quinta-feira, 2 de julho de 2020

Cláudio de Cápua (Aspectos Curiosos da Vida de Euclydes da Cunha)


Euclydes da Cunha, nascido em 20 de janeiro de 1866, na fazenda de Santa Rita do Rio Negro, município de Cantagalo, RJ, morreu assassinado por motivos passionais no dia 15 de agosto de 1909.

Considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos, ora não analisaremos sua obra e, sim, alguns fatos e aspectos curiosos da sua personalidade.

Se Euclydes estivesse, por exemplo, interessado em anotar algum fato do seu interesse e não dispusesse de papel suficiente, continua a tarefa normalmente, escrevendo nos punhos brancos e engomados de sua camisa.

Seu sentimento cívico, de fidelidade à República, era indiscutível levando-o mesmo a atos de ousadia como quando quebrou o sabre e o lançou aos pés do Ministro Thomaz Coelho, negando-se desfilar diante dele para não ferir seus íntimos ideais republicanos. Isto lhe custou a expulsão da Escola Militar na qual, mais tarde, com o advento da República, foi readmitido.

Euclydes detestava ser colocado em evidência. Gostava de trabalhar sem alarde. Assim, insurgiu-se contra o horário do lançamento da pedra fundamental do primeiro Grupo Escolar de São Carlos, obra que deveria executar na qualidade de engenheiro. O evento deveria acontecer às 13h de um determinado dia, com a presença do maior número possível de pessoas. Euclydes exigia que a pedra fosse colocada de madrugada, sem foguetório. Conciliados os interesses, o Presidente da Câmara concordou que a cerimônia fosse efetuada às 8h da manhã.

Inimigo de exibicionismos, Euclydes recusava-se a vestir casaca e, certa vez, quando as circunstâncias não lhe deram alternativa, desabafou, resignado: "Com isto, eu até pareço um gafanhoto!".

Como não podia deixar de ser, Euclydes da Cunha era apaixonado pelos livros. Dizem que, vendo alguém a ler, não resistia à tentação de arriscar um olho para descobrir o nome do livro e o seu autor e, se tivesse oportunidade, sem a menor cerimônia, pedia permissão para folheá-lo.

Viajava, certa vez, para Descalvado, rumo à fazenda de seu pai; notando que alguém à sua frente lia um livro, com muito interesse, a curiosidade de Euclydes entrou em ebulição. Conteve--se. Em Santa Rita do Passa Quatro, o referido leitor desembarcou apressadamente, esquecendo o livro sobre o banco. Euclydes não perdeu tempo. Apossou-se do livro. Ao folheá-lo, percebeu, porém, que se tratava de obra obscena. Indignou-se ao ver inúmeras anotações deprimentes, assinalando certos trechos. E comentou com o cunhado, que o acompanhava, ter vontade de reencontrar o tal viajante, para ter o prazer de atirar-lhe no rosto o livro imoral,

E, por último, esta lição que nos deixa o autor de "Os Sertões", bastante útil para os dias atuais. Regressava Euclydes do seu trabalho no território do Acre, onde recebia um ordenado de 4 contos de réis. E o Barão do Rio Branco o comissionou a seguir, em confiança, no Ministério do Exterior, no departamento de engenharia, com o mesmo salário que recebia no Acre. Euclydes recusou-se a aceitar, contentando-se com a metade dessa quantia justificando que, no Acre, o trabalho era árduo e exposto a vários perigos. Na Capital Federal, no conforto das dependências do Ministério do Exterior, achava abusivo tal salário - um rombo para os cofres públicos! Sem comentários.

(Publicado na Revista Santos Arte e Cultura - Setembro 2008)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 19 - Fraternidade


O termo fraternidade tem origem no latim frater, que significa irmão, portanto parentesco entre irmãos. Mas almejamos a fraternidade universal, laço de união entre todos os homens, fundado no respeito pela dignidade da pessoa humana e na igualdade de direitos entre todos.

Fraternidade - eu bendigo,
pois sinto, de coração,
em cada ser um amigo,
em cada amigo um irmão!
Luiz Otávio

Fraternidade é sentir
uma comunhão tão alta
que nos leva a dividir
até mesmo o que nos falta!
Renata Paccola - SP

Fraternidade é guarida   
aos excluídos da sorte;
leva o amor onde haja vida,
leva vida onde haja morte...
João Paulo Ouverney - SP

Somente a fraternidade,
a nos trazer rumos novos,
dará paz à humanidade,
pelo amor unindo os povos.
Wilson Correia Dantas - RN

Só se salva de verdade,
nesta enchente de amargor,
quem faz da fraternidade
o seu barco salvador,
Flávio Roberto Stefani - RS

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.

Aparecido Raimundo de Souza (Talho Veneno)


DESLIGUEI CORRENDO  A TELEVISÃO, joguei o controle no sofá  e saí da sala, meio que às carreiras. Entrei no banheiro. Nele, um odor indigesto, mas preciso, regido orquestralmente por contornos quadrados, ocupava a habitação. O espelho, colocado sobre o lavatório, devido à pequenez do espaço, cumpria um trabalho inquisitivo, delimitado pela película desgastada do reduzido retângulo antigo. Com tédio comecei a me despir. Primeiro arranquei os sapatos, depois a calça jeans. Em seguida a camisa, e, por fim, a cueca. O surdo rumor que as roupas instalavam no minúsculo cômodo, delimitou o lugar. A um lado, o vaso sanitário emergia sisudo, enfático e silencioso, quieto como uma beluga* estéril, indefesa, sufocada pela estreiteza de sua lapa artificial.

Finalmente, me inclinei sobre o cetáceo*, na espera dos surdos sons que inaugurariam o fluxo do meu começo de dia. Depois disso, o chuveiro frio. Uma vez sob ele,  fechei os olhos. O cubículo se ampliou no tempo em que o vapor do meu corpo se propagava, só que um pouco escuro e quase carente de oxigênio, reticulado em um de seus extremos pelas sonoras estilhas* aquáticas que, por momentos, pareciam inundar o piso. Como de costume, minha cabeleira, precedida por um leve calafrio, se rendeu ante o peso da água, formando um instantâneo casco que cercou minhas orelhas e me arrastou a uma nova dimensão sonora.

A essa hora do dia me era difícil saber com exatidão como ou mediante o que aquele cômodo parecia iluminado e sedoso. Possivelmente uma luz diurna, inicial ou, talvez, se tratasse da velha lâmpada fixada a uma das paredes laterais, cujos filamentos simulavam um pequeno inseto de âmbar ou palha. Ou será que aquela claridade, apenas suficiente, se constituía graças à multiplicidade de pequeninos reflexos provenientes das partículas  de água que se depositavam matemática e delicadamente sobre as paredes para aveludá-las? Não posso precisar a origem da luz, mas sei que o espaço se reduzia sob a claridade fragmentada e nebulosa.

Agora o ar possuía o recente cheiro de urina, parecendo se materializar nas nervuras dos mosaicos quase irreverentes em seu perfeito alinhamento. Não me lembro se em algum momento de minha vida encontrei na cotidiana tarefa do arranjo pessoal certo prazer, porém, faz tempo que sua indiferença me ajuda a decidir rapidamente o tom e a suavidade de minhas roupas. Renunciei sem me dar conta de todo tipo de detalhes, pois nem sequer me permito botões ligeiramente grandes ou de cores inusitadas. Habito familiares urdimentos* que se encarregam de definir meu contorno e apenas outorgam mínimas variações avermelhadas ou cinzentas.

Aceitar minha elegância me resulta acidental. Pode ser que isso tenha a sua origem no aborrecimento quase amável que lentamente me cerca. Escolhi um suéter pressentindo a frialdade* das ruas. Quando cheguei, o gélido e o cheiro de lápis me escoltaram até o lugar habitual. Ao meu redor, a luz estava quase a nascer. As lâmpadas alógenas, através de uma lâmina de plástico cuja superfície possuía um múltiplo desenho hexagonal, como se tratasse de favos elétricos, emanavam uma brancura cirúrgica. As leves cortinas ofuscavam a paisagem metálica da cidade e apagavam os detalhes das varandas vizinhas que, como desarticuladas caixas de sapatos, umas sobre as outras, pareciam se precipitar sobre a calçada.

A rigidez da cadeira, unida ao estreito espaço que havia entre esta e a escrivaninha, me obrigou a dispor do reduzido lugar como se eu fosse um incômodo caracol, ensimesmado e concêntrico, em uma atitude voluntariamente introspectiva que me dava apenas um pouco de segurança. Minha chegada não passou despercebida. Os alunos ocuparam seus lugares maquinalmente e iniciei, ausente e triste, meu discurso cotidiano. Frequentemente me pergunto: como experimento o passar do tempo? Meu trabalho docente me dá uma perspectiva cíclica e vazia dos dias? Talvez seja como uma sensação de permanência em um ponto atemporal e interrompido.

Meus interlocutores, sempre múltiplos e diversos, preconcebidos desde os seus nomes, são na realidade uma só presença que, ao longo dos anos, formula a mesma pergunta, desde o mesmo lugar, a propósito de algo que se repete até se fazer real: "quais os componentes da sinóvia*?". Essa dúvida une o passado e o futuro e faz do presente um hábito, uma ferida única e rotineira, ante a qual tenho logrado sentir indiferença. É por isso que para mim,  março  é sempre março, mas não só isso, se não, também, o exame sobre as agenesias* e os hiatos ósseos*. Carina, minha secretária, traz consigo os tarsos*, segunda parte.

Essa certeza que, como bola de bilhar, se dirige tensa e programática até mim, me produz duas sensações: a comodidade que me lega a predição e o fastio que essa predição implica. Quando me pergunto quem são eles, só consigo recordar riscos que permanecem, algo assim como pernas suaves que, depois de ligeiras vacilações, se firmam sobre a barra da cadeira em frente: como ombros alinhados que se rendem conforme o quadro negro persiste e denuncia; como pares de sapatos brancos, níveos. Quantas vezes devem ter se  insurgido o ruído das carteiras contra o som metálico da campainha escolar.

Quantas canetas sucumbiram tímidas ante a dúvida? Só tenho vivido um dia, que pode ser reduzido a um momento perene. Então, dei a aula perpétua à minha aluna, tudo pairando sob o peso luminoso das lâmpadas e da realidade. À borda do medo, lembrei do que disse uma vez um certo pedagogo de renome: "o professor é alguém que chega e dá resposta a uma série de perguntas que ninguém lhe fez". E o contista? Menos mal que o ensino não é tudo para mim: se não fosse pelo meu turno no hospital, como clínico geral, essa frase deixaria cair impunemente seu gume sobre minha cabeça  e, de roldão, derrubaria a  minha desvanecida existência.

Situar-me-ia no hall do sem sentido. Saí da sala com resignação, mas triste, enquanto a palidez do corredor que leva aos fundos do necrotério me devorava firmemente. Só faltava o dia seguinte para que este pequeno ciclo semanal terminasse. O ferrolho cedeu docilmente. A chave, cuja superfície desenhava um baixo-relevo reticular, se ajustou à fechadura e, como de costume, a abriu. Atravessei o umbral e nesse momento recordei algo que já havia pensado antes: que poder nos oferecem  as coisas capazes de redimensionar uma e outra vez o mesmo espaço! Como influem emocionalmente em nós, cada um de nossos fiéis objetos do dia a dia?

Que significam o sofá suave, a estante lúgubre e a lâmpada aérea? Agora creio que posso lhes ser indiferente, mas se não existissem, se em algum momento como esse deixassem de estar aqui, pressinto que minha consciência se inclinaria, incoerente, até elas (Que parte de nós é todas as coisas?). Um homem ancestral pensou: "esta é minha pedra"; desde esse dia não temos parado de construir e conquistar; só assim poder-me-ia explicar a existência do copo e do pires, da fivela e da caneta, do teclado do computador e da Internet, da chave e do cabide. Fechei a porta. A terrível proximidade do fim de semana me abateu, enquanto caminhava até a cadeira.

Notei que a pequena begônia na varanda agonizava. Que ironia! Os dias no hospital têm transcorrido imperceptivelmente. Sei que esta semana vai morrer o velhinho da enfermaria 22. Vai bater as botas de velhice mesmo.  Se não me engano é o  Sivuca (aquele do acordeon) Em compensação, nasceram duas crianças, todavia isso não muda as coisas. Depois de tudo, a sala de cirurgia, quase aquática, o oxidado purê de maçã que servem no refeitório e a máscara cirúrgica me silenciaram; tenho terminado por me parecer a um de tantos corredores do hospital: desvelado, estéril e simples. Sou isso. Hoje, recebi uma pessoa que havia sido ferida numa briga.

Por momentos a lividez de seu rosto suave, de seus lábios de amêndoa tirou minha atenção. Quando os assistentes investiram furiosamente em suas calças com as tesouras, que multiplicavam com força a luz da lâmpada, assomou uma pele delicada, sob a qual se adivinhava a harmoniosa articulação dos quadris e do fêmur; o sangue se espargia sobre a claridade cutânea como um desfile de suaves e doces cerejas em volta da fragmentada negrura de si. Conforme consegui controlar a hemorragia, a respiração se normalizou e o maxilar inferior foi cedendo até lhe devolver a expressão de descanso ao rosto.

Quando o condutor da maca a levou ao final da sala de observações, senti um forte esgotamento e comecei a tirar as luvas de látex, que pareciam se adelgaçar* devido ao insistente suor de minhas mãos. Eu agonizava. Agora volto às minhas coisas, me aferro à magia da mesa ou à presença vital e latejante do televisor. É tarde e a chuva persiste; a noite, como um pulmão de barro fresco, aspira o silêncio amedrontado e úmido das artérias. O banheiro, agora livre de artifícios luminosos, exala um cheiro de caracol gigante. O espaço (onde durmo) aguarda com a paciência do pó nos armazéns, quieto: no centro, o grande volume aberto tenta me seduzir com suas páginas de arroz e borboleta.

Minhas roupas alegóricas caem como pétalas abatidas junto à sua escrivaninha, de onde me observa como se fosse real, como se sua solidão pendesse, oscilando de um fio de seda sustentado pelos meus dedos de açucena hipotética; miro o enfermo, embalsamado na pele de cera torpemente envolvida pelo pardo cachecol; sua debilidade me invade, me desborda, o que me permite compreender o tédio esmagador de meus dias no colégio e no hospital; lanço minha repreensão às suas orelhas de morcego agonizante, descarrego meu ódio sobre seu cabelo de equino assustado e a pergunta acode como bumerangue.

Por que me manténs aqui,  por que,  por que te desdobras e intentas viver de mim, de nosso inacessível coração de cebola? Por Deus, me deixe ficar em paz e quieto, sossegado e só nesse lugar que imaginei existir num ponto bem distante do meu eu ausente. Não me toques, não me desnudes com tuas metáforas de pétala para evidenciar a minha ausência, para exibir meu corpo entorpecido  pela covardia de tua caneta que não concebe o amor. Estás só e o advertes em meus olhos de tinta, em meus dedos de prosa, em minha boca, que cerras de golpe com a tua assinatura mal parida.
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Glossário (Dicionário Houaiss):
ADELGAÇAR – tornar(-se) delgado, estreito; diminuir a espessura de.
AGENESIA – atrofia de um órgão ou tecido por parada do desenvolvimento na fase embrionária
BELUGA – baleia branca.
CETÁCEO – ordem de mamíferos aquáticos, que inclui as baleias, botos e golfinhos
ESTILHAS – pedaço, fragmento de qualquer coisa; estilhaço
FRIALDADE – friagem.
HIATOS ÓSSEOS – Espaço delimitado por extremos livres de ossos próximos.
SINÓVIA – humor transparente e viscoso que lubrifica as articulações e que é secretado pela membrana sinovial
TARSO – esqueleto da parte posterior do pé; planta do pé.
URDIMENTOS – enredos, tramoias.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Agatha Christie (Resenhas) 12, final


CAI O PANO
Curtain: Hercule Poirot’s Last Case

Hercule Poirot encerra o círculo de sua vida na Grã-Bretanha. Sabendo que o fim está próximo, muda-se para Styles, tentando solucionar seu último caso, e o mais difícil, no mesmo lugar onde havia resolvido o primeiro. Um dos hóspedes daquela casa sinistra - na qual se respira o ar maligno de um antigo crime - é um assassino em série, diabolicamente inteligente, que matou cinco pessoas e está disposto a continuar. Transformado num pobre inválido, imóvel numa cadeira de rodas, Poirot parece inferiorizado frente a um astucioso e sutil matador, que precisa ser descoberto e também castigado, porque a justiça oficial nunca o condenaria. Poirot cumpre com o seu duplo propósito e morre, embora sua morte seja apenas aparente, pois os personagens de ficção não desaparecem, e sempre poderemos ler novamente as aventuras de um Sherlock Holmes, o Padre Brown, o delegado Maigret, Philipp Marlowe…, integram a mais seleta galeria dos detetives imortais.

É um dos livros mais intrigantes de Agatha Christie, porque chega a um ponto em que você pensa que é o fim de Poirot. Ele se vê cercado de ameaças do próprio assassino, que o desafia em cada caso, e Poirot, de mãos atadas, apenas assiste os crimes, desesperado. Ao final, com um cérebro digno de um gênio, Poirot entende toda a história, como sempre faz e descobre o tão misterioso homem.

Poirot está de volta a Styles mas não é a passeio. Agora inválido, o detetive encontra em seu último caso o assassino perfeito, aquele que nunca seria condenado e com muita classe encerra sua carreira definitivamente e faz deste o melhor livro de Agatha Christie.

O Capitão Hastings viaja à uma casa em que ele e seu velho amigo Hercule Poirot desvendaram crimes há alguns anos atrás. Quando chega lá, vê que seu velho amigo está muito doente, sem andar e quase morrendo. Hercule Poirot, se encontra num estado deplorável. Velho e em uma cadeira de rodas. Quando novos crimes acontecem na casa, Hastings pede a ajuda de Poirot para tudo.

No final, nem tudo era o que parecia ser …
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UM CRIME ADORMECIDO

Sleeping Murder

Frases pronunciadas numa peça de teatro causam uma reação inesperada e aparentemente inexplicável na jovem Gwenda. O mistério aumenta quando, em sua nova residência no sul da Inglaterra, ela experimenta uma estranha sensação de familiaridade ao entrar em cada cômodo, onde passa a ver o cadáver de uma mulher estrangulada. Loucura? Miss Marple acredita que não. Para a simpática velhinha - que desvenda aqui seu último mistério - Gwenda pode ter vivido a infância na casa e presenciado um terrível assassinato. As duas partem, então, em busca da verdade.
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A MORTE DO ALMIRANTE
The Floating Admiral

Uma das obras mais importantes do gênero policial. A Morte do Almirante foi escrita por treze dos maiores autores de livros de mistério e de suspense, todos membros do Detection Club. Escrito por partes, cada escritor se encarregou de um capítulo, passando-o ao colaborador seguinte, que deveria resolver o mistério apresentado e criar outros. Agatha Christie contribuiu de modo brilhante para o sucesso dessa obra.
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A RATOEIRA E OS DEZ INDIOZINHOS

The Mousetrap and Ten Little Indians

Ninguém melhor que a própria Agatha Christie para adaptar suas histórias para o teatro. Neste livro são apresentadas duas peças da autora. O argumento de A Ratoeira, que já foi encenada mais de 9 mil vezes em dez anos, é inspirada no conto “Os três ratos cegos”, no qual um assassino se diverte com os hóspedes de uma pensão isolada pela nevasca com uma cruel brincadeira de gato e rato. Já a peça Os Dez Indiozinhos é inspirada no famoso livro O Caso dos Dez Negrinhos. Convidadas por um homem misterioso, dez pessoas chegam para passar um fim de semana numa ilha remota e não demoram a descobrir que tudo não passa de um diabólico plano de vingança.
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ENCONTRO COM A MORTE E O REFÚGIO
Appointment with Death and The Hollow

Além dos romances, Agatha Christie foi autora teatral. Neste livro são reunidas duas peças daquela que é universalmente conhecida como “a rainha do crime”. Com a ação passada em Jerusalém, Encontro com a morte apresenta uma das personagens mais cruéis da literatura policial e um crime igualmente perverso. Do quarto de um hotel, um homem ouve um diálogo curioso. Mas um assassinato é cometido e ele percebe que aquelas palavras continham um significado macabro. Encenada pela primeira vez em 1951, a peça O refúgio alia o refinado humor inglês a um final surpreendente.
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TESTEMUNHA DA ACUSAÇÃO E A HORA H
Witness for the Prosecution and Towards Zero

Testemunha da acusação é uma das peças mais famosas de Agatha Christie. Leonard Vole, um sujeito tranquilo e amável, é um dia acusado do assassinato de uma solteirona que morava com a governante e oito gatos. No testamento, ela fazia dele seu único herdeiro. Os fatos são simples e incontestáveis, e Leonard está prestes a ir para a prisão. Um detalhe, porém, pode mudar os rumos do seu julgamento. O argumento de A hora H é inspirado no livro A casa do penhasco, com uma diferença: a autora substitui Hercule Poirot pelo sagaz superintendente Battle por considerar que este personagem tem “uma personalidade mais apropriada para os palcos” do que a do detetive belga.
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DESENTERRANDO O PASSADO
Come, Tell Me How You Live

Este livro nasceu do casamento de Agatha Christie com seu segundo marido, o jovem e brilhante arqueólogo Max Mallowan. Ao seu lado, a escritora percorreu todo o Oriente Médio. Desenterrando o passado é resultado de suas observações dos fatos ocorridos em quatro expedições arqueológicas à Síria e ao Iraque - sempre usando e abusando do típico senso de humor inglês. Agatha Christie jamais se limitou a ser uma espectadora aguda e privilegiada dos fatos: colaborou com prazer em todas as tarefas do seu marido. Afinal, um arqueólogo, de certa forma, não deixa de ser um detetive dedicado a desenterrar e solucionar os enigmas de um passado distante.

Ao narrar os fatos reais, utiliza as suas habilidades de romancista para tornar extremamente interessantes os acontecimentos cotidianos, os lugares exóticos e os personagens inusitados que cercavam o casal. Com a grande virtude de não se levar a sério todo o tempo, Agatha Christie mostra que sabe rir, com uma ironia generosa, de tudo e de todos. Principalmente de si.
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VEREDICTO E RETORNO AO ASSASSINATO
Verdict and Go Back For Murder

Na peça Veredicto, Agatha Christie cria uma trama diabólica. Agitada e doente, Anya Hendryk conserva traços do antigo encanto e beleza, mas, entrevada numa cadeira de rodas, tornou-se uma mulher amargurada. Um dia, é encontrada morta por envenenamento. Mas os fatos ainda não foram esclarecidos e uma dúvida paira no ar: foi suicídio ou assassinato? Encenada pela primeira vez em 1960, a peça Retorno ao Assassinato é inspirada no livro Os Cinco Porquinhos. Uma mulher é julgada e condenada pelo assassinato do marido, morrendo pouco tempo depois na prisão. Passados 16 anos, a filha deles quer reconstituir o passado e descobrir a verdade.
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A MINA DE OURO
The Golden Ball and Other Stories

É um gesto de boa vontade ou uma armadilha sinistra que seduzem Rupert St. Vincent e sua família para uma propriedade magnífica? O quão desesperada está Joyce Lambert, uma jovem viúva despossuída cujo único recurso é se casar com um homem que ela despreza? Que circunstâncias inesperadas levam Theodora Darrell, uma esposa infiel para fugir com seu amante? Nesta coleção de pequenas histórias, as respostas são inesperadas a medida que vão aparecendo. A rainha do crime leva encontros românticos bizarros, visitações sobrenaturais, e assassinatos clássicos à novos níveis inventivos.
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O CADÁVER ATRÁS DO BIOMBO E UM FURO JORNALÍSTICO
The Scoop and Behind The Screen

A vida de Wilfred Hope, estudante de medicina, é tudo o que sempre sonhou. Tem pela frente uma carreira promissora e está noivo da encantadora Amy Ellis. Mas a partir do momento em que o sombrio Paul Dudden aluga um quarto na casa dos Ellis, a vida da família desmorona. Todos vivem sempre nervosos e apreensivos, como se temessem o misterioso hóspede. Um dia, quando visita a namorada, Wilfred descobre, atrás de um biombo na sala de estar onde todos se encontravam, o corpo ensanguentado de Dudden.

O cadáver atrás do biombo foi escrito por Agatha Christie e outros cinco mestres da ficção policial: Hugh Walpode, Dorothy L. Sayers, Anthony Berkeley, E. C. Bentley e Ronald Knox. Walpode apresentou a trama no primeiro capítulo. Seus colegas ficaram com a difícil missão de encontrar a solução para um mistério aparentemente insolúvel. Valeria a pena descobrir o assassino, ou Dudden merecia realmente morrer?

Um furo jornalístico, outro mistério presente nesta edição, é mais uma maravilhosa criação coletiva na qual sobressai o talento de Agatha Christie. Ao lado de outros gênios do gênero, fica ainda mais evidente a criatividade da grande Dama do Crime.
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OS PERSONAGENS

Hercule Poirot
Poirot estreou junto com Agatha Christie no livro O Misterioso Caso de Styles. Desde então, foram vários os livros em que Poirot esteve presente, sendo o último deles Cai o Pano. Esteve presente também em muitos filmes. O primeiro a interpretá-lo foi Austin Trevor no começo dos anos 30 em três produções: O Assassinato de Roger Ackroyd, Black Coffee e Treze à Mesa.

Outros atores que também interpretaram Hercule Poirot no cinema foram Peter Ustinov em Morte no Nilo, Morte na Praia, Encontro com a Morte e algumas pequenas séries de TV, Tony Randall em Os Crimes ABC no ano de 1965 e Albert Finney em O Assassinato no Expresso do Oriente que acabou ganhando o prémio de melhor filme da Academia onde os suspeitos eram atores mundialmente famosos como Sean Connery, Ingrid Bergman, John Gielgud e Lauren Bacall. Muitos fãs acreditam que David Suchet (de uma série de TV) foi o melhor ator que representou Poirot.

Mas Poirot será sempre lembrado pelas suas inconfundíveis características: a habilidade de resolver mistérios bastante complicados com a ajuda de suas “pequenas células cinzentas”, pelo seu bem tratado bigode, pela sua cabeça em forma de ovo e pela opinião que tem sobre si próprio. E falando em Hercule Poirot, não podemos deixar de falar sobre o Capitão Hastings. Com sua ingenuidade, Hastings foi um dos grandes companheiros de Poirot e o acompanhou em diversos casos.
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Miss Marple
A primeira aparição de Miss Marple foi no livro Assassinato na Casa do Pastor em 1930. Ela é uma senhora que vive vila inglesa de St. Mary Mead. Bem diferente de Poirot, ela não se vangloria de suas deduções, sendo bastante humilde. Em vez de procurar por pistas ela se concentra no instinto e no seu conhecimento sobre a natureza humana. Uma famosa frase de Miss Marple diz o seguinte: “A natureza humana é a mesma em qualquer lugar”. Agatha Christie escreveu uma dúzia de livros de Miss Marple como Um Corpo na Biblioteca, Convite para um Homicídio, Mistério no Caribe, Nemesis, O Caso do Hotel Bertram, Um Crime Adormecido entre outros.

No cinema, algumas atrizes tiveram o privilégio de interpretar Miss Marple: Margaret Rutherford atuou em algumas séries no início dos anos 60, Helen Hayes e Angela Lansbury também atuaram como Miss Marple. Mas Joan Hickson foi a mais famosa, tendo aparecido em séries de TV e outros papéis em outros filmes de Agatha Christie.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 308


Malba Tahan (A Ciência da Vida)


Naquele ano um acontecimento inesquecível perturbou a secular tranquilidade da pequena vila de Anadir. Assinalemos o caso. O jovem e talentoso Namedin, filho do cheique Omar Iruã, depois de longa ausência, regressava ao seu torrão natal, trazendo o diploma que lhe fora conferido pela famosa Universidade de Bagdad.

E o inteligente Namedin não perdera tempo na capital; segundo o dizer das pessoas cultas, era o nosso herói motivo de orgulho para a sua terra, e de glória para a sua família. Aprendera, durante seis anos, com sábios muçulmanos, a ciência imensa que vem nos livros. Estudara, além do mais, a Filosofia, a Matemática cheia de fórmulas, a Lógica com seus belos princípios, a Retórica, a Astronomia e vários outros ramos fecundos do conhecimento humano.

O rico cheique Omar Iruã, figura de relevo na cidade, proclamava com paternal vaidade aos amigos:

— Meu filho, senhores, pela cultura incomparável que possui, é capaz de discutir trinta dias com os “ulemás” do Egito e da Palestina!

Ulemá — como todos sabem — é sinônimo de homem que se destaca pelo saber e pelo estudo. E pouco faltava para que Namedin, apesar de sua juventude, fosse consagrado pelos seus concidadãos com o honroso título de “ulemá”. E em Anadir, afinal desde a mesquita até o hamã (1) não se comentava outra coisa. As lendas mais espantosas brotavam no meio das rodas que palestravam. Dizia um que Namedin conhecia os cento e trinta mil segredos do Corão; garantia outro que o jovem sabia de cor todas as páginas de Ibn Batuta, o sociólogo; afirmava um terceiro que o mancebo resolvia equações e fazia cálculos com letras. E não havia, é certo, muito exagero nessas indicações. O recém-formado era douto entre os mais doutos.

Ao cair da tarde, em meio dos festejos, o xeique Omar Iruã chamou o jovem bacharel e disse-lhe:

— A tua fama, meu filho, deslumbra e assombra a nossa pequenina terra. É preciso porém que, em prova pública, possas justificar o alto conceito em que és tido pelos nossos conterrâneos.

— Que devo fazer, meu pai? — perguntou ele.

— Nada mais simples — explicou o velho. — Hoje, à noite, depois da prece, haverá uma reunião na mesquita. Lá estarão presentes os homens mais ricos de Anadir e também o nosso venerável mufti Abdel-Anurek Ben-Abdallah com seus conselheiros, cadis e secretários. Farás, nessa ocasião, um eloquente discurso no qual demonstrarás que és um conhecedor profundo da verdadeira Ciência da Vida. Com esse discurso deverás impressionar principalmente o mufti, nosso ilustre chefe e judicioso amigo.

— Assim farei, meu pai — volveu com segurança o moço. — Asseguro-te que o povo ficará deslumbrado com as minhas arrebatadoras palavras.

E, nessa mesma noite, realizou-se na mesquita a reunião solene. Ao templo compareceram os elementos mais representativos da sociedade muçulmana: cheiques com seus turbantes de seda, ricos mercadores, escribas, doutores etc.

O jovem Namedin, ao subir para a tribuna que lhe fora destinada, com um rápido olhar examinou o público que ia ouvi-lo. Avistou logo o velho mufti (2), imponente, com suas veneráveis barbas derramadas sobre o peito.

Ditas as palavras do ritual: “Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso”, o nosso herói iniciou um vibrante discurso de apresentação. Discorreu, a princípio, sobre os grandes movimentos sociais dos povos civilizados, impelidos pelas correntes irresistíveis do modernismo. Pintou, com as cores vivas da eloquência, o panorama da vida arrebatada pelos fatores mais complexos das tendências sociais.

— Por Allah! Que talento! — murmuravam os ouvintes.

— E, amigos — continuava o jovem orador arrastado por um entusiasmo sempre crescente — o mundo, queiram ou não queiram os espíritos tacanhos, marcha para a frente levado por um ideal invencível de aperfeiçoamento. E a nossa infeliz Anadir fica imóvel, abandonada à margem do progresso, como se fora uma cidade morta e esquecida. E quereis saber por quê? Eu vos direi a verdade. O governo desta terra está entregue ao velho mufti, homem decrépito, incapaz de compreender as tendências modernas da sociedade. Como pode um espírito rotineiro inculto, arcaizante, admitir as transformações impostas pelo progresso? Jamais há de prosperar uma cidade cujos destinos estão nas mãos de um ancião sem a indispensável energia e sem a necessária capacidade administrativa.

Essas palavras, que feriram o homem de maior prestígio na cidade, causaram aos muçulmanos um escândalo nunca visto.

O mufti ouviu impassível a parlenda do moço como se nada tivesse compreendido; fez, apenas, um ligeiro sinal com os olhos a um de seus auxiliares e este murmurou:

— Logo, ao sair, veremos.

E quando Namedin, orgulhoso pela sensação causada, deixava a mesquita, foi de súbito agarrado por três capangas e espancado impiedosamente. A sova foi tão violenta que o imprudente perdeu os sentidos e teve de ser carregado por alguns amigos para a casa de seus pais.

Muitos dias depois, quando já se achava convalescente dos ferimentos recebidos, falou ao pai e queixou-se do procedimento indigno do mufti que fora o mandatário da bárbara agressão.

Disse-lhe, então, o velho cheique: — O mufti assim procedeu, meu filho, por um motivo muito justo. Ele quis mostrar que, apesar do curso de seis anos que fizeste na Universidade, ainda ignoras, por completo, a Ciência da Vida. Vais, portanto, por minha ordem, voltar novamente para Bagdad e estudarás mais um ano com os sábios filósofos. Veremos depois se findo esse novo prazo terás adquirido os conhecimentos indispensáveis sobre a verdadeira Ciência da Vida.
* * *

Namedin, obrigado a obedecer à resolução paterna, voltou para Bagdad e durante vários meses frequentou os cursos da Universidade. Quando regressou outra vez ao seu torrão natal foi festivamente recebido por seus antigos camaradas.

Houve, como da primeira vez, sob a presidência do mufti, uma grande reunião na mesquita e o jovem Namedin foi convidado a proferir um discurso. Ao tomar lugar na tribuna, o nosso herói avistou a figura imponente do mufti que, rodeado de seus íntimos, aguardava, como da outra vez, solene, a palavra do orador.

Namedin, em longos e eloquentes períodos, fez o elogio do povo fiel de sua terra natal que ele qualificou de “próspera e progressista”. Falou, em seguida, da figura do mufti, esse ancião venerável, “modelo de virtudes”, “cheique dos cheiques”, “amparo da justiça”, “inspirado de Allah” e mil outros elogios que deixaram o mufti sensibilizado e comovido.

E, com um brilho incomparável, Namedin assim falava:

— E devo dizer ainda, ó irmão dos árabes!, que o nosso glorioso mufti pelas suas excelsas virtudes, pela sua vida exemplar e digna, é um verdadeiro santo! E qual é a homenagem que os fiéis muçulmanos devem prestar aos grandes santos do Islã? Determina o Corão, o Livro de Deus: “Conservai dos homens dignos os bons exemplos e venerai as suas relíquias”. Cumpre-nos, pois, como um dever sagrado, conservar do nosso santo mufti uma relíquia qualquer. E das relíquias dos santos as mais preciosas são constituídas pelos fios de barba. Que cada um dos fiéis conserve do nosso virtuoso mufti um fio de suas veneráveis barbas.

E, depois de proferir tais palavras, o jovem Namedin desceu da tribuna, dirigiu-se ao mufti, inclinou-se respeitoso e com a ponta dos dedos arrancou delicadamente um fio das longas barbas do ancião.

O mufti, lisonjeado em sua vaidade em face da extraordinária homenagem, agradeceu e abraçou risonho o nosso herói.

O exemplo de Namedin foi logo seguido por várias pessoas que se achavam perto. Ao fim de alguns minutos, verdadeira legião de fanáticos atirava-se sobre o velho mufti que se sentia puxado pelas barbas e maltratado pelos seus devotados servos. Os fiéis faziam empenho em obter uma relíquia do “santo”.

Com o rosto a sangrar e as vestes em farrapos, conseguiu o mufti fugir dos exaltados muçulmanos. E o inteligente Namedin rejubilava-se da lembrança que tivera. Estava vingado da sova tremenda que um ano antes recebera por ter sido sincero.

E, nessa noite, seu pai disse-lhe orgulhoso:

— Agora sim, meu filho, já conheces perfeitamente a verdadeira Ciência da Vida.
______________________________________
Notas:
(1) Hamã - Casa de banhos.
(2) Mufti — Espécie de prefeito e juiz. O mufti era encarregado do governo de uma cidade.


Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.

Fabiane Braga Lima (Poemas Avulsos)


A VIDA É CHEIA DE FASES

Eu, vejo-me hoje sobre a brisa
De um vento… livre!
Libertei-me de tantos (eus)!

Senti a alma cheia, um amor
Diferente! De amor próprio!
Algo tão espiritual...

Não quero viver de momentos!
Momentos são passageiros,
Valorizo o amor duradouro,
Vivo a intensidade do amor......

Sabedoria não é saber tudo,
Mas, saber o que nunca se
Sabe o suficiente… sempre!

Ser feliz é uma meta que traçamos,
Um dia após o outro... a vida ensina!

Saber que nossos medos nos tornam,
Mais valentes, nos enriquece!
Não tem explicação, é um caminho!

O que somos hoje, e o que seremos...
Amanhã depende de nossos...
Pensamentos…!
Somos aquilo que pensamos
****************************************

PALAVRAS

Chega de viver de palavras, quero senti-lo
Quero sentir se és verdadeiro esse seu Amor
Não quero falas confusas nem tampouco
Qualquer súbita dor..

Me mostrarei ser aparente é intensa à ti
Não quero relacionamento sádico, egoísta
quero viver de flores sempre contigo…
Quero entregar-te todos meus sentimentos
Que no coração sempre guardei!

Preciso de lucidez não desventuras
Então escute-me!
Nunca serei Alma prolixa e nunca padecerei,
Jamais irei te deixar!
Porém, não transgrida esse Amor, então
Serei tudo que queres! se acaso for sonho,
No sonho viverei desse abstrato Amor!
****************************************

SEMPRE O AMOR…

Para onde vou com tanta tristeza!?
Somente à beira de um penhasco!

E, onde deposito esta alegria!?
No coração limpo, nunca incauto!

Como traduzir-me!?
Pobre de minha alma, ao lidar
com vários eu…. se aprisionou!

Minha mente, fadigada e sonhadora,
Se reencontra, sempre no silêncio....
E, vendo-me um ser repugnante,
convicta, consegui resignar... aceitar!

Joguei-me aos extremos, para
viver apenas de amor, tirei o ódio
Tirei toda vastidão de sentimentos ruins!
Pois no silêncio reencontro-me….

Sigo convicta, de que o amor,
sempre será preciso, e o resto
impreciso…

Como traduzir-me?
Desvairada, rude, morosa, inconstante,
Mas o amor sempre sobre minha essência...!
Amor sempre.
****************************************

SINTO TUA ESSÊNCIA

Meu coração chora de amor,
Me faz ser bruta, não flor.

Minha alma geme de dor,
Em silêncio fico, adormeço
No meu orgulho.

Tento te buscar, não consigo,
Me depara num penhasco,
Sinto medo.

Finjo estar tudo bem, mentira,
Existe uma fera dentro de mim,
Mas mansa, chora, nada faz.

E, este amor dentro de mim,
Me faz ser incapaz, ao mesmo
Tempo se aflora.

Todo este sentimento,
Me inquieta, desorienta-me,

Tento me refazer, me perco
Me escondo deste amor,
Por medo, incertezas, sofro.

Mas não dá, entrego-me,
Tua essência invade-me....
E, intensamente, digo:
-Sempre será, aquele que...
Tanto amo...!

Fonte:
Poemas enviados por Samuel da Costa e Vivaldo Terres

Figueiredo Pimentel (O Besouro de Ouro)


Hostiaf VI era rei de um vasto país, e um dos soberanos mais opulentos e poderosos da terra. Apesar disso, porém, era um monarca tão bom, tão magnânimo, tão justiceiro, que mais parecia um pai, que um rei.

Hostiaf tinha um filho, Julião, que era tão bom quanto ele. Um dia, o rei, estando a caçar, animado e satisfeito, embrenhou-se dentro de um espinheiro, a fim de apanhar um passarinho que havia matado. Os espinhos, porém, eram tantos, que o pobre rei neles se espetou, e cegou de ambos os olhos.

O rei e o príncipe voltaram para a casa muito tristes pela infelicidade que acabava de suceder; o povo, que amava o seu soberano, ao saber da desgraça, cobriu-se de luto. Em todas as igrejas, capelas e oratórios particulares, fizeram-se muitas promessas de ver se o bom rei recobrava a vista.
***

Um dia, o príncipe Julião saiu de casa, dizendo ao pai que ia buscar remédio a fim de lhe curar a cegueira. Saindo da cidade, penetrou em uma floresta muito grande; e, sentindo-se bastante cansado, sentou-se numa pedra, e chorou.

Nisso um besouro de ouro começou a voar ao redor dele, e perguntou-lhe:

– Príncipe Julião, porque choras? Acaso aconteceu-te alguma desgraça?

– Choro, disse o príncipe, porque meu pai está cego. Procuro um remédio para a sua cegueira, mas ainda não o achei. Tenho sido tão bom e agora sou ferido no que tenho de mais querido neste mundo. Que devo fazer?

– Continua a ser bom, que alguém te há de proteger, respondeu o lindo inseto.

Julião levantou-se de onde estava sentado, e encaminhou-se para uma cidade que existia no fim da floresta. Aí chegando, viu alguns homens dando com um pau em um cadáver. Indagando o que queria dizer aquilo, responderam que aquele homem estava apanhando, depois de morto, porque tinha deixado dívidas, e o costume da terra era se proceder assim com os caloteiros.

O jovem teve pena do morto, pagou-lhe as dívidas e mandou enterrá-lo. Quando os homens se retiraram, o príncipe ouviu um zumbido perto dele, e viu o besouro de ouro que lhe disse:

– Estou te acompanhando desde que saíste do palácio. Sabia que eras bom, e agora certifiquei-me mais com a ação que acabaste de praticar, mandando enterrar esse pobre homem. Em paga disso, vou ensinar o remédio que há de curar a cegueira de El Rei teu pai. Vai ao reino dos Papagaios. Entra lá à meia-noite, despreza os papagaios bonitos, e procura o mais feio e velho, que está numa gaiola de pau, e traga-o. Depois, tira-lhe o sangue, e molha com ele os olhos do teu pai, que recobrará a visão.
***

O príncipe tanto andou, que chegou ao reino dos Papagaios. Assim que bateu meia-noite, entrou. Ficou deslumbrado com o que viu: ricas gaiolas de ouro, de brilhantes e de pedrarias, que ofuscavam a vista; papagaios de todas as cores, cada qual mais lindo.

Apanhou o papagaio, com a gaiola que lhe pareceu mais bonita, deixando a um canto um papagaio, velho e triste, em uma gaiola já podre, toda enferrujada. Quando o rapaz ia saindo, o papagaio deu um grito. Os guardas acordaram, perseguiram-no, e prenderam-no.

O jovem foi conduzido à presença do rei dos Papagaios, que perguntou o que queria ele com aquela ave apanhada em seu reino.

O pobre moço contou a história de seu pai; e o rei, condoendo-se dele, disse que lhe daria o papagaio, se lhe trouxesse uma espada do reino das Espadas.

O jovem aceitou a proposta. Ia muito triste; e, chegando mais adiante, encontrou o mesmo besouro, que lhe disse:

– Porque estais tão triste, príncipe Julião?

O moço contou o que lhe havia sucedido no reino dos Papagaios.

– Eu não disse! Foste apanhar o papagaio bonito, e deixaste o velho e feio! Aconteceu-te esta desgraça, mas ainda há um remédio: vai ao reino das Espadas. Aí verás muitas – ricas, lindas, ofuscantes. Não te importes com essas; apanha a mais feia, mais velha e mais enferrujada, que lá existe, a um canto.

O moço seguiu em demanda ao reino das Espadas.

Assim que aí chegou, ficou maravilhado: viu espadas de ouro, de prata e de brilhantes. Sem considerar no que fazia, apanhou a mais bonita, não se lembrando da recomendação do besouro. Ia saindo, quando a espada deu um estalo, tão forte, que os guardas acordaram, e prenderam-no, levando-o à presença do rei das Espadas.

Julião contou a história de seu pai; e o rei, tendo pena dele, prometeu dar-lhe a espada, se ele trouxesse um cavalo do reino dos Cavalos.

Saiu dali o príncipe, arrependido de não ter seguido por duas vezes os conselhos do besouro, quando este lhe apareceu mais uma vez:

– Príncipe Julião, já sei porque vais tão triste. Não quiseste, ainda desta vez, ouvir meus conselhos. Vai ao reino dos Cavalos, e traz de lá o mais feio, mais velho, mais magro. Não te importes com os bonitos, os gordos e bem arreados. Procura o que está a um canto, muito magro.

Quando o príncipe entrou, à meia-noite, no reino dos Cavalos, pasmou, vendo os mais lindos cavalos de puro sangue, que existiam em todo mundo. E disse consigo mesmo:

– Ora! Pois eu mesmo hei de levar aquele cavalo, tão magro, que nem me aguentará na viagem? Antes esse aqui, que é forte!

E trouxe o mais bonito de todos – um cavalo todo preto, de crinas e cauda de ouro, com arreios de brilhantes.

Mal Julião tinha saído, quando o cavalo relinchou, tão alto, que todos os soldados se levantaram, e o prenderam.

O jovem dessa vez julgou-se perdido, porque os soldados disseram que ele ia morrer.

Pediu, então, para ir à presença do rei dos Cavalos, a quem contou a sua triste história. O rei, penalizado, disse que lhe daria o cavalo, se fosse furtar a filha do rei vizinho.

O moço aceitou a proposta, mas pediu que lhe dessem um bom cavalo, para poder sair-se bem de uma empresa tão perigosa. Deram-lhe um animal muito bom, que andava tanto quanto o vento.

No meio da estrada, encontrou-se ele outra vez com o besouro, que lhe disse:

– Porque estais tão triste, príncipe?

O príncipe contou tudo quanto lhe acontecera no reino dos Cavalos.

Não podendo mais conter-se, o besouro falou:

– Príncipe Julião, eu sou a alma daquele homem a quem mandaste enterrar, e cujas dívidas pagaste. Ando protegendo-te, desde que saíste do palácio de teu pai. Não tens querido seguir meus conselhos. Ouve, porém, o que te vou dizer, porque esta é a última vez que te apareço. Monta neste cavalo; entra à meia-noite no palácio do rei vizinho; põe a filha na garupa; larga rédea ao teu cavalo; e foge depressa. O teu cavalo anda como o vento, e por isso não há receio de te apanharem; mas toma cuidado de não olhares para trás. Passa pelo reino dos Cavalos, para te darem o teu. Segue diretamente para casa, e não dês ouvidos a ninguém. Anda sempre pelo caminho real; não procures atalhos. Vai depressa, que teu pai está agonizando.

O príncipe fez tudo quanto lhe disse o besouro encantado.
***

Antes, porém, de chegar em terras do reino, encontrou-se com os irmãos, que vinham buscar notícias suas. Quando o viram com uma princesa tão bonita e objetos tão ricos, começaram a aconselhá-lo que devia passar por um atalho do caminho, porque, além de ser mais perto, evitaria dessa maneira os ladrões, que andavam em bandos pela estrada.

Julião acreditou neles; e, tendo saltado do animal, para beber água em uma fonte, os dois o jogaram para o fundo de uma caverna. Depois, os perversos apanharam tudo quanto pertencia a Julião, e marcharam em direção ao palácio de seu pai.

Supondo-o morto, entraram com toda a riqueza do príncipe. A moça, porém, ficou muda; o papagaio, triste, com a cabeça debaixo da asa; a espada começou a marear; e o cavalo emagrecia cada vez mais.

Estando o príncipe quase para morrer, na caverna, apareceu-lhe o besouro, que, ainda desta vez, o livrou da morte, tirando-o dali.

Voltou para casa, e mal pôs o pé na escadaria, a moça começou a falar; o papagaio voou para o seu ombro; o cavalo soltou um relincho muito forte, e principiou a engordar; e a espada luzia que nem um brilhante.

Ao entrar, tirou um bocado de sangue do papagaio, e o pôs sobre os olhos do seu velho pai que recobrou logo a vista.
***

Os irmãos, amedrontados com o aparecimento do mais moço, a quem julgavam morto, atiraram-se do alto da torre do palácio, à calçada, morrendo no mesmo instante. O príncipe Julião casou-se com a formosa princesa que trouxera; e, mais tarde, por morte de seu pai, veio a reinar sempre querido e abençoado pelo seu povo.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 307


Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXXI


Pedro Du Bois (Cecílias)


As Cecílias fecharam seus cadernos onde registravam, não em forma de diário, mas diariamente, seus poemas. Às Cecílias é dado o direito e o poder de registrar poemas, trançando entre todos - se um dia pudessem ser reunidos - o que chamamos de poesia. Mas, na sequência do que foi escrito, as Cecílias haviam fechado seus cadernos, como gesto de abandono ou de desistência.

Se as Cecílias não mais escrevessem seus poemas e não os deixassem registrados em seus cadernos, a poesia sumiria das nossas vistas e nossas vidas não teriam mais a magia decorrente. Estaríamos presos em eternas correntes cecilianas e arrastaríamos nossas mágoas e nossas incertas horas de não adormecer ou de nos alimentar, que as letras são a primeira e a última refeição de cada dia. Não podem as Cecílias por isso ou por aquilo, de repente e nas razões indiretas do que todas pensam em uníssono, ter tal desistência, adormecimento ou esquecimento. As raivas não se coadunam com as Cecílias e delas tomam distância, para não serem transformadas em bonitas figuras decorativas, em amores conquistados entre manchas sobre as toalhas de mesa, ou naquelas pequenas marcas sobre as roupas. As Cecílias têm - ou tinham - consciência do que representam - nos seus textos, muitos entremeados com figuras ou desenhos de flores ou animais de estimação, recortados e colados em seus cadernos -, para as demais pessoas que se chamam Álvaros, Américos, Marthas, Clarisses e possuem segundos nomes, como Pedros Antônios, Pedros Josés, Tânias Reginas ou Marias Antônias, Anas Marias e Paulos Cesários; as Cecílias transitam sós em seus nomes e aceitam apenas únicos sobrenomes, escolhidos para que sejam confortáveis aos poemas e deles não se destaquem nem os atrapalhem quando forem lidos ou lembrados.

Os cadernos das Cecílias estão fechados. Uns foram guardados em gavetas, sob coisas ou livros, outros ficaram sobre as mesas, escrivaninhas ou nas mesinhas de cabeceiras (desses, temos esperanças de reencontros ou revoltas) entre contas e breviários, despertadores e luzes menores. A maioria foi colocado em lugares secretos, fechados à nossa imaginação e conhecimento. Nesses repousa o mais grave: o nunca mais serem manuseados, nem sequer lembrados e terem seus poemas consumidos pelos tempos em que as Cecílias, completando as cenas, também forem se esquecendo deles e elas, trocando de nome e esquecendo que eram Cecílias, se transformem em pessoas como nós, com os nossos nomes e as nossas artimanhas, desconsiderando os poemas guardados no esquecimento com que as letras vão esmaecendo até que nos cadernos sobrem apenas alguns rabiscos em cada folha e não se possa recuperar o que foi escrito, nem ao menos saber que naquele caderno repousou uma vez uma Cecília. A criança a quem for dado o caderno terá noites de insônia, o sono agitado de quem recebe a visita de Cecílias; em cada amanhecer terá a tentação do grafite e, como ainda não sabe das palavras, preencherá folhas e folhas daqueles cadernos com figuras, traços e rabiscos e, mesmo que o que faça também possa ser poemas, não serão os poemas originais deixados pelas primeiras Cecílias. Mesmo que essas crianças perdurem em suas vontades, não alcançarão a glória dos escritos cecilianos. Serão apenas traços e rabiscos, depois letras mal enjambradas, palavras mal escritas, versos tortos de desanimados seres que vieram depois do quando as Cecílias pontuavam seus poemas no final das tardes e com cuidado guardavam seus cadernos para que as noites lhes fossem leves e seus sonos fossem calmos e não sonhassem além do que haviam escrito naquele dia e no outro e assim sucessivamente, até que o caderno fosse completado e, na verdade, para que ficassem completos, as Cecílias escreviam nas contracapas, nas terceiras capas, antes e após as últimas linhas, nas capas e nas últimas capas. Nem um espaço poderia sobrar, mesmo que para isso tivessem que diminuir as letras, juntar palavras, mudar sentidos e, finalmente, antes de passar para o próximo caderno, lançar como despedida uma última frase poética sobre o tanto que lá estava escrito, ou sobre o rapaz conhecido naquele dia, ou sobre a tristeza de ele estar completo e nele não poder ser lançado mais um verso categórico ou oscilante sobre a vida, a obra, o dia e a noite cecilianamente encerrada em nuvens e estrelas alternadas.

O fechar dos cadernos das Cecílias correu mundo; mesmo as pessoas mais broncas, mais ríspidas, mentirosas ou fascinantemente comprometidas com a escuridão e a maldade, sentiram os movimentos ritmados com que os cadernos foram fechados. O abandono da ideia que a todas permeava na certeza com que seus versos não eram entregues em cada tormento, a maneira singela e clara com que seus poemas nos consolavam. Estávamos órfãos, cada Pedro, cada Paulo, cada Regina ou Tânia, cada Marina ou Mariana, cada um que carregava dois, três ou mais nomes, porque as Cecílias de simples nomes haviam decidido sem falar umas com as outras, sem ao menos serem conhecidas entre si, que os cadernos não eram mais necessários e que a poesia (antes de se transformar em outras letras que não aquelas) havia terminado. Os cadernos, mesmo os incompletos e até mesmo aqueles que as Cecílias mais jovens estavam começando, foram fechados, assim como passa o vento diante das nossas janelas e só o sentimos se abrirmos os vidros e pusermos os braços para fora, e se encerraram sem barulhos, sons ou o mero farfalhar das folhas. São discretas as Cecílias com suas obras, com os invólucros e com os gestos. São discretas como seus olhos captando os movimentos vindos de dentro e de fora de cada uma delas: são discretas quando escondem suas lágrimas.

Estamos aqui, desceciliados, na orfandade dos versos e dos poemas completados ontem, antes e por todo o sempre. Não haverá palavra que nos defenda ou que nos arremeta ao amanhã; os amanhãs serão iguais ao ontem e cada um de nós será sua própria palavra: fúnebre, alegre ou triste, desencontrada ou arranhada em paredes. Nossos grafites estarão quebrados, nossas lanças estarão partidas, nossos sonhos estarão acordados. Ainda nos sobrarão as lâminas das facas e com elas, em último e desesperado gesto, faremos nos troncos das árvores mais próximas entalhes de corações atravessados por setas e dentro deles escreveremos com a força resultante, sempre e em cada um, o mesmo nome, repetido e no plural, pois plurais são as Cecílias que escreveram em nossas vidas os poemas mais belos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Helena Kolody (Poemas Avulsos) 2


ABISMAL

Meus olhos estão olhando
De muito longe, de muito longe,
Das infinitas distâncias
Dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
Para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria a sua face.
****************************************

ÂMAGO

Quem bebe da fonte
que jorra na encosta,
não sabe do rio
que a montanha guarda.
****************************************

ANOITECER

Amiudam-se as partidas...
Também morremos um pouco
no amargor das despedidas.

Cais deserto, anoitecemos
enluarados de ausências.
****************************************

ARAUCÁRIA

Araucária,
Nasci forte e altiva,
Solitária.
Ascendo em linha reta
- Uma coluna verde-escura
No verde cambiante da campina.

Estendo braços hirtos e serenos.

Não há na minha fronde
Nem veludos quentes de folhas,
Nem risos vermelhos de flores,
Nem vinhos estonteantes de perfumes.
Só há o odor agreste da resina
E o sabor primitivo dos frutos.

Espalmo a taça verde no infinito.
Embalo o sono dos ninhos
Ocultos em meus espinhos,
Na silente nudez do meu isolamento.
****************************************

ATAVISMO


Quando estou triste e só, e pensativa assim,
É a alma dos ancestrais que sofre e chora em mim.
A angústia secular de uma raça oprimida
Sobe da profundeza e turva a minha vida.

Certo, guardo latente e difusa em meu ser,
A remota lembrança dos dias amargos
Que eles viveram sem a ansiada liberdade.
Eu que amo tanto, tanto, os horizontes largos,
Lamento não ser águia ou condor, para voar
Até onde a força da asa alcance a me levar.
Ante a extensão agreste e verde da campina,
Não sei dizer por que, muitas vezes, senti
Saudade singular da estepe que não vi.

Pois, até o marulhar misterioso e sombrio
Da água escura a correr seu destino de rio,
Lembra, sem o querer, numa impressão falaz,
O soturno Dnipró, cantado por Taras...

Por isso é que eu surpreendo, em alta intensidade,
Acordada em meu sangue, a tara da saudade
****************************************

CHAMA


Chama do Absoluto,
arde o verbo em nossa lâmpada humilde.
****************************************

IDENTIFICAÇÃO


Eu me diluí na alma imprecisa das coisas.
Rolei com a Terra pela órbita do infinito,
Jorrei das nuvens com a torrente das chuvas
E percorri o espaço no sopro do vento;
Marulhei na corrente inquietadora dos rios,
Penetrei a mudez milenária das montanhas;
Desci ao vácuo silencioso dos abismos;
Circulei na seiva das plantas,
Ardi no olhar das feras,
Palpitei nas asas das pombas;
Fui sublime n’alma do homem bom
E desprezível no coração do mesquinho;
Inebriei-me da alegria do venturoso;
E deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz.

Nada encontrei mais doloroso,
Mais eloquente,
Mais glorioso
Do que a tragédia cotidiana
Escrita em cada vida humana.
****************************************

 MERGULHO


Almejo mergulhar
na solidão e no silêncio,
para encontrar-me
e despojar-me de mim,
até que a Eterna Presença
seja a minha plenitude.
****************************************

POETA

O poeta nasce no poema,
inventa-se em palavras.
****************************************


PRECE

Concede-me, Senhor, a graça de ser boa,
De ser o coração singelo que perdoa,
A solícita mão que espalha, sem medidas,
Estrelas pela noite escura de outras vidas
E tira d’alma alheia o espinho que magoa.
****************************************
VIGÍLIA

A noite é profunda,
Silente e de trevas.

Ao lado de teu corpo, imóvel e sereno,
Estou a contemplar-te, Pai.

Por estranhos caminhos,
Cheios de neblina,
Anda minh’alma soluçante,
A clamar por ti.

Teus olhos fitam muito longe
Um olhar imensamente triste.

A chama dos círios dança sem cessar
Em tuas pupilas mortas,
Tentando desviar tua mirada
De um ponto fixo na eternidade.

Círio recôndito,
Arde meu coração e se consome.

Há longos espinhos aguçados
Esgarçando meus nervos sensíveis.

Beijo tuas mãos pálidas e tristes,
Humildes mãos cansadas,
Agora consteladas
Por líquidos brilhantes.

Por estranhos caminhos,
Cheios de neblina,
Anda minh’alma soluçante,
A clamar por ti.

Fontes:
Helena Kolody, Sempre Palavra. Publicado em 1985.
Helena Kolody, Paisagem Interior. Publicado em 1941.
Helena Kolody. Infinito Presente. Publicado em 1980.

Aparecido Raimundo de Souza (Bichanos)


O PRIMEIRO GATO, um SRD* veio lá da cozinha e se acomodou no sofá da sala, de frente para a televisão:

—  Miau!...

O segundo gato (aliás, uma gata da raça Ragdolls), não demorou a entrar em cena. Deixou o quarto onde dormia numa cama confortável junto com a sua dona, ama e senhora e, como o primeiro, se abancou* também no confortável estofado, os olhos grudados na tela do aparelho:

—  Miau... Miau...

O terceiro gato, um gigantesco Maine Coon* entrou pela  janela da sala, vindo da varanda e, igualmente, num salto impecável se albergou* no seu lugar de sempre. Cada um dos animais possuía o seu assento especificado, no confortável comprido  de canto, este mobiliário dotado de braços e encostos, em formato de “em L”, de treze lugares, o que ajudava, de certa forma,  a não criar problemas entre os espectadores.

Havia, entretanto, uma diferença enorme entre este terceiro Maine Coon legítimo e o casalzinho anteriormente arribado*. Ele era por demais inteligente e sabia fazer funcionar  qualquer coisa que precisasse ser ligada. Antes de devolver os cumprimentos à dupla da sua linhagem “gatal”, com as patinhas dianteiras sobre o painel de controle jogado no chão, deu vida plena a Smart Led 82 UHD 4K LG, Ultra Surround Magic Bluetooth*.

O primeiro gato, soltou seu miado demonstrando incontestável satisfação interior:

—  Miau...

O segundo gato, ou melhor a segunda felídea*, igualmente se abrindo em mesuras, ronronou como se estivesse com a alma em festa:

—  Miau... Miauuuuuu...

O terceiro gato, em agradecimento, se mesurou num ruído prolongado,  como se agradecesse a seus consanguíneos por estarem ali presentes:

—  Miau... Miau... Miauuuuuuuu!...

Na gigantesca tela cinematográfica da Smart Led 82 UHD 4K LG, Ultra Surround Magc Bluetooth, Tom & Jerry acabava de começar.
_______________________________________________________________________
Glossário:
ABANCOU — Acomodou
ALBERGOU —  Sentou
ARRIBADO —  Chegado
FELÍDEA —  Raça de animais carnívoros.
MAINE COON — Raça de gatos
SMART LED 82 —  Televisão ultramoderna com tela imensa.
SRD — Sem raça definida

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 28 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 306


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Testemunha Ocular da História


Uma das vantagens de ser velho é ter sido testemunha ocular de um longo período da história (quem se lembra do Repórter Esso?). Especialmente quando se trata da história de um tempo durante o qual o progresso da humanidade deu uma cambalhota completa.

Lucilla e eu nascemos na terceira década do século 20, quando o futuro estava apenas começando. Mas já havia trem (o maria-fumaça); havia automóvel (o fordinho pé-de-bode); havia até avião (o teco-teco). O telefone era acionado com manivela, mas falava; o cinema era em preto e branco, mas já não era mudo; o rádio era chiado, mas dava para ouvir as belas serestas da época; a televisão parecia ainda coisa de ficção científica, mas já estava em processo adiantado de invenção.

Quando nasceram nossas filhas, o mundo estava bem mais avançado. A televisão já existia e começava até a transmitir em cores, o telefone falava em DDD e DDI, os aviões voavam a jato, a criançada crescia protegida por múltiplas vacinas e a música vinha gravada em long-playings, tocando Beatles e Rolling Stones, mais aquela turma toda da MPB: Jobim, Vinícius, Gil, Caetano, Vandré, Roberto, Gal, Elis...

Os netos encontraram tudo isso em versão mais moderninha ainda, e ao sair do berço já começavam a mexer com o computador, o celular e mil outras maravilhas lançadas a cada instante no mercado pela tecnologia eletrônica.

Agora já temos três bisnetos. Que será que eles vão ver que nós não vimos ainda? Sabe-se lá quantas novidades os esperam. Inventos fantásticos, certamente. Mas sobretudo sonho para eles um mundo mais justo, mais saudável, mais calmo e mais limpo, onde reinem a paz e a alegria.

Os cinco netos, cada qual na sua vez, pintaram e bordaram com o vô: montaram nas minhas costas, me levaram pra ver desenhos no cinema, lanchar na pizzaria, comprar revistinhas, passear no parque...

Com os bisnetos começou tudo outra vez. Eles inauguraram uma nova edição em nossa família, que começou pequenininha na jovem Maringá dos pioneiros, cresceu, multiplicou-se e hoje é parte de um numeroso clã.

Terão chance de chegar ao século 22, mas nem imagino como será o mundo quando tiverem a idade que tenho agora. Na mobilidade urbana usarão algum equipamento para voo individual. Nas viagens a Nova Iorque ou Paris disporão de aeronaves que farão o percurso em menos de uma hora. Contarão com algum aparelhinho tipo relógio de pulso que lhes permitirá conversar com qualquer falante de qualquer língua... E sabe-se lá mais o quê...

Deus os abençoe e lhes dê uma vida bonita e longa. E que possam ajudar a fazer deste planeta um lugar onde todos disponham de condições para viver felizes.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 21-5-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Nadir D’Onofrio (Poemas Escolhidos) I


ACORDES EM POESIA!

Notas fluem em harmonia
Nas pautas de um acalanto
Há um perfume de gardênia
Daí surge o meu espanto

Sobre o piano tua insígnia
Na xícara chá de amaranto
As lágrimas sem cerimônia
Deslizam por desencanto

Lembra-me da tarde outonal
Havia acordes em poesia!
Quando chega a missiva final

Enviada pela capitania
Um naufrágio sob temporal
E eu... não mais o veria…
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CASTIDADE

Vento frio!
Noite de lua cheia
No antigo casario
A solidão aperreia

Na mente recrio
Imagens da aldeia...
Você no átrio
E a luz da candeia

Lembranças arquivadas
Em épocas de felicidade
Promessas juramentadas...

Nunca concretizadas!
Optaste pela castidade
Deixaste-me na infelicidade…
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LABIRINTOS

Nada que indique o rumo
Só labirintos enevoados
A mente fora de prumo
Sentimentos atordoados

Isolado em seu quarto
Coração despedaçado
Tenta juntar os cacos
Antes que haja o enfarto

Seria simples a solução
Descartando a razão
Prevalecer só a emoção

Seriam felizes
Diante dos deslizes
Ou viveriam, sem matizes?
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LUAR DE AGOSTO    


Tanto se diz sobre o mês Agosto!
Dizem ser, época de cachorros loucos
E de acontecimento nefasto
Inclui-se ainda, dados proféticos

Um ser mergulhado, em desgosto
Inquieto a ouvir sons melódicos
Canta, esboça sorriso, a contra gosto!
Em disfarces aristocráticos

Noite fria, sob o Luar de Agosto!
A mente aturdida com incertezas
A alternativa é mudar o projeto...

Não existe sorte, e sim... ardilezas
Num ímpeto de fúria quebra o amuleto
Ao concluir, o amor necessita de proezas…
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SOM DO VENTO


Só o som do vento!
Melancólica sinfonia
Em conserto solo
Acordes finais do dia.

Torvelinho de pensamentos
Múltiplas lembranças
Tingidas de aborrecimentos
Foram tantas mudanças...

Nas desculpas a contradição!
Deixo de lado cobranças
Sempre foste ambíguo!

Viverei  o bom momento...
Não quero desavenças
Traga-me... somente alento…
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UM GRANDE SONHO

O dia amanheceu radiante
Meu coração saltitava
Seria um momento apaixonante
Logo mais o encontraria

Um grande sonho realizaria
Eis que surgiria o vendaval
E meu ideal, devastaria
Isso eu não previa... gorou o festival...

Vitima em mar de agonia
Em tridentes, enrosquei
Mergulhei nessa avaria

Do salva vidas abdiquei
Dei um basta na melancolia
E o inferno... incendiei…

Fonte:
Asas dos Sonhos

Sílvio Romero (O Bicho Manjaléu)


(Folclore do Sergipe)

Uma vez existiu um velho casado, que tinha três filhas muito bonitas. O velho era muito pobre e vivia de fazer gamelas para vender.

Um dia, chegou à sua porta um moço muito formoso, montado num belo cavalo e lhe falou para comprar uma de suas filhas.

O velho ficou muito magoado, e disse que, por ser pobre, não havia de vender sua filha. O moço disse-lhe que se não lhe vendesse, o mataria. O velho intimidado vendeu-lhe a moça e recebeu muito dinheiro.

Retirando-se o cavaleiro, o pai da família não quis mais trabalhar nas gamelas, por julgar que não o precisava mais de então em diante,  mas a mulher insistiu com ele para que não largasse o seu trabalho de costume, e ele obedeceu.

Quando foi na tarde seguinte, apresentou-se outro moço, ainda mais bonito, montado num cavalo ainda mais bem aparelhado, e disse ao velho que queria comprar-lhe uma de suas filhas. O pai ficou muito incomodado. Contou-lhe o que lhe tinha acontecido no dia antecedente, recusou-se ao negócio. O moço o ameaçou também de morte, e o velho cedeu.

Se o primeiro deu muito dinheiro, este ainda deu mais e foi-se embora.

O velho de novo não quis continuar a fazer as gamelas e a mulher o aconselhou até ele continuar.

Na tarde seguinte, apareceu outro cavaleiro ainda mais bonito, e melhor montado, e, pela mesma forma, carregou-lhe a filha mais moça, deixando ainda mais dinheiro.

A família ficou muito rica. Depois apareceu a velha pejada e deu à luz um filho, que foi criado com muito luxo e mimo.

Quando chegou o tempo do menino ir para a escola, um dia brigou com um companheiro, e este lhe disse: "Ah ! tu cuidas que teu pai foi sempre rico!... Ele hoje está assim, porque vendeu tuas irmãs !... "

O rapazinho ficou muito pensativo e não disse nada em casa, mas quando foi moço, num dia se armou de um alfanje* e foi ao pai e à mãe e lhes disse que lhe contassem a história de suas três irmãs, senão os matava. O pai lhe teve mão, e contou o que se tinha passado antes dele nascer. O moço então pediu que queria sair pelo mundo para encontrar as suas três irmãs, e partiu.

Chegando em um caminho, viu numa casa três irmãos brigando por causa de uma bota, uma carapuça e uma chave. Ele chegou e perguntou o que era aquilo, e para que prestavam aquelas coisas.

Os três irmãos responderam que - àquela bota se dizia: "Bota, me bota em tal parte!" e a bota botava; à carapuça se dizia: "Esconde-me, carapuça!" e ela escondia a pessoa que ninguém a via; e a chave abria qualquer porta.

O moço ofereceu bastante dinheiro pelos objetos, os irmãos aceitaram, e ele partiu.

Quando se afastou da casa, disse: "Bota, me bota na casa de minha irmã primeira."

Quando abriu os olhos, estava lá. A casa era um palácio muito ornado e rico, e o moço mandou pedir licença para entrar e falar com a irmã, que estava feita rainha. Ela não queria aparecer, porque dizia que nunca tinha tido irmão. Afinal, depois de muita instância, deixou o estrangeiro entrar. Ele contou toda a sua história, a irmã o acreditou e o tratou muito bem.

Perguntou-lhe como podia ter chegado ali àquelas brenhas, e o irmão disse-lhe o poder da bota. Pela tarde, a rainha se pôs a chorar e o irmão lhe indagou da razão, ao que ela respondeu - que seu marido era o rei dos peixes, e, quando vinha jantar, era muito zangado, em termos de acabar com tudo, e não queria que ninguém fosse ter ao palácio... O moço disse-lhe que por isso não se incomodasse, que tinha com que se esconder e não ser visto, e era a carapuça.

Pela tarde, veio o rei dos peixes, acompanhado de uma porção de outros, que o deixaram na porta do palácio e se retiraram. Chegou o rei muito aborrecido, dando pulos e pancadas, dizendo: "Aqui me fede a sangue real, aqui me fede a sangue real!..." do que a rainha o dissuadiu, até que ele tomou banho e se desencantou num belo moço.

Seguiu-se o jantar, no qual a rainha perguntou-lhe:

– "Se aqui viesse um irmão meu, cunhado seu, você o que fazia ?"

- "Tratava-o e venerava como a você mesma; e se está aí, apareça".

Foi a resposta do rei. O moço apareceu, e foi muito considerado. Depois de muita conversação, em que contou sua viagem, foi instado para ficar ali, morando com a irmã, ao que disse que não, porque ainda lhe restavam duas irmãs a visitar.

O rei lhe indagou que préstimo tinha aquela bota, e quando soube do que valia disse-lhe: "Se eu a apanhasse ia ver a rainha de Castela".

O moço, não querendo ficar, despediu-se, e, no ato da saída, o cunhado lhe deu uma escama, e disse-lhe:

– "Quando você estiver em algum perigo, pegue nesta escama, e diga: "Valha-me o rei dos peixes".

O moço saiu, e, quando se afastou do palácio, disse: "Bota, me bota em casa de minha irmã segunda", e quando abriu os olhos, lá estava. Era um palácio ainda mais bonito e rico do que o outro.

Com alguma dificuldade da parte da irmã, entrou e foi recebido muito bem. Depois de muita conversa, a sua irmã do meio se pôs a chorar, dizendo que era "por estar ele aí, e, sendo seu marido rei dos carneiros, quando vinha jantar, era dando muitas marradas, em termos de matar tudo".

O irmão apaziguou-a, dizendo que tinha onde se esconder. Com poucas, chegou uma porção com um carneirão muito alvo e belo na frente, este entrou e os outros voltaram.

(Segue-se uma cena em tudo semelhante à que se passou em casa do rei dos peixes)

Na despedida, o rei dos carneiros deu ao cunhado uma lãzinha, dizendo:

– "Quando estiver em perigo, diga: "Valha-me o rei dos carneiros ".

Também disse, depois de saber da virtude da bota: "Se eu pegasse esta bota, ia ver a rainha de Castela".

O moço foi reparando nisto, e formou logo consigo o plano de ir vê-la. Saiu, e pela mesma forma foi à casa de sua irmã mais moça. Era um palácio ainda mais bonito e rico do que os outros dois. (Seguem-se as mesmas cenas que nas outras duas visitas ). Era o palácio do rei dos pombos, e este, na despedida, deu ao cunhado uma pena, com as palavras :

– "Quando se vir nalgum perigo, diga: "Valha-me o rei dos pombos".

Na despedida, sabendo o rei do préstimo da bota, mostrou também desejos de ir visitar a rainha de Castela.

Logo que o moço se viu longe do palácio, disse: "Bota, bota-me agora na terra da rainha de Castela".

Assim foi. Chegado lá, ele indagou e soube que "era uma princesa que o pai queria casar, e que era tão bonita que ninguém passava pela frente do palácio que não olhasse logo para cima para vê-la na janela; mas a princesa tinha dito ao rei que só se casava com o homem que passasse por ela sem levantar a vista."

O estrangeiro foi passar, e atravessou toda a distância sem olhar, e a princesa casou com ele.

Depois de casados, ela indagou pelo significado daqueles objetos que seu marido sempre trazia consigo. Ele tudo lhe contou, e a princesa prestou muita atenção ao prestígio da chave.

O rei, seu pai, tinha em palácio um quarto que nunca se abria, e neste quarto, onde era proibido a todos entrar, estava, desde muito tempo, trancado um bicho Manjaléu, muito feroz, que sempre o rei mandava matar e sempre revivia. A moça tinha muita curiosidade de o ver, e, aproveitando a saída do pai e do marido para uma caçada, pegou na chave encantada e abriu o quarto. O bicho pulou de dentro, dizendo: "A ti mesmo é que eu quero!..." e fugiu com ela para as brenhas.

Quando voltaram os caçadores, deram por falta da princesa, e ficaram muito aflitos, o rei foi ao quarto do Manjaléu, e achou-o aberto e vazio, e o novo príncipe conheceu a sua chave... Depois valeu-se de sua bota e foi ter aonde estava a sua mulher.

Esta, quando o viu, estando ausente o Manjaléu, ficou muito alegre, e quis ir-se embora com ele. Mas o marido não consentiu, dizendo que ela ficasse ainda para indagar do monstro onde estava a sua vida, para assim dar-se cabo dele. O príncipe foi-se embora. Quando o Manjaléu voltou, conheceu que ali tinha estado bicho homem; a moça o dissuadiu, e quando ele se acalmou, ela lhe perguntou onde estava a sua vida. O monstro zangou-se muito, e disse: “ – Ah! tu queres saber de minha vida mais o teu marido, para darem cabo de mim!... Não te digo, não..."

Passaram-se dias, sempre a moça instando. Afinal, ele foi amolar um alfanje, dizendo: "Eu te digo onde está a minha vida; mas se eu sentir qualquer incômodo, conheço que ela vai em perigo, e, antes que me matem, mato a ti primeiro, queres!?"

A princesa respondeu que sim. O Manjaléu amolou o alfanje, e disse-lhe: "Minha vida está no mar; dentro dele há um caixão, dentro do caixão uma pedra, dentro da pedra uma pomba, dentro da pomba um ovo, dentro do ovo uma vela; assim que a vela se apagar eu morro".

O bicho saiu e foi procurar frutas. Chegou o príncipe e soube de tudo e foi-se embora. O Manjaléu veio e deitou-se no colo da moça com o alfanje ali perto. O príncipe chegou com a sua bota à praia do mar num instante; lá pegou na escama , que tinha, e disse: "Valha-me o rei dos peixes!" De repente uma multidão de peixes apareceu, indagando o que ele queria.

O príncipe perguntou por um caixão que havia no fundo do mar. Os peixes disseram que nunca tinham visto, e só se o peixe do rabo cotó soubesse. Foram chamar o peixe do rabo cotó, e este respondeu: "Neste instante dei uma esbarrão nele."

Todos os peixes foram e botaram o caixão para fora. O príncipe abriu e deu com a pedra; aí pegou na lãzinha e disse: "Valha-me o rei dos carneiros!" De repente apareceram muitos carneiros e entraram a dar marradas na pedra. O Manjaléu lá começou a sentir-se doente, e dizia: "Minha vida, princesa, corre perigo!" E pegou no alfanje; a moça o foi dissuadindo e engambelando. Os carneiros quebraram a pedra e voou uma pomba. O príncipe pegou na pena e disse: "Valha-me o rei dos pombos!" Chegaram muitos pombos e correram atrás da pomba, até que a pegaram. O príncipe abriu-a e achou o ovo.

Quando estava nisto, lá o Manjaléu estava muito desfalecido, pegou no alfanje e ia dando um golpe na princesa. Foi quando cá o príncipe quebrou o ovo, e apagou a vela; aí o bicho caiu sem ferir a moça. O príncipe foi ter com ela, e levou-a para palácio, onde houve muitas festas.
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Nota de Luís Câmara Cascudo:

São muitas as versões portuguesas deste conto em Adolfo Coelho. Contos populares portugueses, Teófilo Braga, Contos tradicionais do povo português. Figura em toda literatura oral europeia. Os irmãos Grimm registraram-no, Die Kristallkuger, amplamente estudados por Bolte e Polivka, nas variantes e com abundante bibliografia, Anmerkungen zu den kinder und hausmärchen der bruder Grimm. Muito popular na Itália, onde foi recolhido pelos mestres Comparetti, Pitrè, Imbriani, figura nos contos sicilianos de Laura Gonzenbach e no Pentamerone de Giambattista Basile. Brueyere encontrou-o na Grã Bretanha. O elemento da alma exterior ou da vida exterior do bicho Manjaléu (de Aarne-Thompson, (The Ogre's Heart in the Egg ) é um dos motivos mais universais na novelística popular, aparecendo no conto egípcio dos Dois Irmãos, há trinta e dois séculos. A vida ou a alma de Batau estava guardada numa flor de cedro. Pelo enredo o conto é um dos melhores exemplos de convergência, possibilitando grande número de variantes sobre os objetos mágicos, os animais que são soberanos encantados (Three Animals as Brothers-in-law, de Aarne-Thompson), a external soul do monstro, etc. O Bicho Manjaléu corresponde a Les Trois Filles Vendues, Contes populaires canadiens, Marcel Rioux. Muitos elementos do bicho Manjaléu ocorrem no conto do Pentamerone de Giambattista Basile, The Three Animal Kings, com as notas de Penzer, Londres, 1932. Prova sua expansão na Itália na segunda metade do séc. XVI e primeira décadas do séc. XVII.

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Vocabulário:
Alfanje
– Sabre de folha curta e larga.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.