sexta-feira, 24 de maio de 2019

Trova 353 - Edy Soares

Fonte da imagem: http://taquiprati.com.br
 

Alcântara Machado (O Ingênuo Dagoberto)


Diante da porta da loja pararam. Seu Dagoberto carregava o menorzinho. Silvana a maleta das fraldas. Nharinha segurava na mão do Polidoro que segurava na mão do Gaudêncio. Quim tomava conta do pacote de balas. Lázaro Salém veio correndo do balcão e obrigou a família a entrar.

 Seu Dagoberto queria um paletó de alpaca. - A mulher queria um corte de cassa verde ou então cor-de-rosa. A filha queria uma bolsinha de couro com espelho e lata para o pó-de-arroz. O menino de dez anos queria uma bengalinha. O de oito e meio queria um chapéu bem vermelho. O de sete queria tudo.

 É só escolher.

 O menorzinho queria mamar.

- Leite não tem.

Não há nada como uma piada na hora para pôr toda a gente à vontade. Principalmente de um negociante como Lázaro Salém. Bateu nas bochechas do Gaudêncio. Deu uma bola de celulóide para o Quim. Perguntou para Silvana onde arranjou aqueles dentes de ouro tão bem-feitos. Estava se vendo que era ouro de dezoito quilates. Falou. Falou. Não deixou os outros falarem. Jurou por Deus.

 Entre marido e mulher houve um entendimento mudo. E a família saiu cheinha de embrulhos. Em direção ao Jardim da Luz.

 O pavão estava só à espera dos visitantes para abrir a cauda. O veadinho quase ficou com a mão do Gaudêncio. Os macacos exibiram seus melhores exercícios acrobáticos. Quando araponga inventa de abrir o bico só tapando o ouvido mesmo.

 Depois o fotógrafo espanhol se aproximou de chapéu na mão. Seu Dagoberto concordou logo. Porém Silvana relutou. Tinha vergonha. Diante de tanta gente. Só se fosse mais longe. O espanhol demonstrou que o melhor lugar era ali mesmo ao lado da herma de Garibaldi general italiano muito amigo do Brasil. Já falecido não há dúvida. Acabou-se. Garibaldi sairia também no retrato. Nem se discute. A família deixou os pacotes no banco e se perfilou diante da objetiva. Parecia uma escada. O fotógrafo não gostou da posição. Colocou os pais nas pontas. Cinco passos atrás. Estudou o eleito. Passou os pais para o meio. Cinco passos atrás. Ótimo. Enfiou a cabeça debaixo do pano. Magnífico. Ninguém se mexia. Atenção. Aí Juju derrubou a chupeta de bola e soltou o primeiro berro no ouvido paterno. Foi para os braços da mãe. Soltou o segundo. O fotógrafo quis acalmá-lo com gracinhas. Soltou o terceiro. Polidoro mostrou a bengalinha. Soltou o quarto. O grupo se desfez. Quinze minutos depois estava firme de novo às ordens do artista. O artista solicitou a gentileza de um sorriso artístico. Silvana pôs a mão na boca e principiou a rir sincopado. O artista teve a paciência de esperar uns instantes. Pronto. Cravaram os olhos na objetiva. O fotógrafo pediu o sorriso.

- O Juju também?

Polidoro (o inteligente da família) voou longe com o tabefe nas ventas.

 Depois da sexta tentativa o retrato saiu tremido e o espanhol cobrou doze mil-réis por meia dúzia.

 A família se aboletou no primeiro banco do caradura. Mas antes o Quim brigou com o Gaudêncio porque ele é que queria ir sentado. Com o beliscão maternal se conformou e ficou em pé diante do pai. O bonde partiu. Polidoro quis passar para a ponta para pagar as passagens. Mas olhou para o Quim ainda com as pestanas gotejando. Desistiu da ideia. E foi Seu Dagoberto mesmo quem pagou.

 O bicho saiu de baixo do banco. Ficou uns segundos parado na beirada entre as pernas do sujeito que ia lendo ao lado de Seu Dagoberto. Quim viu o bicho mas ficou quieto. E o bicho subiu no joelho esquerdo do homem (o homem lendo, Quim espiando). Foi subindo pela perna. Alcançou a barriga. Foi subindo. Tinha um modo de andar engraçado. Foi subindo. Alcançou a manga do paletó. Parou. Levantou as asas. Não voou. Continuou a escalada. Quim deu uma cotovelada no estômago do pai e mostrou o bicho com os olhos. Seu Dagoberto afastou-se um pouquinho, bateu no braço de Silvana, mostrou o bicho com a cabeça. Silvana esticou o pescoço (o bicho já estava no ombro), achou graça, falou baixinho no ouvido do Gaudêncio. Gaudêncio deixou o colo da Nharinha, ficou em pé, custou a encontrar o bicho, encontrou, puxou o Polidoro pelo braço, apontou com o dedo. Polidoro viu o bicho bem em cima da gola do paletó do homem, não quis mais saber de ficar sentado. Então Nharinha fez também um esforço e deu com o bicho. Virou o rosto de outro lado e soltou umas risadinhas nervosas.

– Que é que você acha? Aviso?

- O homem é capaz de ficar zangado.

- É mesmo. Nem fale.

Na curva da gola o bicho parou outra vez. Nesse instante o Gaudêncio deu um berro:

- É aeroplano!

Todos abaixaram a cabeça para espiar o céu. O ronco passou. Então o Quim falou assustado:

 - Desapareceu!

 Olharam: tinha desaparecido.

 - Entrou no homem, papai!

 Seu Dagoberto assombrado examinou a cara do homem. Será? Impossível. Começou a ficar inquieto. Fez o Quim virar de todos os lados. Não. No Quim não estava.

 - Olhe em mim.

 Não. Nele também não estava.

 - Veja no Juju, Silvana.

 Não. No Juju também não estava. Ué. Mas será possível?

 O Quim avisou:

 - Apareceu!

 Olharam: apareceu no colarinho do homem. Passeou pelo colarinho. Parou. Êta. Êta. Passou para o pescoço. O homem deu um tapa ligeiro. Todos sorriram.

 Tinham chegado no Parque Antártica.

 Polidoro não queria descer do balanço. Não queria por bem. Desceu por mal. Em torno da roda-gigante os águias estacionavam com os olhos nas pernas das moças que giravam. Famílias de roupa branca esmagavam o pedregulho dos caminhos. Nharinha de vez em quando dava uma grelada para O moço de lenço sulfurino com um cravo na mão. Juju começou a implicar com as valsas vienenses da banda. A galinha do caramanchão ficou com os duzentos réis e não pôs ovo nenhum. Foram tomar gasosa no restaurante. Seu Dagoberto foi roubado no troco. O calor punha lenços no pescoço de portugueses com o elástico da palheta preso na lapela florida. Quim perdeu-se no mundão que vinha do campo de futebol. O moço de lenço sulfurino encostou-se em Nharinha. Ela ficou escarlate que nem o cravo que escondeu dentro da bolsa.

 No bonde Silvana disfarçadamente livrou os pés dos sapatos de pelica preta envernizada com tiras verdes atravessadas.

 Depois do jantar (mal servido) Seu Dagoberto saiu do Grande Hotel e Pensão do Sol (Familiar) palitando os dentes caninos. Foi espairecer na Estação da Luz. Assistiu à chegada de dois trens de Santos. Acendeu um goiano. Atravessou a Rua José Paulino. Parou na esquina da Avenida Tiradentes. Sapeando o movimento. Mulatas riam com os soldados de folga. Dois homens bem trajados e simpáticos lhe pediram fogo. Dagoberto deu.

 - Muito gratos pela sua gentileza.

- Não tem de quê.

- Está fazendo um calorzinho danado, não acha?

- É. Mas esta noite chove na certa.

 Seu Dagoberto ficou sabendo que os homens eram de Itapira. Tinham chegado naquele mesmo dia as onze horas. E deviam voltar logo amanhã cedo e sem falta. Uma pena que ficassem tão pouco tempo. Seu Dagoberto com muito gosto lhes mostraria as belezas da cidade. Conversando desceram lentamente a Avenida Tiradentes. Na esquina da Cadeia Pública Seu Dagoberto trocou três camarões de duzentos e mais um relógio com uma corrente e três medalhinhas (duas de ouro) por oito contos de réis. E voltou para o Grande Hotel e Pensão do Sol (Familiar) que nem uma bala.

 (Napoleão da Natividade filho tinha o hábito feio de coçar a barriga quando se afundava na rede de pijama e chinelo sem meia. A mulher - a segunda, que a primeira morrera de uma moléstia no fígado - preferia a cadeira de balanço.

- Você me vê os óculos por favor?

 O melhor deste jornal são os títulos. - A gente sabe logo do que se trata. Foi BUSCAR LÃ..., QUEM COM FERRO FERE..., AMOR E MORTE. Aquela miséria de sempre. Aquela miséria de sempre. Aquela miséria de... MAIS UM! Mas então os trouxas não acabam mesmo.

 Depois que ficou ciente da abertura do inquérito a mulher concordou:

- Parece impossível!

- Nada é impossível.

 A dissertação sobre a bobice humana foi feita com os óculos na testa.)

 A indignação de Silvana não conheceu limites.

- Seu bocó! Devia ter contado o dinheiro na frente dos homens! Seu besta!

 A filharada não dava um pio. Nem Seu Dagoberto.

- Não merece a mulher que tem! Seu fivela!

 Seu Dagoberto custou mas foi perdendo a paciência e tirando o paletó.

 - Seu burro! Seu caipira!

 Aí Seu Dagoberto não aguentou mais. Avançou para a mulher mordendo os bigodes. Nharinha aos gritos se pôs entre os dois de braços abertos. Os meninos correram para o vão da janela.

- Venha, seu pindoba! Venha que eu não tenho medo!

 O pindoba se conteve para evitar escândalos. Vestiu o paletó. Fincou o chapéu na testa. Roncou feio. Só vendo o olhar. Bateu a porta com toda a força. Tornou a abrir a porta. Pegou o bengalão que estava em cima da cama. Saiu sem fechar a porta.

 Tarde da noite voltou contente da vida. Contando uma história muito complicada de mulheres e de um tal Claudionor que sustentava a família. Queria beijar Silvana no cangote cheiroso. Chamando-a de pedaço. E gritava:

- Também não quero saber mais dela!

 Silvana deu um tranco nele. Ele foi e caiu atravessado na cama. Caiu e ferrou no sono.

 Quando chegou o dinheiro para a conta do hotel e a viagem de volta Silvana pegou numa nota de cinco mil réis, entregou por muito favor ao marido e escondeu o resto.

 Depois chamou a Nharinha para ajudar a aprontar as malas. À voz de aprontar as malas Nharinha rompeu numa choradeira incrível. Já estava se acostumando com a vida da cidade. Frisara os cabelos. Arranjara um andarzinho todo rebolado. Vivia passando a língua nos lábios. Comprara o último retrato de Buck Jones. E alimentava uma paixão exaltada pelo turco da Rua Brigadeiro Tobías n. 24-D sobrado. Só porque o turco usava costeletas. Um perigo em suma.

 Mas a mãe pôs as mãos nas cadeiras e fungou forte. Quando Silvana punha as mãos nas cadeiras e fungava forte a família já ficava avisada: era inútil qualquer resistência. Inútil e perigosa.

 Nharinha perdeu logo a vontade de chorar. Em dois tempos as malas de papel couro e o baú cor-de-rosa com passarinhos voando de raminho no bico ficaram prontos.

 A família desceu. Silvana pagou a conta. A família já estava na porta da rua quando Seu Dagoberto largou o baú no chão e deu de procurar qualquer coisa apalpando-se todo. A família escancarou os olhos para ele interrogativamente. Seu Dagoberto cada vez mais aflito acelerava as apalpadelas. De repente abriu a boca e disparou pela escada acima. Voltou todo pimpão com um bolo de recortes de jornal e bilhetes de loteria na mão. Silvana compreendeu. Ficou verde de raiva. Ia se dar qualquer desgraça. Porém ficou quieta. Fungou só um instantinho. Depois intimou:

 - Vamos!

 Aí o proprietário do hotel perguntou limpando as unhas para onde seguia a família. Aí Silvana não se conteve desviou o nariz da mão do Juju e respondeu bem alto para toda a gente ouvir:

 - Pro inferno, Seu Roque!

 Aí Seu Roque fez que sim com a cabeça.

Fonte:
Alcântara Machado. Laranja-da-China.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Edwaldo Camargo Rodrigues (Tarefa complicada)


Dava dó ter de romper o papel laminado... Tão bonito e colorido!

Sorte que lá estava ela, bem perto, sentada na cadeira de balanço, imóvel feito uma pintura e emoldurada pelo retângulo luminoso que, na tarde outonal, projetava-se da janela sobre o parquê recém-encerado. Dormitava tranquila, o bastidor do bordado esquecido sobre o colo.

- Vovó! – interrompeu-lhe a paz a vozinha aflautada do garoto. – Consegue abrir para mim? – E aproximou-se dela; os dedos miúdos seguravam com cautelosa firmeza algo que parecia um volume pequeno e arredondado. Estendeu os braços e apresentou-lho. – Mas, cuidado, não é para estragar a embalagem! – advertiu o pequeno, muito sério.

Ajustando o lornhão sobre o dorso do nariz, a boa senhora apanhou o objeto e pôs-se a examiná-lo meticulosamente, fazendo-o girar entre as mãos engelhadas. E após repetidas tentativas:

- Ah, meu bem... Não parece possível, não sem rasgar o embrulho – declarou finalmente. – Pode ser? – ameaçou.

- Não! – ouviu a resposta peremptória. A isto, ela apenas suspirou e, porque o neto a fitasse amuado, devolveu-lhe depressa a prenda com um gesto trêmulo, aconselhando:

- Vá pedir a seu pai. Ele deve estar lá em cima, como de hábito.

No estúdio, situado no piso superior da casa, o homem, adepto de tecnologias tradicionais, trabalhava com banhos químicos a revelação de algumas fotografias tiradas com uma Voigtlader, registro do passeio à praia durante o último fim de semana. Ao ouvir o estalido da porta que se fechara, com certeza após a passagem a algum intruso, advertiu, sem se voltar:

- Pelo amor de Deus! Quantas vezes eu já avisei que, quando a lâmpada vermelha estiver acesa no batente lá fora, ninguém deve entrar no recinto!

Embora aquela intromissão muito o contrariasse, enterneceu-se afinal, ao constatar a presença da criança.

- Ah, é você, meu filho! – acolheu-o com bondade. Foi logo tomando o visitante entre os braços, de modo a alçá-lo à altura dos retângulos de papel molhado que gotejavam, perfilados ao longo de uma espécie de varal que se estendia de uma parede a outra, dividindo ao meio o aposento semi obscurecido.

- Pois é, amigão, chegou no momento exato de apreciar em primeira mão as fotos do nosso último passeio! – apontou entusiasmado.

Entretanto, o rapazinho não parecia demonstrar grande interesse; passou os olhos momentaneamente pelo material inédito e ordenou a exibir o pacote do qual não desgrudava:

- Abra pra mim!

Prático, o fotógrafo ia metendo-lhe as unhas pelas dobras multicores, mas um protesto, sonoro e lacrimoso, deteve-o a tempo de compreender, ainda que de modo atabalhoado, que as estampas, as fitas que o envolviam caprichosamente deveriam ser todas rigorosamente preservadas.

Uma vez que o choro persistia, a coisa toda ameaçando acrescentar complicações adicionais, além dos riscos representados pelas bandejas cujos conteúdos, muito tóxicos e perigosos, deveriam ser despejados de volta aos garrafões sem demora e de maneira segura, pretextou-se que a tia, ela sim, que seria uma ótima conselheira para resolver a delicada questão.

- Por exemplo, ela é uma excelente costureira... – tateou persuasivo, apeando o menino de volta ao chão, sobre os próprios pés. E acocorando-se junto a ele, de forma a poder olhá-lo nos olhos, prosseguiu, ajeitando-lhe os cachos macios sobre a testa: – Lembra do carnaval passado e da fantasia de caubói? Você ficou tão bacana, com chapéu, cartucheira e tudo mais! Pois é, foi ela quem fez tudo aquilo sozinha, sem ajuda de ninguém! Não é incrível? Pode ter certeza: ela é ainda melhor do que uma fada, porque não é de mentirinha e tem poderes mágicos de verdade! Vá! Corra lá, até ela – incitou, dando volta ao guri e impulsionando-o com delicadeza pelos ombros, em direção à saída.

Meia idade, porém de aparência ainda bastante jovial, a mulher esfalfava-se no jardim: uma de suas atividades prediletas, depois do tênis e do mexerico no clube com as amigas. Calçando luvas de trabalho, desenformava de uns vasos de barro, que estavam estrategicamente enfileirados sobre uma bancada de ripas, algumas mudas de rododendro, as quais trasladava cuidadosamente até uma estreita vala escavada no solo, junto ao muro, de modo a, em breve, formarem ali uma aleia definitiva e colorida.

- Mas, queridinho... – desculpou-se, tão logo conseguiu, com sincera atenção, desvendar finalmente o significado da garrulice infantil. – Não posso fazer nada agora. Olhe só para mim, veja o estado em que me encontro! – E, com um meneio vago das mãos empanadas feito as de um palhaço, tentou abranger sua figura como um todo, a começar dos tamancos e, depois de passar pelo avental de lona encardida, subindo até os cabelos cor de palha, que escapavam desgrenhados sob a bandana de cetim algo rota. Mas, em seguida, notando a decepção que persistia estampada no rostinho inocente diante de si, contemporizou:

- Está bem, está bem!... Mas só se tiver um pouco paciência e quiser esperar pela titia, bem ali, bem quieto e comportadinho. – E apontou para o banco de alvenaria, simples, sem encosto, ladeado por samambaias, colocado próximo ao viveiro das carpas, em cujo tanque, emergindo mais ao alto de uma bica camuflada entre pedras, um fio de água prateada precipitava-se constante, com um rumorejo sonolento. – Assim que eu terminar isto aqui, vamos juntos, você e eu, resolver esse seu problema, pode ficar tranquilo – garantiu simpática a mulher.

Na atmosfera cálida e estagnada da tarde, a melodia singela que ela assobiava, de novo absorvida em seus afazeres, vinha associar-se ao sussurro contínuo da fonte, harmonizando-se com este num acalanto, lânguido e convidativo.

Obediente, o menino aguardava sentado, mantendo-se em ansiosa expectativa. Entretanto, tinha de esforçar-se a fim de resistir ao máximo à modorra que, insidiosa, vinha, de vez em quando, entrecerrar-lhe as pálpebras sem aviso, sem que o desejasse, engolfando-o de repente, esquecido de tudo e confortável, num mundo macio igual à polpa de um fruto aberto, banhado de luz purpúrea.

O corpo oscilou... duas vezes ou mais, não estava certo. Os dedos, as pontas das unhas esbranquiçadas sob tensão, aos poucos relaxaram e... ops! O embrulho escapou-lhe! Rolando pela superfície um pouco esconsa do assento de pedra, saltou, indo quicar sobre a borda abaulada do tanque. Uma vez ali, equilibrou-se precariamente, menos de um átimo, antes de mergulhar mais abaixo na superfície da água limosa. Estremunhado, o sonolento correu ainda a tempo de vê-lo submergir aos poucos, até finalmente desaparecer em meio ao vórtice provocado pelos peixes, que, num cardume agitado, torvelinhavam curiosos em redor.

Acudiu finalmente a tia. Estivera talvez ausente por alguns instantes, o suficiente para arrumar-se, pois retornava então penteada, o rosto fresco e lavado; e depara-se com o menino, tolhido em muda perplexidade. Afinal, o pobrezinho acabara de presenciar o naufrágio do presente que ganhara na véspera, dia de seu aniversário. Verdade que havia muitos outros, mas não como este. Mesmo aflito de curiosidade, deixara para abri-lo por último, porque o considerava especial. E com toda a razão: a madrinha lho dera! E ela sempre acertava, sempre adivinhava seus desejos...

Cercado de obsequiosa atenção, sem compreender direito as palavras de consolo que com insistência lhe murmuravam, embora, afogado em lágrimas e soluços, ainda não tivesse conseguido sequer revelar a causa de tanta infelicidade, sossegou de repente.

- Olhe lá! – celebrou sorrindo, uma súbita cintilação de alegria tremulando nos olhos úmidos.

À tona, em meio a borbulhas e ondulações, emergia o hemisfério multicor; era uma bola igualzinha a que já vira em sonho, quase uma joia, caprichosamente ornamentada com desenhos e incrustações em toda a volta! Presa a esta, uma linda cadeia dourada, ao ser puxada, resgatou, lá do fundo, o soldado de chumbo, cujo peso fizera o conjunto afundar. Próximos, o papel de embrulho, os delicados fitilhos que havia pouco o enredavam, flutuavam intactos, e tudo logo pôde ser cuidadosamente resgatado com a simples ajuda de um puçá.

- Obrigado, peixinhos! – acenou em direção à água, agradecido. 

Fonte:
Texto enviado por João Líbero Marques

Sérgio Milliet (Poemas Escolhidos)




A DAMA AUSENTE

Brilhará a lua que não vejo
nas montanhas de minha terra?
Para que amores na serra
Brilhará a lua que não vejo?

Mais um dia longe, tão longe
que nem mesmo a intuição alcança
os gestos da dama ausente.
As sombras enchem os meus olhos
fechados para o presente.
Mais um dia longe tão longe
que nem mesmo o amor alcança
os gestos da dama ausente…

CARTA À DANÇARINA

porque não tens olhos amantes
para te contemplarem esguia
dançando ao luar de maio,
um desafio brilha em teu olhar.
pés descalços na relva orvalhada,
queres ser livre e dançar,

não te iludas,
loucuras não libertam ninguém.
na comissura dos lábios
deixam um vinco de remorso e nojo;
de tristeza turvam-se os olhos
que desafiantes brilhavam.
antes apoia a tua mão na minha mão,
deixa que de ternura ela se aqueça
e a calma descerá no coração.

beiço de choro, insistes em dançar ao luar;
mas não entendem essa tua ânsia feminina
de transbordar da carne morena.
desafias inutilmente um mundo cego,
gente que não vê teu ventre magro.
desafias inutilmente um mundo distraído,
gente que não sente a doçura de tuas mãos,
a riqueza quente de teus lábios.
e um desafio brilha em teus olhos.

não te iludas,
não basta quebrar as cadeias
para alcançar a liberdade.
a uma prisão sucedem mil prisões:
a do vício, a do tédio, a do cinismo.
antes chega tua pele à minha pele,
e teus lábios entreabertos a meus lábios.
é pelo amor que te hás de libertar,
é para o amor que poderás dançar
ao luar.

quando tudo morrer dentro de ti
quando tudo se fizer adubo
para a semente que em dia raro de inocência
o destino semear em tua alma,
a planta do amor vingará

dançarás em êxtase ao luar,
para olhos porém de saber ver,
para boca de saber gostar,
para coração de comungar.

sem loucuras nem remorsos,
olhos límpidos e pés ligeiros,
serás livre enfim
na prisão que então escolherás.

LISBOA

A cidade tomou banho
Água suja do Tejo
A Torre de Belém
no poente decadente
sonha com impossíveis caravelas.

OH VALSA LATEJANTE...

Oh valsa latejante. . .

O poema que eu hei de escrever
será nu e simplesmente rude
O poema que eu hei de escrever será um palavrão.

Dor recalcada
inveja mesquinha
perversidades impotentes
todo o fracasso e a sub-angústia

O espezinhamento usa batom

Mas tudo há de jorrar com ele
numa amarga libertação...

O cacto com seus espinhos
apertado entre as palmas da mão
é menos doloroso

Oh valsa latejante...

PARIS
Crepúsculos longos impressionistas
A luz não cai
escorrega
sobre os patins das nuvens

O Sena foge
levando o gosto da posse.

SÃO PAULO

Canto a cidade das neblinas
e dos viadutos
minha cidade
amante de futebol e vendedora de café
Os aventureiros bigodudos
como nas fitas da Paramount
o Friedenreich pé de anjo
e a bolsa de mercadorias
as chaminés parturientes do Brás
os quinze mil automóveis orgulhosos
no barulho ensurdecedor dos klaxons
e a cultura envernizada dos burgueses
os engraxates da Praça Antônio Prado
e o serviço telegráfico do "Estado"
a febre do dinheiro
as falências sírio-nacionais
a especulação sobre os terrenos
a politicagem e os politiqueiros
e a negra de pó de arroz
e até os bondes da Light
para o Tietê das regatas e dos bandeirantes
os homens dizem que tu és ingrata
e que devoras os teus próprios filhos...
Mas que linda madrasta tu és
toda vestida de jardins!
Minha cidade
Amo também teus plátanos nostálgicos
imigrantes infelizes
teus crepúsculos de seda japonesa
tuas ruas longas de casas baixas
e teu triângulo provinciano...

Fontes:
– Livro gentilmente enviado pelo autor
Cláudio de Cápua. Revolução na Paulicéia: Semana de Arte Moderna de 1922. 2.ed. São Paulo: EditorAção, 2019
Jornal de Poesia

Sérgio Milliet (1898 – 1966)


O intelectual paulistano Sérgio Milliet da Costa e Silva nasce em São Paulo, em 1898, filho de Fernando da Costa e Silva e Aida Milliet.

Com a morte da mãe, quando tinha dois anos, é criado pela avó, que em 1912 o envia  para a Suíça, onde forma-se em Ciências Econômicas e Sociais na Universidade de Genebra.

Em 1925 retorna a São Paulo e, junto com os escritores Oswald de Andrade, e Afonso Schmidt, cria a revista Cultura. Em 1933 ajuda na fundação da Escola de Sociologia e Política - ESP, ocupando o cargo de secretário da instituição até 1935 e de professor a partir de 1937.

Sérgio Milliet, nome de proa na história contemporânea da cultura do Brasil, participa da Semana de Arte Moderna, interessando-se pelas diversas manifestações surgidas a partir de 1922. Sua ação interliga modernistas históricos às gerações sucessoras.

Com o ensaísta Paulo Duarte e o escritor Mário de Andrade,  cria, em 1935, o Departamento de Cultura de São Paulo, tornando-se o primeiro diretor da Divisão de Documentação Histórica e Social, onde permanece até 1943, quando é transferido para a Divisão de Bibliotecas.

Como crítico literário colabora com as principais revistas de sua época: Klaxon, Terra Roxa, Revista do Brasil, Estética, A Plateia, Habitat, Quadrum e com os jornais O Tempo, A Manhã, Folha da Manhã  e O Estado de S. Paulo, onde passa a escrever diariamente a partir de 1938.

Na década de 1950, atua em diversas frentes: diretor artístico do Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM/SP, de 1952 a 1957, responde pela curadoria da 2ª, 3ª e 4ª edições da Bienal Internacional de São Paulo e  da representação brasileira na Bienal de Veneza, em 1956, além de presidir a Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA.

Após a fusão da Associação Brasileira de Escritores com a Sociedade Paulista de Escritores, surge a U.B.E., que o elege para seu primeiro presidente, biênio de 1958 a 1960.

Além da poesia cultiva o ensaio, o romance, a crônica e a novela. Foi tradutor de vários estudos históricos e sociais do Brasil.

Em paralelo ao jornalismo profissional, dirige a Biblioteca Pública “Mário de Andrade”, na Pauliceia.

Morre em 1966, em São Paulo.

Fontes:
- Livro gentilmente enviado pelo autor
Cláudio de Cápua. Revolução na Pauliceia: Semana de Arte Moderna de 1922. 2.ed. São Paulo: EditorAção, 2019
– Enciclopédia Itaú Cultural

Carolina Ramos (A Xará)


O toque do interfone interrompeu-lho as lides domésticas. Atendeu.

— Dona Rita?

— Pois, não...

— Sua vizinha, do sétimo andar, está subindo para cumprimentá-la.

Eram duas da tarde. Rita mediu num só olhar a confusão dos móveis e utensílios, empilhados pela mudança, efetuada na véspera.

— Visita, agora?!

Largou o pano de pó, trocou os chinelos, jogou o avental sobre a mesa e ajeitou, como pode, os cabelos. Já a campainha soava. Recebeu a visitante com um sorriso amável. O sorriso da que chegava, fez-se mais largo ainda, portador dos anunciados cumprimentos.

— Bom dia, vizinha. Vim dar-lhe as boas vindas. Sou Maria Rita, aí do sétimo.

— Coincidência! Eu também me chamo Maria Rita. Entre, mas... por favor, não repare. Ainda está tudo bagunçado, de pernas para o ar... Também, chegamos ontem, não é?

— Ora, deixe pra lá... se quiser ajuda, disponha.

— Muito obrigada. Aos pouquinhos, tudo irá para o devido lugar. Questão de tempo. O pior é que, sem empregada, tudo fica mais difícil e... mais difícil ainda é achar uma!

O "papo" doméstico, descompromissado, estendeu-se com elasticidade, dissociada do relógio, como se as duas mulheres não tivessem nada para fazer, a não ser, matar o tempo.

Dois dias foram mais do que suficientes para que a nova moradora percebesse que a xará do sétimo andar, realmente nada tinha para fazer que a prendesse em casa, o que era alarmante!

A frequência com que a vizinha lhe batia à porta, a alugar-lhe a atenções por tempo indeterminado, mais do que impacientá-la, começava a gerar preocupações. Tão logo chegadas as catorze horas, o conhecido toque de campainha impunha-lhe a presença incômoda.

Maria Rita entricheirou-se, defensiva. Assim como em certos estados do norte, em que a regularidade das manifestações climáticas leva ao planejamento das atividades, programadas para antes ou depois da chuva, Maria Rita, instintivamente passou a separar as tarefas cronologicamente, para antes e depois da visita vespertina. Tentativa ingênua de acomodação, que em hipótese alguma solucionou o problema.

Verdade se diga, a situação tornava-se cada vez mais incomodativa. Desgastada e levada a um atropelo de ação perfeitamente dispensável, que não justificava o desperdício das tardes esbanjadas, custava a Maria Rita ver escoar-se o tempo em papos furados e conversa fútil.

Pontual e descontraída, a xará chegava para ficar. Tinha já cadeira cativa. Colocava os óculos na ponta do nariz e puxava do tricô. Trabalho interminável, porque finda uma peça, outra vinha a caminho. Rita sentia-se invadida, confusa e com remorsos, até.

Seis meses passados, e a situação inalterada. Sem privacidade, a moça beirava o poço do desespero! Marido e filho sofriam por ricochete. Sem definição, Rita fazia tudo para ausentar-se de casa na hora aprazada, na esperança de quebrar o ritmo e a disposição compulsória da visitante. Inútil!

Cansou-se de vagar sem rumo, cansou-se de olhar vitrinas sempre iguais, cansou-se de visitar igrejas. E os santos, quem sabe, cansaram-se dela e da insistência dos seus pedidos.

Tudo absolutamente em vão! A xará continuou voltando, com assiduidade exemplar e implacável!

A pressão era tanta, que Maria Rita acabou doente. Deprimida. Fechou-se no quarto. Levou para lá a TV portátil. Mergulhou nas novelas.

Fuga? Desequilíbrio? Desespero? — Tudo!

E foi quando a xará, solícita, prontificando-se a servir de enfermeira, adentrou, triunfante, a cidadela onde se aquartelara a enferma! A gota d’água!

— Então... doentinha? Não há de ser nada. Vou cuidar de você. Agora chegarei uma hora mais cedo. Sem pressa. Não tenho mesmo nada que me prenda em casa...

A paciente capitulou. Desceu definitivamente ao fundo do poço, levando a família consigo!

— Mudem-se! Mudem-se o mais rápido possível! — ordem do psiquiatra. Sem réplica.

Mudaram-se. E para bem longe! O apartamento vendido em tempo recorde. Pechincha!

Ninguém do prédio recebeu o novo endereço A mudança foi feita praticamente em caráter sigiloso, "antes da chuva", ou melhor, pela manhã, bem cedo, antes da famigerada visita.

Mudança radical! A neurose acabou como por encanto! Aliás, nem tanto assim, que, por longo tempo, o som de uma campainha sugeria sempre a inquietante pergunta: — Será ela?!

Pudesse, e Maria Rita teria trocado também de nome. Que, perdoado o trocadilho, até hoje, o nome Rita irrita por demais a Rita!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos Poéticos) XIII


Arthur de Azevedo (Conto em Versos: Banhos de Mar)


Manuel Antônio de Carvalho Santos,
Negociante dos mais acreditados,
Tinha, em sessenta e tantos,
Uma casa de secos e molhados.

Na Rua do Trapiche. Toda a gente
– Gente alta e gente baixa –
O respeitava. Merecidamente:
A sua firma era dinheiro em caixa.
 
Rubicundo, roliço,
Era já outoniço,
Pois há muito passara dos quarenta
E caminhava já para os cinquenta.
 
O bom Manuel Antônio
(Que assim era chamado),
Quando do amor o deus (Deus ou demônio,
Porque como um demônio os homens tenta,
Trazendo-os num cortado)

Fê-lo gostar deveras
De uma menina que contava apenas
Dezoito primaveras,
E na candura de anjo
Causava inveja às próprias açucenas.

Tinha a menina um namorado, é certo;
Porém o pai, um madeireiro esperto,
Que no outro viu muito melhor arranjo,
Tratou de convencê-la
De que, aceitando a mão que lhe estendia
Manuel Antônio, a moça trocaria
De um vaga-lume a luz por uma estrela

Ela era boa, compassiva, terna,
E havia feito ao moço o juramento
De que a sua afeição seria eterna;
Porém dobrou-se à lógica paterna
Como uma planta se dobrara ao vento.

Sabia que seria
Tempo perdido protestar; sabia
Que, na opinião do pai, o casamento
Era um negócio e nada mais. Amava;
Sentia-se abrasada em chama viva;
Mas… tinha-se na conta de uma escrava,
Esperando, passiva,
Que um marido qualquer lhe fosse imposto,
Contra o seu coração, contra o seu gosto.

Calou-se. Que argumento
Podia a planta contrapor ao vento?
No dia em que a notícia
Do casamento se espalhou na praça,
A Praia Grande inteira achou-lhe graça
E comentou-a com feroz malícia,
E na porta da Alfândega,
E no leilão do Basto
Outro caso não houve era uma pândega!

Que às línguas fornecesse melhor pasto
Durante uma semana, ou uma quinzena,
Pois em terra pequena
Nenhum assunto é facilmente gasto,
E raramente um escândalo se pilha.
Quando um dizia: – A noiva do pateta
Podia muito bem ser sua filha,
Logo outro exagerava: – Ou sua neta!

O moço desdenhado,
Que na tesouraria era empregado,
E metido a poeta,
Durante muito tempo andou de preto,
Co’a barba por fazer, muito abatido;
Mas, se a barba não fez, fez um soneto,
Em que chorava o seu amor perdido.

Do barbeiro esquecido
Só foi à loja, e vestiu roupa clara,
Depois que a virgem que ele tanto amara
Saiu da igreja ao braço do marido.

Pois, meus senhores, o Manuel Antônio
Jamais se arrependeu do matrimônio;
Mas, passados três anos,
Sentiu que alguma coisa lhe faltava:

Não se realizava
O melhor dos seus planos.
Sim, faltava-lhe um filho, uma criança,
Na qual pudesse reviver contente,
E este sonho insistente,
E essa firme esperança
Fugiam lentamente.

À proporção que os dias e os trabalhos
Seus cabelos tornavam mais grisalhos.
Recorreu à Ciência:
Foi consultar um médico famoso,
De muita experiência,
E este, num tom bondoso,
Lhe disse: – A Medicina
Forçar não pode a natureza humana.

Se o contrário imagina,
Digo-lhe que se engana.
Manuel Antônio, logo entristecido,
Pôs os olhos no chão; mas, decorrido
Um ligeiro intervalo,
O médico aduziu, para animá-lo:

– Todavia, Verrier, se não me engano,
Diz que os banhos salgados
Dão belos resultados…
Experimente o oceano! –

No mesmo dia o bom Manuel Antônio,
Á vista de juízo tão idôneo, Tinha
casa alugada
Lá na Ponta d’Areia,
Praia de banhos muito frequentada,
Que está do porto à entrada
E o porto aformoseia.

Nessa praia, onde um forte
Do séc’lo dezessete
Tem tido vária sorte
E medo a ninguém mete;

Nessa praia, afamada
Pela revolta, logo sufocada
De um Manuel Joaquim Gomes,
Nome olvidado, como tantos nomes;
Nessa praia que… (Vide o dicionário
Do Doutor César Marques) nessa praia,
Passou três meses o quinquagenário,
Com a esposa e uma aia.

Não sei se coincidência
Ou propósito foi: o namorado
Que não tivera um dia a preferência,
Maldade que tamanhos
Ais lhe arrancou do coração magoado,
Também se achava a banhos

Lá na Ponta d’Areia…
Creia, leitor, ou, se quiser, não creia:
Manuel Antônio nunca o viu; bem cedo,
Sem receio, sem medo
De deixar a senhora ali sozinha,
Para a cidade vinha
Num escaler que havia contratado,
E voltava à tardinha.

Tempos depois – marido afortunado!
Viu que a senhora estava de esperanças…
Ela teve, de fato,
Duas belas crianças,
E o bondoso doutor, estupefato,
Um ótimo presente,
Que o pagou larga e principescamente!
Viva o banho de mar! ditoso banho!

Dizia, ardendo em júbilo, o marido.
– Eu pedia-lhe um filho, e dois apanho!
Doutor, meu bom doutor, agradecido!
Pouco tempo durou tanta ventura;
Fulminado por uma apoplexia,
Baixou Manuel Antônio à sepultura.

O desdenhado moço um belo dia
A viúva esposou, que lhe trazia
Amor, contos de réis e formosura.

E no leilão do Basto
Diziam todos os desocupados
Que nunca houve padrasto
Mais carinhoso para os enteados.

Carlos Drummond de Andrade (A Datilógrafa)


A Associação dos Antigos Alunos do Professor Penaforte é modelo do gênero. Os associados pagam pontualmente as mensalidades, reúnem-se cordialmente em almoço no último sábado do mês, e agora resolveram editar um boletim: publicação modesta, trinta e duas páginas, que divulgue êxitos profissionais dos colegas, movimento da AAPP, essas coisas.

Pequeno aumento nas contribuições não afeta os Antigos Alunos, todos bem de vida ou a caminho de. O menos bem é talvez dr. Ariosto: ainda não pôde abrir mão do empreguinho burocrático, ou não soube transformá-lo em doce cargo de muita remuneração e zero obrigação. Grande praça, dr. Ariosto: sempre disposto a ajudar, a fazer força, de modo que o lugar de redator-secretário do boletim lhe cabe indiscutivelmente, como lhe coube o de tesoureiro da AAPP, sem falar em todas as demais funções da diretoria, nos casos de impedimento temporário, isto é, permanente, de colegas ocupadíssimos, além de ilustríssimos.

Redator-secretário pressupõe existência de outros redatores, inclusive redator-chefe… mas deixa, Ariosto escreve para mim este artigo, pois no sítio lá em Pires do Rio o fim de semana é danado de barulhento. E assim por diante, dr. Ariosto dá conta de tudo, escreve, reescreve o que os outros alinhavaram mal mal. Só que os originais precisam ser uniformizados. Datilógrafa esmerada, rápida, como encontrá-la? D. Jerusa, colega de repartição, precisa de uns bicos: só o cabeleireiro leva metade do ordenado. Há tempos pedira a dr. Ariosto que, se soubesse de algum servicinho de máquina em embaixada, não deixasse de avisá-la: esses boletins mimeografados, sabe como é? Pois ali estava o boletim,
não de embaixada, mas de uma associação de gente distinta, que paga corretamente. D. Jerusa lamentou-se: fora atacada por esse monstro moderno, alergia. Não pode nem ver papel, quanto mais lidar com ele.

O bom dr. Ariosto resigna-se a ser datilógrafo de si mesmo e da AAPP, em sigilo. Como tudo que faz tem o selo do capricho, a AAPP felicita-o por ter arranjado uma datilógrafa perfeita. O presidente pergunta-lhe se, além de perfeita, é bonita. Ariosto sorri, quer omitir a informação, o outro insiste, ele admite que não é feia.

— Pois traga a moça aqui, para a cumprimentarmos pelo serviço.

— Não convém. É muito tímida.

Toda vez que chegam os originais, batidos impecavelmente, repete-se o coro de louvores.

— E nós que ainda não nos lembramos de pagar-lhe. Quanto deve ser?

— Não se preocupem — responde dr. Ariosto. — Ela faz isso de camaradagem. Não precisa de dinheiro.

— Deveras? Não é justo. Temos de remunerar o trabalho da moça. Qual o nome dela, o endereço?

Explicou que a moça fazia o serviço por amizade a ele, e recusava terminantemente gratificação, sob pena de não botar mais o dedo no boletim; além do mais, era admiradora do saudoso professor Penaforte. A essa altura, dr. Ariosto verificou, estupefato, sua própria capacidade de mentir, ele que é a verdade em pessoa. Amizade, hem? Acabaram imaginando que a datilógrafa era namorada dele. E concluíram que ela merecia um presente, com os agradecimentos da AAPP.

— Agradecimentos que devem constar na ata — ponderou o presidente. — Essa jovem é uma pérola.

Dr. Ariosto lutou como leão para impedir a homenagem, mas, perturbado, acabou dando o nome de d. Jerusa. Saiu em disparada para avisá-la, pedir-lhe mil desculpas. Quando aparecesse o mensageiro, com um embrulho de presente e um ofício…

— Não posso aceitar — disse d. Jerusa, inflexível. — Devolvo.

— Não faça isso!

— Então mando botar na sua mesa.

Foi uma áfrica obter que aceitasse a linha completa de produtos de beleza. No ofício, além do mais, o presidente convidava-a para um chá na sede, onde receberia cumprimentos.

— Pensando bem, dr. Ariosto, eu vou. Não devo desapontar o presidente. Parece tão simpático!

Bom, dr. Ariosto não tinha nada com d. Jerusa, mas não é que o picou um vago ciúme do presidente?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Marcos Satoru Kawanami (Poemas Avulsos)


ARTE METAFÍSICA

Estranha arte é esta de escrever...
Sem pincel, sem cinzel a obra cresce
E toma forma, e nem forma carece
Para que a outrem venha a entreter!

Um papel sujo basta ao seu mister,
Um papel que no lixo alguém esquece...
Na folha rota que o desdém merece,
É nela que o poema vai nascer.

Poesia, prima-irmã da Matemática
Que no papel também faz teorema,
Acha ela sempre musa mais simpática.

Seguem Música e Dança o mesmo esquema,
Brotando da sublime e etérea prática
Qual do nada também brota um poema.

CARTA DO MALANDRO ESCRUPULOSO

Minha querida Daisy, custa-me dizer...
Para teu bem-estar, por tua dignidade,
ver-me-as nunca mais. E não sintas saudade
deste vadio que te tanto fingiu querer.

Eu bem sei..., alma pura, jamais vês maldade;
mas esta virtude há de desaparecer
com a ilusão que só inspirou-te o padecer
por partilhar de minha vil intimidade.

Esquece do Brasil, do Rio, do meu franzino
e fingido sorriso de ingênuo menino.
É inevitável: nova ilusão vais achar.

Porém se, por ventura no teu fog londrino,
lembrança vier, lembra deste alexandrino:
"Eu te desprezo para não te ver chorar".

O BURACO

Na existência do homem, o buraco é tudo:
De um buraco ele vem, e para outro ele vai;
E outro buraco, ainda, bastante o distrai
Furtando-lhe a razão num louco anelo agudo.

O buraco será sempre coisa enigmática,
Esfinge alcandorada para a confraria
Dos homens indefesos perante a magia
Magnética, hipnótica, orificiática.

O buraco é ornado por pomposa flora
A qual mais seu mistério vela, encobre, oculta.
Buraco, és flor, não do Lácio, mas inculta!

E tanto o peito másculo, voraz, devoras
Que se o levas ao val sombrio da sepultura,
Ser fiel ao buraco eterno o homem jura.

O BURACO (2)

O buraco tem um quê de absoluto:
Não é palpável, mas claro é que existe;
Seu não-ser o faz ser, e assim persiste.
Sina humana, buraco, és cabal luto.

A terra cava de naco em naco
O menino que brinca angelical
E, ingênuo, conclui filosofal:
Jamais pode existir meio buraco!

Oráculo o buraco é do mistério,
Do insondável, da coisa indefinida:
Um buraco nos deu o dom da vida!

E nos espera lá no cemitério
à espreita, na tocaia escondida,
O Buraco, ironia sem medida.

RÉPLICA A CAMÕES

Alma minha gentil, qual hei deixado,
quiçá mesmo em favor da Humanidade
que hora ganha a lusa celebridade
das armas e barões assinalados;

se cá pr'onde  subi contrariada
memória da outra vida se consente
nunca me esquecerei do ódio ardente
às rimas pelas quais fui eu trocada.

E se vires que pode merecer-te
algu'a migalha de ira — que sobrou —
cuida que obrando estou por socorrer-te

rogando ao que meus anos encurtou
que tão cedo Amor venha a abater-te
quão cedo em meu soçobro soçobrou.

SONETO DE NASALIDADE

De tudo ao meu nariz serei atento;
e tanto e pouco e no jamais e antes,
que mesmo em face de dois elefantes
m'nha tromba cause mais alumbramento.

Por ele hei de viver sempre asmático
de assoar minha alma, e escarrar sua escória;
enamorado e não menos pneumático...
da sublime função respiratória.

E assim, quando mais tarde me procure
quiçá o vexame, angústia de quem vive,
quiçá a rinite, conforme Deus mande;

possa eu me dizer do nariz (que tive):
que não seja imoral, inda que grande,
mas que seja aquilino, e não pendure.

_____________________________________________________
Marcos Satoru Kawanami nasceu na cidade de São Paulo, em 1975, e passou quase toda a infância e adolescência na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, onde estudou no Colégio Cenecista Capitão Lemos Cunha.

Aos 18 anos, ingressou no curso de Astronomia da UFRJ; no segundo período, foi cursar Engenharia de Minas e permaneceu por um ano em Ouro Preto, de onde voltou para prosseguir na UFRJ até o 6º período de Astronomia. Então, trancou a matrícula. Simultaneamente, trabalhou na Fundação Oswaldo Cruz. Em 2002, concluiu o curso de Letras da UNIFEV, em Votuporanga; e, em 2003, efetivou-se como professor  nas disciplinas de Português e Inglês.

Vinicius de Moraes (H2O)


Sete horas da manhã. Campainha na porta.

- Dez minutos de água, pessoal!

É a voz do seu Abel, o porteiro do meu edifício.

Água quer dizer banho. Há dois dias este corpinho só vê fricções de água-de-colônia. A ablução é um tanto ou quanto matinal demais, mas não há remédio: o homem é um escravo do quarto elemento, de que é ele próprio o composto químico: H-O-N-C. Os dois primeiros em combinação, dão água: H20. É ela!

A correria é infernal, enche-se desde o tanque de lavar roupa até os copos da casa. A lavação da louça suja é feita a toda, como para ganhar um campeonato. Ouvem-se profusas descargas de latrinas, torneiras escorrem ruidosamente, enchendo recipientes dos quais a banheira é o mais capaz. A barba é feita em dois minutos, havendo eu, muito de indústria, deixado pincel e aparelho adrede preparados. Depois vem o banho, às carreiras. Mas a verdade é que o tempo útil voa impressentido. Depois de bem ensaboado, o chuveiro começa a minguar assustadoramente, acabando por estar com um sinistro gorgolejo.

O nome feio anda pela casa, atravessa paredes, vai encontrar eco em outros apartamentos, desdobra-se até longínquos bairros, toma a cidade inteira. De repente todo mundo põe-se a berra-lo em uníssono. Ele é a expressão viva da realidade carioca. Aliás, um grande general de Napoleão já o usara em circunstâncias talvez não tão dramáticas, mas com vigor. Um homem ensaboado não se pode dizer que valha por dois, porque é o ser mais infeliz e ridículo da criação. Tem de se haver com o sistema da cuia. Seu corpo esfria, ele fica com um ar de pintainho molhado. É absolutamente lamentável.

Ontem à noite, o café foi feito com água mineral. Ficou com um gosto meio velhaco, mas não há de ser nada. É de esperar, contudo, que o recurso não se tenha de estender ao próprio banho, porque com a mineral a Cr$ 180, e sendo necessários uns cem litros para encher uma banheira, sai cada banho a 18 contos - o que torna a prática proibitiva para a classe média, ficando acessível apenas a uns poucos homens ricos e bem nutridos, que aliás devem ficar umas gracinhas dentro de um banho de água mineral, agitando os braços gordos e soltando milhões de borbulhas....

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

Trova 352 - Dorothy Jansson Moretti


segunda-feira, 20 de maio de 2019

Trova 351 - Odenir Follador


Carolina Ramos (O Amigo Discreto)


Celibatário por opção, Alfredo admirava e exaltava, a mais não poder, os amigos Lígia e Laércio, pela fidelidade sincera que deixavam transparecer no relacionamento conjugal.

Ele, Alfredo, optara pelo celibato. Nada de traumas ou pressões anteriores. Questão de foro íntimo. Melhor, só, do que ter de enfrentar a possibilidade de trair, ou de ser traído. Os tempos modernos, ou melhor dizendo, modernosos, de costumes desabridos e tendências liberais, ofereciam exemplos às dúzias. Se um dia viesse a casar, seria para valer. Nada de casa e descasa. Nada de filial por debaixo do pano. O "até que a morte nos separe", era o lema que tinha em mente. Na dúvida, preferia permanecer solteiro. Solteirão!

Lígia e Laércio eram caso ímpar. Par indestrutível! Quatro filhos. Quatro sólidas pilastras sustentando as bases seguras do edifício familiar. Construção perfeita! Sem deslizes, nem rachaduras.

Chovia naquela tarde em que, Alfredo, dolorosamente surpreendido, tremeu nas bases ao ver passar o amigo Laércio, aconchegando sob o mesmo guarda-chuva, os encantos loiríssimos daquela cujos ombros enlaçava carinhosamente. Uma loira espetacular!

Alfredo sentiu o estômago engulhado. Não podia ser... Laércio, logo Laércio!

Chocado, seguiu o par a distância. Não pretendia provocar o flagrante, vexatório, profundamente constrangedor, para qualquer das partes. Enxugou a testa coberta de suor frio. Compreendeu que nunca mais poderia encarar o amigo infiel, sem recriminá-lo interiormente. Sentia-se também traído. E quanto a Lígia, então?! Como enfrentar seu olhar cândido e meigo de esposa perfeita, vergonhosamente ludibriada pelo marido?!

Marido! Lá ia o descarado, sem o menor escrúpulo, a exibir a companheira, como quem exibe um troféu recentemente conquistado! Cachorro!

A raiva inflou as veias de Alfredo quando viu o casal sumir no carro de Laércio, estacionado adiante. Raiva pelo erro de julgamento. Laércio não era o que julgara ser. Não merecia sua amizade. Não o desmascarara, para poupar Lígia, que crescia no seu conceito.

Nessa mesma tarde, ao chegar em casa, abraçada pelo marido, Lígia sacudiu as roupas molhadas, olhando-se no espelho. Era bom demais sentir-se jovem, outra vez! Nova em folha! Que milagres faziam a dieta balanceada, o narizinho moldado pelo bisturi de um mestre e os reflexos dourados cobrindo a antiga cabeleira castanha. Era uma nova mulher. Uma loira espetacular!

Alguns anos depois, Lígia e Laércio questionavam, ainda, o inexplicável afastamento do amigo.

— E o Alfredo, hein? Que coisa estranha. Sumiu mesmo!

Laércio encerrou definitivamente a questão;

— Na certa, já chegou a esperada transferência. Foi para Curitiba e nem sequer se despediu! Cachorro! Em nossos dias, a gente não pode confiar nem no melhor amigo!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XII


LÁGRIMA

Orvalho do sofrer - dentro do peito nasce
e nos olhos em pranto sem querer floresce;
aumenta a pouco e pouco, e cada vez mais cresce...
- e rola finalmente em gotas pela face...

sublime florescer da dor... se ela falasse
diria para o mundo a mais sentida prece,
no entanto, em seu silencio humilde é que enternece
pois guarda na mudez um triste desenlace...

Repentina, ela brota, assim como se fosse
( de um mar que em nosso peito as ondas estrugisse)
uma gota que o vento, aos nossos olhos, trouxe...

Nuns olhos de mulher, porém, ainda não disse:
- é a pérola de um mar completamente doce,
de um mar feito de amor... de sonho e de meiguice!

LEMBRANÇA

Bom tempo o que ficou - amei-te na alegria
de uma tarde azulada e linda de setembro,
- disso tudo, hoje, triste, eu muita vez me lembro
enquanto uma saudade o peito meu crucia...

Amei-te, como nunca outro alguém te amaria,
eras o meu sonhar de janeiro a dezembro...
Depois... Tu me deixaste, e ainda hoje se relembro,
amargo a mesma dor cruel daquele dia. . .

Agora, em solidão - sou um corpo sem alma -,
e indiferente a tudo vou chegando ao fim
como a tarde que cai bem suavemente em calma.

Já não sinto... não sofro... já nem vivo até.
- Se a vida ainda era vida ao ter-te junto a mim,
hoje, longe de ti, nem vida ao menos é!

LEVANTE!...

Apenas entre os lábios de uma aurora
sanguínea, o sol desponta num sorriso,
eu saio para o engenho, que diviso,
lá longe, no horizonte, estrada afora...

Os campos orvalhados - toda a flora
verdejante, é um espelho de improviso
dos céus, onde algum astro ainda indeciso
- não sabe se ficar ou se ir embora...

à beira dos caminhos, vez em quando,
passam lentos, os carros carregados,
que dois bois sonolentos vão puxando...

E a vida vai nascendo entre os currais...
- Os galos cacarejam nos cercados,
no espaço, ouve-se o canto dos pardais!...

LIRISMO...

Eu quero ser o poeta da ternura
o poeta dos carinhos, da meiguice,
das palavras de amor e de doçura
que ainda ninguém pensou... e ninguém disse...

O poeta dos "castelos" e dos beijos
quando vivemos longamente, a sós,
- que põe vultos de sonhos nos desejos
e que põe abajures na própria voz. . .

Eu quero ser o poeta que te enleia
e te encanta, e te embriaga, e te seduz,
- que no teu corpo branco como a areia
compõe versos de amor feitos de luz.

O poeta que em teus olhos, num momento
acende estranhos mundos e visões,
e que adivinha o teu deslumbramento
deslumbrado com as próprias emoções...

Eu quero ser o poeta dos anseios,    s
dessa minha alma, irrefletida e louca,
- e desvendando o encanto dos teus seios
murmurar versos para a tua boca!

Quero ser esse poeta que tu queres
e os meus versos, assim como um perfume,
hão de embriagar a alma das mulheres
para o teu sofrimento. . . e o teu ciúme. . .

Eu quero ser o poeta da ternura  
que espalha poemas e a sonhar caminha,
e que encontra afinal toda a ventura
nessa ventura de sentir-te minha!

O poeta que põe alma nos sentidos
e as belezas incógnitas desvenda,
- que murmura canções aos teus ouvidos
e fala sobre o amor num tom de lenda....      
      
O poeta a quem tua alma se prendeu,
esse que chamas louco e sonhador,      
para imortalizar teu nome e o meu
na imortalização do nosso amor!



Má que tu foste - me negaste aquela
última dança que eu pedi, no entanto
eu lá fiquei pelo salão a um canto
debruçado sozinho na janela...

E magoado, a te olhar, vi-te tão bela
nos braços de outro - que chorei, e o pranto
secava em minhas faces por encanto
como se fossem lágrimas de vela...

De que serve chorar - pensei - de nada
vale mostrar aquela que adoramos
a dor que temos na alma sepultada...

E me pus a dançar... Brinquei... Sorri...
E os dois sorrimos... nós dois brincamos...
Mas tu sofreste!... E eu - quanto sofri!...

MALDADE

Tu podes ser igual a todo o mundo
teres defeitos mais que toda a gente,
- que importa ? se este amor cego e profundo
teima em dizer que te acha diferente !

Para mim (eu que te amo como um louco)
os que falam de ti são línguas más,
- ah ! todo o amor que te dedico é pouco
e é sempre pouco o amor que tu me dás !

Sou a sombra que segue os teus desejos
e aos teus pés, numa oferta extraordinária
a minha alma vendeu-se por teus beijos...

Falam de ti... Escuto-os... Fico mudo...
Quanta maldade cruel, desnecessária
se eu já sei quem tu és... se eu sei de tudo !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Alberto Braga (A Sesta do Avô)


Há quatro dias, vejo todas as tardes, quando chego à janela, o meu vizinho a passear em frente da casa, amparado ao braço da netinha.

O avô é já muito velho, muito velho, com a face coberta de rugas, os olhos pequenos, as mãos encarquilhadas, as pernas trêmulas, e a dobrarem-se nos joelhos. E a neta, que se chama Izaura, e é linda como os amores, tem doze anos, os cabelos loiros, como fios de ouro, e os olhos muito azuis, como duas safiras.

Ele chama-se Macário; mas eu, quando lhe falo, dou à minha voz um tom marcial e digo-lhe alto ao ouvido:

- Como vai o nosso bravo capitão? Como passa o meu valente capitão?

E então, na vizinhança é mais conhecido pelo capitão "Feroz", que foi a alcunha que lhe ficou, por ter sido um militar valente e corajoso como poucos!

Quando os franceses vieram a Portugal... - Ai! - disse-me ele um dia, referindo-me as façanhas da guerra - quem me caçara naquele tempo! Eu tinha então dezoito anos, umas pernas rijas, o olho fino!... Olhe, só de uma vez me falhou a pontaria. Eu lhe conto. No convento de Santa Clara, de Thomar, estava recolhida uma menina, de quem eu gostava muito e com a qual depois casei. Um oficial francês, passando-lhe debaixo da grade, disse-lhe um galanteio, e piscou-lhe o olho direito. Ora eu, que estava ao longe a observar tudo, disse comigo: espera, que já te arranjo. E meti a espingarda à cara, fiz pontaria para o olho direito do francês, e...

-- E?

-- E, truz! Meti-lhe a bala no olho esquerdo! Errei dessa vez!

E ainda lhe fulguravam os olhos e o rosto se lhe iluminava, quando contava destas coisas.

Depois prosseguiu:

- Ao final, chegou-me a vez de ser vencido! Eu, que nunca tremi na guerra, a primeira vez que falei à minha santa, que Deus tenha, dei em tremer como varas verdes! Mas aquilo sim! Era formosa duma vez! O senhor vê a minha filha! É a cara da mãe.

O capitão não se enganava. A filha era realmente formosa; mas duma formosura, que é menos dos contornos do rosto, do que da graça interior da alma.

Havia um ano que era viúva de um industrial trabalhador, honesto e inteligente. Ficara a viver na companhia do pai e com dois filhos: - a Izaura, e o mais pequenino, o Abel, que tinha pouco mais de um ano e uma cabecinha loira de querubim.

Que santa vida a daquela família obscura!

A viúva repartia pelos três todo o generoso afeto do seu coração; e, até, como o pai era tão velhinho, quase que já carecia dos cuidados de uma criança. Que os bons velhos, coitadinhos, são fáceis de contentar! Basta-lhes uma réstia de sol, uns carinhos de filha e umas histórias da neta!

Quando perguntei ao Macário, porque passeava depois do jantar, respondeu-me:

--O sono é bom para a noite. Quando durmo depois de jantar, tenho sonhos maus.

E, beijando a cabeça de Izaura, acrescentou:

- Quero antes passear com a minha neta, que me conta histórias muito lindas.

E continuaram os dois, o velho pelo braço de Izaura, arrastando vagarosamente os pés nas lages do passeio.
*       *       *       *       *

Depois do jantar, o velho arrastava-se até à poltrona, que tinha ao canto da janela; e, bem refastelado, com os pés estendidos, as mãos cruzadas sobre o ventre e a cabeça encostada no espaldar, dormia patriarcalmente a boa sonata da sesta.

De uma vez, era em julho, e, às duas horas da tarde, fazia um calor insuportável. Até parece que a natureza também dormia a sesta! Lá fora, no quinteiro, as folhas das arvores pendiam desfalecidas. Ouvia-se o murmúrio monótono da bica d'água a cair, como uma lágrima, sobre uma pia de pedra, debaixo de uma latada. As portas das janelas estavam entreabertas para deixar entrar na sala um raio de sol, que se estendia aos pés do velhinho, como uma esteira de luz.

No outro canto da sala, a filha do capitão, sentada numa cadeirinha de pau, pospontava uma camisa de criança, mas tão pequenina, que parecia uma camisa de boneca! Ouviam-se até uns pequenos estalidos secos da agulha, atravessando a goma do morim (pano branco e fino de algodão) novo e em folha. O Abel!... Era um regalo vê-lo sentado no chão, em camisa, com as pernas roliças á mostra, um ventre redondinho de abade feliz, e os pezinhos cor de rosa!

Aos pés do avô, na réstia do sol, tremia a sombra dumas folhas do plátano do jardim. A criança engatinhou para lá. Como uma pequenina fera, atirando-se de golpe sobre a presa, o Abel lançou-se rapidamente sobre a sombra tremula das folhas - mas, que ludibrio! - ficou triste, espantado, com os olhos muito abertos, a contemplar a palma da mão vazia!

Ao lado estavam os grandes pés do avô, metidos nos dois grandes chinelos de tapete. Oh! eram duas colinas! E as pernas? As pernas pareciam dois enormes castelos roqueiros.

No espírito belicoso da criança surgiu a ideia terrível de os assaltar. Fincou as mãozinhas nos chinelos do avô, levantou-se valentemente nos pés, e upa! upa! arriba!

Nessa ocasião o velho sonhava:

Tinha remoçado cinquenta anos! Os franceses invadiam Portugal! Quando ele estava na tenda de campanha, a dormir no dia seguinte ao de uma batalha, viu entrar inesperadamente o exército de Bonaparte. As paredes de lona da tenda iam recuando, recuando, para dar entrada às hostes imensas do inimigo. Os esquadrões insofridos da cavalaria corriam sobre ele. Em volta da tenda levantou-se rapidamente - como nas mágicas do teatro! - uma bateria, com as bocas dos canhões apontadas para o leito. Os piquetes de infantaria corriam a marche-marche, de baionetas caladas, para o surpreenderem no sono. Ao fundo, no viso de um outeiro, Bonaparte, o terrível Bonaparte, com as suas botas de escudeiro e o seu chapéu de bicos posto de través, como o chapéu de um estudante de Salamanca, assestava sobre ele o óculo de alcance, sorrindo
alegremente da vitória!

O capitão Macário via tudo aquilo, ouvia o estrépito dos cavalos, o tropel da infantaria, as gargalhadas de Bonaparte, e sentia-se preso ao leito, impotente, inerme, ansiado, sem poder gritar!... Façam ideia!

De repente, todo aquele exército enorme se transformou num gigante, que lhe prendeu brutalmente as pernas com dois grilhões de ferro!

O capitão esforçou-se ainda por se levantar; mas conseguiu, apenas, depois de muito custo, soltar este brado aflitivo, com uma voz convulsa:

- Às armas!

E despertou, ouvindo as gargalhadas de... Bonaparte!

O velho abriu desmesuradamente os olhos, volveu-os espantado em torno de si; e, quando um instante depois, se sentiu completamente acordado, deu com o netinho, que lhe puxava pelas pernas, para lhe subir ao colo!

A criancinha estava com os olhos levantados para o avô, a sorrir, muito alegre, porque julgou que tinha sido para ela, como brincadeira, aquele grito sufocado - "Às armas"!

Fonte:
Alberto Braga. Contos d'Aldeia. Porto/Portugal: Cia. Portugueza Ed.,  1916.

domingo, 19 de maio de 2019

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 2


As canções dos pescadores
que escuto de volta ao cais...
São ladainhas de dores
dos que não voltam jamais!

Enquanto a tarde serena,
sepulta um sol tão bonito...
O sol tristonho, me acena
da solidão do infinito!

Escrava do teu assédio,
a minha alma com ternura,
faz dele, um santo remédio,
para um mal que não tem cura!

Há na eclosão de uma flor,
e no olhar de uma criança,
lindos caprichos do amor
orvalhados de esperança!

Já sentiste a dor insana,
do canto de um passarinho,
que canta a maldade humana
sobre as cinzas do seu ninho?...

Lembrar momentos risonhos
dos tempos da mocidade,
é torturar velhos sonhos
no por do sol da saudade!

Meu pai... Ao te ver agora,
curvado e contando os passos...
Dói-me ao lembrar, quando outrora,
andava tanto em teus braços!

Meus versos são quais crianças,
dóceis, inocentes, belas...
Que vão pintando esperanças
e emoldurando aquarelas!

No entardecer da cidade,
antes do sol se esconder...
Há mais cinzas de saudade
nas cinzas do entardecer!

O orvalho que não reclama,
é o sentimento profundo,
do pranto que Deus derrama
ante as maldades do mundo!

O tempo, com seus deslizes,
com seus conceitos fatais...
Por pouco, nos fez felizes,
mas quase tarde demais!

Põe na vida mais ternura...
Sê como a luz de candeia:
Quanto a noite mais escura,
mais ela brilha e clareia!

Quando o sol dobra os joelhos,
de rubro a tarde se banha,
para escutar seus conselhos
sobre os braços da montanha!

Quanto mais ouço conversas,
mais eu vejo esforços vãos,
em mãos, incultas, perversas,
escravizando outras mãos!

Saudade - é faca de ponta,
que fere qualquer pessoa...
Toda tarde, dobra a conta
no coração que magoa!

Se acaso a vida te afeta,
não guardes dela, rancor!
Pois, coração de poeta,
é a caixa postal do amor!

Se a tua cruz pesa tanto,
do peso, não faças conta;
que até o terço mais santo,
carrega uma cruz na ponta!

Se a vida é luz e esperança,
riso, alegria, acalanto...
Por que será que a criança
ao vir à luz, chora tanto?!...

Seguindo os teus passos certos,
não temo o peso da cruz!...
Quero em teus braços abertos,
crucificar-me de luz!

Sem teu amor eu não vivo,
sem teus abraços, tampouco.
Sou velho escravo e cativo
desse amor que me fez louco!

Sepultem-se as desavenças!
Se houver paz no coração,
vão-se todas as descrenças,
todas as mágoas se vão!

Se um sonho bom, não te alcança,
fujas da vida vazia,
plantando pés de esperança
na esquina de cada dia!

Teu adeus, triste miragem!
Aos teus sinais, me anteponho:
Porque buscar noutra imagem,
a ilusão de um novo sonho?

Tu tens dois gestos dos sábios,
no teu modo de pensar:
Tens o silêncio em teus lábios
e a humildade em teu olhar!

Fonte:
Livro gentilmente enviado pelo autor:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar vol. 2. 2.ed. Caicó/RN: Edição do Autor, 2018.

Carlos Drummond de Andrade (Caso de escolha)


O padrinho foi ao colégio, na Muda, e tirou Guilherme para passear. Olhos de inveja do irmão, também interno, mas sem direito a sair, porque seu comportamento era do tipo “deixa muito a desejar”, na linguagem do padre reitor. Desejar o quê — ele não sabia. Sabia que o irmão ia gozar a vida lá fora, ar, ruas, cinemas, tudo aquilo que vale a pena, enquanto ele, Gustavo, continuaria mergulhado no mar-morto do pátio, dos corredores, do nhe-nhe-nhem cotidiano.

Guilherme tinha planos para a emergência, e todos se resumiam em tirar o máximo possível da liberalidade do padrinho.

— O senhor me dá um presente de aniversário?

— Seu aniversário é daqui a oito meses.

— É, mas…

— Bem, eu dou.

O padrinho propôs-lhe um blusão alinhado, mas ele entendia que roupa é obrigação de pai e mãe — não vale. Livro também não. Nas férias aceitaria a coleção de science fiction, mas em pleno ano letivo, para descanso de tanta labuta no campo da ciência e das letras, o que lhe convinha mesmo era um brinquedo bem legal.

— Brinquedo? Mas você pode brincar com essas coisas no colégio?

— Posso.

Talvez não pudesse, mas isso eram outros quinhentos. Foram à loja de brinquedos. O problema era escolher entre o trem elétrico, o foguete cósmico, a caixa de aquarela, o equipamento de Bat Masterson, o cérebro eletrônico e outras infinitas tentações.

— Vamos, escolhe — dizia o padrinho, disposto a tudo, menos a esperar.

Ele comparava, meditava, decidia, arrependia-se. E como era impossível levar todos os brinquedos que o atraíam, pois cada um tinha seu inconveniente, que era não ter as qualidades dos demais, repeliu todos:

— Quero aquela gaitinha. Aquela verde, ali.

O padrinho fez-lhe a vontade, sem compreender. Uma bobagem de oitenta cruzeiros!

No colégio, Gustavo queria saber. E sabendo, escarneceu:

— Você é mesmo uma besta. Tanta coisa bacana para escolher, e vem com essa gaitinha mixa.

Guilherme quis provar que não era mixa coisa nenhuma, tinha um engaste de pedrinhas faiscantes, som espetacular. O irmão voltou-lhe as costas, com desprezo:

— Palhaço!

Ah, se fosse com ele… E Gustavo passou a comportar-se melhor, na esperança de também ir à cidade.

Um dia o padrinho dele apareceu, saíram. Aplicou o golpe do aniversário. O padrinho, igual a todos os padrinhos do mundo, pensou em oferecer-lhe um blusão alinhado. Recusou, e foram parar na loja de brinquedos. Gustavo olhou superiormente para o monte de coisas que derrotara Guilherme. Sabia escolher, e preferiu logo a metralhadora japonesa. Mas pensou que se cansaria depressa do seu pipoco; trocou-a por um marciano com bateria; os marcianos passam de moda; quem sabe se esse laboratório de química? Não, chega a química do programa. Foi escolhendo, refugando, substituindo. O padrinho consultava o relógio: “Escolhe, menino!”. Era preciso escolher para sempre. E nada lhe agradava para sempre, nada valia verdadeiramente a pena.

Com angústia lembrou-se do irmão, procurou aflito uma coisa no milheiro de coisas e, apontando-a, murmurou:

— Quero aquela gaitinha.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Pedro Nava (Poemas Escolhidos)


ALCAZAR

Para Rachel de Queiroz
Rosa de neve,
estrela expandida
no fim da noite!
Estrela perdida
que tremes no alto
das chapas de vidro
do céu cristalino!
Surges discreta
como os ladrões...

A luz que enlouquece
vem das espiras
que riscam no ar
as cores agudas
do teu espectro!

Tua luz se insinua
nos olhos dos doidos.

— És tu que te infiltras
nas lágrimas turvas
que empastam a cara
dos bêbados tristes.

— És tu que lampejas
no mar que se fecha
ao baque cadente
do corpo silente
dos suicidas.

Como és única e clara
quando cintilas
na franja escura
que o dia dilui,
— no límpido instante
em que te exorbitas
e logo te esvais:
Brilhas tão pouco
no fim da noite
— ciclo irisado,
rosa expandida!
Brilhas tão pouco
que mal consigo...
captar teu lume
num breve segundo
de lucidez,
que presto deslumbra
e também desmaia
como luz perdida
no fim da noite.

VENTANIA

Pro Mário

O vento veio maluco lá do alto do Bonfim
e veio chorando da tristura do cemitério.

Zuniu na praça do mercado
assoviou as mulatas avenida do comércio
e mexeu na saia delas.
Arrancou folha das árvores
poeira sungou do chão
depois virou
                 soprou
                           correu
                                      danou
e entrou feito uma carga na avenida Afonso Pena,

O obelisco cortou ele pelo meio
mas ele foi avoando
e os fios da C.E.V.U. como cordas de viola
vibraram dum som longo
que cobriu Belo Horizonte feito um lamento.

O vento passou desmandado no Cruzeiro
saiu pro campo dobrou a mata
mas de repente
sua disparada para na parede Serra do Curral
e o bicho stopa mas sapeca no morro um sopapo
que estrala que nem jenipapo
que mão raivosa
chispasse num muro curo..

Co-nhe-ceu papudo?

O DEFUNTO

Quando morto estiver meu corpo,
Evitem os inúteis disfarces,
Os disfarces com que os vivos,
Só por piedade consigo,
Procuram apagar no Morto
O grande castigo da Morte.

Não quero caixão de verniz
Nem os ramalhetes distintos,
Os superfinos candelabros
E as discretas decorações.

Quero a morte com mau-gosto!

Deem-me coroas de pano.
Deem-me as flores de roxo pano,
Angustiosas flores de pano,
Enormes coroas maciças,
Como enormes salva-vidas,
Com fitas negras pendentes.

E descubram bem minha cara:
Que a vejam bem os amigos.
Que não a esqueçam os amigos.
Que ela ponha nos seus espíritos
A incerteza, o pavor, o pasmo.
E a cada um leve bem nítida
A ideia da própria morte.

Descubram bem esta cara!

Descubram bem estas mãos.
Não se esqueçam destas mãos!
Meus amigos, olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
Em que sexos demoraram
Seus sabidos quirodáctilos?

Foram nelas esboçados
Todos os gestos malditos:
Até os furtos fracassados
E interrompidos assassinatos.

— Meus amigos! olhem as mãos
Que mentiram às vossas mãos...
Não se esqueçam! Elas fugiram
Da suprema purificação
Dos possíveis suicídios.

— Meus amigos, olhem as mãos!
As minhas e as vossas mãos!

Descubram bem minhas mãos!

Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo,
E até mesmo do meu corpo
As partes excomungadas,
As sujas partes sem perdão.

— Meus amigos, olhem as partes...
Fujam das partes,
Das punitivas, malditas partes ...

E, eu quero a morte nua e crua,
Terrífica e habitual,
Com o seu velório habitual.

— Ah! o seu velório habitual!

Não me envolvam em lençol:
A franciscana humildade
Bem sabeis que não se casa
Com meu amor da Carne,
Com meu apego ao Mundo.

E quero ir de casimira:
De jaquetão com debrum,
Calça listrada, plastrom...
E os mais altos colarinhos.

Deem-me um terno de Ministro
Ou roupa nova de noivo ...
E assim Solene e sinistro,
Quero ser um tal defunto,
Um morto tão acabado,
Tão aflitivo e pungente,
Que sua lembrança envenene
O que resta aos amigos
De vida sem minha vida.

— Meus, amigos, lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
Deste pobre terrível morto
Que vai se deitar para sempre
Calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão

Os penetras escorraçados,
As prostitutas recusadas,
Os amantes despedidos,
Como os que saem enxotados
E tornariam sem brio
A qualquer gesto de chamada.

Meus amigos, tenham pena,
Senão do morto, ao menos
Dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
Sapatos pretos de verniz.
Olhem bem estes sapatos,
E olhai os vossos também.

Fonte:
Jornal de Poesia

Chico Anysio (Frustração)


— Não posso, Míriam. Hoje é impossível. Liga amanhã.

Regina Célia é o seu nome. Está de vestido azul-claro e com os nervos em pandarecos. Toma um copo de água com açúcar, à falta de um tranquilizante alopático. Acredita ter me­lhorado. Precisa dos nervos, hoje, mais do que nunca.

O verão incendeia o subúrbio de Regina Célia. A rua des­calça onde mora avermelha-se pela poeira que o vento joga. Mastiga o almoço sem vontade ou prazer. Belisca, apenas, o que põe no prato.

— Come, menina!

— Tou sem fome, mãe.

— Que sem fome. Come!

Dá mais duas garfadas e repudia o almoço, afastando o prato da sua frente. Nem aceita sobremesa.

— Mais me sobra — diz o pai, puxando pra seu lado a goiabada com queijo de Regina Célia.

Chega a colega. Igualmente de azul, igualmente Regina.

— Vamos?

— É cedo — a colega adverte.

— Lugar de esperar a missa é na igreja.

A colega concorda. Despede-se dos pais com um beijo sem carinho, automático.

— Veja lá a hora que vai chegar.

— Oh, mãe, até parece...

— Antes das onze em casa.

— Tá certo — concorda, aborrecida.

Não gosta de ser tratada como criança na frente das co­legas. Afinal, já tem 17 anos.

Saem de braços dados, sorrindo, felizes, as duas Reginas.

Olavo as espera no ponto do ônibus. Três pontos à frente sobe Reinaldo. Cada um com sua Regina. Viajam em pé até a Praça da Bandeira, onde o ônibus se esvazia da gente que vai para o Maracanã.

— Tá nervosa?

— Hum, hum.

— Bobagem.

Mas está. Não consegue se controlar. Regina Segunda morde e é mordida, no banco de trás.

— Que horas são?

— Quatro horas. É cedo à beça.

— Lugar de esperar a missa é na igreja.

Olavo concorda. Têm as mãos dadas quando o ônibus engole o Aterro.

— Agora estou mais calma.

— Respira fundo três vezes.

Ela respira cinco. É a mesma coisa. Mas diz-se mais calma. De noite estará segura de si, forte, tranquila, como precisa.

Saltam defronte ao cinema. Olavo espia os cartazes de um filme de bangue-bangue, enquanto esperam que o sinal feche para poderem atravessar a rua. Regina Segunda despreza o claro da tarde, preferindo uma atitude de anoitecer, junto com Reinaldo, cabelo liso e penteado para trás.

Há muita gente em volta para que Regina Segunda, agora, continue comportando-se como no ônibus, como em frente ao cinema. Controla-se e controla Reinaldo, impulsivo, faminto.

— Calma. Aqui, não.

— Que que tem?

Reinaldo tem fome, não quer esperar. Regina Célia transpira debaixo do braço, deixando nascer uma mancha antiestética no vestido azul-claro.

— Tá suando às pampas — comenta Olavo.

— Um pouquinho.

O homem ordena que o sigam. Esta ordem não é dirigida a Olavo, Reinaldo, Regina Segunda.

— Tchau, bem.

— Tchau.

Regina Célia desaparece pela porta de vidro. Os três vão ao bar.

— Três cachorros e três laranjadas.

Comem e bebem o que será jantar.

Oito horas.

— Tá na hora.

— Vamos.

Os três se acomodam o melhor que conseguem. Estão, agora, tão nervosos quanto Regina Célia. Agora, sim, entendem o que ela deve estar sentindo.

— Dá um beijinho.

Reinaldo pede, Regina Segunda concede. Olavo repreende aquele comportamento. Ainda mais agora, num momento tão importante. Os dois se controlam. Cada um num canto da poltrona, evitando, principalmente, que as pernas se toquem.

— Trono das cantoras...

Prendem a respiração. O homem de chapéu engraçado faz graça com Regina Célia, tentando acalmá-la.

— O que é que você vai cantar, minha filha?

— "Triste Madrugada".

Na plateia há três respirações presas. O conjunto faz a introdução e ela entra fora do tempo. Escuta-se uma buzina.

— Salve, salve, salve...

O animador muda de assunto, ignorando Regina Célia, que sai chorando do palco.

Na casa da rua descalça, mais do que Regina Célia, mais do que Olavo e do que o casal que se beija, os pais, aborrecidos, desligam a televisão, repudiando o que consideram uma injustiça.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.