quarta-feira, 18 de abril de 2018

Lia Rosa Reuse (1947 – 2011)

Lia-Rosa Reuse nasceu em Caxias do Sul/RS, em 1947, filha de José Albino Reuse, Agente e Tesoureiro dos Correios e Telégrafos durante muitos anos e Verginia Botini Reuse, Auxiliar de Tesouraria, pelo que morou grande parte da sua vida no respectivo prédio, sendo conhecida como "A Menina dos Correios". 
Aos dois anos aprendeu a ler sozinha e pouco mais tarde traçava suas páginas dedicadas a seus pais, suas bonecas, a um gatinho que lhe fora furtado.
Foi professora de Francês na Aliança Francesa, de várias matérias em escolas estaduais e particulares; responsável pelas provas vestibulares de Francês da Universidade de Caxias do Sul onde o lecionou no Curso de Letras e de Filosofia do Direito no Curso de Ciências Jurídicas. Conquistou os seguintes diplomas de estudos superiores : Língua e Literatura Francesas - Universidade de Nancy - França ; Letras-Francês, Ciências Jurídicas e Sociais, Filosofia, Psicologia. Fez estudos nas áreas de Música, Jornalismo, Especialização em Filosofia e Teologia. Foi redatora do espaço da Ordem dos Advogados do Brasil no jornal Pioneiro, produtora da revista bilíngue ( Francês/Português ) LeReLeR nos dois anos e meio em que circulou
Teve formação superior com estudos desenvolvidos no Brasil e na França; graduada em Letras (Português e Francês), Ciências Jurídicas e Sociais, Filosofia e Psicologia. Como Advogada Criminalista atuou no Tribunal do Júri de Caxias do Sul.
É autora da obra “A Estrela de Daniel”, lançada em 1997, dos romances “Princesinha da Casa Verde”, em 2006, e “A Menina dos Correios”; de “Ninho de Anjos”/ poesias, em 2008, e dos seguintes livros bilingues ( de sonetos em Francês traduzidos para o Português pela autora): Pétales de Lumière (Pétalas de Luz), Mon Corps – Une Pensée (Meu Corpo - Um Amor Perfeito) , Chant de Siréne au Bord du Fantastique (Canto de Sereia á Beira do Fantástico). Em 1997 estabeleceu o primeiro contato com a ACL participando de seu I Concurso Literário com a crônica "Os Girassóis de São Pelegrino" que se classificou em 1º lugar.
Participou de diversas antologias no Brasil e no exterior, em português e em francês. Tem obras individuais, em poesia e em prosa, publicadas em ambos idiomas. Foi membro de Academia Virtual Brasileira de Letras, da Academia Caxiense de Letras-RS e da União Brasileira de Trovadores Seção Caxias do Sul.
Faleceu em 2011, aos 64 anos de idade, na mesma cidade em que nasceu.

Fontes:
http://paginas.terra.com.br/arte/reuse/
– União Brasileira de Trovadores de Porto Alegre. Milton S. De Souza (editor). Livro de Trovas de Alice Brandão e Lia Rosa. Coleção Terra e Céu vol. XCIX. Porto Alegre/RS: Textocerto, 2016.

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 53 a 56


 53 — COXILHAS, LANCEIROS, ROMANCE E... PAZ!

Porto alegre caiu em poder dos legalistas. Fizemos o nosso quartel general perto de Viamão. O nosso chefe supremo era o Cel. Bento Gonçalves da Silva, uma figura impressionante. Lutei muitas vezes ao lado dele. 

Não me esqueço daquele dia... A nossa tropa ia atravessando o Rio Jacuí. Um pensamento me veio à cabeça: “Se os inimigos nos atacam agora, estamos perdidos...” Mal eu pensara isto, ouvimos um tiroteio. As balas caíram a meu redor, produzindo n’água um ruído líquido e mole. O pânico se apoderou de nossa gente. Bento Gonçalves gritava, procurando conter seus soldados. O combate se travou desigual para a Ilha do Fanfa. Bento Gonçalves foi aprisionado. Escapei por um triz. Horas depois me vi no campo aberto, molhado como um pinto, tiritando (era outubro e ainda fazia frio) e sentindo uma grande saudade de meu quarto de estudante.

Reuni-me de novo aos revolucionários. Fiquei sabendo que Bento Gonçalves seria levado prisioneiro para a Corte. Mas a guerra continuou. Havia um guerreiro que até hoje nem eu nem ninguém conseguiu compreender. Chamava-se o Cel. Bento Manuel Ribeiro. Ora estava de nosso lado; ora passava para o lado dos legalistas. Como era homem valente, astuto e conhecedor da arte da guerra, nenhum dos dois exércitos o recusava. Mas não vamos falar mais nele. O assunto é perigoso, como a Batalha de Ituzaingó e a traição de Calabar.

Obtivemos uma vitória em Caçapava, outra em Triunfo e cercamos Porto Alegre. Bento Gonçalves, bem como nos romances de Alexandre Dumas Pai (que naquele tempo tinha exatamente 35 anos de idade) fugiu do Forte do Mar, onde estava preso, e veio reunir-se à sua gente. Assumiu a Presidência da República Rio-Grandense e transferiu a capital para Caçapava.

Outro general importante era Davi Canabarro. Havia também Giuseppe Garibaldi, um italiano amigo de aventuras, que lutou ao lado dos revolucionários. Casou-se com uma brasileira, Anita, que o acompanhava nos combates, passando ambos para a História. (Só quem não passou fui eu... Em compensação, estou vivo.)

Lembro-me bem do seguinte quadro. Anoitecer. Nossa cavalaria corre. É a carga final. Os legalistas formam o quadrado. Esperam-nos de baioneta armada, pois suas balas já se acabaram. Vamos de lança estendida... O barulho das patas dos cavalos parece o pipocar dos tiroteios. Eu vou como num sonho maluco. Tonto, sentindo um frio esquisito na boca do estômago. O horizonte está vermelho, como se o sangue de todos os guerreiros mortos tivesse tingido o céu. Procotó-procotó-procotó... Os cavalos voam. Gritos. Urros. E o quadrado crescendo diante de nossos olhos, crescendo... O vento faz ondular furiosamente os nossos palas. As baionetas... E de repente o choque. Sinto uma dor aguda.

Perco os sentidos. Quando acordo estou num hospital de Caçapava. Convalescença. Deram-me notícias da Corte. O Barão de Caxias pacificara o Maranhão. Abafara uma revolta em São Paulo. Outra em Minas Gerais. Voltava o Imperador agora os olhos para o Sul. Era preciso dominar o Rio Grande.

Por esse tempo aconteceu outra coisa curiosa. A Inglaterra fazia o papel de “polícia dos mares” e votou uma lei, segundo a qual ficavam sujeitos ao julgamento dos tribunais ingleses os cidadãos brasileiros que negociassem com escravos. Recebi esta noticia com certa alegria. Era um sinal de que em breve poderíamos esperar uma lei brasileira proibindo a compra e a venda de negros. 

Saí do hospital curado. Tomei parte em alguns combates mais. O Barão de Caxias foi encarregado de pacificar o Rio Grande. Por esse tempo Bento Manuel voltava de seu exílio voluntário para lutar ao lado dos legalistas. Sofremos uma série de derrotas.

A 1.° de março de 1845 era assinada a paz. Já era tempo. Eu estava cansado. Tinha lutado durante quase dez anos. Esquecera os livros lidos, perdera o gosto pela poesia. Estava com o corpo cheio de cicatrizes e a alma amargurada. Aquela guerra entre irmãos só agora me aparecia com todo o seu pavor. Jurei a mim mesmo que não tomaria mais parte em revoluções. Uma noite Anchieta me apareceu em sonhos e pela expressão de seu rosto vi que ele não estava contente comigo.

54 — LEVAM-ME PARA O HOSPÍCIO

Fui morar em Porto Alegre, onde consegui emprego numa Soja. Às vezes eu contemplava o Guaíba e sentia saudades do mar. O tempo passava. Eu me lembrava do pajé. E me apalpava, me olhava aos espelhos e não podia compreender o mistério... A verdade era que eu estava vivo e me recordava de coisas passadas havia duzentos e muitos anos.

Uma noite encontrava-me eu em visita na casa de uma família amiga. Falava-se na última revolução. Alguém contou que rebentara em Pernambuco uma revolução (a dos Praieiros) que fora dominada depois de alguns meses. Um outro recordou episódios de nossa História, coisa aprendida em livros. Fui ficando entusiasmado de tal forma que dentro em breve tomei conta da palestra. Contei do meu encontro com Anchieta; da minha vida nas selvas; das bandeiras; da guerra contra os holandeses; da vida no quilombo dos Palmares; da fundação do Rio de Janeiro...

Todos me ouviram em silêncio. Quando terminei a narrativa vi olhos desconfiados a me fitarem. O dono da casa se ergueu, bateu no meu ombro e disse:

— Eu não sabia que o meu amigo tinha veia de romancista. A história está bem arranjada. Por que não escreve isso?

Fiquei indignado. Mas eu estava falando a verdade, a pura verdade! Estabeleceu-se discussão. Perdi a linha. Exaltei-me. As senhoras se retiraram da sala, temendo um conflito.

Sabem o resultado? Alguns homens me dominaram, me amarraram e me levaram à presença dum médico. Este me interrogou. De início pediu a data e o lugar do meu nascimento. Respondi:

— Nasci numa taba tupinambá antes do descobrimento do Brasil.

O médico olhou para mim, pensou um instante e depois disse para os homens que me cercavam:

— Está doido varrido. Podem levá-lo.

Fui internado num hospício. Parece impossível. Passei lá quase dois anos. Pedi tinta, pena e papel e comecei a escrever as minhas memórias. Se não fora esse entretimento eu não teria aguentado aquela prisão horrenda e a companhia perigosa dos loucos.

Narrei com todos os pormenores (muito melhor do que estou fazendo agora) a minha vida, desde a taba até aquela data. 0 manuscrito ia crescendo: era uma pilha de meio metro de altura.

Um dia um louco se aproximou dele e prendeu-lhe fogo com a chama duma vela. Quando eu vi o fogo havia consumido os meus papéis e passava para o lençol da cama. Dentro em pouco o incêndio se generalizava. Soaram os sinos de alarma. Os loucos começaram a cantar. Os guardas corriam dum lado para outro. Abriram as nossas celas e as portas do hospício. Aproveitei a confusão e fugi.

55 — VOLUNTÁRIO NO PRATA

Chamavam voluntários para o exército. Alistei-me. Fui aceito. Metido na farda me olhei um dia nas águas duma lagoa e disse para mim mesmo:

“Qual, Tibicuera! Tu não tens cura. O teu destino é andar às voltas com guerras.”

Mas a verdade era que como soldado eu me livrava do perigo de voltar para o hospício. Durante vários meses levei vida boa. Mas um dia tivemos ordem de marchar. O exército brasileiro ia invadir a República Oriental do Uruguai. Havia lá uma complicação tremenda. Oribe era o presidente. Mas Rivera fizera uma revolução, derrubara-o e tomara conta do governo. João Manuel de Rosas, ditador de Buenos Aires, arregalou o olho para a Banda Oriental. Podia tomar conta dela. Também não era impossível abocanhar o Rio Grande do Sul. Então ele seria o ditador de um país muito grande e poderoso. Para realizar seu sonho, apoiou Oribe, que cercou Montevidéu. Corriam perigo as fronteiras do Brasil. E por isso íamos nós para lá.

Confesso que foi bem desagradável aquela campanha. Passamos muito trabalho lutando em terra estrangeira. Mas obrigamos Oribe a levantar o cerco. Avançamos sobre Buenos Aires. Vencemos Rosas em Caseros sob o comando do gaúcho Marques de Sousa.

Voltei da campanha, estropiado. E fazendo projetos para mudar de vida. Estava resolvido a abandonar as guerras.

56 - ENTRE GALINHAS E PÉS DE MILHO...
Foi por isso que quando em 1864 se falou numa nova expedição à República Orientai, eu preferi ficar numa granja que tinha arrendado. Achei mais agradável plantar milho e criar galinhas do que ir matar gente na república vizinha. Entretanto fiquei curioso por saber o que se estava passando. Os jornais andavam cheios de notícias em torno do conflito. Os partidos que lutavam do outro lado da fronteira, repetidamente praticavam violências contra cidadãos brasileiros. Todas as reclamações diplomáticas tinham sido em vão. A anarquia continuava no Uruguai. Guerreavam-se os dois partidos rivais. Os blancos, que eram a gente de Oribe e os colorados, que eram os homens de D. Venâncio Flores. As forças brasileiras invadiram o Uruguai, uniram-se aos colorados, sitiaram Montevidéu e entraram nesta cidade, entregando o governo ao Gen. Flores (Não confundir com o Gen. Flores da Cunha.)

Acompanhei a guerra pelos jornais. O meu milharal crescia. As galinhas engordavam. Eu tinha comprado alguns livros e era de novo feliz com os meus poetas, os meus romancistas e os meus filósofos. Mas...

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937. 

terça-feira, 17 de abril de 2018

Trova 291 - Joaquim Carlos (Nova Friburgo/RJ)

Fonte: Facebook (Bonde Trova)

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) II


CONTRASTE

Tu és feliz, a vida é um paraíso,
onde há paz, ventura em profusão,
e a graça singular do teu sorriso,
– símbolo da Beleza e Perfeição!

Mas eu sou infeliz, pois já diviso
na luz do teu olhar, ingratidão,
e sem querer eu sinto que preciso
esquecer-te e viver na solidão.

Julgara que tu fosses, ó querida,
meu segredo, meu sonho, minha vida,
minha eviterna e santa inspiração…

Mas tu és assassina do meu sonho,
vives feliz e eu vivo tão tristonho,
sentindo que esta vida é uma ilusão!

SEM FRONTEIRAS 

Viajo com as nuvens. Sou poeta. 
Gosto de dar vazão ao pensamento. 
Sou capaz de chegar ao firmamento 
e voltar para a terra como atleta. 

Na terra, pego a minha bicicleta, 
vou pedalando mesmo contra o vento, 
enquanto os versos nascem no acalento 
de uma paixão suave e não secreta. 

Não há fronteiras, pois o amor é brando, 
poetas são assim, vivem sonhando 
com um mundo feliz e mais humano. 

Não importa se a vida é muito breve, 
o amor é intenso e o fardo fica leve 
quando o perdão se torna soberano.

PREDESTINADO

Passo a passo, vivendo solitário,
– predestinado para o sofrimento,
vou subindo o meu íngreme calvário
sob o peso da mágoa e do tormento.

R como um sonhador,  no mundo vário,
procuro paz, amor, contentamento,
mas no meu tortuoso itinerário
só encontro amargura e fingimento.

E a esperança da vida vai passando,
e eu descrente de tudo vou ficando,
na solidão que o mundo me ofertou;

mas a poesia, doce companheira,
está sempre comigo a vida inteira,
dando-me a paz que a sorte me negou!

GARIMPANDO A FELICIDADE

Vou garimpando pela vida afora
a lição de Humildade que conforta
e traz ao coração a Luz da aurora,
mesmo que a crença já pareça morta.

De solo em solo, busco sem demora
o cascalho do Amor que aduba a horta.
Busco a pedra da Fé, que revigora
e prepara o caminho abrindo a porta.

Não quero, meu amigo, andar a esmo,
minha sorte depende de mim mesmo,
que a vida pode ser melhor assim.

E se meus passos forem tão errantes,
buscando joias, pedras, diamantes,
- não haverá felicidade em mim!

MEU VERSO

Meu verso vem do Nordeste, 
vem do roçado, vem do Sertão, 
vem das veredas lá do agreste, 
vem das cacimbas e dos grotões. 

Meu verso vem dos garimpos, 
das catras dos garimpeiros, 
da coragem dos vaqueiros 
vestidos no seu gibão, 
vem do sereno da noite 
do perfume do Sertão. 

Meu verso simples, sem medo, 
vem do sítio, do rochedo, 
vem do povo do Sertão, 
que com a luz do arrebol 
trabalha de sol a sol 
para ganhar o seu pão. 

Vem da Serra do Carranca 
onde a beleza não manca, 
e a onça faz sentinela. 
Da Serra da Mangabeira 
onde a Lua vem brejeira 
tecer a renda mais bela. 

Meu verso vem da goiaba, 
do puçá e da mangaba, 
da seriguela e do mamão. 
Da pinha e da acerola, 
da atemóia e graviola 
plantadas no roçadão. 

Nasceu na bela Umbaúba, 
Boa Vista, Bela Sombra, 
na Lagoa de Prudente, 
na Chiquita e no Vanique, 
onde há muito xique-xique 
e o sol parece mais quente. 

Brejões, Lagoa do Barro, 
Santo Antonio, Traçadal, 
Olho D´Água, Rio Verde, 
Baixa dos Marques, Coxim, 
Ibipetum, depois Pintada, 
onde passa a velha estrada, 
Zequinha e Lamarca morreram. 

Sodrelândia, Deus me Livre, 
Pé de Serra, Poço da Areia, 
Riacho das Telhas também. 
Poço do Cavalo, Matinha, 
Mata do Evaristo e Veríssimo, 
Olhodaguinha e Ipupiara. 

Meu verso nasceu no mato, 
não tem brilho, nem ornato, 
vem do Morro do Mocó, 
da Serra do Sincorá, 
vem do morro do Araçá, 
nasceu pobre e vive só...

Fontes: 
- Aparício Fernandes (organizador). Poetas do Brasil. 
Anuário de 1980. 3o volume. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1980.
- Filemon F. Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011

Contos e Lendas do Mundo (Irâ: O Pássaro Trinador de Flores)

Era uma vez um Rei que tinha três filhos: Malik Mhuhammad, Malik Dschamschid e Malik Ibrahim. Ibrahim era o mais moço e seu pai o amava, tal como o filho amava o pai. Tendo o Rei adoecido, os médicos de todo o império não conseguiram descobrir qual o remédio para sua doença. Mas aí um certo doutor declarou que o remédio existia, desde que se conseguisse encontrá-lo: pois havia no mar um peixe verde que trazia um anel de ouro na mandíbula, e se alguém conseguisse pescá-lo, abrindo-lhe a barriga e colocando um pedacinho do coração de tal peixe sobre o coração do Sultão, este certamente se restabeleceria.

Os três filhos ofereceram dinheiro a vários mergulhadores e pescadores para que os mesmos procurassem o tal peixe, e afinal, após alguns dias, estes conseguiram pescá-lo e o trouxeram a Malik Ibrahim. Tomando-o nas mãos, o moço ficou tremendamente impressionado com a grande beleza do peixe e, examinando-o, verificou que ele trazia inscrito na testa: "Alá é o único Deus, Maomé é seu profeta e Ali é seu sucessor". Bem, é esse o credo Shiita maometano. Ora, ao ler aquilo, Malik Ibrahim sentiu-se profundamente comovido e exclamou: "Mesmo que meu pai possa ser curado por este peixe, não posso matá-lo", e lançou o peixe de volta ao mar.

Enquanto isso, todos aguardavam que ele trouxesse o peixe e, abrindo-lhe a barriga, curasse o pai, até que descobriram que o rapaz devolvera o peixe ao mar, o que os fez morder os dedos de espanto, sem conseguir entender o fato. 

Quando disseram isso ao Rei, este ficou furioso e falou: "Se na verdade Malik Ibrahim está esperando que eu morra para se apoderar do trono, eu o deserdarei".

Daí em diante o Rei foi piorando cada vez mais, não tendo mais paz nem de dia nem de noite; mais uma vez os médicos se reuniram em torno de seu leito e declararam: "Ainda existe um remédio que conhecemos, que é o Pássaro Trinador de Flores. Toda vez que ele gorjeia, cai-lhe do bico uma linda flor e, se alguém conseguir aprisioná-lo e colocar uma dessas flores sobre o coração do Rei, ele ficará curado de sua enfermidade".

O Rei beijou seus outros dois filhos, dizendo-lhes: "Agora, minha única esperança é que vocês encontrem o Pássaro Trinador de Flores". Então os dois filhos montaram seus cavalos e partiram, sendo seguidos por Ibrahim, pouco tempo depois. Os irmãos perguntaram o que estava fazendo ele ali, ao que Ibrahim respondeu que também ele ia em busca do pássaro, de modo que resolveram prosseguir juntos. Chegando a uma encruzilhada onde havia uma árvore e uma fonte, desceram dos cavalos para descansar um pouco. Tendo os seus irmãos adormecido, Ibrahim foi dar um pequeno passeio, e de repente avistou uma tábula de pedra onde estava escrito:

"Aqueles que chegarem a esta encruzilhada precisam saber que a estrada da direita não apresenta perigo e é agradável, mas a da esquerda é cheia de perigos e nenhum viajante que por ela seguir poderá ter esperança de voltar".

Os dois irmãos, naturalmente, tomaram o caminho da direita, enquanto a Ibrahim coube o da esquerda. Mas havia na tábula uma outra inscrição que dizia que quem tomasse o caminho da esquerda deveria levá-la consigo. E assim fez Ibrahim. Primeiramente, foi dar a um castelo cercado de um lindo jardim onde encontrou uma bela jovem que o flertou; ele se apaixonou por ela e esta já sabia o seu nome. De repente porém Ibrahim se lembrou da tábula que trouxera consigo e, retirando-se para um recanto do jardim, viu que nela estava escrito: "Se tomares o caminho da esquerda, encontrarás belíssima e sedutora jovem, mas não te deixes atrair por suas tramas pois ele é uma astuta feiticeira que deseja matar-te. Ela vai te desafiar para uma luta e, quando isso ocorrer, tens de arrancar-lhe a blusa e então verás em seu ombro um sinal negro. Toma tua faca e enterra-a com toda força nessa mancha negra, tratando porém de não errares o alvo, pois se isso acontecer tu serás transformado em pedra negra".

Aconteceu tudo como fora previsto e Ibrahim conseguiu mergulhar sua adaga na mancha negra da feiticeira. Então surgiu um furacão, com raios e trovões, tendo Ibrahim desmaiado de terror. Ao recobrar os sentidos viu a seu lado o cadáver de uma terrível e decrépita velha; quanto ao jardim e ao palácio, tudo desaparecera e ele se achava num deserto. 

Então Ibrahim prosseguiu caminho e logo se achou num jardim muito semelhante ao primeiro; no centro havia um lago e nele vagava um barco. Nadou até o barco e ali encontrou dez homens, dos quais apenas um manifestava sinais de vida. Malik Ibrahim alimentou-o fazendo-o comer pedacinhos de maçã, pois o homem estava demasiado fraco e faminto para poder falar. Após se sentir mais reconfortado, o homem contou a Ibrahim que o barco fora colhido por um redemoinho e que, diariamente, ao meio-dia, surgia das profundezas uma grande mão que arrebatava um deles para dentro do lago, quer estivesse vivo ou morto, e que antes havia vinte homens a bordo, dos quais dez haviam sido agarrados e os demais tinham morrido de fome. Ibrahim recorreu novamente à tábula, na qual leu: "Se chegares a este barco, não te deixes distrair por qualquer coisa que vejas, ou que aconteça, ou que a dona da mão te relate. Essa mão que emerge do fundo das águas pertence à irmã da primeira feiticeira. Tens que apertá-la com toda a tua força, que é para romperes a maldição. Caso sejas superado na luta, perderás para sempre tua liberdade".

Aí surgiu da água uma linda mão enquanto uma voz o saudava dizendo: "Apertemos as mãos, em sinal de amizade!" Ao que Ibrahim respondeu: "Sim, com todo prazer", e estendeu-lhe a mão; reparando porém que a outra o ia puxando cada vez mais para a água, ele se colocou sob a proteção de Deus e, com quantas forças tinha, apertou tanto a tal mão, que a esmagou; novamente desabou uma tempestade e ele viu a seu lado o cadáver da feiticeira, achando-se perdido novamente no deserto.

Pôs-se então a caminho e foi dar a um lugar onde havia uma árvore alta e uma fonte, com muitos macacos em torno da árvore. Ele não sabia como explicar a presença de tantos macacos, mas estes o cercavam, olhando-o com olhos tristes. Ibrahim recorreu à  tábula e leu: "Agora que mataste a feiticeira hás de chegar a uma árvore cheia de macacos e a uma fonte. Segue o veio da água e irás dar a um enorme edifício, onde encontrarás uma jovem; mas também é feiticeira e tentará te cativar e te iludir. Desta vez, terás que atirar-lhe à  testa esta tábula, para que lhe quebres a cabeça e rompas o encantamento". 

Tudo aconteceu como ali estava escrito e, logo que atirou a pedra à cabeça da feiticeira, todos os macacos viraram lindas donzelas. A líder das moças era uma Fada-princesa, que fora à caça de uma gazela com suas damas. Mas a gazela que ela caçava era a própria feiticeira e, mal as jovens entraram na floresta, a gazela começou a correr em círculos transformando-se numa mulher horrorosa e, no mesmo instante, transformou as jovens em macacos.

Agora que Ibrahim matara a bruxa-gazela, as moças estavam libertas do encanto. Ibrahim levou a Fada-princesa de volta à  casa de seu pai e pediu-a em casamento, porém o Rei confessou a Ibrahim que não tinha só essa filha, Maiúne, que ele desencantara, mas também um filho que tentara dar combate às feiticeiras e fora morto, achando-se sepultado num cemitério próximo. Todas as noites, porém, chegavam as feiticeiras e, como a bruxa de Endor, da qual fala a Bíblia, retiravam da tumba o corpo do filho do Rei, ainda envolto nos restos da sua mortalha; e a cada manhã o cadáver tinha que ser novamente sepultado até que, na noite seguinte, tudo se repetisse.

Por isso Ibrahim se colocou, à  noite, perto do túmulo e, tendo sido outra vez instruído do que lhe competia fazer, tomou uma lança e, quando duas feiticeiras apareceram para reiniciar suas artimanhas, em um só golpe ele as degolou, tendo-se desencadeado, no mesmo instante, uma terrível tempestade. Quando, porém, tudo se acalmou, o Príncipe morto ressuscitou e declarou que, por ter sido libertado por Ibrahim, fazia-se seu escravo para sempre.

Depois disso Malik Ibrahim se casou com a Fada-princesa, embora continuasse determinado a partir em busca do Pássaro Trinador de Flores. Alguém lhe disse que o pássaro se encontrava numa grande montanha rodeada por milhares de demoniozinhos e que ninguém podia por ali passar. Mas Ibrahim simplesmente se dirigiu aos mil demoniozinhos e, quando estes o atacaram, destemidamente os fez estacar, o que os deixou curiosos por saber o que é que aquele simpático e ingênuo rapaz pretendia ali. Em lugar de o matarem imediatamente, deram-lhe a chance de dizer porque viera. Ibrahim então confessou que desejava o Pássaro Trinador de Flores. Abertamente contou-lhes toda a verdade e os demoniozinhos então disseram que o pássaro se achava ali na montanha e que pertencia a Tarfe Banu, filha do Rei; acrescentaram que eles não lhe podiam trazer o pássaro e que Ibrahim teria que roubá-lo sozinho; eles não se importariam. Chegaram mesmo a conduzir Ibrahim ao castelo encantado, onde, num dos aposentos, encontrou Tarfe Banu adormecida sobre um coxim todo ornamentado com pedras preciosas. Ela era tão bela que não existe linguagem humana capaz de descrever-lhe a beleza. Em sua cabeceira se achava uma linda gaiola, dentro da qual estava o Pássaro Trinador de Flores, e a cada trinada que este emitia caíam-lhe do bico flores suavemente perfumadas. Ibrahim com grande rapidez se apoderou da gaiola e fugiu, pedindo aos demoniozinhos que o levassem para casa.

Quando já se achava próximo do castelo onde morava, pendurou a gaiola numa árvore e caiu no sono. Então, como se pode imaginar, os irmãos apareceram e roubaram o pássaro, levando-o para o Rei, a quem disseram terem sido eles mesmos que o haviam encontrado. Mas o pássaro não cantava! 

Ibrahim consegue chegar à  corte e, ao vê-lo, o pássaro logo se põe a cantar e as flores a lhe tombarem do bico, de modo que o Rei logo fica curado. Eis, porém, que chega ali um exército. Ao redor do palácio surge grande número de tendas e os irmãos, horrorizados, descobrem que Tarfe Banu viera em busca de quem lhe roubara o Pássaro. O ladrão, disse ela, teria que comparecer à  sua presença, pois não falaria com qualquer outra pessoa. Todos empalideceram, mas Ibrahim se declarou disposto a ir.

Vestiu-se principescamente e compareceu diante da Princesa, que o recebeu muito afavelmente, declarando-lhe ter feito um juramento de se casar com ele porque, a despeito da perseguição das feiticeiras, conseguira encontrá-la, bem como ao pássaro, e que por isso era ele o único que merecia se tornar seu esposo.

Ibrahim se casou, portanto, com Tarfe Banu, permitindo que mais tarde Maiúne viesse se reunir a ele e todos viveram felizes até o fim de suas vidas, como manda o destino.

Fonte:

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Trova 290 - Antonio Juraci Siqueira (Belém/PA)

Fonte: Facebook (Bonde Trova)

Antonio Juraci Siqueira (Poemas Escolhidos)


ARTE POÉTICA

Hoje,
amanheci meio peixe,
meio pássaro.

Estou aprendendo a nadar,
tomando aulas de vôo
e aprimorando o canto.

Amanhã,
pássaro pleno,
insofismável peixe,
debulharei meu canto sobre a terra
em nados abissais

e vôos rasantes.

UM PÁSSARO A CANTAR DENTRO DE UM OVO

Se o mundo quer calar-me, eu não hesito:
recorro à trova e crio um mundo novo
onde ponho o calor e a voz do povo,
um punhado de humor, um beijo e um grito.

Na trova eu me divirto e me comovo,
nela o meu sonho é muito mais bonito,
nela eu prendo as estrelas do infinito
e um pássaro a cantar dentro de um ovo.

Trova é roupa estendida na varanda,
relva molhada pela chuva branda,
rosa vermelha, moça na janela,

gotas de orvalho a tremular na flor…
Por isso não a queiram mal, pois ela
é a voz e o coração do trovador!

ACRÓSTICO DE ADEUS PARA ADEMAR MACEDO

Ademar, poeta-menino,
Demiurgo da poesia,
Emissário da palavra,
Mensageiro da alegria,
Amansador da saudade,
Regente da fantasia!

Macedo, poeta do povo,
A lançar trovas ao léu,
Consolando os infelizes,
Encantando o justo e o réu.
Doravante escreverá
Os seus poemas no céu.

VERDE CANTO

Verde é o meu canto

vivo muiraquitã de amor talhado
na pedra da existência e pendurado
no invisível pescoço do amanhã.

VERDE É O MEU PRANTO

musgo a crescer nas fendas seculares
abertas pelas mãos da malquerença
na história carcomida deste chão.

VERDE É O VENENO

que escondo na palavra – jararaca
furtivamente oculta entre a folhagem
no emaranhado chavascal de mim

VOO NOTURNO

Na fogueira da aurora eu me consumo
e ressuscito entre os lençóis da noite
para tecer meu ninho de discórdias
 do teu coração.

A minha pena – faca de dois gumes –
ao mesmo tempo fere e acaricia;
as minhas asas - guarda-sóis se abertas,
quando fechadas, grades de prisão.

Trago nas veias sangue canibal:
bebo esperanças, mastigo ilusões
e, às vezes, sorvo sonhos matinais.

Portanto não se engane: sou poeta
em cujo peito dorme um troglodita
que traz no coração pluma e punhal.

BARQUEIROS DE AMOR E FÉ

I
Senhora do Amor Eterno,
em Vossa barca de flores,
volvei-nos o olhar materno,
rogai por nós, pescadores,
nas lutas do dia a dia
pelo pão da poesia
num mar de risos e dores.
II
Nesse rio de romeiros
nossa fé em Vós revoa;
somos todos canoeiros
a remar, com Deus à proa,
nessa igarité tão linda
que o povo chama Berlinda
e vos serve de canoa.
III
Pelas marolas da vida,
envoltos em nossos ais,
em Vós buscamos guarida
aportando em Vosso cais
- porto seguro e divino -
para atar nosso destino
no esteio de Vossa Paz.
IV
Seguimos nossos caminhos,
Senhora de Nazaré,
nós, humildes ribeirinhos
remando contra a maré
rio abaixo, rio acima
na barca que nos anima
onde embarca a nossa fé.
V
Nas rabetas, nas bajaras,
nos cascos, nas montarias,
nos batelões, nas igaras,
vencendo marés bravias
descem cargas de bonança
trazendo amor e esperança
em eternas romarias.

VI
Guiai os nossos barqueiros
com suas cargas de sonhos,
nossos produtos brejeiros,
de artesãos belos, risonhos
e os livrai das emboscadas,
das abordagens tramadas
por malfeitores medonhos.
VII
Virgem Mãe dos construtores
das nossas embarcações,
aliviai suas dores
dai paz aos seus corações
para que sem sacrifícios
possam passar seus ofícios
às futuras gerações.
VIII
Ó, Virgem Santa, coloque
Vosso manto sobre nós
pondo em cada roque-roque
a voz dos nossos avós
junto aos sons da Natureza
emprenhando de beleza
este mundo grave e atroz.
IX
Eliminai nossos medos
nos dando um novo sentido,
nos fazei vossos brinquedos
de miriti colorido.
Livrai o meio ambiente
desse monstro poluente
que é o Capital atrevido.
X
E ao final desta jornada,
em prol do Supremo Bem,
Santa Mãe Imaculada,
olhai por nossa Belém!
Abençoai vossos filhos
direcionando seus trilhos
para todo o sempre. Amém!

Oscar Wilde (O Gigante Egoísta)

Todas as tardes, ao saírem do colégio, as crianças costumavam a ir brincar no jardim do Gigante.

Era um jardim lindo e grande, com grama verde e suave. Aqui e ali, sobre a grama, apareciam flores belas como estrelas, e havia doze pessegueiros que, na primavera, abriam-se em flores delicadas em tons de rosa e pérola, e davam ricos frutos no outono. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam tão docemente que as crianças costumavam parar de brincar para ouvi-los.

- Como nos sentimos felizes aqui! - exclamavam elas.

Certo dia ele voltou. Ele tinha andado visitando seu amigo, o ogre da Cornualha, e ficara sete anos com ele. Depois de sete anos ele já havia dito tudo que tinha o que não tinha para dizer, já que sua conversa era limitada, e resolveu voltar para seu próprio castelo. Ao chegar, ele viu as crianças brincando no jardim.

- O que é que vocês estão fazendo aqui? - gritou ele com uma voz muito ríspida, e as crianças saíram correndo.

- O meu jardim é meu jardim - disse o Gigante. - Qualquer um pode compreender isso. Eu não vou permitir que ninguém brinque nele, a não ser eu mesmo.

De modo que ele construiu um muro alto em torno do jardim e colocou um cartaz de aviso.

OS INVASORES SERÃO PROCESSADOS!

Ele era um Gigante muito egoísta.

As pobres crianças agora não tinham mais onde brincar. Elas tentaram brincar na estrada, mas a estrada era muito poeirenta e cheia de pedras duras, e eles não gostavam. Começaram a passear em torno do muro depois das aulas, conversando sobre o lindo jardim que ficava lá dentro. "Como éramos felizes lá!", diziam uma ás outras.

Então chegou a Primavera, e por todo o país apareceram pequenas flores e pequenos pássaros. Só no jardim do Gigante Egoísta é que continuava a ser inverno. Os passarinhos não gostavam de cantar lá, porque não havia crianças, e as árvores se esqueceram de florescer. Uma vez uma flor bonita chegou a brotar, mas ao ver o cartaz de aviso ficou com tanta pena das crianças que se enfiou de volta no chão e adormeceu. Os únicos que estavam contentes eram a Neve e o Gelo.

- A Primavera se esqueceu deste jardim - eles exclamaram -, de modo que podemos viver aqui o ano inteiro.

A neve cobriu toda a grama com seu manto branco, e o Gelo pintou todas as árvores de prata. Eles convidaram o Vento do Norte para se hospedar com eles, e ele veio. Todo enrolado em peles, rugia o dia inteiro pelo jardim, derrubando as chaminés com seu sopro.

- Este lugar é ótimo - disse ele. - Nós precisamos convidar o Granizo para vir fazer uma visita.

E o Granizo apareceu. Todos os dias, durante três horas, ele matracava no telhado do castelo até quebrar quase todas as telhas, e depois corria, dando voltas pelo jardim o mais depressa que podia. Sempre vestido de cinza, soprava gelo para todo lado.

- Não entendo porque as Primavera está demorando tanto a chegar! - disse o Gigante Egoísta, sentado junto à janela e olhando para seu jardim frio e branco. - Espero que o tempo mude logo.

Mas a Primavera não apareceu, nem o Verão. O Outono trouxe frutos dourados para todos os jardins, mas nenhum para o do Gigante.

- Ele é muito egoísta - disse o Outono.

De modo que ali ficou sendo sempre inverno, e o Vento Norte e o Granizo, a Neve e o Gelo dançavam em meio às árvores.

Certa manhã, o Gigante estava deitado, acordado, na cama, quando ouviu uma música linda Soava com tal doçura em seus ouvidos que ele até pensou que deviam ser os músicos do Rei que passavam. Na realidade era apenas um pequeno pintarroxo cantando do lado de fora de sua janela, mas já fazia tanto tempo que ele não ouvia um só passarinho em seu jardim que aquela parecia ser a música mais bonita do mudo. E então o Granizo parou de dançar sobre a cabeça dele, e o Vento do Norte parou de rugir, e um perfume delicioso chegou até ele, através da janela aberta.

- Acho que finalmente a Primavera chegou - disse o Gigante. - E, pulando da cama, olhou par fora.

O que ele viu?

A visão mais bonita que se possa imaginar. Por um buraquinho no muro as crianças haviam conseguido entrar, e estavam todas sentadas nos ramos das árvores. Em todas as árvores que ele conseguia ver havia uma criança. E as árvores estavam tão contentes de terem as crianças de volta que se cobriram de flores, balançando delicadamente os galhos, por cima da cabeça da meninada. Os passarinhos voavam de um lado para outro, chilreando de prazer, e as flores espiavam e riam. Era uma cena linda, e só em um canto é que continuava as ser inverno. Era o canto mais distante do jardim, e nele estava de pé um menininho. Ele era tão pequeno que não conseguia alcançar os ramos da árvore, e ficou andando em volta dela, chorando, muito sentido. A pobre árvore continuava coberta de neve e de gelo, e o Vento do Norte soprava e rugia acima dela.

- Sobe logo, menino! - dizia a Árvore, curvando os ramos o mais que podia. Mas o menino era pequeno de mais.

E o coração do Gigante se derreteu quando ele olhou lá para fora.

- Como eu tenho sido egoísta! - disse ele. - Agora já sei porque a Primavera não aparecia por aqui. Eu vou colocar aquele menininho em cima daquela árvore, depois vou derrubar o muro, e meu jardim será um lugar onde as crianças poderão brincar para sempre e sempre.

Ele estava realmente arrependido do que tinha feito. E assim, desceu a escada, abriu a porta da frente com toa a delicadeza, e saiu para o jardim. Mas quando as crianças o viram ficaram tão assustadas que fugiram, e o inverno voltou ao jardim. Só o menininho pequeno é que não fugiu, porque seus olhos estavam marejados de lágrimas e não viu o Gigante chegar. E o Gigante aproximou-se de mansinho por trás dele, pegou delicadamente em sua mão e o colocou em cima da árvore. A árvore imediatamente floresceu, e os passarinhos vieram cantar nela; e o meniniho esticou os braços, passou-os em torno do pescoço do Gigante e o beijou. Quando viram eu o Gigante não era mais mau, as outras crianças voltaram correndo, e com elas veio a Primavera.

- Agora o jardim é de vocês, crianças - disse o Gigante. E pegando um imenso machado, derrubou o muro. Quando toda a gente começava a iro para o mercado, ao meio-dia, lá estava o Gigante brincando com as crianças no jardim mais bonito que todos já haviam visto.

Elas brincavam o dia inteiro, mas quando chegava a noite despediam-se do Gigante.

- Mas onde está seu companheirinho? - perguntou ele. - O menino que eu botei em cima da árvore.

O Gigante gostava dele mais do que de todos os outros, porque ele lhe havia dado um beijo.

- Nós não sabemos - responderam as crianças. - Ele foi embora.

- Vocês têm de dizer a ele par anão deixar de vir aqui amanhã - disse o Gigante.

Mas as crianças disseram que não sabiam onde ele morava, e que jamais o haviam visto antes. O Gigante ficou muito triste.

Todas as tardes, quando acabavam as aulas, as crianças iam brincar como Gigante. Mas o menininho de quem o Gigante gostava nunca mais apareceu. O Gigante era muito bondoso com todas as crianças, mas sentia saudades de seu primeiro amiguinho, e muitas vezes falava nele.

- Como eu gostaria de vê-lo! - costumava dizer.

Os anos se passaram, e o Gigante ficou mais velho e fraco. Ele já não conseguia brincar direito, e então ficava sentado em uma poltrona enorme, olhando as crianças que brincavam e admirando seu jardim.

- Tenho tantas flores lindas - dizia ele -, ma as crianças são as flores mais bonitas de todas.

Certa manhã de inverno, ele olhou pela janela enquanto se vestia. Agora já não odiava o inverno, pois sabia que este era apenas a Primavera enquanto dormia, e que as flores estavam descansando.

De repente ele esfregou os olhos, espantado, e olhou, e olhou, e olhou. Era por certo uma visão maravilhosa. No cantinho mais distante do jardim havia uma árvore toda coberta de flores brancas. Seus ramos eram dourados, carregados de frutos de prata, e debaixo deles estavam o menininho que ela amava.

O Gigante correu pelas escadas, com a maior alegria, e saiu para o jardim. Cruzou depressa o gramado e chegou perto do menino. E quando chegou bem perto, seu rosto ficou rubro de raiva, e ele disse:

- Quem ousou te ferir?

Nas palmas das mãos da criança estavam as marcas de dois pregos, como m haviam marcas de dois pregos em seus pezinhos.

- Quem ousou te ferir? - gritou o Gigante. - Dize-me, para que eu possa tomar de minha grande espada para matá-lo.

- Não - respondeu o menino -, pois essas são as feridas do Amor.

- Quem és? - perguntou o Gigante, e quando o temor apossou-se dele, ajoelhou-se diante da criança.

A criança sorriu para o Gigante e lhe disse:

- Você me deixou, certa vez, brincar em seu jardim, e hoje você irá comigo para o meu jardim que é o Paraíso.

Naquela tarde, quando as crianças chegaram correndo, encontraram o Gigante morto, deitado debaixo da árvore, todo coberto por flores brancas.

Fonte: Oscarwilde2k