terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas

Depois de 1990 são inúmeros os escritores cearenses que se dedicam à elaboração de narrativas curtas. Muitos deles são poetas, cronistas, romancistas e ensaístas. Alguns publicaram livros de contos, como o multiartista Alano de Freitas, o veterano Carlos d’Alge, Carlos Gildemar Pontes, Carmélia Aragão, Clauder Arcanjo, Felipe Barroso, Lourdinha Leite Barbosa, Maria Thereza Leite, Natalício Barroso, Ricardo Kelmer, Roberto Amaral; outros apareceram apenas em coletâneas, jornais, revistas e sites, como Joan Edessom, Luís Marcus da Silva e Ray Silveira.

ALANO DE FREITAS

                Alano de Freitas nasceu em Fortaleza (1950). Contemporâneo dos contistas surgidos no final dos anos 1970 (participou da revista O Saco). Estreou em 1982 com os poemas de Tentações da Paisagem. Seguiram-se Hemisfério Translúcido, de 1997, e Eterno Instante Fugaz, de 1999. Artista plástico, músico, compositor e poeta, deu a lume no gênero conto Histórias do Começo do Mundo (7 Contos Minúsculos), em 1995, seguido de Eles Quase Eu (contos e flexões mentais das águas delirantes do mítico e do erótico).   

                O conto de Alano de Freitas tem parentesco muito próximo com a crônica e a reminiscência ou a memória. Não somente pela presença de personagens reais e de seu círculo de amizades. Em “Luzes e fogos”, o protagonista é internado no Hospital Mental São Gerardo, “onde ficou sob os cuidados do psiquiatra e escritor José Airton Machado Monte”. Em “O dementado”, o próprio Alano faz as vezes de narrador e personagem. Além disso, outro escritor cearense é lembrado: “Meu amigo poeta Dimas Macedo não dá presente de grego e os treze contos da areia de Borges vieram no meio de sessenta e sete livros que me deu pelo comparecimento ao aniversário de seu apartamento” (...). Airton Monte reaparece nesse relato, num trecho próprio de crônica para jornal: “Alô, Airton Monte, como vão os contos e os ‘meus doidinhos’?” Assim como o “poeta e músico Paulo Pardal”. São anotações desnecessárias, vez que as pessoas citadas não participam diretamente da trama e suas pequenas ações não passam de apêndices.

                O escritor explica, em “O desjejum”, essa sua maneira de escrever: “E se conto a história de um momento de minha mente, mesmo sem a graça das histórias encantadoras com começo, meio e fim definidos e que eu adoro, nem por isso estou fazendo diferente, em essência, do que faz qualquer escritor classificado como contista – estou sendo só mais um partícipe da evolução do conto ou das classificações literárias”.

                Entretanto, esse rompimento com as regras ditadas nos manuais de arte literária, que definem o que seja conto, crônica, poema, memória, etc, é salutar e há muito se vem praticando, aqui e alhures.

                Alguns dos seres fictícios (ou não) de Alano de Freitas vivem à margem da sociedade, do consumo, da normalidade sócio-econômica. São deserdados, abandonados, segregados, enlouquecidos. José Paulo, de “Léa vela”, está doente, de uma “gripe besta”, deitado numa “rede velha”, alumiado pela chama de uma lamparina, sob os cuidados de Léa. Ciço das Candeias fabrica lamparinas e, certa noite, sofre um delírio: aparece em sua oficina a Virgem Maria. Segundo o narrador, o pobre lamparineiro terminou internado num hospital psiquiátrico. O mendigo Antonio Ferreira faz diversas visitas ao narrador Alano, sempre para pedir alimentos, roupas, livros. E, como Ciço das Candeias, é internado em hospital para doentes mentais. O narrador de “Discurso de chegada” é outro louco, que se diz filho do Diabo. O narrador de “Narciso ou plácidas águas da loucura” dialogo com um espelho.

                Afora esse tema da loucura, da alienação e da exclusão social, Alano se debruça sobre abismos mais fundos. “Nossos começos” é uma recriação do Gênesis. Em “Discurso de chegada” o louco-narrador faz diversos questionamentos filosóficos, como em “E se o Diabo é também filho de Deus, como pode ser condenado?” Mas Alano prefere os pequenos abismos da sexualidade, como na relação amorosa de Ciço das Candeias com a Virgem Maria. Em “O desjejum”, o cronista faz reflexões várias, cita Cortazar, Poe, Pessoa, Homero e a Bíblia, e termina dando explicações sobre os significados de palavras como “tabaco” e “fumo” na língua do povo. A narrativa “A chuva pioneira” é de um erotismo exuberante. Adão e Eva reaparecem nus no paraíso de “Nossos começos”. Em “Fogo no fogo” se narram as primeiras incursões de garotos do interior na vida sexual ativa, com a prostituta Maria Rosa.

                A cidade de Fortaleza é palco de muitas histórias de Alano. Mas também outras cidades do Ceará ou o ambiente do interior (“Fogo no fogo”). Juazeiro do Norte está em “Luzes e fogos” e “Discurso de chegada”. A praia de Iracema (o bairro) aparece em “O dementado”, seja na referência ao extinto Cais Bar e à Avenida Aquidabã, assim como à Igreja de São Gerardo, em outro bairro.

                O título e o subtítulo do livro Eles Quase Eu – Contos e Flexões Mentais das Águas Delirantes do Mítico e do Erótico exprimem com fidelidade esse universo de Alano de Freitas. Eles, os personagens, são quase Alano, seus semelhantes, nos delírios, sonhos e angústias. Contos e flexões, sim. Mas também crônicas, para se usar um termo do cânone literário. O Mítico e o Erótico, sim, mas também o Social.

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CARLOS D’ALGE

            Carlos d’Alge nasceu em Chaves, Portugal, em 1930, tendo viajado para o Brasil aos seis anos de idade. Graduado em Letras, Direito e Educação, é professor de Literatura da Universidade Federal do Ceará. Membro da Academia Cearense de Letras. Doze livros editados. Seus contos apareceram em jornais, revistas e antologias, como O Talento Cearense em Contos, com a narrativa “Breve Ensaio Sobre a Solidão” e no volume A Mulher de Passagem, de 1993.

                A Mulher de Passagem é composto de contos, crônicas, reflexões metafísicas ou políticas e poemas. O poeta e ensaísta Linhares Filho encontrou nele “o conto criado em moldes de estilo puramente narrativo”, além do “conto entremeado da dissertação e do texto epistolar”. Há, na verdade, narrativas de variadas formas. “Tango” se constitui apenas de falas, com os tradicionais travessões, porém sem os também peremptos verbos introdutores do relato do discurso. Em outras histórias há apenas narração, além de reflexões. Em “A solidão do corpo” há uma bipolaridade temporal e narrativa (contrapontos): em um parágrafo a ação mostra a personagem feminina num acidente; no outro, o ato se dá numa casa, onde está o personagem masculino. E assim prossegue o drama em mais seis quadros.

                Quanto aos temas, os contos de D’Alge podem ser lidos como peças dedicadas aos “velhos encontros e desencontros amorosos da trajetória humana, as aventuras e desventuras do amor, particularmente com aventuras passionais”, como observa Linhares Filho. Em “A solidão do corpo” isto é particularmente claro. Entretanto, é a morte o tema primordial dele. “Por isso os presentes textos são iluminados de Eros e Thanatos”, conclui Linhares.

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CARLOS GILDEMAR PONTES

                Carlos Gildemar Pontes (Fortaleza, 1960) é poeta, ficcionista e ensaísta. Editor da Revista Acauã. Licenciado em Letras na Universidade Federal do Ceará, com doutorado em Literatura e Cultura na Universidade Federal da Paraíba, onde é professor de Literatura. Tem diversos livros publicados de poemas, contos, ensaios e cordéis. Dentre os quais os de contos Porta-fólio (Jaboatão dos Guararapes: EGM, 2004) e A miragem no espelho (João Pessoa: Editora da UFPB, 1998). Recebeu inúmeros prêmios literários, sendo os mais importantes: Prêmio Literário Cidade de Fortaleza – Conto, 1990; Prêmio Ceará de Literatura – Poesia, 1993 e Prêmio Novos Autores Paraibanos – Conto, 1998. Participa das antologias Contos Cruéis – org. Rinaldo de Fernandes (São Paulo: Geração Editorial, 2006) e Quartas Histórias – org. Rinaldo de Fernandes (Rio de Janeiro: Garamond, 2006), dentre outras. Foi traduzido para o espanhol por Félix Contreras e publicado em Cuba, nas Revistas Bohemia e Antenas.

                Em “Minha gente”, originado do conto homônimo de Guimarães Rosa, narrado na primeira pessoa, o contista prega uma peça no leitor, com muita sabedoria e sutileza. Sem diálogo, o narrador rememora o cotidiano em uma fazenda: animais, jagunços, trabalhadores, crianças, patrões. Durante toda a narrativa ele mantém o segredo sobre a própria identidade, embora dê vagas indicações, só percebidas no final, de que se trata de um cavalo. No terceiro parágrafo ele diz: “Meus pais eram teimosos, sofreram e apanharam que nem burro”. Ora, a teimosia é própria tanto de homens como de animais. Homens também sofrem e apanham “que nem burro”. E assim vai a narração até quase o final. Somente no último parágrafo vem a decifração do enigma: “Uma vez, tive que brigar até ficar exausto, machucado dos coices e das mordidas”. Ora, homens não dão coices. E vem o esclarecimento final: “algum tempo depois nasceu meu primeiro rebento, um cavalinho faceiro e corredor”.

                Em composição mais curta – “Por pouco eu não fui feliz” – Gildemar se vale de outros expedientes narrativos: os diálogos sem indicação dos nomes dos falantes e sem sinais (travessão ou aspas), no decorrer da narração. Neste também o protagonista não tem nome explícito. O desfecho é ao mesmo tempo poético e fantástico: “Oito dias depois, minha sobrinha trouxe um hipopótamo para o jardim e ele, deitado sobre as roseiras, tirou a única possibilidade de eu poder ofertar a Helena um pouco do que restou de mim”. Remate inesperado, insólito, embora no início da história Helena se dirija ao homem assim: “Oi! Vim aqui visitar sua mãe, mas parece que ela viajou...”, e ele responda: “Nem notei, parece que está em Zanzibar!

                Às vezes, o contista resvala no fosso perigoso da anedota, como em “Por falta de um adeus”. Mas consegue se recuperar em outras histórias, com certo humor que nada tem de anedótico, como em “A Lua e Natasha”. O narrador de “O homem que comprou a felicidade” brinca constantemente com o leitor e até zomba dele, no desenlace. O protagonista Almindo passeia pelo centro de Fortaleza, perde horas nos bancos da Praça do Ferreira, em busca da felicidade, da riqueza, sempre a sonhar com prêmios milionários.

                Gildemar cultiva os mais variados temas, além de se mover com desembaraço pelo fantástico, pelo humorístico e pelo realismo mais brutal. A leitura de “O sorriso do brinquedo” deixa no leitor uma sensação amarga na boca, ante a violência de mendigos no lixão, ao brigarem por uma boneca. Em apenas duas breves falas inseridas na narração, o narrador onisciente estabelece o conflito: “Quero a boneca pra minha neta. / Que nada, ela é minha”. O primeiro homem agride o outro: “dividiu sua cara ao meio com uma giletada”. A menina corre abraçada à boneca. “Sãs e salvas, as duas moram no sinal”. Como em outros desfechos, aqui o contista surpreende o leitor: a menina pede moedas na esquina e um “sujeito do outro lado da rua tem planos para a menina”. Mais um final enigmático.

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CARMÉLIA ARAGÃO

                Carmélia Aragão (Sobral, 1983) é licenciada em Letras e mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará, onde desenvolve tese sobre o escritor Domingos Olímpio. Premiada pelo III Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará – SECULT, em 2006, com o livro de contos Eu vou esquecer você em Paris (Fortaleza: Edição do Caos, 2007). Tem contos na revista Caos Portátil, na revista eletrônica Famigerado, no jornal do Grupo de Estudos Francófonos da Universidade Federal do Ceará, Voix du GEF. Seu conto “2003” foi premiado no concurso Domingos Olímpio de Literatura, de Sobral/CE.

                As quinze peças ficcionais que compõem Eu vou esquecer você em Paris mostram uma escritora madura. E isso se deve a dois fatores: muita leitura e talento. O primeiro se pode constatar pelas epígrafes (Neruda, Salman Rushidie, Cortazar), pela menção a nomes fundamentais da literatura (Dostoievski, Flaubert, Emily Brontë, Virgínia Woolf, Goethe, George Orwell e outros), sem falar na composição “Página 12224”, de feição policial e ao mesmo tempo fantástica, a nos lembrar “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto.

                Como ser madura, aos vinte anos de idade? Ou antes? Pois não se sabe quando as composições de Carmélia (1983) foram escritas. Ora, os exemplos de jovens escritores são muitos. Assim como de escritores idosos que nunca conseguiram atingir a maturidade literária, e morreram inacabados, incompletos, depois de dez, vinte, trinta livros publicados.

                Claro, nem tudo é ótimo em Eu vou esquecer você em Paris. Mas o que não é ótimo para uns é aceitável para outros. Como a linguagem das narrativas, ora mais coloquial, ora próxima do rigor literário. O próprio título do livro é frase de uso comum no falar. Isso, porém, já nem se discute no Brasil, desde o início do século XX, desde os modernistas. Ignácio de Loyola Brandão escreveu a obra “Pega ele, Silêncio” (parece poético, mas Silêncio é o nome de um personagem), que deu título a um livro.

                As narrativas de Carmélia são densas, mesmo quando os diálogos se estendem. Quase sempre ela se vale da narração e faz uso da economia de detalhes. Não se perde em descrições desnecessárias. Muitas vezes nem enredo há. E, se há, não obedece aos ditames do tradicional “descritivo narrativo linear”. Veja-se a construção de “Seja feliz (fragmentos da felicidade)”, disposta em quatro “fragmentos” independentes, como se fossem quatro histórias. No último, intitulado “O contista”, o narrador se refere aos três primeiros fragmentos: “Sim, um conto novo. Três crônicas que se unem em um conto.

                Apesar da modernidade das narrativas, Carmélia ainda usa o tradicional travessão nos diálogos, assim como os verbos introdutores do relato do discurso, como “dizer”, “afirmar”, “responder”, etc., há muito abolidos na prosa de ficção. O “ainda usa” acima pode ser substituído por “também usa”, pois a contista sabe disso e sabe se livrar dos tais pobres “verbos introdutores”, como se vê em “Quase” e “Felis catus”.

                Mas isso é de pouca importância.

                E onde vivem os seres fictícios de Carmélia? São quase todos suburbanos, vivem em grandes cidades, embora oriundos de pequenos burgos, como o contista de “Seja feliz” (“Sempre fôramos vizinhos de frente, mas separados pela praça da Matriz. Cidadezinha pequena: ‘Eita vida besta, meu Deus!’”). Andam de ônibus, moram em prédios de apartamentos, caminham por ruas longas, repletas de carros. Vejam esta descrição em “Pulsos intactos”: “Os olhos dele eram azuis refletidos no vidro da sorveteria. Eram azuis sob as janelas dos edifícios, das repartições, das barbearias, dos cafés, das vitrines, das lojas.” Seres perdidos, isolados, solitários. Mesmo quando o ambiente é “uma cidadezinha que vivia em torno de uma biblioteca”, cidade sem nome explícito, a não ser pela letra inicial “C”, do insólito conto “Página 12224”, cujos personagens parecem inspirados em alfarrábios medievais.

                Curioso ainda é o grande número de escritores fictícios na obra da contista. Em “Seja feliz” há um contista. Em “2003 (Carmina)” uma professora conhece Marco Santiago, professor de literatura, autor do romance “linear e trágico” Carmina. Em “Página 12224” os personagens “vivem” numa biblioteca, na qual há uma sessão exclusiva de Literatura Baltusanesa, “da tribo Kaywa da extinta Baltúsia”. Em “Meu reino por uma fivela” a narradora participa de um curso intitulado “Mulheres escritoras”, lê O morro dos ventos uivantes, em composição de características policiais. Em “Escrevia e apagava” (título sugestivo para uma história de personagem escritor) a protagonista escrevia contos para uma revista feminina. Em “Quase” a narradora se iniciara como leitora de romances policiais, passara aos “grandes mestres da literatura local, depois da nacional e, por fim, da universal”, estudara “línguas exóticas”, como baltusanês. Em “Filis catus” a mulher que narra se refere a um contista que conhecera e transcreve trechos de um de seus livros. Também os títulos de algumas peças remetem à literatura: “Romance russo”, “Página 12224”, “Escrevia e apagava”, “Crônica do 2º andar”.

                Pois essa paixão pela literatura é fundamental para o escritor: para viver, aprender e escrever cada vez melhor. Sem ela, teremos bons médicos, advogados, funcionários públicos, etc, que namoram a literatura nos fins de semana e escrevem de vez em quando algumas memórias ou uns versos capengas. Carmélia Aragão é do primeiro grupo e, sem dúvida, escreverá mais e cada vez melhor.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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