quarta-feira, 6 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 260


Carolina Ramos (O Garotão)


A tarde se esvaía, quando o garotão passou pelo casal de velhos.

Aliás, velho é força de expressão. Todo mundo sabe, ou deveria saber que, velhice, na maioria das vezes, é estado de espírito — há velhos jovens e jovens velhos, tudo dependendo da disposição. No caso, seria mais exato dizer — casal de meia idade, que ainda sabia dividir os encantos vespertinos de uma caminhada a dois.

Pois é, mesmo que a tarde estivesse morrente, havia sol a pino na alma daquele garoto de camiseta ampla, bermudas largas, aba do boné cobrindo a orelha esquerda, tênis sem griffe definida e de cordões desatados.

O jovem diminui o passo ao ultrapassar o par grisalho que, ternamente abraçado, seguia o mesmo rumo.

Jogou a pergunta como quem, de improviso, atira uma bola:

— Vocês gostariam de ser jovens como eu?

Após o instante de surpresa ante a inusitada abordagem, o casal sorriu, aprovando a desenvoltura do rapaz que, embora taludo, andaria aí pelos treze ou catorze anos de idade. Por sinal, fase de transição em que os braços e as pernas crescem tanto quanto o próprio ego e as dificuldades de comunicação com os adultos mais se complicam.

— Claro, que gostaríamos de ser jovens novamente, como não?! — respondeu o caminhante, interpretando também o pensamento da mulher.

O garoto estava com a corda toda. Continuou falando:

— Sabe... no outro dia, eu estava na praia com o meu iguana. Pintou gente assim... pra ver o bichinho! Homens, mulheres, velhos, moços, todos viraram crianças!... Igualzinho ao que aconteceu quando também fui até lá empinar a minha pipa com o emblema do Santos. Era todo o mundo de nariz pra cima, doido por uma puxadinha na linha, pra ver a pipa cabecear, lá no alto, presa pelo cabresto! Legal!

Emendou o assunto:

Na aula de ontem, meu professor de português me deu uma nota vermelha... e eu avisei: — Não quero uma nota vermelha... eu quero é nota azul. Aí, ele me perguntou: — Por quê azul, Rodrigo? E então respondi que vermelho é cor de coisa errada, cor de sangue, cor de guerra, de violência... e azul é a cor mais bonita de todas, senão, o céu não seria azul! — concordam? — O professor entrou na minha, abanou a cabeça, me chamou de poeta e me deu uma nota azul, bonita pra caramba! É isso, a gente tem de lutar pelo que quer!

A esse tempo o garotão já adiantara o passo, distanciando-se, embora não o bastante que lhe impedisse de ouvir o que dizia a emocionada senhora:

— Deus te conserve essa alegria, meu filho!

— Obrigado... Tchau...

O aceno de despedida e lá se foi ele, solto nas suas largas bermudas, trauteando um ritmo qualquer, de bem com a vida e em absoluta paz com a humanidade!

Mais jovens, mais leves, o homem e a mulher de meia idade, acompanharam, com olhos carinhosos, a figura mágica daquele garoto que dobrava a esquina, desaparecendo, feliz, no turbilhão do seu tempo.

As primeiras luzes do Natal, que se avizinhava, principiavam a ser acesas.

Pairou no ar uma certeza marota: — para cumprir sua missão, o velho Noel nem sempre precisa de barbas brancas e pode até se chamar Rodrigo!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) VIII


Acenamos ao passado
num gesto de despedida,
o amanhã tão cobiçado
nos espera com mais vida.
- - - - - –

A luz do sol no infinito
brilha sem discriminar,
sobre o bom, sobre o maldito,
pois a meta é iluminar.
- - - - - –

A mãe seu filho defende
mesmo antes do nascimento,
quando idosa, mal entende;
por que cai no esquecimento!
- - - - - –

A morte não fora feita
para em pranto se tornar
e a vida pra ser perfeita
deve à morte germinar.
- - - - - –

Ao deixares tua terra
deixa algo na despedida,
uma mensagem sincera
de agradecimento à vida.
- - - - - –

As duras penas impostas
aos de conduta anormal,
talvez sejam as respostas
por ter praticado o mal.
- - - - - –

Castelos são metralhados
durante uma tempestade,
principalmente os telhados
se estilhaçam sem piedade.
- - - - - –

Da janela da existência
vemos o tempo soltar
um grito com insistência:
– Vou pra nunca mais voltar!
- - - - - –

Dentro das prerrogativas
que pela vida são feitas,
tem muitas alternativas,
porém poucas são perfeitas.
- - - - - –

Embora a luz da humildade
não queira nos aquecer,
procuremos na verdade
seu calor para crescer.
- - - - - –

Muita luta e persistência
tal sopro de um vendaval,
varre com tanta insistência
quem lapida o cabedal.
- - - - - –

Nada tem de tão sublime
quanto a beleza da flor,
o seu perfume suprime
o mais intrigante odor.
- - - - - –

Nunca devemos julgar
sob o prisma emocional,
pois podemos condenar,
sem o amparo racional.
- - - - - –

Nunca tente colocar
o carro à frente dos bois,
pra não ter que suportar
uma decepção depois.
- - - - - –

O bom-senso ao ser responde
dentro do senso comum,
mas se vem, não sabe donde
e o leva a lugar nenhum…
- - - - - –

O que a mãe pro filho diz,
é lição alentadora.
Ele, iniciante, aprendiz,
ela eterna educadora.
- - - - - –

Os motoristas peritos
cautelosos e prudentes,
cometem menos delitos
por não serem negligentes.
- - - - - –

Pagando fora do prazo
muito além do vencimento,
pode haver juros do atraso
sem qualquer ressarcimento.
- - - - - –

Para compor uma trova
não tem limite de idade,
nós mesmos somos a prova,
basta criatividade.
- - - - - –

Pedestres e motoristas
devem andar de mãos dadas,
uns no volante, nas pistas,
outros firmes nas calçadas.
- - - - - -

Pequenas luzes dispersas
na vastidão do universo,
guias nas rotas adversas
se o caminho for perverso.
- - - - - –

Quem ama por interesse,
o amor nunca é verdadeiro,
mesmo que se parecesse
não passa de interesseiro.
- - - - - –

Quem cansado à noite deita
de manhã forte levanta
e o dia de luz se enfeita
num brilho que a vida encanta.
- - - - - –

Quem mente lama respira,
nada à verdade condiz
e acreditam ser mentira
aquilo que o falso diz.
- - - - - –

Saiba sempre ler a vida
nas linhas do cotidiano
e assim nunca seja lida
sua morte por engano.
- - - - - -

Sempre o primeiro sintoma
que a doença apresentar,
é como a flor sem aroma
muito prestes a murchar.
- - - - - –

Sobre o leito, o agonizante,
sente a morte se achegar,
sabe que a qualquer instante
seu mundo pode acabar.
- - - - - –

Tanta dor, quanta saudade,
sente aquele que ficou,
de quem foi pra eternidade
e sequer adeus deixou...
- - - - - –

Um grande passo foi dado
na busca do crescimento,
outro, mais acelerado,
visa o desenvolvimento.
- - - - - –

Vagas lembranças gravamos
de um passado tão distante,
trazer às mãos, procuramos,
velhos passos do imigrante.
- - - - - –

Verdes matas da esperança
vastos campos promissores:
tudo temos como herança
dos nossos antecessores.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Lygia Fagundes Telles (Um Chá Bem Forte e Três Xícaras)



A borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se colaram palpitantes. Desenrolou a tromba. E inclinando o corpo para a frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor.

Maria Camila chegou a estender a mão para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta amarela, com um fino friso negro debruando-lhe as asas.

— Deve ser uma borboleta jovem — disse Maria Camila.

— Jovem? — repetiu a mulher debruçada na janela que dava para o jardim.

— Veja, as asas ainda estão intactas. E está sugando com tamanha força… Haverá tanto suco assim?

— Essa rosa abriu ontem cedo, a senhora lembra? E já está murchando — disse a mulher prendendo com um alfinete a alça do avental.

Maria Camila voltou-se para a janela. Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim. No céu azul-claro, as nuvens iam tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no ar.

— Você ainda não pregou essa alça, Matilde?

— Não sei onde o botão foi parar.

— Pegue outro na minha caixa. Mas agora não! — pediu ela ao ver que a empregada já se dispunha a voltar para o interior da casa. Baixou o olhar até a roseira. — A gente vai clareando à medida que envelhece mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está quase preta.

— E essa borboleta ainda…

— Deixa — atalhou Maria Camila. Uniu as mãos espalmadas no mesmo movimento com que a borboleta unira as asas. Suas mãos tremiam. — Há de ver que a rosa está feliz por ter sido escolhida.

— Mas desse jeito ela vai morrer mais depressa.

— É melhor deixar.

A empregada passou lentamente a ponta do avental no peitoril da janela. Acompanhou com o olhar uma andorinha que cruzou o jardim num voo raso e desapareceu atrás do muro da casa vizinha. Suspirou.

— Acho que essa borboleta já esteve ontem por aqui, a senhora não viu?

Maria Camila concordou com um leve movimento de cabeça. Examinou com espanto as próprias mãos cheias de sardas.

— É a mesma.

— Acostumou — disse a mulher num tom indiferente. Fixou o olhar vadio nos ombros estreitos da patroa. — A senhora não quer que traga o chá?

— Estou esperando a menina.

— Mas a que horas ela ficou de aparecer?

— Às cinco — disse Maria Camila apertando os olhos. Inclinou-se para o relógio-pulseira. E escondeu no regaço as mãos fechadas. — Às cinco em ponto.

Foi emergindo do silêncio da tarde o zunido poderoso de uma abelha. O riso de uma criança explodiu tão próximo que pareceu brotar de dentro do canteiro.

— Essa menina… — E a empregada fez uma pausa para ajustar melhor o pente nos cabelos grisalhos: — Eu conheço?

— Não, não conhece.

— Quantos anos ela tem?

— Uns dezoito.

— Mas então não é menina!

Maria Camila fixou no céu o olhar perplexo. Voltou a examinar o relógio-pulseira. E cruzou os braços tentando dominar o tremor das mãos.

— Desde ontem ela já rondava por aqui. Cismou com essa rosa, tinha que ser essa rosa.

— Trabalhei na casa de um padre que tinha um canteiro só de roseiras brancas. Como duravam aquelas rosas!

Por um breve instante Maria Camila fixou-se de novo na borboleta. Teve uma expressão de repugnância.

— Chega a ser obsceno…

— Mas é sabido que as vermelhas têm mais perfume — prosseguiu a empregada apoiando-se nos cotovelos.

Duas crianças atravessaram a rua aos gritos. A borboleta recolheu precipitadamente a tromba e fugiu num voo atarantado. Uma pétala desprendeu-se da corola e foi pousar na relva. Outra pétala desprendeu-se em seguida e desenhando um giro breve, caiu num tufo de violetas. Maria Camila estendeu as mãos até a corola da flor. Não chegou a tocá-la. Recolheu as mãos e ficou olhando para as veias intumescidas com a mesma expressão com que olhara para a rosa.

— Ela é conhecida do doutor?

— Quem, Matilde?

— Essa moça que vem tomar chá…

— Trabalham juntos — disse Maria Camila passando nervosamente a ponta do dedo sobre a rede de veias. — Ela está fazendo um estágio no laboratório.

— Estágio?

— Sim, estágio.

A mulher ficou pensativa. Pôs-se a coçar o braço.

— E a senhora conhece ela?

— Já vi de longe.

— É bonita?

— Não sei, Matilde, não sei.

— Estágio — repetiu a empregada. — Então é essa que às vezes telefona pra ele.

Alguém iniciou na vizinhança um exercício de piano. O exercício era elementar e tocado sem vontade.

— Deve ser — sussurrou Maria Camila apanhando a pétala que caíra na relva. Levou-a aos lábios que estavam lívidos. — Deve ser.

— Hoje cedo ela telefonou, não perguntei quem era porque o doutor não quer mais que a gente pergunte. Mas reconheci a voz, só podia ser ela.

— São muito amigos. Os velhos, os mais velhos gostam da companhia dos jovens — acrescentou a mulher dilacerando a pétala entre os dedos. Fez um gesto brusco. — Esse menino era melhor no violino, não era?

A empregada fungou, impaciente.

— Nem no violino! A gente ficava com dor de cabeça quando ele começava com aquela atormentação. Diz que a mãe cismou que ele tem que tocar alguma coisa…

— Quem foi que disse?

— A Anita, que trabalha lá. Diz que a mãe fica o dia inteiro atrás dele, dando castigo se ele não estuda. São estrangeiros.

Maria Camila olhou furtivamente o relógio. Abriu e fechou as mãos num movimento exasperado. Manteve-as fechadas.

— Ele tocava melhor violino.

A mulher fez uma careta. E ficou seguindo com o olhar gelado uma adolescente que passava na calçada. Franziu a cara como se enfrentasse o sol.

— Como é que ela se chama? Essa do chá…

O menino interrompeu o exercício. O zunido da abelha voltou mais nítido, fechando o círculo em redor de um único ponto. Maria Camila respirou com esforço.

— Acho que estou gripada.

— Gripada? — E a mulher apoiou o queixo nas mãos. — A senhora está com os olhos inchados. Quer que eu vá buscar uma aspirina?

— Não, não é preciso — disse Maria Camila movendo a cabeça num ritmo fatigado. Encarou a empregada: — Não vai mesmo pregar esse botão? Não vai?

— Mas se não sei dele…

— Pegue um na minha caixa, já disse.

A mulher empertigou-se com solenidade. Passou ainda a ponta do avental na janela, a fisionomia concentrada. Chegou a abrir a boca. E enveredou para o interior da casa.

Maria Camila relaxou a posição tensa. Olhou o relógio, sacudiu a cabeça e fechou com força os olhos cheios de lágrimas. “Que é que eu faço agora?”, murmurou inclinando-se para a rosa. “Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer!…” Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. “Augusto, Augusto, me diga depressa o que é que eu faço! Me diga!…”

A janela abriu-se. A empregada estendeu o braço num gesto digno. A voz saiu sombria.

— Não achei botão igual. Posso pregar este amarelo?

Maria Camila tirou do bolso do casaco o estojo de pó. Examinou-se ao espelho. Consertou as sobrancelhas. Umedeceu com a ponta da língua os lábios ressequidos e fechou o estojo. Ficou com ele apertado entre as mãos. Voltou-se para a janela.

— Pregue esse mesmo.

A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos.

— É o mais parecido que achei.

— Está bem, está bem — repetiu a outra reabrindo o estojo. Passou a esponja em torno dos olhos. Examinou as mãos. — Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado…

— O céu parece brasa, que bonito!

— A gente vai ficando rosada também — disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. E riu de repente: — Acho a vida tão maravilhosa!

— Maravilhosa?

O menino parou de tocar. Maria Camila ficou alerta, os olhos brilhantes, as narinas acesas. Olhou para o relógio. Falou com energia.

— Assim que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.

— Mas se é só a senhora e ela…

— O doutor pode aparecer de surpresa, é quase certo que ele apareça — acrescentou a mulher limpando do vestido os pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia. Levantou-se. Respirava ofegante. — Quero os guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos.

Passos ressoaram na calçada. Quando ficaram mais próximos, a empregada pôs-se na ponta dos pés, tentando ver além do muro da casa vizinha:

— Deve ser ela… É ela! — sussurrou excitadamente. — É ela!

Maria Camila levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles. Antes do Baile Verde. 1970.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 259


A. A. de Assis (O Menino que Nasceu Voando)


Que pena que a memória é curta e o descapricho é grande. Aconteceu muita coisa importante em Maringá ao longo dos 65 em que aqui estou. Os fatos ficaram na lembrança, porém sem anotações quanto a determinados detalhes.

Por exemplo: a história de um menino que nasceu nas nuvens, dentro de um avião. Nos poucos registros a respeito, a primeira divergência é sobre a data: uns dizem que foi no dia 19 de julho de 1957 (data que me parece mais provável), outros falam em 10 de maio de 1958.

A população ouviu pelo rádio a notícia de que um avião da Vasp estava se aproximando de Maringá trazendo a bordo uma cena de cinema: uma jovem senhora entrara em trabalho de parto e precisou ser socorrida pelas aeromoças, que improvisaram algo parecido com cama no corredor da aeronave. Era um daqueles velhos e valentes Douglas DC-3, bimotor que prestou preciosos serviços aos nossos pioneiros.

Correria louca na cidade: uma ambulância com a sirene aberta abrindo caminho na Avenida Brasil. Radialistas, jornalistas, fotógrafos em disparada para não perder o furo de reportagem (televisão ainda não havia por aqui). Curiosos chegando de carro, de moto, de bicicleta, a pé. De repente o antigo aeroporto Gastão Vidigal foi tomado por uma enorme multidão.

Eu lá no meio, junto com o Manuel Tavares (diretor de “A Tribuna de Maringá”) e o fotógrafo Edgar Taborianski, já ensaiando a bela manchete em oito colunas para a edição do dia seguinte. “O menino que nasceu voando”.

O comandante do avião, bastante emocionado, ia informando ao pessoal de terra (creio que só um rapaz que cuidava do aeroporto), sobre o andamento da emergência. Pedia que a ambulância se postasse perto da pista de pouso e que os médicos e enfermeiras ficassem prontos para um procedimento imediato.

Não deu tempo. O bebê veio à luz dentro da aeronave, antes da aterrissagem, com a corajosa e eficiente ajuda das comissárias de bordo e o aplauso dos passageiros.

A história virou notícia nacional. O menino, que já nasceu famoso, foi registrado e batizado em Maringá, com um nome bem adequado: Miguel Vaspeano. Miguel por haver nascido voando, como um anjo; Vaspeano, como homenagem à Vasp, que lhe serviu de maternidade. Informou-se depois que a direção da empresa considerou tão importante o evento, que estaria até disposta a patrocinar os estudos do garoto até a universidade.

Mas veja como o destino às vezes surpreende. Miguel Vaspeano Lepeco fez carreira como piloto de táxi aéreo, voou durante 25 anos e terminou a biografia do mesmo modo como começou: morreu num acidente de avião, aos 52 anos, nas proximidades de Manaus, no dia 13 de maio de 2010. Ele pilotava o avião Sêneca prefixo PT JUV.

Se não há, deveria haver em Maringá uma Rua Miguel Vaspeano.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 16-4-2020)

Fonte:
Crônica enviada pelo autor.

Geraldo Pimenta de Moraes (Poemas Escolhidos)


DOCE INSTANTE...

Quantas vezes se busca pela vida
uma alegria, um bem, uma ventura,
sem nada achar-se, em luta estremecida,
vendo aumentar-se, sempre, a nossa agrura.

E, às vezes, num instante, sem corrida,
sem luta, sem espera e sem loucura,
ditosa e risonha, alma embevecida,
a gente tudo encontra, sem procura.

Que alegria de nós, então, se expande,
com doçura, através de um longo beijo,
num doce instante, que se faz bem grande!

E assim, a gente, em tão feliz ensejo,
recebe, palpitante, alma fagueira,
um Bem, que durar pode a vida inteira!...
****************************************
ENQUANTO ALGUNS...

Enquanto alguns batalham, sem temor,
com alma, com fervor e com respeito,
buscando um mundo bom e mais perfeito,
um mundo cheio de pureza e amor...

Enquanto alguns, com valentia e ardor,
se esforçam, procurando dar um jeito
de eliminar do mundo o desrespeito,
de eliminar do mundo a guerra e a dor...

Enquanto alguns, com seu amor profundo,
fraternidade buscam, neste mundo,
sofrendo, embora, todo escárnio e apodo:

– São muitos os que, em gesto furibundo,
buscam, com negro afinco e vil denodo,
fazer do mundo um mar de lama e lodo!
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FRUSTRAÇÃO

Pela vida alongando, um dia, os passos,
parti, confiante, austero e com ardor,
buscando, à minha frente, os róseos laços,
os róseos laços de um sublime amor...

E, em meus caminhos, só tive embaraços,
espinhos encontrando, em vez de flor...
— Fui enfrentando, assim, negros espaços,
negros espaços de tristeza e dor!...

E hoje, cansado, em minha mente, à toa,
eu sinto a imensa angústia, que povoa
toda a distância dos meus tempos idos,..

E a ferir-me a lembrança ainda vive
um punhado de sonhos vãos, perdidos,
do que eu quis ter na vida, mas não tive!
****************************************

NEM EM SONHO...

Eu sonhava contigo... Estavas linda!
Eras a santa imagem do pecado,
com atração tão doce, tão infinda,
que até fiquei pateta e deslumbrado.

E assim, eu disse a ti: — Sejas bem-vinda
a mim, que por ti vivo apaixonado!
E, como alguém que sai de uma berlinda,
sorridente, avancei para o teu lado...

E quando, todo amor, todo desejo,
quando faminto e louco por teu beijo,
quando, enfim, eu de ti me aproximei,

no instante do teu beijo então gozar,
não sei por que, meu Deus, eu acordei...
— Nem em sonho eu consigo te beijar!...
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O ZÉ TORRESMO

Era um pobre coitado o Zé Torresmo,
tão caolho, tão magro, tão sem trato,
que acreditava até, vivendo a esmo,
estar sobrando neste mundo ingrato.

Sem ter da vida um gesto bom e grato,
por todos desprezado, o Zé Torresmo,
esboçando na mente o seu retrato,
como que perguntava: — "Existo mesmo?..

Será que a minha vida ao mundo importa?…”
E assim, o Zé Torresmo, alma inocente,
fitava o céu, com sua vista torta,

como a dizer a Deus, humildemente,
num gesto triste, pela dor ferido:
"Perdão, Senhor, por eu haver nascido".
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SONETO SEM FIM...

Um soneto eu tentava, então, fazer,
todo inspirado num sublime rosto,
num lindo rosto, lindo de morrer,
— legítima expressão de encanto e gosto...

E esse rosto, que dava gosto ver,
queria ver num meu soneto posto,
quando acontece, então, me aparecer
o anjo divino — a dona desse rosto...

E eis que esse ente querido, um riso aberto,
de mim se aproximou, olhar esperto,
quando eu já tentava o último terceto...

Trêfega, esbelta, alegre e com meiguice,
"abraça-me, vovô!" — ela me disse,
interrompendo, assim, o meu soneto...
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SUBLIME PERFEIÇÃO...

Dos céus merece, como prêmio, a Palma
do Amor, quem nesta vida enfrenta escolhos,
de alegria vestindo, à beira da alma,
toda angústia que vem de seus refolhos.

E assim agindo, com bondade e calma,
sorrir procura para os seus abrolhos.
E os infernos de dor, que esconde na alma,
vai transformando em céu de amor, nos olhos.

É perfeito e se torna quase um santo,
pois sabe disfarçar seu desencanto,
quem tem gestos assim puros e sábios

de afogar sua angústia, seu desgosto,
dentro do amor a lhe florir no rosto,
com um sorriso a lhe bailar nos lábios!
****************************************

VIBRAÇÃO...

E deixa que minha alma, então contente,
sorrindo vibre, no êxtase do beijo
que, para festa desse meu desejo,
teus lábios hão de dar-me, ardentemente!

Todo o meu ser há de tremer, fremente,
ante o prazer infindo, que antevejo,
e em cujo doce e tão sublime ensejo,
hei de sorrir feliz, gostosamente!

De Cupido no Altar, então faremos
as núpcias desse amor sensacional…
e o grito do prazer, juntos, daremos,

como se fora a prece conjugal...
Enfim, nós ambos, eu e tu, seremos
do mundo inteiro o mais feliz casal!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Irmãos Grimm (O Lobo e a Raposa)


Houve, uma vez, um lobo que tinha em sua companhia a raposa, e a coitada da raposa tinha de fazer tudo o que ele queria, pois era mais fraca, por isso, ficaria muito alegre se pudesse livrar-se de tal patrão.

Certo dia, em que estavam atravessando a floresta, o lobo disse-lhe:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas algo para comer, do contrário como-te.

A raposa respondeu:

- Conheço por aqui um sítio no qual há um casal de ovelhinhas. Se desejas, podemos apanhar uma delas.

O lobo gostou da ideia e concordou. Foram até lá e a raposa furtou a ovelhinha, entregou-a ao lobo e afastou-se.

O lobo devorou-a num abrir e fechar de olhos mas não se satisfez, queria comer também a outra e foi buscá-la. Mas foi tão desastrado que a mãe da ovelhinha percebeu-o e desandou a berrar e a balir tão fortemente, que os camponeses vieram correndo. Lá encontraram o lobo e o espancaram, tão rudemente, que o pobre ficou reduzido a lastimável estado. Mancando e uivando, conseguiu arrastar-se para junto da raposa.

- Pregaste-me uma boa peça! - disse ele - Eu quis apanhar o outro cordeirinho e vieram os camponeses, que me encheram de pancadas.

- E tu, - respondeu a raposa - por que és tão guloso?

No dia seguinte, voltaram ao campo e o lobo disse:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas qualquer coisa para comer, do contrário como-te.

- Conheço um sitiozinho aqui por perto, cuja dona hoje à tarde vai fazer bolinhos. Se quiseres podemos ir buscar alguns.

Foram até lá e a raposa esgueirou-se em torno da casa, tanto espiou e farejou que conseguiu descobrir o prato, furtou seis bolinhos e levou-os ao lobo.

- Eis aqui o que comer! - disse, e afastou-se para os seus afazeres.

O lobo engoliu os seis bolinhos de uma vez, dizendo:

- Chegam apenas para aumentar a vontade.

Dirigiu-se à casa, puxou o prato logo de uma vez; este caiu e ficou em mil pedaços, fazendo um barulhão dos diabos. A mulher correu para ver o que acontecia e descobriu o lobo, pôs-se a gritar chamando mais gente que, sem dó nem piedade, desandou a espancar o lobo até mais não poder. Este, mancando das duas pernas, saiu gemendo e foi ter com a raposa.

- Que boa peça me pregaste! - gritou choramingando - os camponeses pegaram-me e curtiram-me a pele sem dó nem piedade!

- Mas, - respondeu a raposa - por que és tão guloso?

No terceiro dia, tendo saído juntos, o lobo arrastava-se penosamente, assim mesmo disse:

- Pelo ruivo, vê se me arranjas qualquer coisa para comer, do contrário como-te.

A raposa respondeu:

- Conheço por aqui um homem que matou uma vaca e guardou a carne salgada dentro de um barril, na adega. Vamos buscá-la.

- Sim, - disse o lobo - mas eu quero ir junto contigo para que me ajudes, do contrário não poderei fugir.

- Como quiseres! - disse a raposa.

Foi mostrando-lhe o caminho e as passagens ocultas que por fim os levaram à adega. Havia lá grande quantidade de carne, e o lobo, esfaimado, atirou-se imediatamente a ela, pensando: "Não largarei tão cedo!"

A raposa também comia a valer, mas não deixava de olhar em volta, correndo de quando em quando para o buraco pelo qual haviam entrado a ver se estava ainda bastante delgada para passar por ele. O lobo, intrigado, perguntou-lhe:

- Explica-me, cara raposa, por que é que corres de cá para lá e pulas para dentro e para fora?

- Tenho, naturalmente, de espiar se vem alguém! - respondeu a espertalhona. - Mas aconselho-te a não comer demais.

- Ora, - disse o lobo - não sairei daqui enquanto não esvaziar o barril.

Nesse ponto, o camponês, que ouvira os saltos da raposa, desceu à adega, assim que o viu, a raposa deu um pulo para fora do buraco. O lobo quis fazer o mesmo, mas tanto se empanturrara que seu ventre enorme não conseguiu passar pelo buraco e ficou lá entalado.

Então o camponês pegou um pau e bateu-lhe tanto que o matou. A raposa, porém, fugiu para a floresta, muito feliz por ter-se livrado finalmente daquele glutão.

Fonte:
Contos de Grimm

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 258


Olivaldo Júnior (Meu Reino por um Álcool em Gel!)


(Crônica premiada em 3º Lugar no I Concurso Literário Virtual da ACL – Academia Virtual Contemporânea de Letras – Isolamento Social - Coronavírus)

Toninho era obcecado por sua saúde. Mais especificamente pela falta de saúde da qual poderia ser vítima. Portanto, os amigos o tinham apelidado de “Toninho Drogaria”, pois o cara não saía da farmácia. Era, praticamente, o médico informal da família, o curandeiro-mor da galera, o pajé improvisado da taba, digo, do bairro em que morava. Assim, quando ouviu na tevê que o coronavírus estava de malas prontas para o Brasil, desesperou-se em nível hard.

Baixo, gordo, de cabelos pretos, Toninho era o típico gordinho simpático e, assim que soube do inimigo que o País estava prestes a enfrentar, tratou de se mexer e se informar sobre a origem do perigo, seus sintomas, formas de contágio e táticas de enfrentamento, que, dentre outras, consistia basicamente em evitar abraço, beijo e aperto de mão, assim como lavar as mãos e usar álcool em gel quando as mãos não estiverem propriamente sujas, como proteção.

“Hum... Álcool em gel, eu usava era para acender a churrasqueira...”, pensou com seus botões nosso Toninho. “Preciso estocar esse produto! Vai que... Nunca se sabe!”. Mas o que Toninho não sabia era que, assim como ele, outros brazucas tinham tido essa ideia. A mãe de Toninho, por exemplo, não tinha pensado em estocar álcool, não, mas em estocar comida e produtos de limpeza. Dona Lúcia estava convencida disso. E Toninho só pensava em álcool.

− Mãe, tô saindo para comprar álcool! Quer carona pro mercado?, falou, preocupado, já na porta de casa, para a mãe, que já vinha armada de sacolas, ecobags, em suas mais variadas cores e padronagens, pois a compra seria farta.

− Cê me deixa no Mercado Novo, filho, que eu me viro de voltar de Uber.

− Sussa, mãe. Eu vou comprar todo o álcool que eu puder, hahahahaha!

− De fome, nós num morre, não, filho!

− Nem de falta de álcool, mãe. Eu garanto!

E, ao chegar ao tal mercado, Dona Lúcia, munida de suas bags, viu o que seria chamado de caos, apocalipse, ou fim do mundo, em plena tarde de início de outono. Era um tal de acotovelar o próximo e carregar os carrinhos com tudo o que não fosse imediatamente perecível, a fim de fazer um estoque para a Terceira Guerra Mundial, digo, para a fase de quarentena, que, a julgar por aquelas compras, duraria quarenta meses, ou quarenta “séculos”.

“Acho que eu vou ter trabalho!”, falou para si mesma arregaçando as mangas nossa frágil Dona Lúcia, receosa pelo que aquela simples tarde de compras poderia vir a lhe custar.

Toninho, por sua vez, havia chegado à melhor farmácia da Cidade, a “Beguine Dodói”, que estava tão lotada quanto o mercado. As pessoas estava alucinadas, sem limites.

Assim, ao avistar uma prateleira, no canto esquerdo de quem entra, cheinha de álcool em gel, Toninho se alegrou. Mas, como um filme de Almodóvar, ou algum equivalente, conforme Toninho se aproximava da prateleira, foram surgindo clientes tão afoitos quanto ele em seu caminho, fazendo com que um mero corredor se transformasse num verdadeiro paredão de fuzilamento, num movimento surreal de pessoas que deveriam manter distância.

− Mulheres deveriam ser poupadas dessa fila!, gritou uma senhora, não de idade, mas de roupa de ginástica, toda cheia de si, dondoca dos trópicos.

− E eu, que tenho mais de sessenta?! Quero meu álcool primeiro!, disse o vovô que, com todo o gás que a melhor idade lhe dava, sopapeou dois.

Toninho foi se enervando e, como se fosse um Superman sem capa e sem cueca por cima da calça, com toda a força que um hipocondríaco é capaz de gerar, deu seu “grito do Ipiranga”, seu grito de guerra em busca de paz:

− Um álcool! Um álcool! Meu reino por um álcool em gel!

Shakespeare, nessa hora, se mostrou revitalizado em sua glória, lá no Céu dos Dramaturgos. Uma fala de Ricardo III tinha sido parafraseada por um pobre brasileiro que tudo o que queria era álcool em gel para as mãos.

Tumulto ainda maior. Ninguém demonstrou a menor piedade por ninguém. O alvo era comprar seu frasco de álcool em gel e que se danasse o parceiro.

Dona Lúcia, por sua vez, também se esfalfava ao disputar um saco de arroz com uma vizinha. E, ao contrário de Toninho, Dona Lúcia nem pôde evocar Sir William Shakespeare. 

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Texto enviado pelo autor.