quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A Saudade em Sonetos Diversos IV

JORGE AZEVEDO
Essas coisas da vida


Essas coisas da vida a gente nunca esquece...
Um longo beijo ao luar... uma mentira linda...
Num suspiro de amor... num sussurro de prece,
Guardar de toda boca uma saudade infinda...

E então quando se é moço e o ardor não arrefece,
Goza-se a mocidade enquanto ela não finda...
Da vida bem vivida o ocaso recrudesce
A tristeza de não poder mentir ainda...

E a minha mocidade em beijos se avigora,
Encontra em toda boca uma esplendente aurora
E em todo amor um sol em que febril, se aquece...

E na efemeridade em que ela se resume,
O consolo a lembrar... lembrar... pois ao perfume
Dessas coisas da vida a gente refloresce...

JÚLIO SALUSSE
Cisnes


A vida, manso lago azul algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós constantemente
Um lago azul, sem ondas nem espumas.

Bem cedo quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vogamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.

Um dia um cisne morrerá, por certo...
Quando chegar esse momento incerto,
No lago onde talvez a água se tisne,

Que o cisne vivo cheio de saudade
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado d'outro cisne.

LUÍS PISTARINI
O seu retrato


Ela mandou-me, há dias, o retrato,
— Um belo mimo em platinotipia —
Que eu não canso de ver, e, dia a dia
Mais se me torna bem querido e grato,

Porque quando entre angústias me debato,
Triste nas horas de melancolia,
Basta fitá-lo, para que a alegria
Banhe de luz o meu viver ingrato.

Lembro-me dela, então saudosamente;
E, a sorrir, nesses rápidos instantes,
Eu me inflamo de amor de um modo tal,

Que lhe beijo o retrato longamente,
Com o mesmo ardor com que beijava dantes,
Jubiloso e feliz, o original...

MANUEL BANDEIRA
À maneira de Olegário Mariano


Triste flor de milonga ao abandono,
Betsabé, Betsabé, que mal me fazes!
Ontem, a coqueluche dos rapazes,
E agora? pobre pássaro sem dono.

Primavera e verão foram-se. O outono
Chegou. Folhas no chão... Névoas falazes...
E aí vem o inverno... O fim das lindas frases...
O último sonho, e após, o último sono!

As cigarras calaram-se. Era tarde!
E hoje que no teu sangue já não arde
O fogo em que tanta alma se abrasou,

Choras, sem compreenderes que a saudade
É um bem maior do que a felicidade,
Porque é a felicidade que ficou!

MARCELO GAMA
Catavento

 

Vim sarar tédios, longe da cidade,
A convite e conselho de um amigo,
Neste sombrio casarão antigo
Onde tudo tem ares de saudade.

— "Vem para o campo que a paisagem há de
Curar-te". Mas, curar-me não consigo:
Ontem o riso esteve bem comigo;
Hoje me sinto cheio de ansiedade.

Sou assim, como as asas do moinho
Que, lá distante, à beira do caminho,
Por entre casas velhas aparece:

Gira ao norte... ora ao sul... depressa... lento...
Parece doido aquele catavento!...
Mas como ele comigo se parece!

MARIA EUGÊNIA CELSO
Meu Céu


És para alguns a fúlgida certeza
De outra vida vivida em perfeição,
Uma esperança de compensação
Ao velho mal de toda a natureza.

Felicidade, sem a atroz surpresa
Do amanhã destruidor, eterna união,
Recompensa, esplendor, paz e perdão,
Luz sem ocaso em formosura acesa...

Meu céu, no entanto, a pátria imorredoura
Do sonho de ventura em que me assombro
E meu quinhão de glórias entesoura,

Céu que um reflexo de saudades doura,
Seria se, de novo, no meu ombro,
Pousasses, filho, a cabecinha loura...

MARTINS FONTES
Sol das almas


À última luz que doira as tardes calmas,
À última luz de amor que beija o poente,
Se dá, no meu país, poeticamente,
A denominação de "Sol das Almas"!

Na montanha, a palmeira, de repente,
Brilha! O mistério lhe incandesce as palmas!
Para outro mundo leva o pó das salmas
A luminosidade comovente!

Vai morrer e ainda fulge! Ainda! Ainda!
Como um sorriso, finda a claridade,
Como um soluço, a claridade finda!

Adeus! Adeus! É o fim da Mocidade!
Nunca mais! Nunca mais! E era tão linda!
Qual é teu nome, Luz do Azul? — Saudade.

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/saudoso.htm

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O Conde Soldadinho

Recolhido no Algarve

Junto do palácio do rei morava um pobre soldado; no dia e hora em que nasceu um filho ao rei, também a mulher do soldado teve um filho. Aconteceu serem muito amigos um do outro, e o rei como era justiceiro e de bom coração deixou que o soldado e a mulher viessem viver para o palácio, para as duas crianças brincarem juntas.

Chamavam todos no palácio ao rapaz o Conde Soldadinho; ele acompanhava o príncipe a todas as festas e caçadas.

Uma vez andava o príncipe à caça, e achou-se ardendo em sede. O Conde Soldadinho foi-lhe arranjar água; daí a pedaço veio com um lindo jarro cheio de água fresca.

– Quem é que te deu um jarro tão bonito?

– Foi numa pobre cabana; e que faria se o príncipe visse a mãozinha que me deu!

Foram ambos levar o jarro à cabana, e o príncipe ficou logo apaixonado por uma rapariga muito linda que ali morava. Tomou amores com ela, ia vê-la em segredo, até que prometeu casamento para obter tudo o que queria. Temendo que o rei soubesse daqueles amores, nunca mais voltou à cabaninha, mas andava muito triste com saudades. A rapariga, que não sabia que o namorado era o príncipe, veio à corte deitar-se aos pés do rei para lhe valer:

– Supondo, servo de Deus
Na terra fazeis de rei
E que sempre sem suspeita
Fazeis justiça direita;
Pois mui alto rei sabei
Que a mim um cavaleiro
Com um amor verdadeiro
Protestou ser meu marido,
E entrou no meu aposento
Conseguiu o seu intento;
E eu como humilde criada
Batida e infamada
Neste campo de mudança
Peço aos vossos pés vingança.

O rei disse:

Levantai-vos nobre dama,
Cobrarás crédito e fama,
Que será bem castigado
O que vos tem desonrado.

E mandou chamar o príncipe, que estava passeando no jardim para vir à sua presença; o príncipe veio suspirando:

A ela trago em pensamento,
Por ela estou num tormento.

O Conde Soldadinho, que o acompanhava disse: – Pois por uma pobre pastora suspirais!

– Calai-vos, meu amigo; que também eras soldado, e meu pai vos fez conde sem o teres merecido.

Quando chegou à presença do rei contou-lhe tudo, e o rei deu-lhe ordem para casar com a pastora.
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Notas Comparativas

Pertence ao ciclo do amigo que se sacrifica; não há aqui a morte, mas a sua importância provém da parte metrificada, que revela a dissolução de uma obra dramática.


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 36 – 15 de novembro de 1887.

Ora, mal sabe a pessoa
Que lê estas linhas toscas,
Compostas assim à toa,
Entregues ao prelo e às moscas,

Mal sabe o susto que tive
Nas eleições da semana:
Vi Cartago, vi Ninive,
Vi além da Taprobana:

Por isso darei ao verso
Certo tom grave e pausado,
Diverso, muito diverso
Do meu tom acostumado,

E, se não, amigo, veja:
Batendo a hora do voto,
Vesti-me e fui para a igreja
Como um eleitor devoto.

Tinha comigo o diploma,
E a lista dos meus eleitos,
Fechada com boa goma,
Juntinha, agarrada aos peitos.

Começou pela chamada ...
Sei que sabe que ainda estamos
Nesta usança desusada
De só votar quem chamamos.

Dizia o mesário: — Antônio
Vaz de Souza, e repetia,
Depois: — Arlindo Theotônio
De Vasconcellos Faria.

E Arlindo, que era presente,
Levava o diploma aberto
Aos olhos do presidente,
Votava, e rápido, e certo,

Escrevia o nome: — Arlindo
Theotônio de Vasconcellos
Faria. — Trabalho findo,
Ia ao bife e ao Carcavelhos.

Mas o curioso, o incrível,
O trágico, o inopinado,
O que parece impossível
E entanto foi praticado,

É que entre os nomes dos vivos
Tinha nomes de defuntos,
De tantos que ora, entre os divos,
Gozam o descanso juntos.

E não defuntos de agora,
Mas de alguns anos passados,
Alguns que a pátria inda chora,
Outros pouco ou mal chorados.

Essa chamada de mortos
Trouxe-me um sono profundo,
Fui sentindo os olhos tortos,
E o mundo ao pé do outro mundo.

Primeiro vi Duque-Estrada
Teixeira — chegar sombrio
Para acudir à chamada
Feita no seu pátrio Rio.

Vi depois o Azevedo
Peçanha, vi a figura
Do Buarque de Macedo,
Labor, honradez, cordura.

Vi outros muitos, vi tudo,
E, continuando o mistério,
Vi, com gesto carrancudo,
A história e o seu cemitério.

Numerar os esqueletos
Que entrar vi na sacristia,
Já bolorentos ou pretos,
É obra que excede a um dia.

Vi César e mais as suas
Válidas tropas, vi Galba,
Maomé e as meias luas
E os três Curiácios de Alba.

Nino vi, Giges, e aquela
Semíramis, graça e fama,
Cleópatra, e a donzela
D'Orleans, Vasco da Gama,

Pedro o Grande, Henrique Oitavo,
Amílcar, os comerciantes
Cartagineses, Gandavo,
Napoleão e Cervantes.

E vinham todos trazendo
Uma cédula entre os ossos
Ao mesário, que ia lendo,
Os nomes desses destroços.

Sonho foi... Quando desperto,
Não achei mais que o sacrista,
A mesa vazia perto,
Nem mais eleitor nem lista,

Tonto do meu pesadelo,
Contei-o ao sacrista, e o moço
Facilitou-me entendê-lo,
Ambos à mesa do almoço:

— “Nada lhe aconteceria
Se a lista dos eleitores
Pudesse ter algum dia
Revisão e revisores.

“Se fosse oportunamente
Cada morto eliminado,
Nenhum seria presente
E muito menos chamado.

“Mas, como a preguiça é grande
E os trabalhos são massudos...
E não há quem nisto mande...
E os tempos andam bicudos...

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas – 2 -

CLAUDER ARCANJO

Clauder Arcanjo (Antonio C. Alves A.) nasceu em Santana do Acaraú, 1963. Engenheiro Civil, funcionário da Petrobrás desde 1985. Um dos coordenadores do Projeto Pedagogia da Gestão, voltado para gestão, educação e cultura. Cronista semanal da Gazeta do Oeste, de Mossoró-RN, e resenhista da Papangu, revista de humor e cultura do Rio Grande do Norte. Colaborador de Literatura – Revista do Escritor Brasileiro e Caos Portátil: um almanaque de contos. Distinguido com menção honrosa no Prêmio Literário Cidade do Recife, 2004, na categoria contos. Publicou o volume de contos Licânia (Mossoró: Sarau das Letra Editora, 2007) e tem, inéditos, um romance, um conjunto de poemas, um de contos, um de resenhas literárias e outro de crônicas.

                Licânia contém 24 narrativas curtas. O título do volume vem da cidade onde ocorrem alguns dos dramas. Em “A casa” se conta a história do regresso de um homem a Licânia, depois de anos de andanças pelo mundo. “Abelardo desceu do velho ônibus de linha, estirando as pernas, correu a vista pela praça central” (...) Mas há outras cidades, como em “Cemitério”, no qual se descreve povaréu sertanejo com esse nome. O sertão, o lugarejo, a pequena cidade são o palco da maioria dessas histórias. Em composições como “O curral das éguas” e “Negócios de feira” se narram o mundo rural ou das cidades pequenas do Nordeste. A referência a partes desse ambiente, objetos, meios de transporte, etc., é frequente no livro: a porteira grande, a tramela, as montarias. E também o uso de alguns vocábulos e expressões regionais: farnesim, abestalhado, alpendre, coivara, cacimba, caneca, alpercata, dismilinguido, caritó, vixe-Maria!, lamparina a querosene, tamborete de couro cru, etc.

                Ao lado das narrativas ambientadas no espaço rural ou em cidade pequena, de um passado recente, Clauder inventa também dramas para a cidade grande em curtas tragédias urbanas. Em “A rua” se narra a morte de menino pobre por atropelamento, como numa crônica. Os problemas sociais são preocupação do cronista, como se pode ver em “Menina de rua”: “Um vulto de um pequeno ser foi visto a se esgueirar por entre os becos da cidade. Era uma menina”. Uma das mais pungentes crônicas do livro também se volta para esse tipo de problema, sobretudo quando envolve crianças: “Moeda ao chão”.

                O escritor cearense pratica com habilidade certo tipo de conto, o chamado “conto de personagem”. “Identidade” é um deles. Brito se descreve e narra suas peripécias desde a infância até a idade adulta e a morte. “Boné azul” se inicia com a descrição do prédio de um colégio e do seu cotidiano. Após isso, o narrador se refere ao personagem, o menino Frederico. E somente no final o boné azul aparece. Em “Despedida” dois seres fictícios – o velho Xandico e o cachorro Dante – vivem uma história de amizade. “Dona Tarcisa”, com muito humor, é todo voltado para o nome da personagem. “Perneta” é história de pescador, de valentia e amor. “Jesuíno” também se enquadra nesta categoria de conto, em ambiente de seca no sertão.

                São tênues os limites que separam o conto da crônica. Entretanto, é fácil encontrar em Licânia algumas crônicas. Assim se pode ler “O cavaleiro do mar”. Ou “Zeca e os pombos”, em que o próprio narrador se diz cronista. Mas há também alegorias, como “O pó de chinelo”. Ou historinhas que poderiam compor outro tipo de livro, como “A mala”. Ou sátiras da sociedade, do comportamento do homem urbano moderno (“As sandálias da humildade”). Entretanto, bons contos povoam a coleção, como “O grito”, constituído de elipses narrativas. Ou “O riso do cão”, misterioso em sua elaboração, com certo quê de fantástico. Do mesmo naipe é “Samira”, em que a narradora, enlouquecida, relembra fatos da infância e, sobretudo, o estupro de que foi vítima. Também “Sonho de almirante” é inusitado: o amor de dois meninos, a morte de um deles, a velhice do outro.

                Clauder Arcanjo pouco se vale do diálogo na construção dos contos e crônicas. Algumas falas ele as apresenta entre aspas. Outras, precedidas de travessão. Prefere a narração tradicional, sem malabarismos: sujeito, verbo, predicado. Frases curtas, simples. Vocabulário de uso comum. Em razão disso, não se perde em descrições, explicações, informações inúteis, redundantes ou inaceitáveis na prosa de ficção moderna. Ou seja, não cansa nem irrita o leitor.

                                                                       ***
FELIPE BARROSO

                Felipe Barroso nasceu em 1963, na capital cearense. Professor universitário e advogado. Ao publicar o “despretensioso livrinho” O Velho Que Ainda Escrevia Cartas de Amor, premiado no II Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Ceará, Felipe Barroso entrou em 2005 para o clube dos contistas, essa entidade sem fins lucrativos que tanto tem atraído jovens leitores. Desde cedo tem se dedicado a leituras e exercícios literários. Passados quase vinte anos, maduro, Felipe mostra a cara a outros leitores.

                O livro é miúdo, cerca de setenta páginas. São apenas dezoito composições. Quase todas narradas na primeira pessoa: ora personagens menores, ora protagonistas. No primeiro caso, os seres fictícios “descritos” são ridicularizados, caricaturas pintadas com borrões. Sebastião Ragadásio tem “queixo de macaco e cabelo crespo e muito ralo”. Abdoral Malveiras, comendador, “tinha uma deformação na mão”; “de tanto segurar o fuzil durante a guerra, sua mãe adquirira o formato de um cano de fuzil”. Teresa, de “Teresa, a bruxa” (o título diz tudo), mostrava “cara enfezada dos velhos”. O narrador arremata a história assim: “Vai, bruxa da cidade grande, com teus olhos exoftálmicos e pêlos pendentes no queixo, voar sem vassoura, mas em asa de sonho”. (...) “Vai beber uísque bom na tua casa linda lá na zona oeste do céu”. São todas pessoas velhas, muito velhas. A velhice é, para esses narradores, deformação física e mental. Decadência. Nas breves descrições desses velhos, os defeitos são visíveis e fundamentais: Ragadásio lembrava um macaco, além de ter uma perna mecânica; o centenário Abdoral parecia um fuzil andante; Teresa, bruxa moderna, contava mais de noventa anos. A protagonista de “A morte e a duquesa”, aos 88 anos, pediu ao sobrinho médico “uma morte instantânea”, com a ingestão de “um pouquinho de cianeto”. Os cegos de “Aniversário” são um velho e uma velha num restaurante. E, para completar o naipe, a história que dá título ao volume, do septuagenário que foge de casa no dia do seu aniversário.

                Há também crianças e jovens nas composições de Felipe. Como em “Menino e trocador”, em cena ocorrida dentro de ônibus urbano. O narrador demonstra profunda simpatia e ternura pelo garoto e antipatia pelo cobrador do coletivo. Nessa linha do cotidiano na cidade grande, de denúncia de problemas sociais, o contista se aproxima do cronista, como em “Bancos de aluguel”. O protagonista é típico malandro urbano, o que faz de tudo para ganhar dinheiro: engraxate há mais de quinze anos, aluga os bancos da praça aos transeuntes que queiram sentar.

                Crônicas e poemas em prosa também fazem parte do livro: como na linguagem correta e elegante de “Let’s dance”, no satírico “Manifesto urbanista”, no enigmático “A noiva de Bristol”, na suavidade de “Aniversário”, no poético “O homem do mar”. E não falta humor, como em “Número errado”.

                Felipe Barroso sabe conduzir a narração, sem se perder em observações ou explicações, e também maneja com cuidado o diálogo. Nada de falas intermináveis, conversas que se desviam do enredo. Tudo curto, em frases enxutas e sem o uso antiquado dos verbos introdutores do relato do discurso. Mesmo quando dá voz a uma pessoa da ralé, como o engraxate de “Bancos de aluguel”. A fala não é, obviamente, literária, mas o leitor afeito à gramática não se emaranha nas armadilhas do arrazoado do narrador. Em “Manhã na repartição” o expediente (sem trocadilho) usado pelo contista é semelhante ao anterior: após um travessão, vem a fala de Gardênia; outro travessão e nova fala (de personagem sem nome explícito, funcionária da copa), e assim até o final.

                Não nos cabe indagar se Felipe morou ou passou dias em Londres. Entretanto, é possível imaginar uma dessas possibilidades pela leitura de peças como “A noiva de Bristol” e “Aniversário”. Mas há também “Negro fado”, ambientado em Lisboa. Imaginações ou não, os três podem ser catalogados como crônicas, mesmo que há muito se venham esgarçando as definições dos gêneros literários.

                O Ceará não poderia estar ausente, como espaço geográfico, das narrativas de Felipe. Em alguns contos não há nenhuma menção a nomes de cidades, logradouros ou prédios históricos, mas quem conhece Fortaleza percebe por onde se locomovem os personagens.

                Com O Velho Que Ainda Escrevia Cartas de Amor, Felipe Barroso ostenta muita imaginação e conhecimento das técnicas de narrar, para escrever com simplicidade sem incorrer no descuido com as normas gramaticais. Se demorar mais vinte anos para escrever o segundo volume, certamente alcançará degraus mais altos da arte de contar. E seus velhos serão mais velhos ainda.

                                                                       ***
JOAN EDESSOM DE OLIVEIRA

Joan Edessom de Oliveira está presente na segunda coletânea do Prêmio Domingos Olímpio, com “Os Afogados”. Na terceira obteve o primeiro lugar, com “Os Filhos de Aprígio Martins”. Tem recebido diversos prêmios literários. Dedica-se à poesia e ao conto. Tem no prelo o primeiro volume de narrativas curtas, intitulado O Plantador de Borboletas.

                Os contos de Joan Edessom são curtos não porque não tenham enredo e personagens. Se ele se valesse de recursos como o diálogo e o prolongamento narrativo da ação certamente construiria narrativas mais longas. Em “O cavalo cego”, por exemplo, apresenta as personagens assim: “Duas éguas baias, postadas à frente da igreja, revistavam as mulheres que se dirigiam à missa, cobertas pelas mantilhas.” Nenhuma palavra, apenas ação: a revista, o exame nas mulheres. Talvez Joan não tenha encontrado palavras para pôr na boca dos animais. Na frase seguinte há referência a falas: “Cheiravam-nas e levantavam as suas roupas, sem levar em conta os seus protestos.” Como se daria o ato de levantar as roupas das mulheres? O que diziam elas? Entretanto, o contista preferiu deixar para o leitor a liberdade de suprir ou não esses hiatos. Em “Os afogados”, mais curto ainda, três meninos são encontrados mortos na praia e todos são conhecidos, isto é, têm nomes explícitos.

                Pode-se ver em “O cavalo cego” uma alegoria. É possível também encontrar nele o elemento fantástico: equinos ocupam uma pequena cidade e rendem as autoridades e os habitantes. A história nos remete a um tempo fictício em que irracionais sobrepujassem os humanos em inteligência. Não se trata de ideia nova, pois Jonathan Swift, em As viagens de Gulliver, inventou cavalos inteligentes que dominavam antropoides degradados. Mas disso Joan sabe.

                As mortes dos meninos de “Os afogados” poderiam parecer simples acidente e a história seria mais uma de afogamentos no mar. Entretanto, o corpo do primeiro apresenta “cor levemente esverdeada” e no segundo “tinha uns bichinhos minúsculos grudados aos cabelos”. Talvez nada de estranho até aí. Entretanto, um sinal estranho nos corpos dos garotos dá à peça um final fantástico: “Em todos a mesma marca na mão esquerda e as penas que nasciam nos calcanhares”.  

                Apesar do enredo insólito de “O cavalo cego”, o narrador se prendeu a um tempo e espaço reais. Breves descrições ou menções nos remetem a qualquer pequena cidade do Ceará ou do Nordeste de hoje ou mesmo do passado: a igreja, as mantilhas das mulheres, o carteiro, o cabo, os soldados. Já em “Os afogados” há apenas a referência a uma praia e a um ancoradouro, não se podendo vislumbrar em que lugar se dão os afogamentos dos três meninos.

                A despeito do realismo de “Juliana”, é possível vislumbrar-se um quê de estranho nele. Juliana amava um homem (personagem sem nome explícito) com tanta intensidade que a fazia amar “as coisas e as pessoas das quais ele gostava”. Até mesmo Clara. Ou o amor é inexplicável ou a história de Joan Edessom é muito clara. Talvez uma piada.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Acruche Collection - Trova 19


Jangada de Versos do Ceará (8) Nilto Maciel

NILTO MACIEL
Baturité, 1945


DOMADOR

E essa cabeça dura,
teimosa, olhando além do lombo,
esses pés inquietos,
sofridos, pisando em brasa,
esse corpo pesado,
dormente, retorcendo-se na cama.

De que adianta
escancarar a boca,
como porta de igreja,
se dentro a descrença
bate contra o teto,
desassossegado morcego?

 Se não é possível
bordejar de novo
o primeiro gemido,
quando essa palavra torpe
não passava de invenção
de menino-prodígio?

 Calo-me, feito um bode mudo
que não esqueceu de remoer
as próprias vísceras,
teimosas, presas aos dentes.

E mordo o travesseiro
– animal travesso –,
chuto a sombra
– doido varrido –,
aperto a cabeça
para domar essa coisa
que me atravessa a vida
como a ferrugem da faca.

INSÔNIA

Foge, demônio secular, maldito,
deixa dormir serenamente e só
este menino de ilusões refeito,
deixa-o sonhar seus anjos coloridos.

 Pela janela deste quarto foge,
invade a noite e seu silêncio breve,
e esquece este menino sonhador,
que se deitou para sonhar comigo.

 Arreda, pois este inocente ser
feito de fantasia é bem capaz
de te domar, de te fazer dormir.

 É bem capaz de transformar-te, e já,
num anjo bom, numa mulher, talvez,
e se perder contigo em sonhos maus.

IMAGENS

Eu olhava para a Lua
e via São Jorge
e um dragão em luta.
Faz tanto tempo aquilo
que ate penso
ser nova a lua de agora.

Olho de novo para o céu.
Há nuvens, muitas nuvens,
como se fosse desabar
uma tempestade.
E faz frio, muito frio,
ao meu redor.

 É como se a lua fosse
uma imagem
dentro de outra imagem.
E eu a imagem
da grande imagem
de mim mesmo.

CONTEMPLAÇÃO

Para além daquelas escuridões,
cobras destilam veneno
e se entre-devoram.
Horror!!!

 A beira do precipício,
sondo-me.
Eu, o mais próximo de mim,
pouco me vejo,
tão insondável me sinto..

 O meu abismo sou.

O TEMPO

Não passa o tempo lento
que a gente nunca vê.
É como o vasto vento
que passa na tevê.

 Frio cedo fazia,
faz agora calor.
Antes tudo doía,
já nem me dói a dor.

 Tempos idos sonhei,
ninguém me viu sonhar.
Hoje, que me acordei,
não sei como acordar.

 Faz anos fui nascer.
Ninguém me percebeu.
O destino a não ser,
e eu mesmo, apenas eu.

 O tempo corre, corre,
e desce, sobe, desce,
e, enquanto a gente morre,
ele desaparece.

INDEFINIÇÃO

O homem não é sua sombra
por mais que assim queira a luz.
Nem o cachorro sarnento
é sua pálida sombra.
Nem a mais cálida árvore
é sua sombra soberba.

 Não são os contornos do homem
a sua essência, sua alma,
e muito menos seu todo.
Há, entre a luz penetrante
e a rarefeita e delgada
sombra estendida, o cachorro,
a imóvel árvore presa,
há o homem livre e liberto.

 Há no princípio luz-alfa,
como há no fim sombra-ômega.
A própria morte talvez,
ou sua véspera vil.
E aquele homem mortal
antes da sombra dá luz.

ALMA

Ó meus amigos
que rimos e choramos solidários:
noss'alma triste não vale a tristeza,
nem a alegria que trazemos nela.

 Noss’alma não vai além da vida,
por mais que dure a inocência
ou a dor de ser mortal, de carne feito.

Nossa pequenina alma
não cabe sequer dentro da lágrima
ou do brilho dos olhos de quem ri.

 Nossa alma, meus amigos,
é o desespero vão
de não podermos rir do próprio fim.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Navegador: poemas. Brasília: Editora, 1996.

Irmãos Grimm (A Pastorinha de Gansos)

Era uma vez uma velha rainha, cujo marido havia morrido há muitos e muitos anos, e ela tinha uma filha que era muito linda. Quando a princesa cresceu, ela foi prometida a um príncipe que vivia muito longe. Quando chegou a época dela se casar, e ela tinha que fazer uma longa viagem para o reino distante, a rainha já idosa embalou para ela muitos utilitários caríssimos de prata e ouro, e pequenas jóias de outro e prata, e taças e bijuterias, enfim, tudo que faria parte do dote real, porque ela amava a sua filha de todo seu coração.

Deu a ela de presente também a sua dama de companhia, que ia também viajar com ela, e a entregou para o noivo, e cada uma viajava em um cavalo, mas o cavalo da princesa se chamava Falada, e ele sabia falar. Então, quando chegou a hora da partida, a idosa rainha entrou no quarto da princesa, pegou uma pequena faca e cortou o dedo dela com a faca até que ele sangrou, então ela prendeu o sangue com um lenço branco no qual ela deixou cair três gotas de sangue, deu o lenço para a sua filha e disse,

— “Querida filhinha, cuide deste lenço com muito cuidado, ele será útil para você durante a sua caminhada.”

Então, elas se despediram com muita tristeza uma da outra, a princesa colocou o pedaço de pano junto ao peito, montou no cavalo, e depois foi embora para junto do seu noivo. Depois que ela tinha caminhado um bom pedaço do caminho, ela sentiu uma vontade louca de beber água, e disse para a sua dama de companhia:

— “Desça do cavalo, e pegue a taça que você trouxe para mim, e vá buscar um pouco de água da fonte, pois estou com sede.”

— “Se você está com sede,” disse a dama de companhia, “desça você mesma do cavalo, se vire e beba toda água que desejar, eu não escolhi para ser sua criada.” Então, como a princesa estava com muita sede, ela desceu, inclinou-se para pegar água, e bebeu diretamente do rio, não lhe sendo permitido as taças de ouro.

Então, ela disse: — “Ah, meu Deus.”.

E as três gotas de sangue responderam:

— “Se a tua mãe soubesse disso, ela ficaria de coração partido.”

Mas a filha do rei era humilde, não dizia nada, e montou no seu cavalo novamente. Caminhou mais algumas milhas do caminho, mas o dia estava quente, o sol quase a chamuscava, e ela ficou novamente com sede, e quando elas chegaram perto de um riacho de água, ela chamou a sua dama de companhia, e disse:

— “Desmonte, e traga para mim um pouco de água na minha taça de ouro,” pois ela já tinha esquecido do mau comportamento da garota.”

Mas a dama de companhia disse ainda de maneira mais arrogante:

— “Se você quiser beber, beba quanto quiser, eu não escolhi ser sua criada.” Então, como a princesa estava com muita sede, ela desceu, se inclinou diante da fonte de água corrente, chorou e disse:

— “Oh, meu Deus.” e as gotas de sangue disseram:

— “Se a tua mãe soubesse disso, ela ficaria de coração partido.”

E enquanto ela estava bebendo água, estando inclinada para dentro do riacho, o lenço com as três gotas de sangue cairam do seu peito, e foram flutuando pela água e ela não percebeu isso, de tão preocupada que ela estava.

A dama de companhia, no entanto, viu quando o lenço foi embora, e ela ficou muito feliz em pensar que a princesa não teria mais nenhuma força, pois ela havia perdido as gotas de sangue, e então, se tornara fraca e sem poder. Foi aí que ela tentou montar no cavalo novamente, aquele cujo nome era Falada, e a dama de companhia disse:

— “Falada é mais adequado para mim, você irá no meu cavalo,” e princesa teve de aceitar isso.

Então, a dama de companhia, usando de palavras duras, pediu para que a princesa trocasse todo o seu vestuário real pelas roupas velhas dela, e ainda ela foi obrigada a jurar pelo céu claro lá do alto que ela não diria nenhuma palavra sobre tudo aquilo na corte do rei, e se ela não cumprisse o juramento ela morreria no mesmo lugar. Mas, Falada via tudo isso e guardava tudo na memória.

A dama de companhia agora estava montada no Falada, e a noiva verdadeira o cavalo velho, e assim eles seguiram a viagem, até que finalmente eles entraram no palácio real. Grande foi a felicidade geral quando ela chegou, e o príncipe correu para abraçá-la, ajudou a dama de companhia a se levantar do seu cavalo, e pensou que era ela a pessoa com quem ele iria se casar. Ela foi conduzida para os aposentos superiores, mas a princesa real ficou esperando lá embaixo.

Então, o rei já idoso olhou para fora da janela e a viu parada, esperando no pátio, e como ela era frágil e delicada, e imediatamente foi até o apartamento real, e perguntou à noiva sobre a jovem que a acompanhava e que estava esperando lá embaixo no pátio, e queria saber quem ela era?

— “Eu a encontrei no caminho e a trouxe para minha companhia, dê a ela algum trabalho a fazer, para que ela não fique sem fazer nada.”

Mas o velho rei não tinha trabalho para ela, e não se lembrava de nada, então, ele disse,

— “Eu tenho um pequeno garoto que cuida dos gansos, ela poderia ajudá-lo.” O garoto se chamava Conrado, e assim a noiva verdadeira teve de ajudá-lo a cuidar dos gansos. Pouco depois, a falsa noiva disse para o jovem rei,

— “Meu querido marido, gostaria de lhe pedir um favor.” Ele respondeu:

— “Farei tudo que você me pedir com a maior alegria.”

— “Então, mande cortar a cabeça do cavalo que me trouxe até aqui e mande-o para o matadouro, porque ele me deixou enfastiado durante o caminho.”

Na realidade, ela tinha medo que o cavalo pudesse contar como ela tinha se comportado mal com a filha do rei. Então, ela conseguiu fazer com que o rei prometesse que isso seria feito, e o fiel Falada teve de morrer; e isto chegou aos ouvidos da princesa real, e ela secretamente prometeu ao dono do matadouro que lhe daria uma peça de ouro se ele fizesse um pequeno serviço para ela.

Naquela cidade havia um portão muito escuro, e por esse portão todos os dias de manhã e a noite ela tinha de passar com os gansos: ela pediu, pois, para que ele fizesse a gentileza de colocar a cabeça do cavalo na frente do portão, para que ela pudesse vê-lo sempre que passasse por ali. O dono do matadouro lhe prometeu que faria isso, e cortou a cabeça do cavalo, e a fixou bem debaixo do portão escuro.

De manhã bem cedo, quando ela e o Conrado passava com o seu bando de gansos debaixo deste portão, ela dizia ao passar:

“Ó, vento, leva contigo o chapéu do Conrado,
E faze com que ele corra atrás, pois ele é levado embora
Enquanto eu arrumo os meus fios de cabelos de ouro
E os prendo com todo cuidado.”

— “Ai, Jesus, o Falada está pendurado ali!”

Então, a cabeça do cavalo respondia:

— “Ai de ti, jovem rainha, que preço alto estás pagando!”
“Se tua doce mãe soubesse disso,”
“O coração dela se partiria em dois.”

Então, eles continuaram o caminho para fora da cidade, e levaram os gansos para o campo. E quando eles chegaram nas padrarias, ela se sentou, soltou seus cabelos que eram como se fossem de ouro puro, e Conrado, vendo isso, se encantava com o seu brilho, e teve vontade de arrancar alguns fios. Então, ela disse:

— “Sopra, sopra, doce vento, estou te pedindo”
“Sopra para longe o chapéu do Conrado,”
“E obriga-o a correr pra lá e prá cá,”
“Até que eu tenha terminado de trançar meus cabelos,”
“E eles estejam presos de novo.”

E de repente soprou um vento tão forte, que levou o chapéu do Conrado para longe pelos campos, e ele foi obrigado a correr atrás do chapéu. Quando ele voltou, ela tinha terminado de pentear os cabelos e de se arrumar e ele não conseguiu pegar nenhum fio de cabelo dela. Então, Conrado ficou bravo, e não queria falar com ela, e assim eles ficaram vigiando os gansos até o anoitecer, e depois foram para casa.

No dia seguinte, quando eles estavam levando os gansos e passando pelo portão escuro, a garota falou:

— “Ai, Jesus, o Falada está pendurado ali!”

Então, a cabeça do Falada respondia:

— “Ai de ti, jovem rainha, que preço alto estás pagando!”
“Se tua doce mãe soubesse disso,”
“O coração dela se partiria em dois.”

E ela se sentava novamente no campo e começou a pentear o cabelo, e o Conrado correu para tentar pegar um, então, ela falou depressa:

— “Sopra, sopra, doce vento, eu estou dizendo”
“Sopra para longe o chapéu do Conrado,”
“E obriga-o a correr pra lá e prá cá,”
“Até que eu tenha terminado de trançar meus cabelos,”
“E os meus cabelos estejam presos de novo.”

E de repente soprou um vento tão forte, que levou o chapéu do Conrado para bem longe, e ele foi obrigado a correr atrás do chapéu, e quando ele voltou, ela tinha terminado de pentear os cabelos e de arrumá-los e ele não conseguiu pegar nenhum deles, e assim eles ficaram vigiando os gansos até o anoitecer.

Mas à noite depois que eles chegaram em casa, Conrado foi até o rei já idoso e disse:

— “Eu não quero mais cuidar dos gansos com aquela garota!”

— “Porque não?” perguntou o rei que já estava velho.

— “Oh, porque ela me irrita o dia todo.” Então, o velho rei pediu para que ele relatasse o que ela havia feito para ele. E o Conrado disse:

— “De manhã, quando nós passamos debaixo do portão escuro com os gansos, havia uma horrível cabeça de cavalo pregada na parede, e ela dizia para ele:

— “Ai, Jesus, o Falada está pendurado ali!”

E a cabeça respondia:

— “Ai de ti, jovem rainha, que preço alto estás pagando!”
“Se tua doce mãe soubesse disso,”
“O coração dela se partiria em dois.”

E Conrado continuou contando o que aconteceu durante a pastagem dos gansos, e como ele tinha de correr sempre para pegar o seu chapéu.

O idoso rei exigiu que ele levasse os gansos para pastar no dia seguinte, e assim que a manhã chegou, ele se posicionou atrás do portão escuro, e ouviu como a garota falava com a cabeça do Falada, e então, o rei também foi até o campo, e se escondeu no matagal das pradarias.

Então, lá ele viu com seus próprios olhos a pastora e o pastor de gansos trazendo o bando de aves, e como depois de algum tempo ela se sentou e destrançava o cabelo, que brilhava com fulgor. E ela falou logo:

— “Sopra, sopra, doce vento, estou dizendo”
“Sopra para longe o chapéu do Conrado,”
“E obriga-o a correr pra lá e prá cá,”
“Até que eu tenha terminado de trançar meus cabelos,”
“E eles estejam presos de novo.”

Imediatamente uma rajada de vento se aproximou e levou o chapéu do Conrado, então, ele teve de correr para bem longe, enquanto a garota continuava penteando e trançando o seu cabelo, e tudo isso o rei observava. Depois, sem ser visto, o rei foi embora, e quando a pastorinha de gansos chegou em casa ao anoitecer, ele a chamou de lado, e perguntou porque ela tinha feito todas aquelas coisas.

— “Não posso lhe dizer,” respondeu ela, “e nem ouso chorar as minhas desventuras a qualquer ser humano, pois eu jurei não fazer isso pelo céu que está sobre a minha cabeça, se eu não tivesse feito esse juramento, eu teria morrido.”

O rei insistiu com ela e não a deixava em paz, mas ele não conseguiu tirar nada dela. Então, ele disse,

— “Se você não quer me falar nada, então, conte a tuas tristezas para o forno de ferro que fica ali,” e foi embora. Então, ela foi devagarzinho até o forno de ferro, e começou a chorar e a lamentar e aliviou todo o seu coração, e disse:

— “Aqui estou eu abandonada por todo o mundo, e todavia, sou filha do rei, e uma falsa dama de companhia me jogou nesta situação, porque fui obrigada a me desfazer de minhas vestes reais, e ela tomou o meu lugar junto ao meu noivo, e eu sou obrigada agora a realizar trabalhos humildes como pastorinha de gansos.”

“Se a minha mãe ficasse sabendo disso, o coração dela se partiria.” O idoso rei, todavia, ficou esperando do lado de fora e escutava tudo o que ela dizia pelo tubo da chaminé do forno. Então, ele voltou novamente, e pediu para que ela saísse do forno. E vestes reais foram colocadas nela, e era maravilhoso ver como ela ficou linda! O rei idoso chamou o seu filho, e revelou a ao príncipe que ele tinha se casado com a falsa noiva que não passava de uma dama de companhia, mas, que a verdadeira noiva estava de pé ali, cuidando de gansos o tempo todo.

O jovem rei sentiu uma grande alegria em seu coração quando ele viu como ela era bela e jovem, e uma grande festa foi preparada e todas as pessoas e todos os bons amigos foram convidados. Na cabeceira da mesa estavam o noivo com a princesa ao lado dele, e a dama de companhia do outro lado, mas a dama de companhia estava cega, e não reconheceu a princesa vestida em seu trajes deslumbrantes.

Depois que eles tinham comido e bebido, e estavam felizes, o idoso rei fez à dama de companhia uma adivinhação, o que uma pessoa merecia que tinha se comportado de tal e tal maneira com a sua ama, e ao mesmo tempo contou toda a história, e perguntou que sentença tal pessoa merecia? Então, a falsa noiva disse:

— “Ela merece não melhor destino do que ser desnudada completamente, e colocada dentro de um barril, que seja rebitado por dentro com pregos pontiagudos, e que dois cavalos sejam atrelados ao barril, para que ela seja arrastada por todas as ruas da cidade, uma após a outra, até que ela esteja morta.”

— “Pois essa criatura é você , disse o velho rei, “e você declarou a tua propria condenação, e isso será feito com você .” 

E quando a sentença foi executada, o jovem rei se casou com sua verdadeira noiva, e os dois viveram em todo o reino, em paz e felizes.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_de_Grimm/A_pastorinha_de_gansos

A Saudade em Sonetos Diversos III

ENO TEODORO WANKE
Saudade


Mas que saudade, que saudade a minha,
saudade imensa de sentir poesia,
poesia em tudo, assim como eu sentia
enquanto eu tinha o coração que eu tinha...

Porque já tive um coração um dia,
que disparava, ou quase se detinha
se ela aos meus braços palpitante vinha,
e que ternuras doidas consumia...

Vivia então constantemente imerso
na mágica do sonho, no universo
do amor ao ser que eu pressupunha meu...

Não vivo mais. Vegeto, na esperança
de achá-la ainda — à ladra que, tão mansa,
levou meu coração... Não devolveu...

EURICLES DE MATOS
Senhora da saudade


Como eu Vos quero bem, Senhora da Saudade!
Lírio Preto que sois porque viveis de preto,
Parodiando um Martírio estranho e predileto
De um torvo coração, vivendo na orfandade.

E assim não me quereis, Senhora da Saudade!
Vós, toda Compaixão, Vós toda meu Afeto,
Nascida para estar num mundo mais secreto,
A partilhar Amor, Carinhos e Bondade.

E bem triste que sou e bem tristonho vivo,
Cativo dessa Dama e dessa Flor cativo,
Eu tão velhinho já na minha Mocidade!...

E ah! Sonho meu de Amor, estranhamente santo,
Ouvi o que Vos digo, estático de Espanto:
— Como eu Vos quero bem, Senhora da Saudade!...

FAGUNDES VARELA
Soneto da soledade, ou da soidade


Eu passava na vida errante e vago
Como o nauta perdido em noite escura,
Mas tu te ergueste peregrina e pura
Como o cisne inspirado em manso lago.

Beijava a onda num soluço mago
Das moles plumas a brilhante alvura,
E a voz ungida de eternal doçura
Roçava as nuvens em divino afago.

Vi-te, e nas chamas de fervor profundo
A teus pés afoguei a mocidade,
Esquecido de mim, de Deus, do mundo!

Mas ai! cedo fugiste!... da soidade,
Hoje te imploro desse amor tão fundo,
Uma ideia, uma queixa, uma saudade!

FAUSTO CARDOSO
Taças


Deslumbrado, cheguei, chorando, à terra, um dia!
E, do lauto festim da vida, achei-me à mesa;
Sempre libei, cantando, a taça da alegria,
Embebedou-me sempre o vinho da tristeza.

Esplêndidas visões trouxeram-me, à porfia,
As ânforas do amor. E, de volúpia acesa,
Minha boca, de boca em boca, um mosto hauria,
Que de tédio me encheu por toda a natureza!

Dá-me a velhice a taça. Eu das paixões prescindo.
E, ébrio, ascendo a espiral de um sonho delicioso,
No vinho da saudade achando um gosto infindo!

Parece-me o passado um rio luminoso,
Onde vogo a rever pelas margens, florindo,
A dor que, ao longe, tem as seduções do gozo!

GUILHERME DE ALMEIDA
Nós (XXII)


Tu senhora, eu senhor, ambos senhores
de um pequenino mundo. No caminho,
nunca vi flores em que houvesse espinho,
nunca vi pedras que não fossem flores.

Naquele quarto andar, longe das dores
e tão perto dos céus, com que carinho,
com quanto zelo edificaste o ninho
do mais feliz de todos os amores!

Tudo passou. Um dia, triste e mudo,
deixaste-me sozinho. Hoje tens tudo:
és rica, és invejada, és conhecida...

E eu tenho apenas, desgraçado e louco,
daquele amor que te custou tão pouco
esta saudade que me custa a vida!

GUIMARÃES JÚNIOR
Visita à casa paterna


Como a ave que volta ao ninho antigo,
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo.

Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
O fantasma, talvez, do amor materno,
Tomou-me as mãos — olhou-me grave e terno,
E, passo a passo, caminhou comigo.

Era esta a sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)
Em que, da luz noturna à claridade,
Minhas irmãs e minha Mãe... O pranto

Jorrou-me em ondas... Resistir quem há de?
— Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade...

JACINTO DE CAMPOS
As duas palmeiras


Quando passo buscando a humana lida,
A alma tecida de ilusões tão várias,
Junto à velha choupana carcomida
Vejo duas palmeiras solitárias.

Uma já morta, outra reverdecida,
Num desmancho de palmas funerárias,
E ao som da harpa do vento a que tem vida,
Saudosa plange salmodias e árias.

— Ó tu, que me olvidaste no caminho,
Meu coração deixando como um ninho,
Sozinho e triste, ao vento balouçando...

A saudade me diz, como em segredo:
Que és a palmeira que morreu bem cedo,
E eu sou aquela que ficou chorando.

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/saudoso.htm

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O Aprendiz do Mago

Recolhido (no antigo concelho; ou na antiga freguesia de) Eixo, distrito de Aveiro.

Um homem de grandes artes tinha na sua companhia um sobrinho, que lhe guardava a casa quando precisava sair. De uma vez deu-lhe duas chaves, e disse:

— Estas chaves são daquelas duas portas; não mas abras por cousa nenhuma do mundo, senão morres.

O rapaz, assim que se viu só, não se lembrou mais da ameaça e abriu uma das portas. Apenas viu um campo escuro e um lobo que vinha correndo para arremeter contra ele. Fechou a porta a toda a pressa passado de medo. Daí a pouco chegou o Mago:

— Desgraçado! para que me abriste aquela porta, tendo-te avisado que perderias a vida?

O rapaz tais choros fez que o Mago lhe perdoou. De outra vez saiu o tio e fez-lhe a mesma recomendação. Não ia muito longe, quando o sobrinho deu volta à chave da outra porta, e apenas viu uma campina com um cavalo branco a pastar. Nisto lembrou-se da ameaça do tio e já o sentindo subir pela escada, começou a gritar:

— Ai que agora é que estou perdido!

O cavalo branco falou-lhe:

— Apanha desse chão um ramo, uma pedra e um punhado de areia, e monta já quanto antes em mim.

Palavras não eram ditas, o Mago abriu a porta da casa: o rapaz salta para cima do cavalo branco e grita:

— Foge! que aí chega o meu tio para me matar.

O cavalo branco correu pelos ares fora; mas indo lá muito longe, o rapaz torna a gritar:

— Corre! que meu tio já me apanha para me matar.

O cavalo branco correu mais, e quando o Mago estava quase a apanhá-los, disse para o rapaz:

— Deita fora o ramo.

Fez-se logo ali uma floresta muito fechada, e, enquanto o Mago abria caminho por ela, puseram-se muito longe. Ainda o rapaz tornou outra vez a gritar:

— Corre! que já aí está meu tio, que me vai matar.

Disse o cavalo branco:

— Bota fora a pedra.

Logo ali se levantou uma grande serra cheia de penedos, que o Mago teve de subir, enquanto eles avançavam caminho. Mais adiante, grita o rapaz:

— Corre, que meu tio agarra-nos.

— Pois atira ao vento o punhado de areia, disse-lhe o cavalo branco.

Apareceu logo ali um mar sem fim, que o Mago não pôde atravessar. Foram dar a uma terra onde se estavam fazendo muitos prantos. O cavalo branco ali largou o rapaz e disse-lhe que quando se visse em grandes trabalhos por ele chamasse mas que nunca dissesse como viera ter ali. O rapaz foi andando e perguntou por quem eram aqueles grandes prantos.

— É porque a filha do rei foi roubada por um gigante que vive em uma ilha aonde ninguém pode chegar.

— Pois eu sou capaz de ir lá.

Foram dizê-lo ao rei; o rei obrigou-o com pena de morte a cumprir o que dissera. O rapaz valeu-se do cavalo branco, e conseguiu ir à ilha trazendo de lá a princesa, porque apanhara o gigante dormindo.

A princesa assim que chegou ao palácio não parava de chorar. Perguntou-lhe o rei:

— Porque choras tanto, minha filha?

— Choro porque perdi o meu anel que me tinha dado a minha fada madrinha e, enquanto o não tornar a achar, estou sujeita a ser roubada outra vez ou ficar para sempre encantada.

O rei mandou lançar o pregão em como dava a mão da princesa a quem achasse o anel que ela tinha perdido. O rapaz chamou o cavalo branco, que lhe trouxe do fundo do mar o anel, mas o rei não lhe queria já dar a mão da princesa; porém ela é que declarou que casaria com o jovem para que dissessem sempre: Palavra de rei não torna atrás.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 35 – 8 de novembro de 1877

Vem cá, Gemma Cuniberti,
Dize-me aqui a esta gente
Quanto se deve ao Lamberti,
Exata, precisamente.

Que não és vereadora,
Escrivã, nem magistrada,
Bem o sei, minha senhora,
A mim não me escapa nada.

Nem é preciso que digas
Cousa alguma, não sabendo
As somas novas e antigas
Deste negócio estupendo.

Basta que me tenhas dado
Rima para o italiano.
Agora que está rimado,
Volta à paz de todo o ano.

Pois saber exato, exato,
Quanto é que lhe deve a gente,
Não é só trabalho ingrato,
É pôr um homem demente.

Uns dizem que cento e trinta
Contos — outros, mil e tantos;
Que isto se afirme ou desminta
Enche o coração de espantos.

Esperta logo o desejo
De não dar mais que um cruzado,
Ou perder de todo o pejo
E ir a um milhão quadrado.

Que, assim como nós quadramos
As léguas, quadrar podemos
O dinheiro que pagamos,
Jamais o que recebemos.

Explico-me: a vereança
Paga tarde e paga em dobro,
Porque o credor, quando cansa,
Não põe aos ímpetos cobro.

Mas para que o miserável
Contribuinte não gema,
Faz-se-lhe grata e afável;
Não é assim, minha Gemma?

Não põe aumento na taxa,
Mormente se é baratinha;
A taxa quanto mais baixa
Parece mais bonitinha.

Desta maneira a fazenda
Municipal, acusada,
Não de torva, nem de horrenda,
Mas só de desbarrigada,

Perde inteiramente o resto
Da pele que traz nos ossos;
Fica-lhe o corpo mais lesto,
Já sem casca, só caroços.

Então é que é ver o ufano
E gracioso esqueleto
(Falemos italiano)
Dançar o seu minuetto.

Dançar não paga comida,
Nem vestido, nem calçado,
Mas alegra um tanto a vida,
E o gozo é tão pouco usado!

O pior é se, na faina
Do ofício, os vereadores
Arranjarem uma andaina
De caixas e borradores.

Pois não há maior desgraça,
Nem pior melancolia,
Do que ter ostras na praça
E a escrituração em dia.

Ao menos, tudo confuso
Faz crer que inda poderemos
Guardar um traste em bom uso...
E então, evoé! bailemos!

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas

Depois de 1990 são inúmeros os escritores cearenses que se dedicam à elaboração de narrativas curtas. Muitos deles são poetas, cronistas, romancistas e ensaístas. Alguns publicaram livros de contos, como o multiartista Alano de Freitas, o veterano Carlos d’Alge, Carlos Gildemar Pontes, Carmélia Aragão, Clauder Arcanjo, Felipe Barroso, Lourdinha Leite Barbosa, Maria Thereza Leite, Natalício Barroso, Ricardo Kelmer, Roberto Amaral; outros apareceram apenas em coletâneas, jornais, revistas e sites, como Joan Edessom, Luís Marcus da Silva e Ray Silveira.

ALANO DE FREITAS

                Alano de Freitas nasceu em Fortaleza (1950). Contemporâneo dos contistas surgidos no final dos anos 1970 (participou da revista O Saco). Estreou em 1982 com os poemas de Tentações da Paisagem. Seguiram-se Hemisfério Translúcido, de 1997, e Eterno Instante Fugaz, de 1999. Artista plástico, músico, compositor e poeta, deu a lume no gênero conto Histórias do Começo do Mundo (7 Contos Minúsculos), em 1995, seguido de Eles Quase Eu (contos e flexões mentais das águas delirantes do mítico e do erótico).   

                O conto de Alano de Freitas tem parentesco muito próximo com a crônica e a reminiscência ou a memória. Não somente pela presença de personagens reais e de seu círculo de amizades. Em “Luzes e fogos”, o protagonista é internado no Hospital Mental São Gerardo, “onde ficou sob os cuidados do psiquiatra e escritor José Airton Machado Monte”. Em “O dementado”, o próprio Alano faz as vezes de narrador e personagem. Além disso, outro escritor cearense é lembrado: “Meu amigo poeta Dimas Macedo não dá presente de grego e os treze contos da areia de Borges vieram no meio de sessenta e sete livros que me deu pelo comparecimento ao aniversário de seu apartamento” (...). Airton Monte reaparece nesse relato, num trecho próprio de crônica para jornal: “Alô, Airton Monte, como vão os contos e os ‘meus doidinhos’?” Assim como o “poeta e músico Paulo Pardal”. São anotações desnecessárias, vez que as pessoas citadas não participam diretamente da trama e suas pequenas ações não passam de apêndices.

                O escritor explica, em “O desjejum”, essa sua maneira de escrever: “E se conto a história de um momento de minha mente, mesmo sem a graça das histórias encantadoras com começo, meio e fim definidos e que eu adoro, nem por isso estou fazendo diferente, em essência, do que faz qualquer escritor classificado como contista – estou sendo só mais um partícipe da evolução do conto ou das classificações literárias”.

                Entretanto, esse rompimento com as regras ditadas nos manuais de arte literária, que definem o que seja conto, crônica, poema, memória, etc, é salutar e há muito se vem praticando, aqui e alhures.

                Alguns dos seres fictícios (ou não) de Alano de Freitas vivem à margem da sociedade, do consumo, da normalidade sócio-econômica. São deserdados, abandonados, segregados, enlouquecidos. José Paulo, de “Léa vela”, está doente, de uma “gripe besta”, deitado numa “rede velha”, alumiado pela chama de uma lamparina, sob os cuidados de Léa. Ciço das Candeias fabrica lamparinas e, certa noite, sofre um delírio: aparece em sua oficina a Virgem Maria. Segundo o narrador, o pobre lamparineiro terminou internado num hospital psiquiátrico. O mendigo Antonio Ferreira faz diversas visitas ao narrador Alano, sempre para pedir alimentos, roupas, livros. E, como Ciço das Candeias, é internado em hospital para doentes mentais. O narrador de “Discurso de chegada” é outro louco, que se diz filho do Diabo. O narrador de “Narciso ou plácidas águas da loucura” dialogo com um espelho.

                Afora esse tema da loucura, da alienação e da exclusão social, Alano se debruça sobre abismos mais fundos. “Nossos começos” é uma recriação do Gênesis. Em “Discurso de chegada” o louco-narrador faz diversos questionamentos filosóficos, como em “E se o Diabo é também filho de Deus, como pode ser condenado?” Mas Alano prefere os pequenos abismos da sexualidade, como na relação amorosa de Ciço das Candeias com a Virgem Maria. Em “O desjejum”, o cronista faz reflexões várias, cita Cortazar, Poe, Pessoa, Homero e a Bíblia, e termina dando explicações sobre os significados de palavras como “tabaco” e “fumo” na língua do povo. A narrativa “A chuva pioneira” é de um erotismo exuberante. Adão e Eva reaparecem nus no paraíso de “Nossos começos”. Em “Fogo no fogo” se narram as primeiras incursões de garotos do interior na vida sexual ativa, com a prostituta Maria Rosa.

                A cidade de Fortaleza é palco de muitas histórias de Alano. Mas também outras cidades do Ceará ou o ambiente do interior (“Fogo no fogo”). Juazeiro do Norte está em “Luzes e fogos” e “Discurso de chegada”. A praia de Iracema (o bairro) aparece em “O dementado”, seja na referência ao extinto Cais Bar e à Avenida Aquidabã, assim como à Igreja de São Gerardo, em outro bairro.

                O título e o subtítulo do livro Eles Quase Eu – Contos e Flexões Mentais das Águas Delirantes do Mítico e do Erótico exprimem com fidelidade esse universo de Alano de Freitas. Eles, os personagens, são quase Alano, seus semelhantes, nos delírios, sonhos e angústias. Contos e flexões, sim. Mas também crônicas, para se usar um termo do cânone literário. O Mítico e o Erótico, sim, mas também o Social.

***

CARLOS D’ALGE

            Carlos d’Alge nasceu em Chaves, Portugal, em 1930, tendo viajado para o Brasil aos seis anos de idade. Graduado em Letras, Direito e Educação, é professor de Literatura da Universidade Federal do Ceará. Membro da Academia Cearense de Letras. Doze livros editados. Seus contos apareceram em jornais, revistas e antologias, como O Talento Cearense em Contos, com a narrativa “Breve Ensaio Sobre a Solidão” e no volume A Mulher de Passagem, de 1993.

                A Mulher de Passagem é composto de contos, crônicas, reflexões metafísicas ou políticas e poemas. O poeta e ensaísta Linhares Filho encontrou nele “o conto criado em moldes de estilo puramente narrativo”, além do “conto entremeado da dissertação e do texto epistolar”. Há, na verdade, narrativas de variadas formas. “Tango” se constitui apenas de falas, com os tradicionais travessões, porém sem os também peremptos verbos introdutores do relato do discurso. Em outras histórias há apenas narração, além de reflexões. Em “A solidão do corpo” há uma bipolaridade temporal e narrativa (contrapontos): em um parágrafo a ação mostra a personagem feminina num acidente; no outro, o ato se dá numa casa, onde está o personagem masculino. E assim prossegue o drama em mais seis quadros.

                Quanto aos temas, os contos de D’Alge podem ser lidos como peças dedicadas aos “velhos encontros e desencontros amorosos da trajetória humana, as aventuras e desventuras do amor, particularmente com aventuras passionais”, como observa Linhares Filho. Em “A solidão do corpo” isto é particularmente claro. Entretanto, é a morte o tema primordial dele. “Por isso os presentes textos são iluminados de Eros e Thanatos”, conclui Linhares.

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CARLOS GILDEMAR PONTES

                Carlos Gildemar Pontes (Fortaleza, 1960) é poeta, ficcionista e ensaísta. Editor da Revista Acauã. Licenciado em Letras na Universidade Federal do Ceará, com doutorado em Literatura e Cultura na Universidade Federal da Paraíba, onde é professor de Literatura. Tem diversos livros publicados de poemas, contos, ensaios e cordéis. Dentre os quais os de contos Porta-fólio (Jaboatão dos Guararapes: EGM, 2004) e A miragem no espelho (João Pessoa: Editora da UFPB, 1998). Recebeu inúmeros prêmios literários, sendo os mais importantes: Prêmio Literário Cidade de Fortaleza – Conto, 1990; Prêmio Ceará de Literatura – Poesia, 1993 e Prêmio Novos Autores Paraibanos – Conto, 1998. Participa das antologias Contos Cruéis – org. Rinaldo de Fernandes (São Paulo: Geração Editorial, 2006) e Quartas Histórias – org. Rinaldo de Fernandes (Rio de Janeiro: Garamond, 2006), dentre outras. Foi traduzido para o espanhol por Félix Contreras e publicado em Cuba, nas Revistas Bohemia e Antenas.

                Em “Minha gente”, originado do conto homônimo de Guimarães Rosa, narrado na primeira pessoa, o contista prega uma peça no leitor, com muita sabedoria e sutileza. Sem diálogo, o narrador rememora o cotidiano em uma fazenda: animais, jagunços, trabalhadores, crianças, patrões. Durante toda a narrativa ele mantém o segredo sobre a própria identidade, embora dê vagas indicações, só percebidas no final, de que se trata de um cavalo. No terceiro parágrafo ele diz: “Meus pais eram teimosos, sofreram e apanharam que nem burro”. Ora, a teimosia é própria tanto de homens como de animais. Homens também sofrem e apanham “que nem burro”. E assim vai a narração até quase o final. Somente no último parágrafo vem a decifração do enigma: “Uma vez, tive que brigar até ficar exausto, machucado dos coices e das mordidas”. Ora, homens não dão coices. E vem o esclarecimento final: “algum tempo depois nasceu meu primeiro rebento, um cavalinho faceiro e corredor”.

                Em composição mais curta – “Por pouco eu não fui feliz” – Gildemar se vale de outros expedientes narrativos: os diálogos sem indicação dos nomes dos falantes e sem sinais (travessão ou aspas), no decorrer da narração. Neste também o protagonista não tem nome explícito. O desfecho é ao mesmo tempo poético e fantástico: “Oito dias depois, minha sobrinha trouxe um hipopótamo para o jardim e ele, deitado sobre as roseiras, tirou a única possibilidade de eu poder ofertar a Helena um pouco do que restou de mim”. Remate inesperado, insólito, embora no início da história Helena se dirija ao homem assim: “Oi! Vim aqui visitar sua mãe, mas parece que ela viajou...”, e ele responda: “Nem notei, parece que está em Zanzibar!

                Às vezes, o contista resvala no fosso perigoso da anedota, como em “Por falta de um adeus”. Mas consegue se recuperar em outras histórias, com certo humor que nada tem de anedótico, como em “A Lua e Natasha”. O narrador de “O homem que comprou a felicidade” brinca constantemente com o leitor e até zomba dele, no desenlace. O protagonista Almindo passeia pelo centro de Fortaleza, perde horas nos bancos da Praça do Ferreira, em busca da felicidade, da riqueza, sempre a sonhar com prêmios milionários.

                Gildemar cultiva os mais variados temas, além de se mover com desembaraço pelo fantástico, pelo humorístico e pelo realismo mais brutal. A leitura de “O sorriso do brinquedo” deixa no leitor uma sensação amarga na boca, ante a violência de mendigos no lixão, ao brigarem por uma boneca. Em apenas duas breves falas inseridas na narração, o narrador onisciente estabelece o conflito: “Quero a boneca pra minha neta. / Que nada, ela é minha”. O primeiro homem agride o outro: “dividiu sua cara ao meio com uma giletada”. A menina corre abraçada à boneca. “Sãs e salvas, as duas moram no sinal”. Como em outros desfechos, aqui o contista surpreende o leitor: a menina pede moedas na esquina e um “sujeito do outro lado da rua tem planos para a menina”. Mais um final enigmático.

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CARMÉLIA ARAGÃO

                Carmélia Aragão (Sobral, 1983) é licenciada em Letras e mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará, onde desenvolve tese sobre o escritor Domingos Olímpio. Premiada pelo III Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará – SECULT, em 2006, com o livro de contos Eu vou esquecer você em Paris (Fortaleza: Edição do Caos, 2007). Tem contos na revista Caos Portátil, na revista eletrônica Famigerado, no jornal do Grupo de Estudos Francófonos da Universidade Federal do Ceará, Voix du GEF. Seu conto “2003” foi premiado no concurso Domingos Olímpio de Literatura, de Sobral/CE.

                As quinze peças ficcionais que compõem Eu vou esquecer você em Paris mostram uma escritora madura. E isso se deve a dois fatores: muita leitura e talento. O primeiro se pode constatar pelas epígrafes (Neruda, Salman Rushidie, Cortazar), pela menção a nomes fundamentais da literatura (Dostoievski, Flaubert, Emily Brontë, Virgínia Woolf, Goethe, George Orwell e outros), sem falar na composição “Página 12224”, de feição policial e ao mesmo tempo fantástica, a nos lembrar “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto.

                Como ser madura, aos vinte anos de idade? Ou antes? Pois não se sabe quando as composições de Carmélia (1983) foram escritas. Ora, os exemplos de jovens escritores são muitos. Assim como de escritores idosos que nunca conseguiram atingir a maturidade literária, e morreram inacabados, incompletos, depois de dez, vinte, trinta livros publicados.

                Claro, nem tudo é ótimo em Eu vou esquecer você em Paris. Mas o que não é ótimo para uns é aceitável para outros. Como a linguagem das narrativas, ora mais coloquial, ora próxima do rigor literário. O próprio título do livro é frase de uso comum no falar. Isso, porém, já nem se discute no Brasil, desde o início do século XX, desde os modernistas. Ignácio de Loyola Brandão escreveu a obra “Pega ele, Silêncio” (parece poético, mas Silêncio é o nome de um personagem), que deu título a um livro.

                As narrativas de Carmélia são densas, mesmo quando os diálogos se estendem. Quase sempre ela se vale da narração e faz uso da economia de detalhes. Não se perde em descrições desnecessárias. Muitas vezes nem enredo há. E, se há, não obedece aos ditames do tradicional “descritivo narrativo linear”. Veja-se a construção de “Seja feliz (fragmentos da felicidade)”, disposta em quatro “fragmentos” independentes, como se fossem quatro histórias. No último, intitulado “O contista”, o narrador se refere aos três primeiros fragmentos: “Sim, um conto novo. Três crônicas que se unem em um conto.

                Apesar da modernidade das narrativas, Carmélia ainda usa o tradicional travessão nos diálogos, assim como os verbos introdutores do relato do discurso, como “dizer”, “afirmar”, “responder”, etc., há muito abolidos na prosa de ficção. O “ainda usa” acima pode ser substituído por “também usa”, pois a contista sabe disso e sabe se livrar dos tais pobres “verbos introdutores”, como se vê em “Quase” e “Felis catus”.

                Mas isso é de pouca importância.

                E onde vivem os seres fictícios de Carmélia? São quase todos suburbanos, vivem em grandes cidades, embora oriundos de pequenos burgos, como o contista de “Seja feliz” (“Sempre fôramos vizinhos de frente, mas separados pela praça da Matriz. Cidadezinha pequena: ‘Eita vida besta, meu Deus!’”). Andam de ônibus, moram em prédios de apartamentos, caminham por ruas longas, repletas de carros. Vejam esta descrição em “Pulsos intactos”: “Os olhos dele eram azuis refletidos no vidro da sorveteria. Eram azuis sob as janelas dos edifícios, das repartições, das barbearias, dos cafés, das vitrines, das lojas.” Seres perdidos, isolados, solitários. Mesmo quando o ambiente é “uma cidadezinha que vivia em torno de uma biblioteca”, cidade sem nome explícito, a não ser pela letra inicial “C”, do insólito conto “Página 12224”, cujos personagens parecem inspirados em alfarrábios medievais.

                Curioso ainda é o grande número de escritores fictícios na obra da contista. Em “Seja feliz” há um contista. Em “2003 (Carmina)” uma professora conhece Marco Santiago, professor de literatura, autor do romance “linear e trágico” Carmina. Em “Página 12224” os personagens “vivem” numa biblioteca, na qual há uma sessão exclusiva de Literatura Baltusanesa, “da tribo Kaywa da extinta Baltúsia”. Em “Meu reino por uma fivela” a narradora participa de um curso intitulado “Mulheres escritoras”, lê O morro dos ventos uivantes, em composição de características policiais. Em “Escrevia e apagava” (título sugestivo para uma história de personagem escritor) a protagonista escrevia contos para uma revista feminina. Em “Quase” a narradora se iniciara como leitora de romances policiais, passara aos “grandes mestres da literatura local, depois da nacional e, por fim, da universal”, estudara “línguas exóticas”, como baltusanês. Em “Filis catus” a mulher que narra se refere a um contista que conhecera e transcreve trechos de um de seus livros. Também os títulos de algumas peças remetem à literatura: “Romance russo”, “Página 12224”, “Escrevia e apagava”, “Crônica do 2º andar”.

                Pois essa paixão pela literatura é fundamental para o escritor: para viver, aprender e escrever cada vez melhor. Sem ela, teremos bons médicos, advogados, funcionários públicos, etc, que namoram a literatura nos fins de semana e escrevem de vez em quando algumas memórias ou uns versos capengas. Carmélia Aragão é do primeiro grupo e, sem dúvida, escreverá mais e cada vez melhor.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Acruche Collection - Trova 18

Irmãos Grimm (O Piolho e a Pulga)

Um piolho e uma pulga decidiram morar juntos e um dia estavam fazendo cerveja numa casca de ovo. E então, o pequeno piolho caiu dentro e se queimou. Diante disto, a pequena pulguinha começou a gritar alto.

Então, a pequena porta do quarto disse,

"Minha pequena pulguinha, porque estás gritando?"

"Porque o piolho se queimou."

Louca de dor, a porta começou a ranger. Foi aí que uma vassoura, que estava encostada num canto, falou para a porta:

"Porque você está rangendo, pequena porta?"

"Não tenho eu razões para me lamentar?"
"O piolhinho se queimou todo,
E a pulguinha está chorando."

Então, a vassoura também começou a varrer que nem desesperada. Um carrinho de mão, que passava pelo local, perguntou,

"Porque estás chorando, minha amiga vassoura?"

"Não tenho eu razões para chorar?"
"O piolho se queimou,
A pulguinha está chorando,
E a porta está rangendo de dor."

Então, o carrinho de mão disse,

"Então, eu vou correr,"

e saiu correndo que nem louco.

Então, um monte de cinzas que corria com ele, falou

"Porque você está correndo também, carrinho de mão?"

"E não tenho eu motivos para correr?"

"O piolho se queimou,
A pulguinha está chorando,
A porta está rangendo de dor.
E a vassoura está varrendo."

Nesse instante, o monte de cinzas falou,

"Então, vou queimar furiosamente,"

e começou a queimar com chamas claras.

Uma pequena árvore estava perto do monte de cinzas e perguntou,

"Monte de cinzas, porque você está queimando?"

"Será que eu não tenho motivos para estar queimando?"

"O piolho se queimou,
A pulguinha está chorando,
A porta está rangendo de dor.
A vassoura está varrendo.
E o carrinho de mão está correndo.”

A pequena árvore então, falou,

"Então, vou me sacudir todinha,"

e começou a se sacudir e todas as suas folhas caíram; uma garota apareceu carregando um jarro de água, viu tudo aquilo e perguntou,

"Minha amiga árvore, porque você está se sacudindo toda?"

"Será que eu não tenho motivos para me sacudir?", respondeu ela.

"O piolho se queimou,
A pulguinha está chorando,
A porta está rangendo de dor.
A vassoura está varrendo.
O carrinho de mão está correndo.
E o monte de cinzas está se queimando.”

Então, a garota falou,

"Então, eu vou quebrar o meu pequeno jarro dágua,"

e ela quebrou o seu pequeno jarro dágua.

Então, disse uma pequena fonte de onde corria a água,

"Menininha, porque você está quebrando o jarro dágua?"

"E não tenho eu motivos para quebrar o jarro dágua?"

"O piolho se queimou,
A pulguinha está chorando,
A porta está rangendo de dor.
A vassoura está varrendo.
O carrinho de mão está correndo.
O monte de cinzas está queimando.
E a pequena árvore está sacudindo.

"Oh, não!" disse a fonte, "então, eu vou começar a correr,"

e ela começou a correr com muita força. E todos se afogaram na água, a menina, a pequena árvore, o pequeno monte de cinzas, o carrinho de mão, a vassoura, a pequena porta, a pulguinha, o piolho, todos juntos.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_de_Grimm/O_piolho_e_a_pulga

A Saudade em Sonetos Diversos II

ARNALDO NUNES
Quarenta anos

Quarenta anos de esforços, quarenta anos
De sofrimento, de existência incalma,
De tantas decepções e desenganos
Estoicamente recalcados na alma!

Oito lustros de prélios sem a calma
Que vem sempre depois dos grandes danos;
Oito lustros de sonhos, tendo a palma
Triste dos pesadelos cotidianos!

E sobre esta velhice prematura,
Sobre a melancolia e sobre o tédio
Em que tudo se finda sem ventura,

A luz do fogo-fátuo, tíbia e mansa,
Desta grande saudade sem remédio,
A saudade infinita da Esperança...

AUGUSTO MEYER
Era uma vez...


Quem passa? É o Rei, é o Rei que vai à caça!
Mal filtra o luar a sombra do arvoredo.
Joãozinho, a um restolhar, treme de medo,
Maria escuta, se uma folha esvoaça...

Era uma vez um rei... jogou a taça
Ao mar, e o amargo mar guarda o segredo...
E a princesinha que cortou o dedo?
Faz muito tempo... Como a vida passa!

Era uma vez a minha infância linda
E o sonho, o susto, o vago encanto alado...
Vem a saudade e conta-me baixinho

Velhas histórias... E eu já velho ainda
Sou um Pequeno Polegar cansado
Que pára e hesita, em busca do caminho...

AUTA DE SOUZA
Lágrimas

Eu não sei o que tenho... Essa tristeza
Que um sorriso de amor nem mesmo aclara,
Parece vir de alguma fonte amara
Ou de um rio de dor na correnteza.

Minh'alma triste na agonia presa,
Não compreende esta ventura clara,
Essa harmonia maviosa e rara
Que ouve cantar além, pela devesa.

Eu não sei o que tenho... Esse martírio,
Essa saudade roxa como um lírio,
Pranto sem fim que dos meus olhos corre,

Ai, deve ser o trágico tormento,
O estertor prolongado, lento, lento,
Do último adeus de um coração que morre...

BASTOS PORTELA
Esplendor efêmero
 

És moça e bela. Assim, hoje pões e dispões;
E, feliz, num requinte fátuo de vaidade,
Vais pela vida, altiva, a esmagar corações...
Nada encontras no amor que te amargure ou enfade!

Mas, quando, um dia, enfim, atingires a idade
Em que se perdem, para sempre, as ilusões,
Tu me dirás, então, o que é sentir saudade
E o que é chorar no horror de longas solidões...

A beleza desfeita, humilde, decadente,
Serás a flor que, num jardim, murcha e descora,
Ao crepúsculo azul da tarde, mansamente...

E vendo-te passar, como os fantasmas, eu...
Eu sofrerei, talvez, como quem lembra ou chora
Uma bela mulher que se amou, e morreu!

BASTOS TIGRE
Saudade

Infeliz de quem vive sem saudade,
Do agridoce pungir alheio às penas,
Sem lembranças de amor e de amizade,
Hoje vivendo o dia de hoje, apenas.

Triste de ti, ancião, que te condenas
A mole insipidez da ancianidade
E não revives na memória as cenas

De prazer e de dor da mocidade!
Ter saudade é viver passadas vidas,
Percorrendo paragens preferidas,
Ouvindo vozes que se têm de cor.

Sonha-se... E em sonho, como por encanto,
A dor que nos doeu já não dói tanto,
Gozo que foi é gozo inda maior.

CIRO VIEIRA DA CUNHA
Saudade

Saudade! o teu olhar longo e macio
Derramando doçura em meu olhar...
Um bocado de sol sentindo frio,
Uma estrela vestida de luar...

Saudade! pobre beijo fugidio
Que tanto quis e não cheguei a dar...
A mansidão inédita de um rio
Na volúpia satânica do mar...

Saudade! o nosso amor... o teu afago...
O meu carinho... o teu olhar tão lindo...
Um pedaço de céu dentro de um lago...

Saudade! um lenço branco me acenando...
Uma vontade de chorar sorrindo,
Uma vontade de sorrir chorando...

CONSTÂNCIO ALVES
Soneto mudado

Eras em plena mocidade, quando
Da nossa casa, um dia, te partiste;
E eu, coitado, sem mãe, pequeno e triste,
Fiquei por esta vida caminhando.

Assim — no meu amor teu rosto brando
Do tempo à ação maléfica resiste,
E o meu é, hoje, como nunca o viste,
Tanto o passar da idade o foi mudando.

Tão velho estou, que já me não conheces;
Nem poderias ver no que te chora
Esse a quem ensinaste tantas preces.

E tão moça ainda estás que (se memora
A saudade o teu vulto) — me apareces
Como se fosses minha filha agora.

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/saudoso.htm