quinta-feira, 25 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 303


Rachel de Queiroz (Um Sonho)


NÃO ERA UM PESADELO, não dava angústia nem medo, mas sonhei que estava morta. Creio que morta de muito, podia dizer mumificada, mas não: estava era como que transformada em terra, tendo de gente apenas a forma e essa mesma se desfazendo aos poucos. Virada numa espécie de estátua de barro e areia, jogada numa elevação nua do solo, num leito de seixos miúdos, sem lhes sentir contudo as asperezas, porque afinal a nossa substância, a dos seixos e a minha, era quase a mesma. Exposta ao sol e à chuva, os cabelos eram como ervas secas, com as raízes mais secas ainda se afundando no crânio argiloso, os braços de terra dura atirados em cruz, as pontas dos dedos se esfarinhando, o nariz, as orelhas, começando a se esbeiçar. Dentro do peito oco uma pedra jazia de encontro à espinha terrosa — e aquela pedra era o meu coração.

Claro que, estando morta, eu não tinha consciência nem sentidos; a pessoa que via aquele monte de terra com forma de gente, cuja poeira o vento levantava um pouco, essa pessoa não sei quem era. Nem seria um desdobramento da morta, nem sei com que olhos eu me enxergava. Era antes uma percepção que, não sendo consciente, também não era sequer subconsciente, ficava mais abaixo disso, era uma percepção elementar, vaga e mofina, sem sentido de dor nem de nada, apenas aquela como intuição de que eu estava presente, de que eu era.
 
A pura sensação da presença, apenas, desacompanhada de qualquer outra.

E então começou a chover. A princípio a água peneirava em cima da forma ressequida, ia-se embebendo nela, e os contornos esbatidos se acusavam, criando até uma ilusão de vida. Mas à medida em que a chuva engrossava, a água escorria pela face do vulto de terra e ia carregando consigo um pouco dessa terra e, tanto a face, como os dedos, como os contornos do corpo, aos poucos iam se apagando, se dissolvendo, arrastados pela chuva. Passado um tempo, já não havia mais silhueta humana no vulto que se reduzira a um montão de terra, oblongo, como os que se erguem por cima das covas recentes. Parte da terra formada no que tinha sido eu, arrastada pelos regatos da chuva, ia ficando depositada no caminho, em alguma depressão; a outra parte, que a correnteza apanhara com mais força, era carregada até um grande prato d’água que ficava próximo e não era lago nem mar, antes um alagadiço de águas mortas, com raízes negras no fundo de iodo, ramos e folhas verdes emergindo em ilhas redondas, na superfície.

Por fim, do meu vulto deitado naquele cabeço de terreno não restava mais nada senão alguns montículos irreconhecíveis. E, com a substância dele, também se fora aquela sensação de vida elementar, aquele sentido de presença que, de certo modo, testemunhara o sonho. E o limo e a água e as folhas do alagadiço, já não mais açoitados pela chuva, tornaram a dormir, num grande silêncio.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 3


AUTO-RETRATO

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;

Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;

Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,

Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.
****************************************

BACANAL


“Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelinho da mascarada
A gargalhar em doido assomo...
Evoé Momo!
****************************************

BOI MORTO


Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto.
Boi morto, boi morto, boi morto.

Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! –
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto.
Boi morto, boi morto, boi morto.

Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto.
Boi morto, boi morto, boi morto!
****************************************

CABEDELO


Viagem… roda do mundo
Numa casquinha de noz:
Estive em Cabedelo.
O macaco me ofereceu cocos.
Ó maninha, ó, maninha,
Tu não estavas comigo!...

- Estavas?...
****************************************

CANÇÃO DO VENTO


O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de tudo.
****************************************

CONFISSÃO


Se não a vejo e o espírito a afigura,
cresce este meu desejo de hora em hora...
Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,
O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora.

Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura...
Abrir-lhe o incerto coração que chora,
mostrar-lhe o fundo intacto de ternura,
agora embravecida e mansa agora...

E é num arroubo em que a alma desfalece
de sonhá-la prendada e casta e clara,
que eu, em minha miséria, absorto a aguardo...

Mas ela chega, e toda me parece
tão acima de mim.., tão linda e rara...
Que hesito, balbucio e me acovardo.
****************************************

CONSOADA


Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável*),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
_________________________
Nota:
* Caroável – que procura ser amável (através de palavras ou gestos); afável, gentil, afetuoso.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 302


Antonio Roberto de Paula (Chutes, Pedaladas e Outros)


E abrindo a porta da velha edícula, abre o arquivo de memórias. Lágrimas serenas brotam. Ele não sabe identificá-las, não consegue sequer saber por que está chorando. É a liquidez da saudade gerada pela solidez de uma história, ele imagina. No cenário do passado, destacam-se velhas bolas de capotão, no canto, murchas, há tempos sem levar um chute.

Então, enquanto segura a bola e desliza os dedos sobre os gastos gomos, amigos imaginários, crianças saídas de uma velha história vêm visitá-lo e com eles vai para um campinho de terra batida, todos descalços, as traves de bambu. Uma voz vem de bem longe, no momento em que se prepara para desferir um potente arremate em direção ao gol.

É a sua mãe que está chamando para ir para casa. Ela sempre chamava uma, duas, três vezes. Jogava bola como se o dia seguinte não fosse existir. Havia uma necessidade premente de ocupar aquelas horas, de não deixar que elas escorressem sem que fossem usadas em sua totalidade e intensidade. Era preciso ter todo o tempo como se o amanhã estivesse muito distante.

Parado em meio a velhos móveis e objetos, ele traça em instantes sua linha do tempo. Deixou tanto e tantas coisas para trás e agora, num simples gesto de abrir uma porta, trouxe tudo à sua frente. A bicicleta enferrujada, encostada na parede. Como ela era enorme! Para subir, ele precisava pô-la no chão.

Outras vezes, seu pai a segurava até que conseguisse se equilibrar. O prazer de pedalar por ruas poeirentas, de estar com a turma em corridas arriscadas e excitantes. E agora ele acrescenta: corridas inesquecíveis.  Ele chega a sorrir ao recordar os tombos e, sem pensar, toca a cicatriz no cotovelo, eterno carimbo de um tempo.

Uma cômoda com gavetas emperradas e entreabertas e cadeiras manquitolas ainda se sustentam e amparam objetos e papéis.  Gibis espalhados com tantos heróis assassinados pelas editoras, que hoje os mais jovens riem dos pomposos nomes daqueles que mantinham a lei e a ordem do planeta e os sonhos das crianças. Álbuns incompletos de figurinhas. Espaços em branco, destinados aos craques, as tais figurinhas carimbadas. Cadernos de letras e números ingênuos. Revistas com fotos em preto e branco e textos quilométricos. Um quadro de Nossa Senhora coberto pelo pó.

Ele sai, fecha a porta. Olha mais uma vez para aquele pequeno lugar que ficou no tempo. A porta carcomida, como de resto quase todas as tábuas, a janelinha de vidros trincados...

Ele ouve sua mãe novamente o chamando. Estou indo, mãe, ele responde: “Estou sempre indo e vindo nessas histórias, mãe”.


(Do livro de Antonio Roberto de Paula ´- “Diário dos Meus Domingos”, 2011 – textos publicados no jornal O Diário do Norte do Paraná de 2006 a 2009)

Fonte:
Museu Esportivo (crônicas)

Prof. Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 9


Aceita o peso da cruz
e ensina a qualquer pessoa...
Que a intensidade da luz
é mais forte em quem perdoa!
- - - - - -
A dor e o pranto eu diviso,
às vezes, num mesmo rosto,
quando vejo o falso riso
que há no riso do Sol posto!
- - - - - -
Ao longe, um gemido e um canto
das nuvens fechando as portas:
É a tarde bebendo o pranto
dos olhos das horas mortas!
- - - - - -
Aos ritos de cada galho,
a luz do sol, se extasia,
bebendo as gotas de orvalho
dos olhos da noite fria!
- - - - - -
A saudade, sem alarde,
num gesto solto e bonito,
se abraça aos braços da tarde
que cochila no infinito!
- - - - - -
A vida, é um mistério ingente:
Ser feliz, é o sonho meu...
Dá-nos tudo!... E, de repente,
toma aquilo que nos deu!
- - - - - -
Como eu ponho a mão na massa,
sinto a angústia e o desprazer
de quem sente a dor que passa,
alguém, que em paz, quer viver!
- - - - - -
Curvado e já bem velhinho,
arrastando os pés na estrada...
Busca o andarilho sozinho,
as mãos de Deus e mais nada!
- - - - - -
De eterno saber profundo,
Deus pôs, em forma de luz...
Todas as bênçãos do mundo,
nos braços da mesma cruz!
- - - - - -
De volta à praça, onde um dia,
pulei no chão das calçadas...
Eu a noite e a nostalgia,
caminhamos de mãos dadas!
- - - - - -
Em meio a tantos deslizes,
sinto na vida que passa...
Que no pão dos infelizes
falta ternura na massa!
- - - - - -
Esquece as mágoas que vão
e abraça as dores que vêm,
que o silêncio do perdão
põe voz na vida de alguém!
- - - - - -
Fui rever meu chão amado,
que há muito tempo eu não via;
chorei, beijando o passado
e as mãos da casa vazia!
- - - - - -
Há hiatos e há mil ditongos,
reticências, fantasias...
Nas horas dos sonhos longos
das velhas noites vazias!
- - - - - -
Lágrima boba, caída,
que em silêncio, não se explica...
Pode ser mágoa retida
que aos olhos se justifica!
- - - - - -
Madrugada!... E. eu tento vê-las;
mas é noite, e um negro véu,
com ciúme das estrelas,
esconde todas no céu!
- - - - - -
Mesmo apesar da distância,
há uma voz que não me irrita:
Quando escuto a minha infância,
tão pobre, mas tão bonita!
- - - - - –
Não faça jura pequena,
compromisso não quer pressa;
promessa, só vale a pena,
quando se paga a promessa!
- - - - - -
Na onda em que tu navegas,
eu não me arrisco jamais...
Meu medo é que as ondas cegas,
se percam na volta ao cais!
- - - - - -
Num choro triste, incontido,
por tanta flor que nos deu...
Chora o galho entristecido,
beijando a flor que morreu!
- - - - - -
O uirapuru faz a festa
com seu canto meigo e doce;
se não for rei da floresta,
mas canta como se fosse!
- - - - - -
O velho nauta, em seus passos,
olha o céu, põe-se a vogar...
Como se a força dos braços,
fosse a das ondas do mar!
- - - - - -
Por mais que a sorte indiscreta,
acesse a minha crendice...
Mais creio, que não deleta
meus sonhos da meninice!
- - - - - -
Quando a saudade me aperta,
sozinho... E, na tarde morta...
Se o amor, deixa a porta aberta,
a solidão fecha a porta!
- - - - - –
Se a infância, não se refaz,
meus sonhos, tento revê-los...
Beijando o branco da paz
pintado nos meus cabelos!
- - - - - -
Semeia flores... Semeia
e afasta qualquer temor...
Quem incensa a dor alheia,
perfuma as mãos do Senhor!
- - - - - -
Senhor, teu perdão na cruz,
ante os martírios da dor...
Mostrou ao mundo sem luz
a divina Luz do amor!
- - - - - -
Sentindo que a idade avança
sem me causar empecilho,
ergo uma estátua, à esperança,
e outra, ao meu tempo andarilho!
- - - - - –
Sozinho, nas noites calmas,
sempre escuto em meu portão,
o vento batendo palmas
nas sombras da solidão!
- - - - - –
Velho mar, tu não te acalmas;
há culpas no teu penar?...
Tu tens a angústia das almas
na angústia do teu cantar!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018. 
Livro gentilmente enviado pelo autor.

Humberto de Campos (Mamãe)


Chapelinho de palha de grandes abas e de grandes fitas atirado para a nuca e preso ao queixo, em baixo, por um elástico de seda que lhe flagiciava as carnezinhas tenras; calcinha pelo joelho, cinto de mulher e bengalinha à mão, vai o Antoniquinho, com os seus três anos de idade, pela rua Gonçalves Dias, arrebatado pela pressa elegante da sua mamãe.

Seguro pela mão esquerda, com a bengalinha na direita, debalde procura o pequenito deter-se diante das vitrinas, para ver os manequins, os macacos de veludo, os ursos de pelúcia, os cavalinhos de pau, as coisas galantes ou vistosas que lhe encantam os olhos. A boquita quase do tamanho do pipo de borracha de que prescindira no ano anterior, não se cansa de papaguear. As suas perguntas, que são as mais ingênuas e atrapalhantes, ficam, porém, sem resposta. D. Odette vai, apressada, sem saber mesmo o motivo, e não pode prestar atenção, ao mesmo tempo, à gentileza dos conhecidos, que a saúdam atenciosos, e à insaciável curiosidade do Antonico.

De repente, com a atenção despertada por um rico vestido de passeio, a moça estaca, sem abandonar a mão do pequeno, diante de um mostruário de modista. Desinteressado das modas, Antonico prefere olhar uma vitrina da casa de flores e aves, que fica ao lado, e em que se vê, perto de um casal de grandes galinhas pretas, alguns ovos de raça. Sem outra coisa a perguntar no momento, o pirralho ergue os olhos muito negros e muito vivos, indagando, em voz cantada e doce, como a de um anjo:

- Mamãe, galinha preta põe ovo branco?

D. Odete não lhe responde; toma-lhe da mãozinha tenra, miúda como um jasmim, e parte, de novo, apressada. Adiante, porém, com a rapidez da marcha, Antonico atrapalha-se com a sua bengala de dois palmos de cumprimento, enfia-a entre as perninhas nuas, tropeça, rodopia, e vai ao chão, esfregando os joelhinhos no asfalto. Vem-lhe uma vontade de chorar, mais do susto do que da queda. O beicito treme, abotoando num cravo. D. Odete prevê, porém, o berreiro, suspende-o do solo pela mão, e infunde-lhe coragem, ânimo, dignidade, sacudindo-lhe com o lenço o joelhinho escoriado:

- Não chore, meu filho, não chore!

E sem dar pelo que dizia:

- Seja "homem", como sua mãe!

Fonte:
Humberto de Campos. Serpente de Bronze.

Lançamento do Livro “Clássicos de Fantasma”

Desta vez, as editoras Ex Machina e Sebo Clepsidra apresentam sua primeira coedição: a mais completa antologia de contos de fantasma já produzida em língua portuguesa, cobrindo um amplo espectro do cânone ocidental, assim como uma seleção de oito obras nacionais (que por si só já renderiam um volume).

São 26 narrativas ao todo, muitas das quais inéditas em português. Além da alentada introdução do professor e especialista em Literatura Fantástica Alexander Meireles da Silva, todos os contos são acompanhados de um breve texto sinóptico de abertura elaborado para contextualizar o autor e a obra em questão.

A Antologia

A antologia conta com a organização de Alexander Meireles da Silva (que também assina a extensa introdução, com 25 páginas que cobrem toda a história do gênero), e a edição de Bruno Costa, o idealizador e editor da mais completa reunião dos contos de H.P. Lovecraft já realizada em língua portuguesa, o projeto de Literatura/ficção que conquistou a maior arrecadação do Catarse em 2016.

O livro terá 360 páginas em papel Pólen light (levemente amarelado para tornar a leitura mais confortável), seu tamanho será de 16 cm de largura por 23 cm de altura e a encadernação será em capa dura para garantir sua durabilidade.

A tradução é de Marta Chiarelli, veterana profissional com farta experiência na literatura fantástica.

Trata-se, portanto, da mesma equipe responsável pela antologia Contos clássicos de vampiro (2012), seu projeto mais bem-sucedido, cuja edição foi selecionada pelo PNBE e adotada como parte do currículo de centenas de escolas em todo o país.

A essa equipe junta-se o editor Cid Vale Ferreira, que traz sua experiência de 16 anos de trabalho no mercado editorial e a expertise de sua especialização em edição de obras góticas e de horror à frente da editora do Sebo Clepsidra.

A seleção abarca desde narrativas da Antiguidade e da Idade Média até textos do século XX. Os critérios que determinaram a entrada de cada narrativa na antologia levaram em conta sua influência nesse filão literário e/ou sua capacidade de ilustrar algum aspecto dessa mesma tradição. Embora alguns dos contos que figuram nessa edição sejam comumente antologizados (justamente por serem incontornáveis devido à sua qualidade e ao lugar que ocupam no cânone do gênero), procuramos também dar lugar àquelas narrativas mais obscuras e raras que o leitor não encontrará em nenhuma outra obra do gênero.

Contos do Livro
O fantasma na literatura estrangeira
A casa assombrada (c. 100 d.C.) | Plínio, o Jovem (62-114 d.C.)
O causo de Thorsteinn, o Tremedor (c. 1390) | Anônimo islandês do séc. XIII
O monge do horror; ou, o conclave de cadáveres (1798) | Anônimo inglês do séc. XVIII
A casa do juiz (1891) | Bram Stoker (1847-1912)
Ligeia (1838) | Edgar Allan Poe (1809-1849)
A estrada enluarada (1907) | Ambrose Bierce (1842-1914)
O fantasma da boneca (1896) | F. Marion Crawford (1854-1909)
O fantasma perdido (1903) | Mary Eleanor Wilkins Freeman (1852-1930)
O papel de parede amarelo (1892) | Charlotte Perkins Gilman (1860-1935)
Kerfol (1916) | Edith Wharton (1862-1937)
Relato de alguns incidentes estranhos na Rua Aungier (1851) | J. S. Le Fanu (1814-1873)
O riquixá fantasma (1885) | Rudyard Kipling (1865-1936)
Toque de pesadelo (1900) | Lafcadio Hearn (1850-1904)
Toque o apito e virei ao seu encontro, rapaz (1904) | M.R. James (1892-1936)
Um Relato da Aparição de Mrs. Veal (1706) | Daniel Defoe (1661-1731)
Julgamento por Assassinato (1865) | Charles Dickens (1812-1870)
Corações perdidos (1904) | M.R. James (1892-1936)
A esquina feliz (1908) | Henry James (1843-1916) 

O fantasma na literatura brasileira
Assombramento (1898) * Afonso Arinos (1868-1916)
As ruínas da Glória (1861) * Fagundes Varela (1841-1875)
O impenitente (1893) * Aluísio Azevedo (1857-1913)
A cadeira (1908) * Veiga Miranda (1881–1936)
Confirmação (1914) * Gonzaga Duque (1863-1911)
Os três círios do triângulo da morte (1922) * Moacir de Abreu (?-?)
A sombra (1926) * Coelho Neto (1864-1934)
A pantasma (1945) * Valdomiro Silveira (1873-1941)
 
Pode ser acessada aqui: https://www.catarse.me/fantasmas

Fontes:
Texto enviado pela Editora Sebo Clepsidra
https://www.catarse.me/fantasmas

terça-feira, 23 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 301


Altino Afonso Costa (Minhas Mãos)


Quem viu minhas mãos macias, juvenis, ágeis, tecendo as coisas da vida, e hoje as vê escuras, pigmentadas, com a pele enrugada pelo tempo, exibindo veias saltadas, esclerosadas, denunciando a decadência dos tecidos, não consegue imaginar as mãos trêmulas e cansadas que afaguei como médico, aliviando as dores alheias e colocando um pouco de calor humano em mãos desesperadas.

Passei a minha vida inteira com roupas brancas, andando pelos corredores dos hospitais e da vida, calcando o chão apressadamente com meus sapatos brancos, levando alívio e consolo aos que sofriam as dores do corpo e as angústias da alma.

Não conseguirei repousar, enquanto não vier o último instante, que aguardo com temor e ansiedade, na obscuridade que já vislumbro.

Estado de solidão, caminho que não tem fim; horizonte que se afasta cada vez mais, numa fuga que não tem razão de ser.

Quem viu minhas mãos e as vê agora, num gesto de pedir solidariedade, não sabe que a vida é um eterno entrelaçar dos dedos, que procuram quebrar a solidão e não conseguem.

Essas mãos que só servirão daqui a pouco para pedir proteção aos que passarem pelo meu caminho, num gesto de adeus tardio, enquanto a tarde cai e a noite não tarda a chegar, para o longo ocaso e o abraço misterioso do grande silêncio...

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas: crônicas e poemas. Paranavaí/PR: Olímpica, 2001.
Livro gentilmente enviado por Dinair Leite.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 18 - Solidariedade

Solidariedade é ato de reconhecimento e empatia pela condição do outro. Tem o sentido de responsabilidade recíproca. Ser solidário é compartilhar, acolher, ajudar. A solidariedade torna-se evidente nos casos de catástrofes, de infortúnio coletivo, mas ela deve estar presente em todos os momentos das pessoas, na realidade do cotidiano.

Vamos todos dar as mãos,
agir com sinceridade,
para sermos bons irmãos
em qualquer atividade.
Maria Diva Fontes Rico - SP

Não há fortuna guardada,
que pague o gesto de quem,
divide o seu quase nada
com outro que nada tem.
José Ouverney - SP

Já vi gentileza e afeto
entre os que dormem no chão:
um maltrapilho, sem teto,
com o outro partir seu pão!
Myrthes Mazza Masiero - SP

Vi o poder da união
num grupo que construía,
em forma de mutirão,
sua própria moradia.
Aurolina de Castro - AM

Às vezes o poeta, não encontrando a solidariedade, prefere refugiar-se em seu mundo subjetivo. E para melhor encarar a dureza da realidade, só lhe resta apelar para a fantasia.

Sem ter ninguém solidário
nos momentos mais tristonhos,
eu fui morar solitário
no castelo dos meus sonhos.
Rodrigues Neto - RN

Nestes tempos tão medonhos,
tão tristonhos, tão fatais,
estrangularam meus sonhos
como se fossem mortais.
Rodrigues Neto - RN


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.

A Literatura Portuguesa (Trovadorismo) II


CANTIGAS DE AMIGO


As cantigas de amigo focalizam o outro lado da relação amorosa entre ele e uma dama: o fulcro do poema é agora representado pelo sofrimento amoroso da mulher, em geral pertencente às camadas populares (pastoras, camponesas, etc.). O drama é  o da mulher, mas quem ainda compõe a cantiga é o trovador.

Massaud Moisés diz que o “(...) trovador vive uma dualidade amorosa, de onde extrai as duas formas de lirismo amoroso próprias da época: e o espírito, dirige-se à dama aristocrática; com os sentidos, à camponesa ou à pastora. Por isso, pode expressar autenticamente os dois tipos de experiência passional, enquanto ele próprio, e enquanto a mulher que por ele desgraçadamente se apaixona. É digno de nota que essa ambiguidade, extremamente curiosa ainda como psicologia literária ou das relações humanas, não existiu antes do trovadorismo nem jamais se repetiu depois”.

O “eu-lírico” (quem fala) é a própria mulher, dirigindo-se em confissão à mãe, às amigas, aos pássaros, aos arvoredos, às fontes, aos riachos. O tema da confissão é sempre uma paixão não correspondida, mas a que ela se entrega de corpo e alma.

Traduz um sentimento espontâneo, natural e primitivo por parte da mulher, e um sentimento don juanesco e egoísta por parte do homem, que geralmente está “(...) no fossado ou no bafordo, isto é, no serviço militar ou no exercício de armas. Por isso, a palavra amigo pode significar namorado e amante”.

Trata-se de uma poesia de caráter narrativo descritivo e se classifica de acordo com o lugar geográfico e as circunstâncias em que decorrem os acontecimentos (serranilha, pastorela, barcarola, bailada, romaria, alva ou alvorada - surpreende os amantes no despertar dum novo dia, depois de uma noite de amor).

CANTIGAS DE ESCARNIO E DE MALDIZER

A Cantiga de Escárnio revela uma sátira que só constrói indiretamente, por meio da ironia e do sarcasmo, usando palavras ambíguas, de duplo sentido.

Na Cantiga de Maldizer, a sátira é feita diretamente, com agressividade, com palavras chulas e muitas vezes obscenas. Em geral escritas “(...) pelos mesmos trovadores que compunham poesia lírico-amorosa, expressaram, como é fácil depreender, o modo de sentir e de viver próprio de ambientes dissolutos, e acabaram por ser canções de vida boêmia (...) poesia “forte", descambando para a pornografia ou o mau gosto, possui escasso valor estético, mas em contrapartida documenta os meios populares do tempo, na sua linguagem e nos seus costumes, com uma fragrância de reportagem viva”.

Em geral, cultivadas por jograis de “má vida”, eram acompanhadas pelas soldadeiras (= mulheres a soldo), cantadeiras e bailadeiras, de vida dissoluta que faziam coro com as “chulices” presentes nas letras das canções.

CANCIONEIROS

Cancioneiros são coletâneas de canções, compiladas por ordem e graça de algum mecena ou soberano. Dos vários cancioneiros que existiram, três merecem destaque:

1) Cancioneiro da Ajuda, composto no reinado de Afonso III (fins do século XIII), o que exclui a contribuição de D. Dinis (reinou entre 1268 e 1325 e foi chamado Rei Trovador); contém 310 cantigas, quase todas de amor;

2) Cancioneiro da Biblioteca Nacional (também chamado Colocci-Brancuti, homenagem a seus dois possuidores italianos, dos quais Brancuti foi o último), é, uma cópia italiana do século XVI, possivelmente de original do século anterior; contém 1647 cantigas, de todos os tipos, e engloba trovadores dos reinados de Afonso III e de D. Dinis;

3) Cancioneiro da Vaticana (o nome lhe vem de ter sido descoberto na Biblioteca do Vaticano, em Roma), também cópia italiana do século XVI, de original do século anterior, inclui 1205 cantigas de escárnio e de maldizer, de amor e de amigo.

PRINCIPAIS TROVADORES

Massaud Moisés destaca como principais trovadores:

– João Soares de Paiva, considerado o mais antigo, nascido em 1141.
– Paio Soares de Taveirós, autor da cantiga mais antiga de que se tem registro.
– D. Dinis, autor de aproximadamente 140 cantigas, entre líricas e satíricas.
– João Garcia de Guilhade escreveu 54 composições líricas e satíricas. Considerado um dos mais originais trovadores do século XIII.
– Martim Codax, trovador da época de Afonso III, escreveu 7 cantigas de amigo, as quais tem o mérito de constituir as únicas peças da lírica trovadoresca cuja pauta musical permaneceu até hoje.

Outros trovadores: Afonso Sanches, Aires Corpancho, Nuno Fernandes Torneol, Bernardo Bonaval, Aires Nunes, João Zorro, etc.

TERMINOLOGIA POÉTICA

A poesia medieval utilizava requintados recursos formais, apesar da aparência primitiva, espontânea e de ser composta para ser cantada, com regras e estruturas peculiares.

Cantigas de atafinda ou de maestria, cantigas nas quais ocorre o que chamamos hoje de encadeamento, ou “enjambement”, que consiste na continuação da idéia de um verso no verso seguinte, estabelecendo uma ligação de sentido entre os versos. Esse esquema de organização das cantigas é considerado mais difícil e intelectualizado, por nele não ocorrer o recurso do refrão. Acontece mais comumente nas cantigas de amor.

Cantigas paralelísticas, cantigas nas quais ocorre o paralelismo, recurso que consiste na repetição de vocábulos, na forma de sinônimos, no decorrer da cantiga.

Cantigas de refrão, estrutura típica da poesia popular, na qual ocorre a presença do refrão, verso ou par de versos que se repete após cada estrofe (que era chamada de cobra, cobla ou talho, de acordo com a Poética Fragmentária). O recurso do paralelismo e do refrão ocorre mais freqüentemente nas cantigas de amigo e às vezes de amor.

Tenções, também chamadas cantigas dialogadas por apresentarem diálogos, ou seja, alternância entre as vozes de interlocutores na cantiga. Ocorre principalmente nas cantigas de amigo.

Além dos trovadores, havia outros tipos de artistas envolvidos nas manifestações artístico-literárias da época, como os segréis, os jograis e os menestréis.

Simplificando, o trovador era o artista completo, compunha, cantava e podia instrumentar as cantigas; as mais das vezes, era fidalgo decaído.

Jogral era uma designação menos precisa: podia referir ao saltimbanco, o truão, o ator mímico, o músico e até mesmo aquele que compunha suas melodias; de classe social inferior, por seus méritos podia subir socialmente e ser classificado como trovador.

Segrel designava um artista de controvertida condição colocado entre o jogral e o trovador, era o trovador profissional, que ia de Corte a Corte interpretando cantigas próprias ou não, a troco de soldo.

Menestrel era como se chamava o músico e cantor da Corte.

continua…

Fontes:
Massaud Moisés. A LITERATURA PORTUGUESA. São Paulo: Cultrix, 2008.
Teófilo Braga. História da literatura portuguesa – Renascença. Lisboa: INCM, 2005. v. 2
Imagem - não foi localizado o autor.

Stanislaw Ponte Preta (A Vontade do Falecido)


Seu Irineu Boaventura não era tão bem-aventurado assim, pois sua saúde não era lá para que se diga. Pelo contrário, seu Irineu ultimamente já tava até curvando a espinha, tendo merecido, por parte de vizinhos mais irreverentes, o significativo apelido de "Pé-na-Cova". Se digo significativo é porque seu Irineu Boaventura realmente já dava a impressão de que, muito brevemente, iria comer capim pela raiz, isto é, iam plantar ele e botar um jardinzinho por cima.

Se havia expectativa em torno do passamento do seu Irineu? Havia sim. O velho tinha os seus guardados. Não eram bens imóveis, pois seu Irineu conhecia de sobra Altamirando, seu sobrinho, e sabia que, se comprasse terreno, o nefando parente se instalaria nele sem a menor cerimônia. De mais a mais, o velho era antigão: não comprava o que não precisava e nem dava dinheiro por papel pintado. Dessa forma, não possuía bens imóveis, nem ações, debêntures e outras bossas. A erva dele era viva. Tudo guardado em pacotinhos, num cofrão verde que ele tinha no escritório.

Nessa erva é que a parentada botava olho grande, com os mais afoitos entregando-se ao feio vício do puxa-saquismo, principalmente depois que o velho começou a ficar com aquela cor de uma bonita tonalidade cadavérica. O sobrinho, embora mais mau-caráter do que o resto da família, foi o que teve a atitude mais leal, porque, numa tarde em que seu Irineu tossia muito, perguntou assim de supetão:

— Titio, se o senhor puser o bloco na rua, pra quem é que fica o seu dinheiro, hem?

O velho, engasgado de ódio, chegou a perder a tonalidade cadavérica e ficar levemente ruborizado, respondendo com voz rouca:

— Na hora em que eu morrer, você vai ver, seu cretino.

Alguns dias depois, deu-se o evento. Seu Irineu pisou no prego e esvaziou. Apanhou um resfriado, do resfriado passou à pneumonia, da pneumonia passou ao estado de coma e do estado de coma não passou mais. Levou pau e foi reprovado.

Um médico do SAMDU, muito a contragosto, compareceu ao local e deu o atestado de óbito.

— Bota titio na mesa da sala de visitas — aconselhou Altamirando; e começou o velório. Tudo que era parente com razoáveis esperanças de herança foi velar o morto. Mesmo parentes desesperançados compareceram ao ato fúnebre, porque estas coisas vocês sabem como são: velho rico, solteirão, rende sempre um dinheirão. Horas antes do enterro, abriram o cofrão verde onde havia sessenta milhões em cruzeiros, vinte em pacotinhos de "Tiradentes" e quarenta em pacotinhos de "Santos Dumont":

— O velho tinha menos dinheiro do que eu pensava — disse alto o sobrinho.

E logo adiante acrescentava baixinho:

— Vai ver, gastava com mulher.

Se gastava ou não, nunca se soube. Tomou-se — isto sim — conhecimento de uma carta que estava cuidadosamente colocada dentro do cofre, sobre o dinheiro. E na carta o velho dizia: "Quero ser enterrado junto com a quantia existente nesse cofre, que é tudo o que eu possuo e que foi ganho com o suor do meu rosto, sem a ajuda de parente vagabundo nenhum". E, por baixo, a assinatura com firma reconhecida para não haver dúvida: Irineu de Carvalho Pinto Boaventura.

Pra quê! Nunca se chorou tanto num velório sem se ligar pro morto. A parentada chorava às pampas, mas não apareceu ninguém com peito para desrespeitar a vontade do falecido. Estava todo o mundo vigiando todo o mundo, e lá foram aquelas notas novinhas arrumadas ao lado do corpo, dentro do caixão.

Foi quase na hora do corpo sair. Desde o momento em que se tomou conhecimento do que a carta dizia, que Altamirando imaginava um jeito de passar o morto pra trás. Era muita sopa deixar aquele dinheiro ali pro velho gastar com minhoca. Pensou, pensou e, na hora que iam fechar o caixão, ele deu o grito de "pera aí". Tirou os sessenta milhões de dentro do caixão, fez um cheque da mesma importância, jogou lá dentro e disse "fecha".

— Se ele precisar, mais tarde desconta o cheque no Banco.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 300


Aparecido Raimundo de Souza (Não fosse o avesso dos ponteiros)


ATO UM
FERI MEUS OLHOS de tanto espiar a solidão em minha volta, como também meus pés, que se cansaram de caminhar por sendas e estradas sem volta, enquanto um vazio imenso insistia em chocalhar guizos de pânico, me levando contra a vontade, à um ponto distante de onde não tive como regressar.

ATO DOIS
De repente, me vi diante de um tédio pesado, denso enrodilhado aos farrapos de meus sonhos desfeitos e caídos por terra. Perdido, me senti só, triste e abandonado, como um barco naufragado num braço morto de rio, envolvido por águas turvas e paradas, a apodrecer meus devaneios mais carentes no meio do tempo.

ATO TRÊS
E ele, o tempo,  sempre veloz e inexorável, continuou passando. Voou assim, rápido e veloz, sem que eu lograsse estancar o relógio, sem que conseguisse interromper, por algumas frações de segundos os ponteiros – ou ao menos, fazer com que rodassem ao avesso das intransigências das minhas horas.

ATO FINAL
Por essa razão, desde então, fantasmas iracundos cruzam por mim a todo instante. Entrelaçam as suas presenças bestiais numa espécie de alienação maçante e insuportavelmente crochetada por milhões de fios de novelos que parecem não ter começo, nem meio e nem fim. Entremeado a essa alienação, só a incerteza medonha do nada se expande  horrivelmene sobre tudo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 3


minhas 7 quedas

minha primeira queda
não abriu o paraquedas

daí passei feito uma pedra
pra minha segunda queda

da segunda à terceira queda
foi um pulo que é uma seda

nisso uma quinta queda
pega a quarta e arremeda

na sexta continuei caindo
agora com licença
mais um abismo vem vindo
****************************************

quem me dera um abutre
pra devorar meu coração!
naco de carne crua
comida de pé no balcão!

quem me dera um apache
pra colher meu escalpo!
que desta vez não escape
nenhum disfarce!

tomara que um furacão
caia sobre meu navio!
que nenhum deus nem dragão
possa ser meu alívio!
****************************************

em matéria
de tino
menino
eu tenho dez

quiser
tenho até
um destino
a meus pés
****************************************

a história faz sentido
isso li num livro antigo
que de tão ambíguo
faz tempo se foi na mão dalgum amigo

logo chegamos à conclusão
tudo não passou de um somenos
e voltaremos
à costumeira confusão
****************************************

o velho leon e natália em coyoacán

desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando

nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando

não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando

nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo
****************************************

aqui

nesta pedra

alguém sentou
olhando o mar
o mar

não parou
pra ser olhado

foi mar
pra tudo quanto é lado
****************************************

um deus também é o vento
só se vê nos seus efeitos
árvores em pânico
bandeiras
água trêmula
navios a zarpar

me ensina
a sofrer sem ser visto
a gozar em silêncio
o meu próprio passar
nunca duas vezes
no mesmo lugar

a este deus
que levanta a poeira dos caminhos
os levando a voar
consagro este suspiro

nele cresça
até virar vendaval
****************************************

um passarinho
volta pra árvore
que não mais existe

meu pensamento
voa até você
só pra ficar triste
****************************************

tenho andado fraco

levanto a mão
é uma mão de macaco

tenho andado só
lembrando que sou pó

tenho andado tanto
diabo querendo ser santo

tenho andado cheio
o copo pelo meio

tenho andado sem pai

yo no creo en caminos
pero que los hay
                           hay

Fontes:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos (saques, piques, toques & baques). Publicado em 1987.
Paulo Leminski. Polonaises. Publicado em 1980.

Sílvio Romero (O Doutor Botelho)


(Do folclore do Sergipe)

Havia um homem que era marceneiro e muito pobre. Morava em uma casa de cavacos. Uma vez apareceu em casa dele um macaco e pediu-lhe um rancho. O homem disse que a casinha era muito pequena, mas que ele podia ali ficar. O macaco ficou morando com o marceneiro. Um dia o macaco entrou com os bolsos cheios de moedas de ouro e prata. O dono da casa perguntou onde ele tinha achado tanto dinheiro. O macaco disse: "Foi o rei; eu hoje levei-lhe em seu nome um presente e ele de pagamento me deu este dinheiro."

O marceneiro perguntou: "E que presente foi, macaco?" Ele respondeu: "Eu fui no mato, assoviei e no mesmo instante apareceram mais de cem veadinhos que eu reuni todos e levei ao rei. Qualquer destes dias eu torno a levar outro presente para ele me dar mais dinheiro".

Passados dias, o macaco tornou a ir para o mato, e principiou a assoviar. De repente apareceu uma porção de garças todas muito alvinhas.

O macaco colocou-as de duas em duas e disse: "Vamos para casa do rei."

Quando chegou na porta do palácio, as garças pararam e o rei achou aquilo muito bonito e perguntou ao macaco quem é que as tinha mandado.

O macaco disse: "Foi o doutor Botelho, amigo do macaco da bota do jabotelho".

O rei agradeceu o presente e disse ao macaco que fosse na casa da moeda e dissesse que lhe dessem algum dinheiro. O macaco chegou na casa da moeda e disse que por mando do rei lhe enchessem os alforjes de moedas de ouro. Quando se apanhou com os alforjes cheios correu para casa.

O marceneiro ficou muito contente de ver tanto dinheiro, e o macaco disse: "Eu logo vou levar outro presente ao rei".

Daí a dias o macaco foi outra vez para o mato e assoviou, e apareceu logo uma imensidade de coelhos, todos muito bonitos e o macaco levou-os de presente ao rei.

Este ficou muito admirado e disse que queria conhecer este doutor Botelho, que era tão rico. O macaco aí ficou muito atrapalhado e respondeu que o doutor Botelho era um homem muito acanhado, e que não aparecia a ninguém, e disse ao rei que para avaliar a riqueza do doutor Botelho, montasse a cavalo e saísse com ele só para ver todas as fazendas que pertenciam ao mesmo doutor. O rei montou-se e saiu com o macaco.

Quando passavam por uma fazenda, o macaco dizia: "Isto aqui é do doutor Botelho". Passavam por outra e o macaco tornava a dizer: "Isto também é do doutor Botelho." Visitaram muitas fazendas. Afinal o rei já estava cansado e voltou para casa.

Aí chegando, o macaco afirmou ao rei que ainda tinha um recado para dar a ele, mas que estava acanhado. O rei respondeu que podia falar; então o macaco disse que o doutor Botelho tinha mandado pedir a filha dele em casamento, e se o rei consentisse, só no dia era que o doutor aparecia, e acrescentou que estava aquilo uma esquisitice, mas por ser o doutor muito rico é que fazia assim. O rei não teve dúvida, deu logo o sim, e mandou ao macaco que fosse na casa da moeda e dissesse que ele mandava dar algum dinheiro. O macaco neste dia ainda encheu mais os alforjes e foi para casa.

O marceneiro ficou muito espantado de ver tanto dinheiro e o macaco lhe afirmou: "A graça não é esta, você prepare-se que vai casar com a filha do rei."

O marceneiro ficou quase morto quando o macaco lhe disse isto, e replicou que, como era que um marceneiro, que morava numa casa de cavacos, ia casar com a filha do rei. O macaco respondeu que ele não se vexasse e deixasse correr por conta dele tudo.

No dia do casamento o macaco vestiu o marceneiro muito bem vestido, preparou um cavalo muito bonito e montou o doutor Botelho.

Este ia só dizendo: "Me segure, macaco, senão eu caio, oh, que agonia eu estou sentindo". E quase teve uma síncope.

Então o macaco dizia: "Doutor Botelho, deixe-se disto, tenha coragem e deixe o resto por minha conta".

Afinal o macaco conseguiu levar o doutor Botelho até a casa do rei, onde se efetuou o casamento. Depois do ato vieram todos os convidados e o rei trazer os noivos até à casa deles. De cada pé de mato saía uma girândola de foguetes e o caminho estava todo iluminado. Quando chegaram perto da casa de cavacos, todos avistaram um palácio lindo e também todo iluminado. Na porta do palácio tocaram muitos foguetes e músicas e depois os noivos entraram. Estava uma mesa preparada com todas as diversidades de comidas e doces e no meio da mesa estava um cacho de bananas muito bonito.

O macaco deu um pulo em cima da mesa, agarrou as bananas; pois, apesar de muito esperto, não se podia conter diante de semelhantes frutas e sempre mostrava o que era.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

Jaqueline Machado (Lançamento do Livro “Tente Outra Vez”)


Lançando um novo livro: TENTE OUTRA VEZ.

Trata -se de um conto permeado por reflexões filosóficas, existencialistas e espiritualistas. Nesta obra a autora traz à tona a delicada questão do suicídio, mas de uma forma leve, poética.

Quem comprar seu livro, estará ajudando com o projeto: todos os meses são setembro amarelo. Esse projeto tem a intenção de salvar vidas.

Adquira já o seu exemplar. Compre para você e seus amigos. Pois todos precisam de motivação.

Digam sim a esse importante projeto pela VIDA!

PEDIDOS PELO E-MAIL: tudoepossivelw7@gmail.com e pelo WhatsApp : (51) 98016-2837

Fonte:
Texto enviado pela escritora.

domingo, 21 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 299


Malba Tahan (O Livro do Destino)


Certa vez — há muitos anos — quando voltava de Bagdad, onde fora vender uma grande partida de peles e tapetes, encontrei num caravançará(1), perto de Damasco, um velho árabe de Hedjaz que me chamou, de certo modo, a atenção. Falava agitado com os mercadores e peregrinos, gesticulando e praguejando sem cessar; mascava constantemente uma mistura forte de fumo e haxixe e, quando ouvia de um dos companheiros uma censura qualquer, exclamava, apertando entre as mãos o turbante esfarrapado:

— Mak Allah! ó muçulmanos! Eu já fui poderoso! Eu já tive o Destino nesta mão!

— É um pobre-diabo — afirmavam alguns. — Não regula bem do miolo! Allah que o proteja!

Eu, porém, confesso, sentia irresistível atração pelo desconhecido de turbante esfarrapado. Procurei aproximar-me dele discretamente, falei-lhe várias vezes com brandura e, ao fim de algumas horas, já lhe havia captado inteiramente a confiança.

— Os caravaneiros me tomam por doido — ele me disse uma noite quando cavaqueavamos a sós. — Não querem acreditar que já tive nas mãos o Destino da humanidade inteira. Sim, senhor: o Destino do gênero humano.

Esbugalhei os olhos, assombrado.

Aquela afirmação insistente de que havia sido senhor do Destino era característica do seu pobre estado de demência.

O desconhecido, porém, que parecia não perceber os meus sustos e desconfianças, continuou:

— Segundo ensina o Corão — o Livro de Allah — a vida de todos nós está escrita — Maktub! — no grande Livro do Destino. Cada homem tem lá sua página com tudo o que de bom ou de mau lhe vai acontecer. Todos os fatos que ocorrem na Terra, desde o cair de uma folha seca até a morte de um califa, estão escritos — estão fatalmente escritos —
no Livro do Destino!

E, sem esperar que o interrogasse, prosseguiu meneando a cabeça dolorosamente:

— Salvei das mãos do cheique Abu Dolak, depois de uma razzia (2) terrível que esse impiedoso beduíno fizera num acampamento da tribo dos Morebes, um velho feiticeiro que ia ser enforcado. Esse feiticeiro, em sinal de gratidão, deu-me um talismã raríssimo que possuía uma pedra negra, pequenina, em forma de coração, encontrada, anos antes, dentro do túmulo de um santo muçulmano. E essa pedra maravilhosa permitia a entrada livre na famosa gruta da Fatalidade, onde se acha — pela vontade de Allah — o Livro do Destino. Viajei longos anos até o alto das montanhas de Masirah, para além do deserto de Dahna, a fim de alcançar a gruta encantada. Um djin — gênio bondoso que estava de sentinela à porta — deixou-me entrar, avisando-me, porém, de que só poderia permanecer na gruta por espaço de poucos minutos. Era minha intenção alterar o que estava escrito na página de minha vida e fazer de mim um homem rico e feliz. Bastava acrescentar com a pena que eu já levava: — “Será um homem feliz, estimado por todos; terá muita saúde e muito dinheiro!” Lembrei-me, porém, dos meus inimigos. Poderia, naquele momento, fazer grande mal a todos eles. Movido pelos mais torpes sentimentos de ódio e de vingança, abri a página de Ali Ben-Homed, o mercador. Li o que ia suceder, no desenrolar da vida, a esse meu rival e acrescentei embaixo, sem hesitar, num ímpeto de rancor: — “Morrerá pobre, sofrendo os maiores tormentos!” Na página do cheique Zalfah el-Abari: — “Perderá todos os haveres. Ficará cego e morrerá de fome e sede no deserto!” — E, assim, sem piedade, ia ferindo e atassalhando (retalhando) todos os meus desafetos!

— E na tua vida? — indaguei, mirando-o com surpresa — Que fizeste, ó caravaneiro, na página que o Destino dedicara à tua própria existência?

— Ah, meu amigo! — atalhou o desconhecido, contorcendo as mãos, desesperado — Nada fiz em meu favor. Preocupado em fazer mal aos outros, esqueci-me de fazer o bem a mim próprio. Semeei largamente o infortúnio e a dor, e não colhi a menor parcela de felicidade. Quando me lembrei de mim, quando pensei em tornar feliz a minha vida, estava terminado o meu tempo. Sem que eu esperasse, me surgiu pela frente um effrit — gênio feroz — que me agarrou fortemente e, depois de arrancar-me das mãos o talismã, me atirou fora da gruta. Caí entre as pedras e, com a violência do choque, perdi os sentidos. Quando recuperei a razão, me achei ferido e faminto, muito longe da gruta, junto a um oásis do deserto de Omã. Sem o talismã precioso, nunca mais pude descobrir o caminho da gruta encantada das montanhas de Masirah!

E concluiu, entre suspiros, com voz cada vez mais rouca e baixa:

— Perdi a única oportunidade, que tive, de ser rico, estimado e feliz!

Seria verdadeira essa estranha aventura? Até hoje ignoro. O certo é que o triste caso do velho árabe de Hedjaz encerrava profundo ensinamento. Quantos homens há no mundo que, preocupados em levar o mal a seus semelhantes, se esquecem do bem que podem trazer a si próprios..
_________________________
Notas:
(1) Caravançará – Estalagem gratuita para pousada das caravanas nos desertos
(2) Razzia – incursão

 
Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 2


A CANÇÃO DAS LÁGRIMAS DE PIERROT

I
A sala em espelhos brilha
Com lustres de dez mil velas.
Miríades de rodelas
Multicores - maravilha! –

Torvelinham no ar que alaga
O cloretilo e se toma
Daquele mesclado aroma
De carnes e de bisnaga.

E rodam mais que confete,
Em farândolas quebradas,
cabeças desassisadas
Por Colombina ou Pierrete

II
Pierrot entra em salto súbito.
Upa! Que força o levanta?
E enquanto a turba se espanta,
Ei-lo se roja em decúbito.

A tez, antes melancólica,
Brilha. A cara careteia.
Canta. Toca. E com tal veia,
com tanta paixão diabólica,

Tanta, que se lhe ensanguentam
Os dedos. Fibra por fibra,
Toda a sua essência vibra
Nas cordas que se arrebentam.

III
Seu alaúde de plátano
Milagre é que não se quebre.
E a sua fronte arde em febre,
Ai dele! e os cuidados matam-no.

Ai dele! e essa alegria,
Aquelas canções, aquele
Surto não é mais, ai dele!
Do que uma imensa ironia.

Fazendo à cantiga louca
Dolorido contracanto,
Por dentro borbulha o pranto
Como outra voz de outra boca:

IV
"Negaste a pele macia
À minha linda paixão
E irás entregá-la um dia
Aos feios vermes do chão...

"Fiz por ver se te podia
Amolecer - e não pude!
Em vão pela noite fria
Devasto o meu alaúde...

"Minha paz, minha alegria,
Minha coragem, roubaste-mas...
E hoje a minh'alma sombria
É como um poço de lástimas..."

V
Corre após a amada esquiva.
Procura o precário ensejo
De matar o seu desejo
Numa carícia furtiva.

E encontrando-o Colombina,
Se lhe dá, lesta, … socapa,
Em vez de beijo um tapa,
O pobre rosto ilumina-se-lhe!

Ele que estava de rastros,
Pula, e tão alto se eleva,
Como se fosse na treva
Romper a esfera dos astros!...
****************************************

A ESTRELA DA MANHÃ

Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte

Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa? Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã
****************************************

A FINA, A DOCE FERIDA

A fina, a doce ferida
Que foi a dor do meu gozo
Deixou quebranto amoroso
Na cicatriz dolorida.

Por que ardor pecaminoso
Ateou a esta alma perdida
A fina, a doce ferida
Que foi a dor do meu gozo.

Como uma adaga partida
Purge o golpe voluptuoso...
Que no peito sem repouso
Me arderá por toda a vida
A fina, a doce ferida...
****************************************

A MÁRIO DE ANDRADE AUSENTE

Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunharam:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais.
Por exemplo, assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra,
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue.
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente

Mas agora não sinto a sua falta.

(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)

Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz já tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua.
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.
****************************************
 

ACALANTO DE JOHN TALBOT

Dorme, meu filhinho,
dorme, sossegado.
Dorme, que a teu lado
cantarei baixinho.
O dia não tarda…
Vai amanhecer:
Como é frio o ar!
O anjinho da guarda
que o Senhor te deu,
pode adormecer
pode descansar,
que te guardo eu.

Monteiro Lobato (A Morte do Camicego)


FOI O EDGARD QUEM “LANÇOU” ESSE MONSTRO. O Camicego era para sua imaginação de quatro anos um “bicho malvado”, grande como o guarda-louça. Depois foi crescendo, chegou a ficar do tamanho do morro.

Morávamos na fazenda, num casarão rodeado de morros, e ser grande como o morro avistado da “porta da rua” era algo sério...

Comia gente o Camicego, e tinha um bico assim! Este assim não era explicado com palavras, mas figurado numa careta de lábios abrochados em bico e olhos esbugalhados. Com tão gentil focinho, não devia ser má rês o monstro — pensava a “gente grande” que, de passagem, via o Edgard refranzir os beicinhos naquela onomatopeia muscular. Mas para os nervosos cinco anos de sua irmã, a Marta, era de crer que fosse horrendo, tal o ríctus de pavor com que, enfitando a macaquice do irmão, instintivamente lhe arremedava o muxoxo. E todas as noites, na rede da sala de jantar, ficavam os dois absorvidos no caso do Camicego — ele a desfiar as proezas incontáveis do monstro, ela a interrompê-lo com perguntas.

— E come gente?

(Preocupava à Marta, sempre que se lhe antolhava algo desconhecido, visto pela primeira vez — um besourão, um lagarto, uma coruja —, saber o grau de antropofagia da novidade. Para ela o mundo se dividia em duas classes: a dos seres bons, que não comem gente, e a dos maus, que comem gente.)

— Come sim! — inventava o Edgard. — Pois não sabe que comeu o filhinho da Mariana no dia da chuvarada?

Marta volvia os olhos sonhadores para a paisagem enquadrada na janela e quedava-se a cismar...

Nisto vinha para a rede um terceiro, o Guilherme, cujos dois anos e pico o traziam ainda muito amodorrado de imaginativa. Ouvia as histórias mas não se impressionava coisa nenhuma, e no meio da papagueada hoffmânica saltava ao chão e pedia coisa mais positiva — o pão de ló, o bolinho de milho, a gulodice qualquer do dia, entrevista no armário.

E a história continuava a dois, sempre na rede, onde eles se balançavam isócronos como dois ponteiros de metrônomo — sempre entremeada das perguntas da menina, futura leitora de Wallace e cabalmente dilucidada pelo Edgard, um Wells em embrião.

— E onde mora o Camicego?

No quarto escuro, no porão, debaixo da cama, no buraco do forno, naquele barranco onde caiu a vaca pintada — o Edgard encontrava incontinênti uma dúzia de biocos tenebrosos onde encafuar a sua criação.

Às vezes brincavam de casinha na sala de visitas, um grande salão sempre mergulhado em penumbra. Sob o sofá antigo, de canela-preta, armavam com álbuns de música e almofadas a casinha da Irene, a grande boneca de louça sem uma perna.

Que maravilhosa mobília tinha a casa da Irene! Coloridos cacos de tigela figuravam de suntuosa porcelana. Havia travessas e sopeiras “de mentira”. Em torno sentavam-se sabugos de milho representando as grandes personagens da fazenda — Anastácia, a cozinheira; Esaú, o preto tirador de leite; Leôncio, o domador. Quando comparecia à mesa este herói, não deixava de figurar também, solidamente amarrado a um pé de cadeira, o último animal que ele amansara. Este último animal era sempre o mesmo chuchu com quatro palitos à guisa de pernas, uma pena de galinha como cauda e três caroços de feijão figurando boca e olhos — sugestiva escultura da cozinheira que aquelas crianças preferiam aos mais bem-feitos cavalinhos de pau vindos da cidade.

Assim brincavam horas, até que, de súbito, farto já, o Edgard apontava para um canto da sala, onde eram mais intensas as sombras, e berrava com cara de terror:

— O Camicego!

Debandavam todos em grita, tomados de pânico, rumo à sala de jantar, a rirem-se do susto.

Um dia apareceu no quintal um grande morcego moribundo, de asas rotas por uma vassourada da copeira.

O Edgard foi quem o descobriu; trouxe-o para dentro e sem vacilar o identificou:

— O Camicego!

Reuniram-se os três em torno do monstro, em demorada contemplação: a menina mais arredada, no instintivo asco da sua sensibilidade feminil; o Guilherme espichado de barriga, o rosto moreno apoiado nas duas mãos; o Edgard pegando sem nojo nenhum no bicharoco, estirando-lhe as asas em gomos de guarda-chuva, abrindo-lhe a boca para mostrar a serrilha dos alvos dentinhos.

E explicava petas a respeito.

— E este Camicego também come gente? — perguntou a menina.

— Boba! Pois não vê que é um coitado que nem come esta palhinha? — e Edgard enfiou uma palha goela adentro do bicho já morto.

Nesse momento “gente grande” apareceu na sala e pilhou-os na “porcaria”, e com ralhos ásperos dispersou o bando, pondo termo à lição anatômica.

O morcego, pegado com asco pela pontinha da asa, lá voou por cima do muro, pinchado, e xingado — “... esta imundície...”.

Mas de nada valeu a energia. O improvisado necrotério transferiu-se ali da sala para detrás do muro, à sombra de uma laranjeira onde caíra o morcego. O Edgard, com uma faca de mesa, procurava abrir a barriga do “porco” para ver o que tinha dentro. Depois teve uma grande ideia: fazer sabão da barrigada!

A faca, porém, não cortava aquelas pelancas moles e rijas, o “porco” fugia à direita e à esquerda, e assim foi até que a Anastácia, de passagem para a horta em busca de coentro, pilhou-os de novo na “porcaria”.

— Cambadinha! Vou já contar pra mamãe!...

Nova dispersão do grupo, e voo final da nojenta pelanca do vampiro, que desta vez foi parar em poleiro inacessível — em cima do telhado.

Datou daí a morte do Camicego. Não amedrontava mais.

Se Edgard o relembrava, os outros riam-se, porque a imaginação dos guris passara a encarnar o monstro na figura triste do pobre morcego morto, a estorricar-se ao sol no telhado.

Os homens, crianças grandes, não procedem de outra maneira. Os seus mais temerosos Camicegos saem-lhes morcegos relíssimos, sempre que uma boa vassourada da crítica os pespega para cima da mesa anatômica…

Fonte:
Monteiro Lobato. O Macaco que se fez Homem. Publicado em 1923.

sábado, 20 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 298


Cláudio de Cápua (o Gol Frustrado)


Quando jovem, pratiquei diversos esportes. O que menos me atraía vocacionalmente era o futebol. Mesmo assim, cheguei, na década de 60, enquanto estudava Agrimensura, a jogar de beque central no quadro de aspirante da Ferroviária de Araraquara.

Certa ocasião, foi organizada uma seleção de craques paulistas, veteranos da década de 60, para enfrentar a Seleção do Brasil, do técnico Dunga. Não sei por que cargas d'água fui um dos escalados ao lado de Rívelino, Ademir da Guia, Basani, Coutinho, Pepe, Djalma Santos e Julinho.

Nos primeiros minutos do 1o tempo, Júlio Botelho sofreu pênalti. A cobrança do pênalti ia ser feita, nada mais nada menos, do que pelo Pepe, o famoso "Canhão da Vila". Pepe preparava o chute...mas, de súbito, transfere a honra da cobrança para mim! E eu explodindo de alegria pela honra! Afinal, Pepe era o maior batedor de pênaltis da época!

Corri entre atônito e exultante para a bola e enchi o pé! Chutei com gosto e muita força. Seguiu-se um grito... Não de vitória, mas de dor. Vi estrelas e acordei com marca profunda no peito do pé, já que, em vez de chutar a bola... chutei valentemente o beiral de madeira do pé da minha própria cama!

(Revista Santos Arte e Cultura – Setembro 2013)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 17 - Solidão


Solidão significa encontrar-se só ou sentir-se só. A solidão é uma experiência vital. Juvenal Arduini (2002) cita vários tipos de solidão: solidão estéril, onde nada se planta, nada se cria; solidão excludente, a solidão dos excluídos da sociedade, dos pobres, dos discriminados, dos desempregados, dos desabrigados; solidão confinatóría, na qual a sociedade de controle procura manter os dissidentes, os que são obrigados a calar, os exilados; solidão habitada, que carrega lembranças, afetos, esperanças e frustrações; e a solidão fecunda, esta que permite a criação, invenção, arte e engenho. Esta pode ser referida também como o ócio criativo de Domênico de Masi.

Sem dúvida, a solidão fecunda é a mais cara ao trovador. Mas este, em sua criação, finalmente irá por em relevo a solidão habitada. Solidão quase angústia. E que beleza estética!


Na velha estação de trem
que a solidão dominava?
eu acenei a ninguém...
fingindo que alguém chegava...
Octávio Venturelli - RJ

Há uma dor que aos céus se eleva,
uma ânsia que não se acalma:
- Solidão! Rosa de treva
despetalada em minha alma.
Luiz Rabelo - RN

Na solidão dos conventos,
nos corredores compridos,
escuto o grito do vento
chamando as sonhos perdidos.
J. Guedes - MG

No tear da solidão,
rendeiro em dias tristonhos,
basta um fio de ilusão
para tecer os meus sonhos!
Elizabeth Souza Cruz - RJ

Exemplos de solidão estéril são postos em relevo nas seguintes trovas;

Quem se entrega à solidão
e dela se faz refém,
anda em meio à multidão,
mas não enxerga ninguém!
Ademar Macedo - RN

Não existe solidão
tão triste como a de quem,
no meio da multidão,
caminha e não vê ninguém!...
José Tavares de Lima - MG

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

A Literatura Portuguesa (Trovadorismo) I

Pela sua posição geográfica no mapa europeu, Portugal como se estivesse empurrado contra o mar, toda a sua história, literária e não, atesta o sentimento de busca um caminho que só ele representa e pode representar. Recebe influências exclusivas e marcantes tanto étnicas como culturais (árabes, germânicas, francesas, inglesas, etc.), e por essa razão gerou uma literatura com características próprias e permanentes, além da "fatalidade" de ser a Língua Portuguesa seu meio de comunicação, o que ajuda completar e explicar o quadro.

A Literatura Portuguesa reflete essa angústia geográfica: “o escritor português opta pela fuga ou pelo apego a terra, matriz de todas as inquietudes e confidente de todas as dores, centro de inspiração e nutridora de sonhos e esperanças. A fuga dá-se para o mar, o desconhecido, fonte de riqueza algumas vezes, de males incríveis e de emoção quase sempre; ou, transcendendo a estreiteza do solo físico, para o plano metafísico, à procura de visualizar numa dimensão universal e perene a inquietação particular e egocêntrica”.

Para Massaud Moisés, é uma literatura rica em poetas – Camões, Bocage, Antero, Fernando Pessoa, entre outros - “(...) A poesia é o melhor que oferece a Literatura Portuguesa, dividida entre o apelo metafísico, que significa a vivência e a expressão de problemas fundamentais e perenes (a existência ou não de Deus, o ser e o não-ser, a condição humana, s valores do espírito, etc.), e a atração amorosa da terra (representada por temas populares, folclóricos), ou um sentimento superficial, feito da confissão de estados de alma provocados pelos embates amorosos (...)”.

A riqueza da poesia contrasta com a pobreza do teatro que somente algumas poucas vezes saiu “do nível medíocre ou meramente razoável” através de Gil Vicente, Garrett e António José da Silva.

O romance decai após a morte de Eça de Queirós, em 1900. Voltando a viver uma época de esplendor após 1940, pela quantidade e qualidade de seus autores configura-se no ponto forte da literatura lusa. A crítica literária, como o teatro, pobre, somente nos últimos anos começa a despontar com vigor científico.

A Literatura Portuguesa nasceu quase simultaneamente com a nação. Em 1094, Afonso VI, Rei de Leão, um dos reinos em que a Península Ibérica era dividida (os outros: Castela, Aragão e Navarra), casa suas filhas, Urraca com o Conde Raimundo de Borgonha, e Teresa com D. Henrique. Ao primeiro genro, doa uma extensa região de terra correspondente à Galiza; ao segundo, o território compreendido entre o rio Minho e o Tejo, com o nome de "Condado Portucalense".

Após a morte de D. Henrique, D. Teresa assume o governo e se aproxima da Galiza. Seu filho, o Infante, Afonso Henriques, rebela-se contra a mãe e inicia uma revolução que culmina com a vitória dos revoltosos, na batalha de S. Mamede, nos arredores de Guimarães e o Infante é declarado seu soberano. Porém, somente em 1143, na Conferência de Samora, D. Afonso VII reconhece Afonso Henrique como rei. Portugal está politicamente autônomo.

A data utilizada como marco do início da Literatura Portuguesa é 1198 (ou 1189), quando o trovador Paio Soares de Taveirós compõe uma cantiga, Cantiga de Garvaia, palavra que designava um luxuoso manto de Corte, dedicada a Maria Pais Ribeiro também chamada A Ribeirinha, favorita de D. Sancho I. Tudo indica que já havia uma atividade literária anterior, porém desaparecida.

TROVADORISMO (1198-1418)

O Trovadorismo Português foi o movimento literário caracterizado por seu caráter popular, sem relação com a cultura da Antiguidade Clássica greco-latina. Era uma arte literária simples, voltada para o entretenimento, e devido a essa simplicidade e natureza popular tem a preferência pelo idioma galaico-português em vez de latim, que era a língua da literatura erudita da época. Recebe considerável influência da cultura provençal, através dos artistas nômades oriundos daquela região que chegaram na Península Ibérica naquela época. A lírica trovadoresca teve grande força na França naquela época, e sua influência acabou se espalhando por vários países da Europa.

Massaud Moisés destaca quatro teses para origem da poesia trovadoresca:

1) A tese arábica. Relaciona a poesia trovadoresca à cultura árabe em virtude das invasões mouras na Península Ibérica.

2) A tese popular ou folclórica. Segundo essa linha de estudo a poesia trovadoresca foi uma manifestação literária “espontânea”, surgida naturalmente a partir das manifestações e cultura do povo da época.

3) A tese médio-latinista. A poesia trovadoresca teria se originado a partir da literatura latina produzida na Idade Média. Essa literatura teria chegado na Península Ibérica e influenciado a produção literária local.

4) A tese litúrgica. A poesia trovadoresca surgiu a partir da literatura cristã/sacra da época.

Entretanto, parece que nenhuma das teses citadas acima é suficiente para determinar com certeza a origem da lírica trovadoresca, dando-nos a possibilidade de aceitar todas elas de modo conjunto. Todavia a influência da Provença na poesia trovadoresca portuguesa é incontestável e se deu principalmente pelo fato de que muitos dos trovadores portugueses tiveram certa relação com a França. (D. Afonso Henriques e D. Sancho I foram casados com princesas criadas em cortes ligadas à Provença). Além disso, muitos artistas nômades oriundos daquela região passaram pela península, e ainda, as relações comerciais e os movimento militares (cruzadas) são fatores de influência.

O Trovadorismo Português inicia-se em 1189 (ou 1198) com a “Cantiga da Guarvaia” ou “Cantiga da Ribeirinha”, de Paio Soares de Taveirós e se estende até 1418, quando Fernão Lopes é nomeado Guarda-mor da Torre do Tombo por D. Duarte.

A POESIA TROVADORESCA

Na Provença, o poeta era chamado de troubadour, cuja forma correspondente em Português é trovador, da qual deriva trovadorismo (que serve de rótulo geral dessa primeira época medieval), trovadoresco, trovadorescamente. O poeta deveria ser capaz de compor, achar os versos e a melodia para sua cantiga. Eram poemas cantados e acompanhados por instrumentos musicais e às vezes danças.

A poesia trovadoresca classifica-se em: lírico-amorosa e satírica. A primeira divide-se em cantiga de amor e cantiga de amigo; a segunda, em cantiga de escárnio e cantiga de maldizer. O idioma empregado era o galego-português, em virtude da então unidade linguística entre Portugal e a Galiza.

CANTIGAS DE AMOR

Poesia lírica onde o trovador, de acordo com a arte de trovar” confessa seu amor por uma dama inacessível aos seus apelos, entre outras razões por ser de classe social mais elevada, geralmente nobre, enquanto ele era, quando muito, um fidalgo decaído. O poema é um lamento suplicante, os apelos do trovador “colocam-se alto, num plano de espiritualidade, de idealidade ou contemplação platônica”. Trata-se de um fingimento poético, de acordo com as regras de conveniência social e da moda literária vinda da Provença. Retratam um sofrimento interior (coita de amor).

Geralmente é o próprio trovador quem confessa seus sentimentos, dirigindo-se em vassalagem e subserviência à dama (mia senhora ou minha senhora), e rendendo-lhe o culto que o "serviço amoroso" lhe impunha: as regras do "amor cortês", recebidas da Provença: o trovador teria de mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no desagrado (sanha) da bem-amada; teria de ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudônimo, e prestar-lhe uma vassalagem que apresentava quatro fases: a primeira correspondia à condição de fenhedor, de quem se consome em suspiros; a segunda é a de precador, de quem ousa declarar-se e pedir; entendedor é o namorado; drut, o amante.

Segundo Moisés, “(...) O trovador, portanto, subordina todo o seu sentimento às leis da Corte amorosa, e ao fazê-lo, conhece das dificuldades interpostas pelas convenções e pela dama no rumo que a levaria à consecução dum bem impossível. Mais ainda: dum' bem (e "fazer bem" significa corresponder aos requisitos do trovador) que ele nem sempre deseja alcançar, pois seria por fim ao seu tormento masoquista, ou início dum outro maior. Em qualquer hipótese, só lhe resta sofrer, indefinidamente, a coita amorosa”.

O sofrimento segue uma ordem crescente, através das estrofes (cobra ou talho) sendo reforçado o estribilho ou refrão, onde o trovador pode rematar cada estrofe, reforçando a angustiante idéia fixa para a qual ele não encontra consolo.

Em síntese, nas Cantigas de Amor, o trovador destaca todas as qualidades da mulher amada colocando-se numa posição inferior (de vassalagem) a ela. A mulher é colocada num patamar elevado, idealizada, em geral por se encontrar em uma posição social superior. As cantigas de amor não possuem variedade temática, sendo a temática mais comum o amor não correspondido. Além disso, reproduzem o sistema hierárquico do feudalismo, pois o trovador passa a ser o vassalo da amada (suserana) e espera receber um benefício em troca de seus “serviços” (as trovas, o amor dedicado, o sofrimento pelo amor não correspondido).

Cantiga da Ribeirinha

(Paio Soares de Taveirós)

No mundo non me sei parelha
mentre me for como me vai,
cá já moiro por vós-e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mau dia me levantei,
que vos entom no vi fea!
E, mia senhor, dês aquel di’, ai!
Me foi a mi mui mal,
e vós, filha de Don Paai
Moniz, e bem vos semelha
d’aver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós houve nem ei
valia d’ua correa.
- - - - - -
Tradução do Prof. Stélio Furlan (UFSC)
Cantiga do Ribeirinha

No mundo ninguém se assemelha a mim
enquanto a minha continuar como vai,
porque morro por vós, e ai!
Minha senhora de pele alva e faces rosadas,
quereis que vos retrate (que me afaste)
quando vos vi em manto! (na intimidade)
Maldito dia! Me levantei
que não vos vi feia!
E, minha senhora, desde aquele dia, ai!
Tudo me foi muito mal,
e vós, filha de Don Pai
Moniz, e bem vos parece
de ter eu por vós guarvaia,
pois eu, minha senhora, como mimo
nunca de vós recebe
algo, mesmo sem valor.

continua… Cantigas de amigo, de escárnio e maldizer

Fontes:
Célio Antonio Sardagna. Literatura Portuguesa. UNIASSELVI, 2010.
Massaud Moisés. A Literatura Portuguesa. SP: Cultrix, 2008.
Teófilo Braga. História da literatura portuguesa – Renascença. Lisboa: INCM, 2005. v. 2.
Imagem = não foi localizado o autor