano,
com um único plano,
de eu não vir a me ferir.
A guerra tem dessas coisas:
A única lógica é
Inevitavelmente sucumbir.

Desembarquei naquelas terras,
E dentre charcos, pântanos e a escuridão,
Eu tinha que me salvar
Levando a bandeira de minha nação.

Balada do Cavaleiro Verde em Busca de Luar

Na garupa de meu cavalo,
vem quem eu possa confiar.
Pelos caminhos do mundo
onde a tirania não possa se instalar.
Levando na retina
a paisagem de cada lugar.
Trilhei por muitas terras
até onde meu galope pode alcançar.

Sempre manso no amor,
carinhoso no tratar,
e cruel na traição.
Na garupa do meu cavalo
só vem quem tem bom coração.
De onde eu vim
não queira me indagar:
Lá eu fiz a revolução.

Guerreei contra brutos,
armado só com o meu facão.
Deixei donzela apaixonada,
em alcova de grande mansão.

Por estradas vou andando,
galopando sem parar.
Meu cavalo é o companheiro,
quando se instala a solidão,
não tenho pouso,
só tenho a liberdade
entre as rédeas da minha mão.

Sou o cavaleiro verde,
vindo de longe do sertão.

O Anjo Exterminador

Coloquem pão ázimo
Por cima dos beirais
Para que eu possa identificar
A casa dos devotos
Tementes ao Senhor
Onde jamais Satanás
Poderá ali um dia
Querer se alojar.

Eu vou derramar dos céus
Chuva de fogo e enxofre
Para que tu possas
Saber que Deus
É o único em que se pode confiar.
Na entrada das cidades
Minha espada desembainhará
E escolherei aqueles que irei matar.

Botem pão ázimo
Em cima de vossos beirais
Para que eu possa identificar
A casa dos devotos
Tementes ao Senhor
Onde jamais Satanás
Poderá nela morar.

O vinho da ira da luxúria
Não mais irão beber
Descerão para as profundezas
Para que nelas se façam esquecer.
Por causa de tuas blasfêmias
Por conta de tuas profanações

Depositem pão ázimo
Por cima dos beirais
Para que eu possa identificar
A casa dos devotos
Tementes a Deus
Onde jamais Satanás
Poderá nela se aconchegar.

Abandonem as cidades
Fujam para as montanhas
Para que eu possa salvar.
Levem consigo seus filhos
a mulher e seus criados.
Levem até os seus animais,
As cidades eu o farei se incendiar.
E do céu um coro de anjos,
Descerá
Para celebrar a grandeza do Altíssimo
Até os séculos se findar.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

Irmãos Grimm (A Protegida de Maria)

Na orla de uma extensa floresta morava um lenhador e sua esposa. Eles tinham apenas uma filha, que era uma menina de três anos. Mas eles eram tão pobres que não tinham mais o pão de cada dia e já não sabiam o que haveriam de dar-lhe para comer.

Certa manhã o lenhador foi com grande preocupação até a floresta para cuidar de seu trabalho e, quando estava cortando lenha, lá apareceu de repente uma mulher alta e bela que trazia na cabeça uma coroa de estrelas cintilantes e lhe disse

"Sou a Virgem Maria, mãe do Menino Jesus, e tu és pobre e necessitado: traga-me tua filha, vou levá-la comigo, ser sua mãe e cuidar dela."

O lenhador obedeceu, foi buscar a filha e entregou-a à Virgem Maria, que a levou consigo para o Céu. Lá a menina passava muito bem, comia pão doce e bebia leite açucarado, e seus vestidos eram de ouro, e os anjinhos brincavam com ela.

Quando completou quatorze anos, a Virgem Maria a chamou e disse

"Querida menina, partirei em uma longa viagem; tome sob tua guarda as chaves das treze portas do reino celestial; tu poderás abrir doze delas e contemplar os esplendores que há lá dentro, mas a décima terceira, cuja chave é esta pequena aqui, está proibida para ti: cuidado para não abri-la, pois seria a tua infelicidade."

A menina prometeu ser obediente e, quando a Virgem Maria havia partido, começou a olhar os cômodos do reino celestial: a cada dia abria um deles, até que todos os doze tinham sido vistos. Em cada um dos cômodos estava sentado um apóstolo cercado de grande esplendor, e toda aquela suntuosidade e magnificência dava grande alegria a ela, e os anjinhos, que sempre a acompanhavam, alegravam-se também.

Até que, então, faltava apenas a porta proibida, e ela sentiu um grande desejo de saber o que estava escondido atrás dela. Por isso disse aos anjinhos

"Não abrirei a porta por inteiro e também não entrarei, mas vou entreabri-la para olharmos um pouquinho pela fresta."

- "Oh, não," disseram os anjinhos, "seria um pecado: a Virgem Maria proibiu fazer isso, além do mais, isso poderia facilmente trazer-te a desgraça."

Então ela se calou, mas o desejo não silenciou em seu coração, mas, ao contrário, continuou roendo e corroendo-a com força, não lhe permitindo ficar em paz. E certa vez, quando os anjinhos haviam todos saído, pensou

"Agora estou totalmente sozinha e poderia olhar lá dentro, afinal, ninguém ficará sabendo o que fiz."

Procurou a chave e, tão logo a apanhou, enfiou-a na fechadura e, uma vez ela estando lá, sem pensar duas vezes, girou-a.

A porta abriu de um salto e ela viu a Trindade sentada em meio ao fogo e à luz. Ficou parada um momento, observando tudo com assombro, depois tocou de leve com o dedo aquela luz, e o dedo ficou totalmente dourado.

No mesmo instante foi tomada de intenso pavor, bateu a porta com força e correu dali. Mas o pavor não diminuía, ela podia fazer o que fosse mas o coração continuava batendo acelerado e não havia como acalmá-lo: assim também o ouro continuou no dedo e não saía de jeito algum, não importa o quanto lavasse e esfregasse.

Não passou muito tempo e a Virgem Maria retornou de sua viagem. Ela chamou a menina e solicitou as chaves de volta.

Quando ela apresentou o molho, a Virgem olhou em seus olhos e perguntou:

"E não abriste mesmo a décima terceira porta?"

- "Não," respondeu.

Então ela pousou a mão sobre o coração da menina e sentiu como ele estava batendo sobressaltado, de modo que percebeu que sua ordem tinha sido desobedecida e a porta fora aberta.

Então perguntou mais uma vez:

"Realmente não a abriste?"

- "Não," respondeu a menina pela segunda vez.

Aí a Virgem avistou o dedo que ficara dourado pelo toque do fogo celestial e teve certeza de que ela pecara, e perguntou pela terceira vez:

"Não a abriste?"

- "Não," respondeu a menina pela terceira vez.

Então a Virgem Maria disse:

"Tu não me obedeceste e além disso ainda mentiste, portanto não és mais digna de permanecer no Céu."

Nesse momento a menina caiu em profundo sono e quando despertou jazia lá embaixo sobre a terra em meio a um lugar agreste. Quis gritar, mas não conseguiu emitir qualquer som. Levantou-se de um salto e quis fugir, mas para onde quer que se dirigisse sempre era detida por sebes espinhosas que não conseguia atravessar.

Nesse ermo em que estava encerrada havia uma velha árvore oca que agora teria de ser sua morada. Era lá para dentro que rastejava quando caía a noite, e era lá que dormia, e, quando vinham chuvas e tempestades, era lá que buscava abrigo. Levava uma vida lastimável, e quando recordava como tudo havia sido tão bom no Céu, e como os anjinhos costumavam brincar com ela, chorava amargamente. Raízes e frutas silvestres eram seus únicos alimentos, e ela os procurava ao redor até onde podia ir.

No outono juntava as nozes e folhas que haviam caído no chão e levava-as para o oco da árvore; comia as nozes no inverno e, quando chegavam a neve e o gelo, arrastava-se como um animalzinho para debaixo das folhas para não sentir frio.

Não demorou muito e suas vestimentas começaram a se rasgar e um pedaço após outro foi caindo do corpo. Tão logo o Sol voltava a brilhar trazendo o calor, ela saía e sentava-se diante da árvore e seus longos cabelos encobriam-na de todos os lados como um manto. Assim foi passando ano após ano e ela ia experimentando a miséria e sofrimento do mundo.

Uma vez, quando as árvores tinham acabado de cobrir-se outra vez de verde, o rei que lá reinava estava caçando na floresta e perseguia uma corça, e como esta havia se refugiado nos arbustos que rodeavam a clareira da floresta, ele desceu do cavalo e com sua espada foi arrancando o mato e abrindo caminho para poder passar.

Quando finalmente chegou do outro lado, avistou sob a árvore uma donzela de maravilhosa beleza que lá estava sentada totalmente coberta até os dedos dos pés pelos seus cabelos dourados. Ficou parado admirando-a com assombro até que finalmente dirigiu-lhe a palavra e disse:

"Quem és tu? Por que estás aqui no ermo?"

Mas ela não respondeu, pois sua boca estava selada. O rei falou novamente:

"Queres vir comigo até meu castelo?"

Ela apenas assentiu levemente com a cabeça. Então o rei a tomou nos braços, carregou-a até seu corcel e cavalgou com ela para casa, e, quando chegou ao castelo real, ordenou que a vestissem com belos trajes e tudo lhe foi dado em abundância.

Embora não pudesse falar, ela era afável e bela, e assim ele começou a amá-la do fundo de seu coração e, não demorou muito, casou-se com ela.

Quando se havia passado cerca de um ano, a rainha deu à luz um filho. Nessa mesma noite, quando estava deitada sozinha em seu leito, apareceu-lhe a Virgem Maria, que disse

"Se quiseres dizer a verdade e confessar que abriste a porta proibida, destravarei tua boca e devolverei tua fala, mas se insistires no pecado e teimares em negar, levarei comigo teu filho recém-nascido."

Nesse momento foi dado à rainha responder, porém ela manteve-se obstinada e disse:

"Não, não abri a porta proibida."

E a Virgem Maria tomou-lhe o filho recém-nascido dos braços e desapareceu com ele.

Na manhã seguinte, quando não foi possível encontrar a criança, começou a correr um murmúrio no meio do povo de que a rainha comia carne humana e teria matado seu próprio filho. Ela ouvia tudo isso e não podia dizer nada em contrário, mas o rei recusou-se a acreditar naquilo porque a amava muito.

Depois de um ano nasceu mais um filho da rainha. Naquela noite voltou a parecer a Virgem Maria junto dela dizendo:

"Se quiseres confessar que abriste a porta proibida, devolverei teu filho e soltarei tua língua; mas se insistires no pecado e negares, levarei também este recém-nascido comigo."

Então a rainha disse novamente:

"Não, não abri a porta proibida,"

E a Virgem tomou-lhe a criança dos braços e levou-a consigo para o Céu.

De manhã, quando mais uma vez uma criança havia desaparecido, o povo afirmou em voz bem alta que a rainha a tinha devorado, e os conselheiros do rei exigiram que ela fosse levada a julgamento. Mas o rei a amava tanto que não quis acreditar em nada, e ordenou aos conselheiros que, se não estivessem dispostos a sofrer castigos corporais ou mesmo a pena de morte, que deixassem de insistir no assunto.

No ano seguinte a rainha deu à luz uma linda filhinha e, pela terceira vez, apareceu à noite a Virgem Maria e disse:

– "Acompanha-me."

Tomou-a pela mão e conduziu-a até o Céu, mostrando-lhe então os dois meninos mais velhos, que riam e brincavam com o globo terrestre. A rainha alegrou-se com aquilo e a Virgem Maria disse:

"Teu coração ainda não se abrandou? Se confessares que abriste a porta proibida, devolverei teus dois filhinhos."

Mas a rainha respondeu pela terceira vez:

"Não, não abri a porta proibida."

Então a Virgem Maria a fez descer novamente à terra, tomando-lhe também a terceira criança.

Na manhã seguinte, quando a notícia correu, todo o povo gritava "a rainha come gente, ela tem que ser condenada," e o rei não conseguiu mais conter seus conselheiros.

Ela foi submetida a julgamento e, como não podia responder e se defender, foi condenada a morrer na fogueira.

Quando haviam juntado a lenha e ela estava amarrada a um pilar e o fogo começava a arder a sua volta, então derreteu-se o duro gelo do orgulho e seu coração encheu-se de arrependimento e ela pensou:

"Ah, se antes de morrer eu ao menos pudesse confessar que abri a porta."

Nesse momento voltou-lhe a voz e ela gritou com força

"Sim, Maria, eu a abri!"

No mesmo instante uma chuva começou a cair do céu apagando as chamas do fogo, e sobre sua cabeça irradiou uma luz, e a Virgem Maria desceu tendo os dois meninos, um de cada lado, e carregando a menina recém-nascida no colo.

Ela falou-lhe com bondade:

"Quem confessa e se arrepende de seu pecado, sempre é perdoado," e entregou-lhe as três crianças, soltou-lhe a língua e deu-lhe de presente a felicidade para a vida inteira.

Fonte:
Contos de Grimm

Folclore Brasileiro: Região Sul (João de Barro)

Contam os índios que foi assim que nasceu o pássaro joão-de-barro.

Segundo a lenda,  há muito tempo, numa tribo do sul do Brasil, um jovem se apaixonou por uma moça de grande beleza. Jaebé, o moço, foi pedi-la em casamento.

O pai dela então perguntou:

- Que provas podes dar de sua força para pretender a mão da moça mais formosa da tribo?

- As provas do meu amor! - respondeu o jovem Jaebé.

O velho gostou da resposta, mas achou o jovem atrevido, então disse:

- O último pretendente de minha fila falou que ficaria cinco dias em jejum e morreu no quarto dia.

- Pois eu digo que ficarei nove dias em jejum e não morrerei.

Toda a tribo se admirou com a coragem do jovem apaixonado. O velho ordenou que se desse início à prova. Então, enrolaram o rapaz num pesado couro de anta e ficaram dia e noite vigiando para que ele não saísse nem fosse alimentado. A jovem apaixonada chorava e implorava à deusa Lua que o mantivesse vivo. O tempo foi passando e certa manhã, a filha pediu ao pai:

- Já se passaram cinco dias. Não o deixe morrer.

E o velho respondeu:

- Ele é arrogante, falou nas forças do amor. Vamos ver o que acontece.

Esperou então até a última hora do novo dia, então ordenou:

- Vamos ver o que resta do arrogante Jaebé.

Quando abriram o couro da anta, Jaebé saltou ligeiro. Seus olhos brilharam, seu sorriso tinha uma luz mágica. Sua pele estava limpa e tinha cheiro de perfume de amêndoas. Todos se admiraram e ficaram mais admirados ainda quando o jovem, ao ver sua amada, se pôs a cantar como um pássaro enquanto seu corpo, aos poucos, se transformava num corpo de pássaro!

E foi naquele exato  momento que os raios do luar tocaram a jovem apaixonada, que também se viu transformada em um pássaro. E, então, ela saiu voando atrás de Jaebé, que a chamava para a floresta onde desapareceram para sempre.

Podemos constatar a prova do grande amor que uniu esses dois jovens no cuidado com que o joão-de-barro constrói sua casa e protege os filhotes. Os homens admiram o pássaro joão-de-barro porque se lembram da força de Jaebé, uma força que nasceu do amor e foi maior que a morte.

Fonte:
http://www.sohistoria.com.br/lendasemitos/br/

Natércia Campos (Almofala)

Para meu filho Zé,
cuja sombra foi levada no redemoinho
enfeitiçado de um rio e hoje vive
encantada em mim.

Em Almofala o vento errante era inexorável no seu eterno movimento a levantar os infinitos grãos de areia. Ele os espargia formando dunas e, em uma lentidão exasperante, as fazia caminhar ao seu sabor. O vento possuía magias ao impelir, invisível, as nuvens, tornando-as esfiapadas e etéreas, ao filtrar os raios de sol, e densas com formas grotescas de rostos e rebanhos, pesadas de chuvas, que as ensombravam. Os ventos chegavam ali de muito longe, das pradarias, vales, cordilheiras e oceanos, mas dependendo de sua natureza, podiam descer céleres, irados, dos espaços, causando vendavais e tormentas. Por vezes, vinham serenos, como brisa, roçando de leve o mar, ondulando as águas e as velas das embarcações. Eram constantes, dia e noite, e nada lhes barrava os caminhos. Com manha e paciência, eles conseguiam aplainar os obstáculos e desviar destinos. No ano em que os gêmeos nasceram, a igreja tornara-se um estranho mausoléu, soterrada pela areia. Emergia daquela singular elevação a torre com seu campanário ainda descoberto, a salvo, como um bizarro marco de sepultura. A menina veio à luz ao meio-dia, quando de repente os sinos repicaram magicamente, tocados pelas rajadas de areia fustigadas pela ventania. O menino só nasceu quando os ventos amainaram e ondularam suavemente, como um bafejo, a vegetação rasteira e os longos e agrestes caniços.

A mãe havia tido outros filhos homens que debandaram cedo, mundo afora, sem apegos, assim ela os criara. Os gêmeos nasceram temporãos, estranhas sementes trazidas pelo ar. A mulher percebeu nos filhos uma leve e contínua oscilação, como se o sopro do vento os envolvesse, a desabrochá-los. Com o tempo ela surpreendeu-se pela afeição extrema que dedicava àquela filha. Os gêmeos cresciam iguais, refletindo um a imagem do outro. Brincavam alheados no seu contínuo e brando vaivém. A menina, mais irrequieta, lembrava o vento de verão, desencadeado e solto a provocar os redemoinhos inesperados de areia. O menino, cada vez mais sereno, igual à aragem que antecede as monções camuflando tempestades. Juntos, pareciam duas correntes de ar a se completarem, e eram de grande valia à mãe. Esta procurava dar as tarefas mais pesadas ao filho, mas a menina jamais se distanciava do irmão nesses momentos.

Eram vistos cedo, ao levantar do sol, indo atalhar a cabra no bebedouro de água doce. Traziam-na docemente, puxando-a pela corda com seu chocalho soando como sinos e a mãe tirava o leite grosso e amarelado que os meninos bebiam no seu constante movimento de pêndulo, quando a areia se amontoava na soleira da casa, a mulher mandava que o menino a retirasse com a longa pá. A menina postava-se ao seu lado, tentando ajudá-lo, enchia com uma lata o balaio forrado de talas de palmeira, que os dois despejavam longe contra o vento. O menino acordava cedo e alvoroçado nos dias em que a mãe lavava roupa no córrego. A menina ia sempre adiante pulando a banhar-se na areia, agarrada à sua desconjuntada bruxa de pano. Ele levava as bacias, o sabão, emparelhado aos passos da mãe, que seguia calada com as trouxas e os vasilhames de comida. A mulher lavava os hábitos e panos das freiras e noviças do distante internato. A menina logo entrava na parte mais alta do arroio, molhando-se a gritar com algazarra. O menino auxiliava a mãe, cavando um grande buraco, para onde desviava a água corrente, deixando ali de molho as roupas, antes de começarem, juntos, o infindável esfregar. A mulher falava com ele ensinando-lhe, dando-lhe ordens, a que o filho obedecia, irmanado totalmente à voz e à figura da mãe. Era o grito da irmã, chamando-o, que o tirava daquele açodamento, e a contragosto sujeitava-se à vontade da mãe, que o mandava ir brincar com a menina. Ficava, no entanto, alerta ao primeiro chamado da mulher para vir ajudá-la a tirar a roupa do coradouro. Mais tarde, famintos, comiam o que a mãe esquentava na velha trempe deixada ali, à sombra das barreiras. À tardinha, recolhiam a roupa branca, que parecia cintilar, dobravam-na, e o cheiro gostoso de sol e sabão daquelas peças entravam-lhes pelo corpo. A mulher enfiava tudo em sacos, e regressavam, já a barra do final do dia surgindo no horizonte. À noite, a mãe sentava a filha no colo e passava óleo de coco nos seus cabelos, fazendo, com desvelo, duas longas tranças. O menino, da rede, olhava-as, sentindo-se apartado e infeliz. Percebia que conversavam baixinho e depois, juntas, rezavam. A mãe então embalava a filha, que, por fim, adormecia, ele continuava de olhos abertos, fitando a luz trêmula da lamparina, que parecia ampliar sua solidão.

Os gêmeos tinham por obrigação entrar na mata certos dias, a fim de apanharem gravetos e lenha, para a mãe acender o fogão de barro.

O menino levava com ele uma lata, e, antes de começar a tirar a madeira, procurava, sob as folhas peludas e grossas do muricizeiro, as frutinhas miúdas e amarelas que sua mãe apreciava. Os meninos haviam aprendido com ela a quebrar nos joelhos as forquilhas e pequenos pedaços de pau, enfeixando-os depois com um cipó. A menina ajudava o irmão a equilibrar na cabeça a rodilha de pano encimada pelo feixe das achas secas de lenha. Ele, ao chegar em casa, estendia para a mãe a lata com o murici, e á noite ela fazia para eles cambica com açúcar e farinha de mandioca. Os gêmeos às vezes eram chamados pelos homens dos roçados distantes. O menino então preparava contrito, enrolando em espiral, estreitas tiras de haste de buriti, que a menina, acocorada, atava com embira-do-mangue. Com este assobio de folha o menino chamava o vento, que descia manso, ajudando os homens na debulha das vagens de feijão e dos caroços de mamona. Quando era preciso o vento descer violento para as grandes queimadas de roçado e capoeiras, a menina o auxiliava, assobiando demorado e longamente. Recebiam, em troca, caça e frutas, que levava, para casa, onde a mãe já os esperava no alto da barreira de veios azinhavrados, parecendo minar ferrugem devido à maresia.

A mulher descera ao encontro deles e agarrara a filha com alegria, carregando-a nos braços. Nem chegou a perceber que ele trouxera um escuro ninho de abelha irapuá. O menino o encontrara no cerrado dependurado no cajueiro. Fizera de palha um facho em que ateou fogo e afugentara as abelhas. Desprendera da árvore o ninho cheio de mel e, amarrando-o na camisa, andara pelos caminhos com extremo cuidado para entregá-lo à mãe, pois sabia de sua preferência pelo mel dessa abelha.

Nessa noite, a lua cheia não o deixou dormir. Através da fresta da porta vira iluminadas a irmã e a mãe, rindo e conversando. Arredio, achegou-se a elas, que, alheadas à sua presença, partiam os favos, enxotando ás vezes alguma solitária abelha, e bebiam o mel, lambuzando-se até ficarem enjoadas e sonolentas. A mãe então banhou a menina, vestiu-a e penteou-a. Ele, já deitado, custou a dormir, sentindo-se desgarrado, como que perdido.

Prendia a custo o choro, que teimava em sair como soluços.

Na época em que sopraram os ventos elísios, em pleno estio, o menino fez uma grande cruz de cana, cobrindo as varetas com papel fino e de cor. Ele a empinava contra o vento e a mantinha segura quase solta no ar. De longe, aquela armação presa a uma comprida e bifurcada cauda de panos assemelhava-se ao peixe arraia, como se ele houvesse subido aos céus provido de asas. A irmã correu para junto dele acompanhando-o. Subia e descia barrancos, atravessava correntes finas de água doce, parecendo também prestes a voar. Ao subir até o alto do platô, para altear o voo da longínqua e diminuta cruz, é que o menino notou a irmã à sua frente. Meio tonto e sem ar, deteve-se atrás dela. Foi tudo tão rápido que ele chegou a sentir quando a menina estranhamente voluteou, perdendo o equilíbrio. Ele assistiu a irmã despencar-se na grota da alta barreira. Deu-se conta do silêncio pesado que a tudo envolveu quando o corpo parou de cair, no fim daquelas paredes profundas e sombrias. Correu alucinado até a casa e contou à mãe, em espasmos, o que acontecera. Ele a guiou até o cimo da barreira, onde os dois estacaram, olhando a menina ainda mais miúda semelhando-se a sua desconjuntada bruxa de pano. Desceram mãe e filho pelas dunas, dando largas voltas, apoiados às lombadas cavadas pela erosão. A menina já estava quase toda revestida de areia, que a ventania levantava em miríades de fino pó. Ambos sabiam que se não a levassem dali o vento a enterraria durante a noite, aplainando aquela elevação.

Enlaçados e, passo a passo, seus vultos, carregando a menina, projetavam-se em esquisitas sombras pelas dunas que se moviam caladas e inexoráveis. Na estrada das Almas, no alto do céu, o carreiro de Santiago atravessava o firmamento. Cansados, viram aflorar da areia a cumeeira da casa em vigília. Ela escutou, nas horas tardias da noite, o bimbalhar longínquo de sinos, choros e gemidos tangidos pelo vento, que até a madrugada se lançou em rajadas bruscas sobre a casa. Pela manhã, o menino não conseguiu abrir a pequena janela, algo fortemente a escorava. Saiu pela porta da frente notando que a casa parecia desequilibrada, estranhamente diminuída. Todo o lado de trás fora calçado pela areia, que se amontoara. De longe, lembrava-lhe um barco à deriva.

Sentiu que a mãe o fitava por cima de sua cabeça em um ponto muito além. Abraçou-se a ela, chorando desnorteado. Muito depois, quando suas lágrimas secaram, notou que o seu contínuo movimento de pêndulo cessara por completo. Dias depois a mãe costurara uma bata comprida, ajudando o filho, submisso, a vesti-la pela cabeça, como um saco. Desde então ele usou aquela veste, que o fazia ainda mais parecido com a irmã. Por onde o menino passava com aquele sambenito cheio de remendos e cerzidos, recordava a todos um pobre penitente nos autos-de-fé. Ele vivia cada vez mais ao redor da mãe, cheio de aflição, e seu olhar surpreso continha uma muda indagação.

A mulher nunca mudou os hábitos, continuou a dividir tudo em três porções, e mandava o filho ir chamar a irmã de volta para a casa. Ele obedecia, retornava em silêncio, esgueirando-se para perto do fogão, mas nunca se sentava no lugar que era o dela. Aos poucos, ele se confundia, tinha às vezes a vaga impressão da presença da menina. Ouvia a mãe conversar baixinho com a irmã, pedindo-lhe sempre para não sair de casa sem antes avisá-la. À noite armava as redes, cheirando lençóis, roupas da filha e abençoando-a. O menino há muito acostumara-se a dormir embalado pelo choro dorido da mãe. Certa noite de inverno escutou ao passar perto do mangue gritos que o assombraram. Ouviu vozes de animais, ruídos de pescador, caçador e alguém quebrava lenha colhendo mel das abelhas. Correu desesperado, contando à mãe sobre a visagem. Ela persignou-se falando: é o guajara que vive encantado no pântano.

A irmã encheu o tempo e a vida dele, devagarinho como o vento, presente e invisível. Notava já sua chegada, ao ouvir cicios de vozes e sussurros na aragem noturna, zumbido nas folhagens. Nas manhãs em que acompanhava a mãe ao córrego, olhava-se na água transparente como vidro e via refletida a sua imagem, tão clara, que mergulhava sôfrego ao seu encalço. Ele, enquanto viveu, foi sempre a sombra da irmã. Compartilhou sentimentos de amarguras, esperanças, sonhos e pesadelos. Só a mãe os separou, até o final dos seus dias. Foi ainda a irmã a última imagem que seus olhos viram ao apagarem-se. Estava ela à sua espera, ainda tão pequena, afogueada da subida ao platô, quando ele em um movimento brusco, igual a um traiçoeiro golpe de ar repentino e frio, empurrou-lhe as costas rumo ao abismo.

 (Natércia Campos, Iluminuras)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Natércia Campos

Natércia Campos de Saboya (Fortaleza, 1938 – 2004) publicou primeiro no suplemento literário de O Povo. Recebeu, depois, o 1º prêmio no 2º Concurso Literário do Banco Sudameris, que lhe foi outorgado pela Academia Botucatuense de Letras ao conto “A Escada”, em 1987. Em 1988, foi premiada pela IV Bienal Nestlé de Literatura Brasileira com o livro de contos Iluminuras (São Paulo: Editora Scipione, 1988). Suas histórias estão em antologias e periódicos: O Talento Cearense em Contos, Antologia do Conto Cearense, Quem Conta um Conto, Almanaque de Contos Cearenses e Letras ao Sol - Antologia da Literatura Cearense. Publicou também Por Terras de Camões e Cervantes - Relato de viagem a Portugal e Espanha (Imprensa Universitária do Ceará, 1998); A Noite das Fogueiras, romance fantástico (edições Fundação Demócrito Rocha, 1998); A Casa, romance, publicado em 2ª edição pela Editora UFC, Fortaleza, 2004; e Caminho das águas (Imprensa Universitária da UFC, 2001).

Os dramas vividos pelos personagens de Iluminuras parecem originados de lendas ou do lendário sertanejo, que, embora modificado, adaptado ao ambiente nordestino, tem suas raízes na cultura popular europeia ou, mais precisamente, ibérica. Vejam-se as histórias de gêmeos (“Almofala” e “O Rio”), do menino pagão (“O Pagão”), da velha rezadeira (presente em algumas narrativas), do pescador encantado (“Alumbramento”), da mulher solitária (pelo menos em duas), da menina enigmática (“Uma Velha Canção”, “A Menina” e “Lua Cris”), do menino ou da menina e do avô ou da avó (“Crisálida” e “Mãe Natureza”), do faroleiro e o navio fantasma (“O Farol”), do cordeiro imolado (“Perdão”) e do leproso (“Penitentes”).

Os ingredientes básicos destas narrativas são o ambiente, pode-se dizer, medieval, seja rural ou marítimo; a presença constante de personagens estranhos, como rezadeiras, loucos, visionários, encantados, deformados; as crenças e crendices como foco principal; o enigma embutido no conflito; e a linguagem mais para clássica (Alexandre Herculano) do que para a dos contos populares: “contam que...”, dos irmãos Grimm, Charles Perrault. Nada mais semelhante a um conto de fada do que “Uma Velha Canção”, no qual uma menina chora a morte da mãe, vive anos a fio com o pai e a ama num casarão, se cerca de gatos e, depois, só, é encontrada morta. “Muitos anos depois” o povo ouvia “uma voz de mulher, que cantava com suavidade uma velha canção”. E “Crisálida”, no qual avó e neta saíam para o povoado carregadas de alfenins, como Chapeuzinho Vermelho a conduzir docinhos pela floresta.

O ambiente das dunas de Almofala, do primeiro conto, é mostrado como num filme, com toda a sua exuberância, sem muitos adjetivos. A igreja soterrada pela areia, o campanário ainda descoberto, os barrancos, as correntes finas de água doce, o platô, a ventania. Nos demais contos, situados em lugares diversos, veem-se cemitérios, mosteiros, ermidas, caminhos, matos, brejos, rios, praias, o mar, onde se movimentam poucos ou solitários personagens. Em espaços menores, casa, alpendre, jardim, quarto, sala, personagens angustiados contam suas vidas ou têm narrados seus anos de solidão e dor.

As descrições de Natércia não constituem meros exercícios de linguagem. Ao contrário, servem de apoio às narrações e sem as quais estas pareceriam longas frases cheias de verbos e substantivos. Ocorre também a simultaneidade da narração ao longo do tempo e da descrição do ambiente. Esta nunca se dá de forma isolada, isto é, sempre antecede ou sucede a narração de um fato. Talvez nem seja assim: Não antecede nem sucede a narração, se faz durante a elaboração das frases. Como em “O Jardim”. Enquanto descreve o jardim, narra curtos episódios de um passado mais distante.

A linguagem de Natércia Campos é limpa, elegante e atraente. Nada de gírias, lugares-comuns, frases feitas. Os verbos são os mais propícios à narração e à descrição: adejar (os ventos adejavam), farfalhar (as folhagens), aconchegar (o xale), firmar (a vista), reter (o vulto) etc. Não se trata de linguagem pomposa, de difícil leitura. A escritora não tem necessidade de ostentar erudição. Também o uso frequente de nomes de objetos em desuso e outros substantivos, adjetivos e verbos esquecidos da maioria dos escritores brasileiros contemporâneos faz de Natércia Campos uma narradora singular.

As narrativas deste livro trazem enredos compostos de tons de suave impressionismo. A pintura medieval do ambiente está mais presente em “Iluminuras”. Medieval em sentido amplo, alegórico, do inconsciente: O cemitério, a cruz, as ervas, o mosteiro. Ambiente povoado de personagens antigos: O ferreiro, o fazedor de selas e arreios, o fabricante de armadilhas e gaiolas, monges, penitentes. Nada de sertões, romarias de Padre Cícero, devotas de todos os santos.

As crenças, as crendices, as lendas das histórias de Natércia foram colhidas, certamente, do imaginário popular e da própria memória da escritora: O guajara “que vive encantado no pântano”; o pagão encantado, que, morto, chorava sem parar e, após o batismo póstumo, se desencantou; o possuído pelo Maligno; a mulher (sereia) de “cântico dolente e fino”, “longos cabelos”, que afogou o menino (“Alumbramento”); a mulher solitária e suas visões de sombras, entes invisíveis. 

A presença de enigmas, em meio a superstições, é outra característica dos contos de Natércia. A começar pelos enredos ou pela fragmentação dos enredos. A morte da menina no primeiro conto se dá de forma misteriosa. Apesar de todo o amor do menino por ela, teria o ciúme (a mãe vivia “rindo e conversando” com a menina, enquanto ele se sentia “desgarrado, como que perdido”) motivado uma vingança? Teria sido ele o causador da morte da irmã? Em outro belíssimo conto, “A Menina”, narrado por uma mulher, qual o significado daquela menina assustada, sempre agarrada a seu carneirinho, que um dia apareceu e de repente foi embora? E a morte da menina gaza, que se “evaporou na areia ressequida”, para depois surgir “uma cerca de estranha folhagem gaza, por suas manchas esbranquiçadas”, no conto “Lua Cris”?

                A par disso, o drama psicológico está presente em todos os contos, sempre em narrações-descrições suaves, sem assombros para o leitor. “Almofala” é, sem dúvida, uma obra-prima do conto brasileiro contemporâneo, de uma profundidade nunca vista. Nesta e em outras narrativas a descrição do ambiente se faz com cores naturais. O ambiente em que viviam os gêmeos – as dunas, o vento, a casa – tudo está retratado com fidelidade. E que dizer da descrição, ou da aposição no ambiente, de objetos de uso doméstico e diário, como chocalho de cabra, balaio, trempe, lamparina, fogão de barro, panela de barro, rodilha de pano? Tudo por necessidade da narração, nada como simples enfeite, adereço literário.

Natércia Campos também utiliza com frequência o cruzamento dos tempos e das ações. No primeiro conto, por exemplo, o conflito se instaura lentamente, desde o nascimento do menino e da menina, vai se engrandecendo aos poucos, nos pequenos atos, no dia-a-dia, até o ápice – que ainda não é o ápice – quando o menino “assistiu a irmã despencar-se na grota da alta barreira”. O desfecho – muitos anos depois, quando os olhos do menino se apagaram – nas últimas frases do conto, revela todo o drama, toda a tragédia dos gêmeos.

                Esses dramas psicológicos se apresentam em variadas conotações, especialmente no medo, na solidão e no abandono dos personagens. Do homem do mar, sempre às voltas com o insondável, o mistério, o absoluto, a morte, como em “Alumbramento”. Da mulher solitária em permanente contato com os fantasmas dos parentes mortos, sombras, seres perceptíveis somente pelos sentidos internos, e que conduzem à loucura (“Eles”). Do leproso, o papa-figo, em suas andanças, a tanger uma matraca, em aviso de sua condição. Das mulheres solitárias e seus presságios, os maus agouros, as superstições. Na dor e na morte da mulher que ensopou com querosene a lã do cordeiro e lhe ateou fogo, o cordeiro de Deus, o agnus Dei da oração e da inscrição no conto “Perdão”.

                Não se sabe a origem das obras literárias: como nascem, se formulam. Fala-se em missão, destino, vocação, dom, inspiração. Talvez hajam sido as fadas as inspiradoras de Natércia Campos. Com a ajuda de Herculano, Grimm, Perrault, Moreira Campos. Seja como for, o conjunto de seus contos de fadas, o seu fadário, o seu destino é ser Natércia Campos.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 20 – 18 de junho de 1887

Rosa de Malherbe, ó rosa
Velha como as botas velhas,
Que foste grata e cheirosa,
E ora desprezada engelhas;

Rosa de todos os vasos,
De todas as mãos humanas,
Trazida a todos os casos,
Com lírios e com bananas;

Rosa trivial e chocha,
Pior que as mal fabricadas,
Menos que rosa, uma trouxa
De folhas esfarrapadas,

Não por má, não que não prestes,
Não que não sejas ainda
A mesma rosa que deste
Vida e cor à estrofe linda,

Mas porque é nosso costume,
Se achamos um dito a jeito
Tirar-lhe todo o chorume
Até deixá-lo desfeito.

Às vezes, menos que um dito,
Uma locução somente,
Um verbo novo ou bonito,
Pelintra ou cousa decente...

Vagabundo é que não anda;
Terá tanto e tanto emprego
De salão ou de quitanda
Que nunca achará sossego;

Até que lá vem um dia,
Em que o infeliz surrado,
Gasto, podre, sem valia,
Ao lixo é abandonado.

Lá vou eu buscar-te, ó rosa
De Malherbe; é necessário
Fazer citação dengosa
Num caso extraordinário.

Não o caso pavoroso
Do sindicato, alta e baixa.
Negocio tão ponderoso
Que acabou quebrando a caixa.

Demais, ouço tais notícias,
Tantas cousas segredadas,
Que só pegando em milícias
Para rimar com pancadas.

Posto que essa rosa bela
Viveu, como as outras rosas,
Um dia, e sem mais aquela
Perdeu as folhas viçosas.

Não trato dessa, mas trato
Da rosa legislativa,
Nascida sem aparato,
Morta quando apenas viva.

Foi o senador Uchoa
Que lhe deu vida e nascença,
Pareceu-lhe a idéia boa,
Propô-la sem mais detença.

Em verdade, não contava
Ninguém com tal aditivo;
Foi como uma vaca brava
Ao pé de um par pensativo.

De mais a mais, sem discurso,
Modesto, calado e manso;
Mal comparando, era um urso
Metido em pernas de ganso.

Urso, embora parecesse
Ao golpe das mãos humanas,
Podia ser que vivesse
Uma, duas, três semanas.

Era vir, tambor à frente,
Polcando ao som de rabeca,
Lançando ao ar, como gente,
Foguete, bomba ou peteca.

Menos de um mês viveria;
Mas, surgindo assim calado,
Viveu apenas um dia,
Foi morto e foi sepultado.

Lá que mais tarde apareça
Em forma de idéia nova,
E que outrem se desvaneça
De o passar por outra prova,

De maneira que essa rosa,
Que foi rosa e que foi urso,
Ganso e vaca furiosa,
Passe a sol nalgum discurso,

Não me espantará. Comigo
Uma só cousa há que espante:
Se desta vez a não digo
É falta de consoante.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Humberto de Campos (Os Submarinos)

À margem do Tietê, em lugar em que o rio se tornava mais claro e menos profundo, tomavam banho, uma tarde, sete ou oito crianças, de quatro a nove anos, entre as quais uma encantadora menina, a Lili, irmã do Armindinho, que era, no grupo, o mais insuportável e barulhento. Com a inocência peculiar à idade, apresentavam-se todos despidinhos, nadando, mergulhando, pulando, como um bando de golfinhos irrequietos.

O barulho que faziam, era, como facilmente se imagina, ensurdecedor. Entregues a si mesmos, rolavam-se na areia, atiravam-se terra, empurravam-se, nadando, ora de papo para cima, ora de papo para baixo, com as mãos em movimento dentro dágua, no "nado de cachorro", batendo com os pés, na imitação dos navios de roda, ou de barriga para o sol, agitando os braços ritmadamente, como escaleres em marcha pelo impulso regular de dois remos.

Estavam os pequeninos tritões no mais aceso do entusiasmo, quando o Armindinho propôs, gritando:

- Vamos brincar de submarino?

- Vamos! - concordaram os outros, aos pulos, com o busto fora dágua. - Vamos!

Unindo o gesto à palavra, o Armindinho atirou-se à frente dos companheiros, nadando, ágil, de peito para o ar, meio submerso, dando marcha ao corpo com o movimento das mãos debaixo dágua. Imitando o inovador, os outros pirralhos fizeram o mesmo, de papo para cima,, pernas estiradas, silenciosos, como uma verdadeira flotilha de submersíveis.

Momentos depois, de volta à margem, iam repetir a proeza, quando a Lili pediu, nuazinha, batendo as mãos:

- Eu também vou, mano, eu também vou! Sim?

O Armindinho encarou-a, com a superioridade de um oficial alemão, e protestou:

- Não; você não pode!

E virando-se para um dos companheirinhos, explicou, com a maior inocência do mundo:

- Ela não tem periscópio; não é?

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze.

Aluízio Azevedo (Vida Literária) Literatura nacional 1

Agora, sempre que por aí se fala de literatura nacional, diz-se que ultimamente há grande desfalecimento entre os escritores brasileiros e que diminui o numero de volumes publicados, e que só se escreve sobre finanças e sobre política.

É exato. Mas a culpa não é dos escritores; é das dificuldades que se apresentam hoje em dia para realizar a publicação de qualquer trabalho. A falecida baronesa de Mamanguape levou os seus últimos anos de vida a publicar; na casa Pinheiro, um volume de versos, que nunca veio à luz e lhe abreviou naturalmente os dias de existência.

Aluízio Azevedo, tem há quase ano e meio, um volume de contos a publicar-se na casa Mont'Alverne, hoje Companhia Editora; e, apesar de haver pago adiantado a primeira folha de composição, ainda não teve o prazer de ver uma página impressa do seu livro; outros e outros homens de letras queixam-se de iguais contrariedades, e não é natural que alguém se disponha a escrever com boa vontade, tendo uma obra encalhada no prelo.

Repetimos: a culpa não é de quem escreve; a culpa é dos que imprimem. Hoje, no Rio de Janeiro, dar um livro à publicidade é quase tão difícil como viver, ou talvez mais ainda, se atendermos ao que por aí vai pelas tipografias e casas editoras.

É que no Rio de Janeiro atualmente, ninguém quer trabalhar. A febre do jogo, criada desde o ministério Ouro-Preto e desenvolvida depois pela revolução, o desespero de enriquecer forte e rapidamente, o desalento causado pelos graves prejuízos trazidos pelo descalabro de companhias, que eram a grande esperança dos ambiciosos; tudo isso transformou a maior parte da população fluminense num infernal bando de jogatineiros decavés, doidos perdidos, furiosos, desanimados, sem vintém e sem ânimo para o mais insignificante trabalho honesto.

Vai-se a uma tipografia para imprimir uma obra. Aparece-nos o dono da casa, triste, desorientado, pensando nas suas tantas mil ações sem valor, e ouve-nos distraidamente, sem conseguir ligar importância ao trabalho que lhe encomendamos; e, quando lá voltamos, o homem já nem se lembra do que lhe dissemos a primeira vez.

Mas, se apesar de tudo, a encomenda fica feita, por um preço paradoxal, e tornamos lá para ver as provas, ai! que triste espetáculo nos espera! Cada tipógrafo é também uma vítima da bolsa; cada tipógrafo tem em casa, inúteis como um baralho de bilhetes brancos de loteria, unia infinidade de títulos de companhias arrebentadas.

E, macambúzio, dedos enterrados no cabelo, cotovelos fincados na caixa de composição, cada desgraçado desses olha sonambulamente para os tipos empastelados, mortos, emudecidos e cobertos de pó, e não encontra em si coragem para compor um paquet.

Compor! Trabalhar! Para quê?... Para receber uma soldada que, com os preços atuais do pão, mal chega para não morrer de fome?... Ganhar 5$000 por dia, quando, se não rebentasse tal companhia ou banco tal, deveríamos empolgar 300 ou 400 contos?... Não! definitivamente não há valor de homem capaz de ir até lá!

E o tipógrafo, convencido de que não vale a pena trabalhar tão resignadamente para ganhar tão pouco, faz como a maior parte dos operários, toma o chapéu, despede-se da casa em que está empregado, e sai de cabeça baixa e o coração encharcado de desalento; vai pedir dinheiro emprestado a um amigo, ou empenhar alguma joiazinha da mulher, para correr à roleta, que nada mais e do que a caricatura da bolsa; a roleta a ultima esperança de lucro rápido; a roleta, donde o infeliz nunca mais voltará ao trabalho e à dignidade da vida, porque a engrenagem daquela máquina infernal jamais largou a presa que lhe caiu nos dentes!

E diz o dono da tipografia, quando o autor vai à vigésima vez, pelas provas do seu pobre livro:

- Vê, meu caro senhor?... Estou sem gente!... Os operários foram-se todos! Estou disposto a pagar o duplo do que pagava dantes, mas ninguém aparece! E se isto continua assim - fecho a porta!

E a verdade inteira é que este dono de tipografia está morrendo por fazer como fez o tipógrafo: correr à roleta! Correr à tavolagem!

E lá, em volta dos malditos trinta e oito números, de 0O a 36, ou à música implacável do Trente et quarente irá ele encontrar como em uma praia de desilusão todos esses náufragos da megalomania, arrojadas à casa do jogo pelas ondas do oceano da bolsa.

Todos lá vão ter, desde o assombroso titular até o magro poeta, que interrompeu os estudos, para meter-se no ensilhamento. Banqueiros, doutores, funcionários públicos, artistas, caixeiros, todos, todos!

Triste e desconsoladora romaria que só tem uma fé - ganhar. Só tem uma esperança - levar a banca à glória.

Todos e tudo lá vão ter à praia da tavolagem. Sim, meus senhores, aqueles belos carros, aqueles cavalos de raça, aqueles diamantes, tudo isso rolará para sempre na areia e, com os tipos da composição e com as páginas, os poetas e prosadores.

O Combate, 2 de março de 1892.

Fonte:
Biblioteca Virtual de Literatura
Imagem de Aluizio Azevedo, por William Medeiros