quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Edy Soares (Cristais Poéticos) VI

CAMALEÃO


E lá vou eu,
Na carona da vela;
Na garupa da sela
Ou no barco à deriva;

Na rajada de vento;
No mar em tormento
Ou na calma da brisa;

No galope do bicho;
Na sacola do lixo
Ou na mesa da sala;

No dinheiro do rico
Ou dormindo em cortiço
Com povo que cala.

Adapto-me ao meio;
No palácio do rei
Ou entre povo sem fala.

Estou atrás do escudo
Ou no meio de tudo;
Na direção da bala.
****************************************

ESPERANÇA

Sem a presença tua,
Hoje, nem a companheira lua,
Que sempre ilumina a rua,
Quis me ouvir.

Simplesmente se escondeu
Atrás da nuvem escura,
Pra não dividir, comigo,
A tristeza que não dissipa.

Egoísta lua, que nos via,
E eu com ela te dividia,
Agora me deixa só.

Até a brisa, que chega,
Tem por companheira a chuva fina.

Choro eu
Na noite de breu.
Não deixo que caia,
E recolho cada lágrima,
Pois cada uma te pertence
E tem tua essência,

Guardo-as para ser o perfume
Que me embriagará,

Com elas ungirei meu corpo,
Para que na tua ausência,
Tragam a mim tua presença,
Nem que seja na ilusão
De eternamente te esperar.
****************************************

ETERNO AMOR II

Diante dos olhos teus,
meu corpo tremula e sua,
se olhas dentro dos meus,
minh'alma se sente nua.

Meu coração se perdeu
de amor por ti, bela musa,
se teu amor percebeu,
toma- me, usa e abusa.

Toma minh'alma acanhada,
dá-me tua boca molhada,
molha meus lábios nos teus,

Encosta-te sem pudor,
toma de mim esse amor
que a ti sempre pertenceu.
****************************************

MINHA FLOR

Quisera eu
Conservar-te latente,
Preciosa semente
Que gerou linda flor.

Quisera eu
Dormir ao teu lado,
Acordar embriagado
No teu primeiro amor.

Quisera eu
molhar-te amiúde,
Regar-te com perfume
E assistir-te crescer,

E no desabrochar
Dessa flor mais bela,
Ser o teu sentinela,
Só pra te proteger.

Seria eu
O primeiro a colher-te
E grudada em meu corpo,
Levar-te onde eu for.

Seria eu
Colibri sorridente,
Saciado e contente
Com o doce néctar da flor.

Mas mesmo sabendo
Não ser eu o primeiro,
Não serei derradeiro
E nem perdedor.

Pois tu, assim tão linda,
Que sejas bem vinda!
Já és rosa feita.
Serei o teu servo,
sempre a teu dispor.
****************************************

O BEM E O MAL

Quando o bom se corrompe,
o mau se justifica;
quando o bem enfraquece,
o mal se multiplica.

O bem é maior e forte;
o mal é menor em seu porte,
mas na ausência de um,
predomina o que fica.

Quando o maior foge à luta,
o menor toma a batuta
e coordena, e orquestra.

Quando a maioria se cala,
a minoria domina a fala
e prolifera o que não presta.
****************************************

PEDINTE CRIANÇA

O olhar tristonho, criança,
Na dança de carros no farol,
Sem temer a resposta se lança
Por um trocado, em busca do pão.

Pedinte, sem sorte, mulamba,
É samba ao olhar de quem passa,
Quem nega, o faz por desculpa
De que doar incentiva a desgraça.

Filhos da pátria que esbanja,
Se arranja com o pouco que sobra,
Ninguém quer saber onde dorme,
Também pouco importa, se acorda.

Salve! Salve! Pequenas crianças,
Esperança do futuro do mundo,
Sobra ouro nos cofres do rei,
Mas pra vocês, falta amor falta tudo.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro enviado pelo poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 8: Lados opostos


A MENINA TODA SUJA, os pés descalços no cimento frio, uma sainha curta, desbotada e em tiras, encimada por uma camisa-blusa com vários buracos à luz de uma lua clara, surge diante de mim, assim, do nada. Traz, nas mãos, umas flores de aparências estranhas e, a princípio, penso que pretendesse vendê-las em troca de algumas moedas.

Humildemente ela se aproxima, me dirige um ‘boa noite’ vagaroso e pede ‘desculpas pela intromissão’. A minha mesa armada na calçada da longa avenida movimentada, junto com outras e, nelas, à distancias poucas, alguns gatos pingados bebem cerveja enquanto casais de namorados trocam afagos e permutam carícias espiando a escuridão do mar.

Ela parece ter me colocado na sua alça de mira. Ao invés de se dirigir aos demais, ao redor, prefere vir até mim. A mesa que ocupo, está cheia de pratos e talheres, além de duas garrafas de refrigerantes, uma delas com metade da bebida que eu ainda me servia a goles moderados e duas bandejas com restos de batatas fritas e alguns pedaços de um churrasco no palitinho que eu pedi e rejeitei, em face de conter restilhos de gordura.

Com a mesma simplicidade e candura que chega, e diante da minha negativa de lhe dar alguns trocados, a jovenzinha pergunta se eu me importo que ela pegue aquelas sobras. Aquiesço e ela rapidamente arremata o que eu deixei de comer e engole numa pressa de fome voraz intensa. Indaga, seguidamente, se eu ainda me servirei do restante do guaraná e também declino para que possa matar a sua sede.

Depois, num sorriso de satisfação me agradece e vai embora. Desaparece tão silenciosa como chegou. Fico imaginando, com meus botões, como a vida, para alguns, se mostra hostil e sem razão, enquanto para outros, se exibe maravilhosa e gentil, mostrando um leque de caminhos diferenciados que acabam em horizontes floridos e auspiciosos.

Para esta pobre criança, que acabou de sair do meu campo de visão, acredito ai, na casa dos treze, talvez menos, padece uma vida ingrata e infame, uma existência lhe cai cruel todos os dias sobre as costas. Para mim, ao contrário, se mostra alegre e benfazeja. Olho para meus pratos vazios e penso em tudo o que o meu dinheiro pode comprar, ao passo que a miserável criaturinha carece ficar à deriva.

Purgando ao acaso do Deus dará, indo e vindo, chegando e deschegando, implorando a um e outro alguma coisa que será jogada fora para colocar no estômago vazio e, com a voz áspera da maldita fome gritando severamente mais alta.

Meu Deus!... Eu tenho o direito de me sentar aqui e ela, coitadinha, sequer se pode dar ao luxo, ao prazer, ou ao gosto de se acomodar num destes estabelecimentos montados ao longo da calçada à beira mar e espantar a orexia* dolorosa e lastimosa que a atormenta e, via paralela, que esmaga e definha, corrói e deprava, de maneira contundente as belezas da sua infância perdida.
****************************************
*orexia – med.: necessidade ou desejo imperioso e contínuo de ingerir alimentos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (A Comédia Humana, de Honoré de Balzac)


É o título pelo qual o autor francês Honoré de Balzac decidiu chamar todo o conjunto de sua obra, com exceção de alguns romances iniciais, e que constitui 95 obras concluídas e 48 inconclusas, em sua maior parte romances, novelas e contos, que retratam principalmente a ascensão da burguesia, ocorrida à época da Restauração francesa.

No Brasil, foi publicada integralmente em dezessete volumes, entre 1945 e 1953

UMA TAREFA COLOSSAL

Tudo na A Comédia Humana é imenso: dezessete volumes, noventa e cinco obras (mas planejada para ter cento e trinta e sete), mais de dez mil e seiscentas páginas, mais de dois mil e quinhentos personagens. No entanto, Balzac não se referia a si mesmo como escritor e, sim, como historiador de costumes.

Conforme Terezinha de Camargo Viana, "Balzac, ao se propor como "historiador de costumes", tem como perspectiva assinalar o processo de profundas mudanças pelas quais passa a sociedade francesa na primeira metade do século XIX, evidenciando a transição do Antigo Regime à consolidação da moderna sociedade burguesa". Para atingir este objetivo, o autor introduziu na literatura assuntos, profissões e classes que nela nunca tiveram lugar antes: o sistema de transporte interurbano na França, o processo da tipografia, o jornalismo nascente, a rotina dos cartórios e dos escritórios de advocacia, os comerciantes e suas listas de clientes e fornecedores, o sistema de descontos de letras, a confecção de perfumes, atas de concordatas, montagem de processos de falências etc, a nada Balzac se furtou, sem jamais cair no ridículo ou na monotonia.

Tratou também da luta de classes (seu romance póstumo Os Camponeses contém, pela primeira vez na literatura, a palavra "comunismo"), do espiritismo, dos meandros da política, do misticismo e de temas espinhosos, como o lesbianismo. Aliás, segundo Otto Maria Carpeaux, o gênero literário romance divide-se em antes e depois de Balzac. Antes, como em Manon Lescaut, do Abade Prévost, A Princesa de Clèves, de Madame de La Fayette ou A Nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau, um romance seria "a relação de uma história extraordinária, 'romanesca', fora do comum . Depois, o espelho do nosso mundo, dos nossos países, das nossas cidades e ruas, das nossas casas, dos dramas que se passam em nossos apartamentos e quartos".

DO ROMANCE POPULAR À PROVOCAÇÃO A DANTE

O primeiro volume saiu em 1842, mas a essa altura quase todas as obras já haviam sido publicadas, tanto em jornais como em forma de livros. Balzac estreou nas letras na década de 1820, escrevendo subliteratura influenciada pelo romance gótico, com títulos como A Última Fada ou a Nova Lâmpada Maravilhosa, Anette e o Criminoso, João Luís ou a Enjeitada e Clotilde de Lusignan ou o Belo Judeu. Sabia que eram livros sem nenhum valor artístico, por isso assinava-os com pseudônimos como Lord R'hoone e Horace de Sainte-Aubin. Finalmente, em 1829 publicou o primeiro título que assinou com seu nome, o romance histórico A Bretanha em 1799. A partir daí, em um ritmo cada vez mais frenético, saíram até 1833, entre outros, A Pele de Onagro, Luís Lambert, Sobre Catarina de Médicis, Fisiologia do Casamento, O Coronel Chabert, Eugênia Grandet e uma grande quantidade de contos, como Uma Paixão no Deserto, O Romeiral, A Obra-Prima Ignorada, O Ilustre Gaudissart, A Estalagem Vermelha etc.

Em 1834, resolve classificar todas as suas obras em três grupos: Estudos de Costumes, Estudos Filosóficos e Estudos Analíticos. Finalmente, em 1842 encontra o título definitivo de todo o conjunto: A Comédia Humana, um evidente contraponto à Divina Comédia de Dante.

A VOLTA SISTEMÁTICA DAS PERSONAGENS

Ainda em 1834, Balzac teve a ideia, inédita na história da literatura, de fazer reaparecer suas personagens em diferentes obras, em diferentes estágios de suas vidas: aqui na juventude, ali velhos e pobres, acolá ministros ou banqueiros; aqui coadjuvantes, ali figuras centrais; felizes em um conto, infelizes em um romance; por vezes ainda ingênuos e cheios de sonhos, uns rematados crápulas em outro momento etc. Essa invenção "originalíssima e de grande alcance, cujo mérito cabe exclusivamente a Balzac", nas palavras de Paulo Rónai, repercutiu não muito favoravelmente à época, mas teve uma enorme influência sobre inúmeros escritores, entre eles Camilo Castelo Branco, Marcel Proust, William Faulkner e José Lins do Rego.

Decisão tomada, Balzac pôs-se a refazer muitas de suas obras, trocando nomes e biografias de personagens, ajustando situações, datas, etc até conseguir um todo coerente. Considerando-se que a galeria dos tipos criados pelo autor chega à casa dos milhares, é surpreendente que ele raras vezes tenha se enganado em algum pormenor físico, psicológico ou biográfico de suas criaturas. Naturalmente, nem todas as personagens participam de mais de uma obra: Oscar Husson, por exemplo, protagoniza e só aparece em Uma Estreia na Vida; César Birotteau está todo em História da Grandeza e da Decadência de César Birotteau; e assim, com inúmeros outros. Entretanto, aproximadamente seiscentos, como Eugênio de Rastignac, a Marquesa d'Espard, o doutor Bianchon, a Condessa de Restaud, arrivistas como Máximo de Trailles e Henrique de Marsay, a corista Florina, o caricaturista Bixiou transitam por diversos livros, às vezes como personagens principais, às vezes (ou sempre) secundárias, às vezes apenas entrevistos ou entreouvidos. Só Esplendores e Misérias das Cortesãs, por exemplo, conta com mais de cento e cinquenta reaparições! O fato dessa técnica transformar cada romance, novela ou conto em capítulos de um conjunto maior e único, não significa que eles não possam ser lidos separadamente, com raríssimas exceções.

PENSAMENTO CONSERVADOR, ANALISTA IMPARCIAL

Cheio de ideias, com mil planos na cabeça e atormentado por eternas dívidas, Balzac impôs-se uma rotina insana que fazia com que trabalhasse de quatorze a dezoito horas por dia. Apenas em 1834 foram publicados A Procura do Absoluto, O Pai Goriot, A Duquesa de Langeais e Um Drama à Beira-Mar; em 1835, Seráfita, A Menina dos Olhos de Ouro, Melmoth Apaziguado, O Lírio do Vale e O Contrato de Casamento. E assim, todo o conjunto que forma A Comédia Humana foi escrito em menos de vinte anos.

E de que tratam todos esses livros? A rigor, Balzac fala de uma única paixão. Porém, ao contrário dos escritores até então, essa paixão não é mais o Amor, e sim o Dinheiro: os personagens se humilham, casam, traem e cometem crimes para escalar posições sociais, para manter as aparências, para adquirir poder. Amor, honra, lealdade, honestidade, tudo se subordina às novas tentações trazidas pela vida moderna pós-Revolução Francesa. Assim, é imperioso acalmar credores, resgatar letras vencidas junto a usurários, amortizar dívidas contraídas nos elegantes magazines erguidos em luxuosas galerias (os centros comerciais da época), exibir chapéus, luvas e bengalas incrustadas de diamantes em passeios pelos bulevares ou ainda ser aceito nos exclusivos salões da fervilhante Paris, a capital do mundo.

Carpeaux fez a síntese: "A Comédie Humaine é a "Tragédia do Dinheiro"". Balzac, não à toa considerado o criador do romance moderno, intuiu que aparência é tudo e que, dentro em pouco, todos estariam sujeitos à influência avassaladora da imprensa e da publicidade. Por outro lado, apesar de ferrenho monarquista e feroz católico, e apesar de em vários momentos colocar na boca de algum personagem suas ideias conservadoras, até mesmo reacionárias, Balzac disseca com invejável imparcialidade a ascensão da odiada burguesia, e a derrocada final da sempre bajulada nobreza, que se afogou em decadência moral e se deixou corromper por aquela nova classe social. Por isso, Vitor Hugo, em discurso proferido sobre sua tumba, afirmou que, querendo ou não, Balzac pertencia "à forte raça dos escritores revolucionários". Friederich Engels e Karl Marx, fãs confessos, não poderiam concordar mais.

OS GRUPOS E SUBGRUPOS

Mesmo depois do início da publicação dos volumes da A Comédia Humana, Balzac continuava a revisar incessantemente suas obras. Além da divisão nos já citados Estudos de Costumes, Filosóficos e Analíticos, criou subdivisões, como Cenas da vida privada, Cenas da vida provinciana, Cenas da vida parisiense etc, num total de seis, todas subordinadas aos Estudos de Costumes. Indeciso, diversos livros foram colocados arbitrariamente pelo autor ora em uma categoria, ora em outra, mesmo porque essas divisões sempre foram muito artificiais.

Ilusões Perdidas, por exemplo, apesar de fazer parte das Cenas da Vida Provinciana, caberia tranquilamente nas Cenas da vida parisiense; as obras arroladas em Cenas da vida rural poderiam perfeitamente ser colocadas entre as Cenas da Vida Provinciana; já as obras que compõem as Cenas da Vida Privada passam-se em Paris, em sua maioria, daí poderem fazer parte das Cenas da vida parisiense. Mas, ainda não satisfeito, Balzac criou ainda várias novas subdivisões dentro das Cenas: "Os Primos Pobres", para acomodar A Prima Bette e O Primo Pons, "Os Celibatários", "Os Parisienses na Província", "História dos Treze" etc. Pouco disso era necessário, porém demonstra mais uma vez a vontade do autor de ser o mais racional e analítico possível.

AS GRANDES OBRAS

Parte do que Balzac escreveu é reconhecidamente fraca (o próprio autor concordava com isso) ou ficou datada com o tempo. Entretanto, a grande maioria continua indispensável, pelo que representa de testemunho de uma época e, principalmente, pela relevância das questões levantadas, ainda atuais um século e meio depois de virem à luz.

OS GRANDES PERSONAGENS

Balzac povoou suas noventa e cinco obras com mais de dois mil e quinhentos personagens. Muitos são inesquecíveis: Luciano de Rubempré, o poeta ingênuo de Ilusões Perdidas; Eugênio de Rastignac, o provinciano ambicioso, que inicia sua trajetória vitoriosa em O Pai Goriot; o demoníaco e manipulador Vautrin, também apresentado na mesma obra; toda a fauna de Paris, como os dândis Máximo de Trailles e Henrique de Marsay, o caricaturista Bixiou, o doutor Bianchon, as cortesãs Ester e a Sra. Marneffe etc; a prima Bette e o primo Pons; aristocratas decadentes como a Marquesa d'Espard e a Duquesa de Maufrigneuse; a Cibot; Seráfita, o hermafrodita; o adolescente antipático Oscar Husson; Luís Lambert, gênio atormentado; a conformada Eugênia Grandet e seu pai avarento; o Pai Goriot e o Coronel Chabert; Birotteau e seus perfumes; Gobseck, o usurário filósofo; o juiz Popinot…; a galeria é imensa.

Obras foram escritas tentando relacionar todos os personagens, com suas respectivas biografias, os livros onde aparecem etc: Dictionnaire Biographique des Personnages Fictifs de la Comédie Humaine, de Fernand Lotte (Paris, 1952), Balzac et Son Monde, de Félicien Marceau (Paris, 1955) e Répertoire de la Comédie Humaine, de Anatole Cerfberr e Jules François Christophe (Paris, 1887). A respeito deste último, Paulo Rónai conta que "um dos dois autores, Cerfberr, ficou inteiramente alucinado por essa longa convivência com as personagens saídas do cérebro de Balzac e morreu quase louco imaginando ser ele mesmo uma personagem de A Comédia".

PARIS, O MAIOR PERSONAGEM

No entanto, o maior personagem d'A Comédia Humana é, sem dúvida, a cidade de Paris. Balzac situou suas obras por toda a França (Issoudun, Saché, Tours, Sancerre, Vendôme etc) ou em outros países (Itália, Espanha, Noruega, Alemanha), contudo nada menos que quarenta e sete (mais da metade, portanto) têm Paris por cenário, total ou parcialmente; várias começam com a descrição de um aspecto da Cidade-Luz: uma rua, uma loja, uma casa, o comportamento dos parisienses etc. Balzac foi, e ainda é, o maior de todos que se aventuraram a cantar Paris. Mas, que Paris seria esta? "A Paris dos dramas escondidos, dos devotamentos desconhecidos, das ignomínias humanas desapercebidas…A Paris leprosa do bairro dos estudantes, a prestigiosa do Faubourg Saint-Germain, a barulhenta dos negócios (…), onde mulheres elegantes, belas, aduladas, vão do seu amante ao agiota". Jovens de todos os continentes procuram Paris, em busca de riqueza, de fama, até (por que não?) de amor.

A maioria se deixa consumir pelo fogo da cidade e morre em silenciosa solidão; outros sobrevivem de expedientes desonestos e se esquivam por furtivas vielas; outros há que desistem e voltam para suas aldeias, envergonhados e ressentidos; e há os que vencem, brilham intensamente, chegarão a ministros, porém já sem alma, presas de luxúria, ganância e cinismo. Mas essa feérica Paris, que Balzac, ele mesmo parisiense apaixonado, chama de "uma doença e até várias doenças", "deserto sem beduínos", "um instrumento que é preciso saber tocar" etc, é também a capital das ideias, do luxo e da civilização; enfim, como disse um personagem de Modesta Mignon, Paris é "um inferno que se ama".

A COMÉDIA HUMANA E O BRASIL


Continuamente perseguido pelos credores e escravo da monstruosa tarefa a que se propôs, Balzac sonhava com soluções milagrosas, que iriam tirá-lo do atoleiro em que se encontrava, não importa quão absurdas elas fossem. No auge do desespero, chegou a pensar em mudar-se para o Brasil. Em 1840, escreve à Condessa Hanska, sua amante: "Cheguei ao cabo de minha resignação. Creio que deixarei a França e irei levar meus ossos ao Brasil, num empreendimento louco e que escolhi justamente por causa da sua loucura…Este é um projeto absolutamente firmado que será posto em execução ainda este inverno".

Como era de se esperar, desiste de tudo no mês seguinte. Mas o autor costumava seguir a vida do Brasil pelos jornais, e acabou por colocá-lo em várias obras. Para ele, o Brasil era uma terra exótica, cheia de oportunidades e onde era possível enriquecer rapidamente. Enfim, nada de muito diferente da imagem que a Europa tinha do país e, por extensão, das Américas.

Em O Baile de Sceaux, Maximiliano de Longueville associa-se a um banqueiro e fica rico numa especulação no Brasil; Carlos Grandet, de Eugênia Grandet, parte para o tráfico de escravos, entre outras atividades igualmente recrimináveis, e também enriquece; o Marquês de Aiglemont, personagem de A Mulher de Trinta Anos, conhecia muito bem as costas do Brasil, depois de muito trabalho e perigosas viagens que o deixaram rico.

Os diamantes brasileiros também marcaram sua presença: em Gobseck, o usurário do mesmo nome reclama que a joia está se desvalorizando porque o Brasil abarrotou a Europa com pedras menos puras que as da Índia; outro usurário, o joalheiro Elias Magus, concorda que o diamante brasileiro é mesmo inferior, em Um Contrato de Casamento. Por outro lado, Rafael de Valentin, o infeliz de A Pele de Onagro, pensou certa vez em se mudar para o Brasil; as "duras cangas do Brasil" são citadas numa frase perdida em Z. Marcas; em Um Caso Tenebroso, o olhar do personagem Michu é em certo momento comparado aos jaguares do país; Ferragus, na novela do mesmo nome, dá-se com o embaixador do Brasil.

Cite-se, ainda, o milionário Barão Henrique Montes de Montejanos, única personagem brasileira da Comédia Humana (apesar do nome castelhanizante), que tem papel destacado na trama de A Prima Bette; o barão é moreno, cara fechada, traja-se de acordo com a moda parisiense e usa um grande diamante na gravata…

Devido aos laços históricos e afetivos que unem o Brasil a Portugal, não se pode esquecer do abonado Marquês Miguel d'Ajuda-Pinto, personagem português cuja família possui ligações com os Braganças, e que aparece em várias obras: O Pai Goriot, Esplendores e Misérias das Cortesãs, Os Segredos da Princesa de Cadignan e Beatriz. No princípio um dos dândis mais distintos de Paris, o Marquês tem uma trajetória rica pela Comédia, casando-se, intrigando, apaixonando-se e participando de conspirações.

PRESENÇA D'A COMÉDIA HUMANA

Conquanto o público sempre prestigiasse as obras de Balzac, a quase totalidade da crítica negava seu valor. Com exceção de Victor Hugo e Teófilo Gautier, eram poucas as pessoas do meio literário com quem o autor podia contar, mesmo já próximo de sua morte, em 1850. Entretanto, cem anos depois, a bibliografia balzaquiana contava seis mil títulos.

Balzac é hoje universal. Sua obra começou a ser reconhecida ainda no século XIX: Dostoiévski traduziu Eugênia Grandet para o russo e teria sido influenciado pelo autor em obras como o conto O Senhor Prokhártchin (1846) e o romance inacabado Niétotchka Niezvânova (1849); em Portugal, Camilo Castelo Branco escreveu um conjunto de oito narrativas a que deu o nome de Novelas do Minho, (1875-1877), inspiradas em Balzac; já Eça de Queirós idealizou as Cenas da Vida Portuguesa, ciclo de romances destinados a retratar a sociedade portuguesa após o estabelecimento do liberalismo em Portugal, sob D. Pedro IV (D. Pedro I no Brasil), dos quais vieram à luz Os Maias e A Capital; a Comédia é a precursora do chamado roman-fleuve, ou "romance-rio", como Os Rougon-Macquart (1871-1893), de Émile Zola, Jean Christophe (1904-1912), de Romain Rolland, Em Busca do Tempo Perdido (1913-1927), de Marcel Proust e Os Thibault (1922-1940), de Roger Martin du Gard. Balzac também está presente, por exemplo, na obra do escritor brasileiro José Lins do Rego, particularmente nos romances do chamado Ciclo da Cana-de-Açúcar e em William Faulkner, ficcionista estadunidense, criador do mítico Condado Yoknapatawpha, por onde circulam gerações de Compsons, Sartoris, McCaslins, Snopes etc.

O Pai Goriot, Pierrette, A Pele de Onagro, Eugênia Grandet, Uma Mulher Abandonada e muitas outras obras já foram adaptadas para o cinema ou televisão. A Prima Bete, inclusive, já foi filmada três vezes, sendo a mais recente em 1998; em 1990, Gérard Depardieu encarnou o autor em uma minissérie francesa do mesmo nome, que conta sua vida; em 2001, outra minissérie francesa, Rastignac ou os Ambiciosos ("Rastignac ou les Ambitieux", no original), trouxe para o presente as vidas de Eugênio de Rastignac, Luciano de Rubempré e outros personagens balzaquianos, conservando todas suas motivações e características psicológicas; já em Balzac e a Costureirinha Chinesa ("Xiao Cai Feng" no original), filme chinês de 2002, dois jovens são enviados a uma vila nos confins da China para serem reeducados. Lá, descobrem uma caixa cheia de livros de Balzac e outros autores e passam a lê-los para a população, enquanto se apaixonam pelos personagens balzaquianos, principalmente Úrsula Mirouet, e pela costureira do título, cujo futuro é determinado pelo comportamento das mulheres criadas por Balzac.

Com a consolidação do capitalismo e, consequentemente, da moral burguesa, para uma quantidade imensa de pessoas o Dinheiro e o que ele proporciona—poder, ascensão social, bens de consumo—são o principal, e muitas vezes o único, valor a considerar. Em um cenário assim, Balzac está totalmente à vontade (e discretamente vingado), pois sua obra, iniciada há quase dois séculos, continua mais pertinente que nunca.
_________________________
continua com a sinopse de contos integrantes da obra…

Fonte:
Wikipedia.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 8 –

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 12


O Capitão Rodrigo Cambará (O TEMPO E O VENTO, Érico Veríssimo), um dos personagens mais marcantes da nossa literatura, certo dia aparece em Santa Fé cavalgando lentamente, e olhando de soslaio para todo lado, chega à frente do bolicho, apeia do cavalo e entra:

- Buenas e me espalho, nos pequenos dou de prancha, nos grandes dou de talho.

- Pois dê ! - respondeu Nicolau, o dono da bodega. O Capitão olhou em volta, sorriu para os presentes e disse:

- Calma, companheiro ! Estou cansado, venho de muitas lutas, peleias e pendengas. As guerras não dão lucro. Só dão prejuízo. Quando não a morte.


Se até nos romances as guerras são mal ditas (malditas), não seria nada diferente na vida real, diria o romancista contador de histórias.

No meu ser não há um fiozinho de esperança e otimismo a pensar que o ser humano mude. Por isso sigo a indagar. Será que os homens, perseguidores da paz fazendo a guerra, censurando-se uns aos outros, incitando-se mutuamente,  chegarão um dia a algum acordo pacífico que não seja apenas o preenchimento de um protocolo, a cobertura de mais um pobre labéu, a simbólica assinatura numa folha de papel ?

Será que os homens que digladiam com esta ganância desenfreada, com esta fartura de egoísmo, com esta falta de escrúpulos chegarão algum dia, ao final da batalha sem terem depreciado as virtudes, compungido seus dias, desordenado a vida neste planeta ?

Questões, dilemas, enigmas que permanecerão indecifráveis por muito tempo.

O planeta - nossa morada - seguirá humilhado e devassado pelo tempo a fora, como tem sido até hoje.

Pobre planetinha, paraíso azul !

Fonte:
Texto enviado pelo autor

A Árvore em Versos - 1

Organização por Sammis Reachers
––––––––––––––
As árvores representam sentinelas da defesa e segurança, propiciando beleza e utilidade a todos, que não as podem dispensar, sob pena de anularem a própria existência sobre a face da terra.
Maria Thereza Cavalheiro
****************************

Augusto dos Anjos

A ÁRVORE DA SERRA

" – As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

– Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs alma nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minha alma!...

– Disse – e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!"
****************************************
 
Florbela Espanca

ÁRVORES DO ALENTEJO

Horas mortas? Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido? e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A ouro e giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
– Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água.
****************************************

Jorge Sousa Braga

RAÍZES

Quem me dera ter raízes,
Que me prendessem ao chão.
Que não me deixassem dar
Um passo que fosse em vão.

Que não me deixassem crescer
Silencioso e ereto,
Como um pinheiro de riga,
Uma faia ou um abeto.

Quem me dera ter raízes
Raízes em vez de pés.
Como o lódão, o aloendro,
O ácer e o aloés.

Sentir a copa vergar,
Quando passasse um tufão.
E ficar bem agarrado,
Pelas raízes ao chão.
****************************************

Olavo Bilac

VELHAS ÁRVORES

Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas;
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas…

O homem, a fera, e o inseto à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem;

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!
****************************************

Oliveira Ribeiro Neto

ÀS ÁRVORES NOVAS

– Árvores pequenas que inda não crescestes,
Que doçura imensa existe em vossas sombras
Fracas e indecisas, sobre a terra quente!

Árvores pequenas, vós lembrais crianças
Esboçando gestos de bondade ingênua
Mas vosso destino como é diferente!

Quando vós crescerdes, dareis sombra e frutos,
E dareis aos homens, no verão candente,
Sonhos de fartura e flores aromais.

Mas os pequeninos não terão mais gestos
De bondade pura, de ternura ingênua...
Quando eles crescerem, serão meus iguais.
****************************************

Sophia de Mello Breyner Andresen

ÁRVORES

Árvores negras que falais ao meu ouvido,
Folhas que não dormis, cheias de febre,
Que adeus é este adeus que me despede
E este pedido sem fim que o vento perde
E esta voz que implora, implora sempre
Sem que ninguém lhe tenha respondido?

Fonte:
Sammis Reachers (organizador). Árvore: uma antologia poética. São Gonçalo/RJ, 2018. e-book.

Eduardo Affonso (Direito e Avesso)


O universo não se dividia, então, em luzes e sombras ou entre o Bem e o Mal, mas nos domínios do masculino e do feminino, representados pela máquina de escrever e a máquina de costura.

A primeira comandava o escritório do meu pai; a segunda, o quarto da minha mãe. Uma cercada de livros e silêncio; outra, de retalhos coloridos, música e risos.

Escrever, com os indicadores catando milho nas teclas da Remington, exigia concentração – ali, no âmbito das leis, não éramos bem-vindos. Nosso lugar era no chão, de tesoura da mão, recortando figuras das revistas de moda, aos pés da Singer.

Cada um desses mundos tinha seu vocabulário próprio, seu dialeto. Cerzir e sursis, corpetes e habeas corpus, evasês e evasões – palavras que se aproximavam, sem jamais se tocar.

Junto ao pedal da máquina de costura, imperava aquilo que mais tarde soube chamar-se francês: godê, plissê, cotelê, croqui. Nos raros momentos sob a escrivaninha, prevalecia o que desde sempre se chamou latim: animus, caput, data vênia, de cujus, pari passu, causa mortis, sine die.

Havia uma palpável hierarquia entre a matéria – o pano, a pence, o pesponto – e o espírito. Entre o braçal da carretilha, da agulha e do dedal, e o reino da autoridade intelectual, da retórica, da persuasão.

Essa divisão era ancestral: minha avó regia a roupa no varal, a labuta na cozinha, e meu avô, as conversas no salão, a posse do dicionário, as palavras cruzadas no jornal.

Um desses espaços era mais sentimental e mais lúdico: o do soutache, do ilhós, da passamanaria. Do cós, do viés, da sianinha, da lapela, do vivo, do gavião. Das revistas coloridas (o outro mundo não tinha figuras). Da tesoura que fazia ziguezague – da própria palavra ziguezague.

O outro mundo não oferecia grandes diversões além do perfurador, com o qual se podia fazer confete: não era permitido tocar a caneta-tinteiro, a carimbeira, o mata-borrão.

O mundo do papel manilha era melhor que o do papel almaço. A Burda, mais agradável de folhear que qualquer processo.

O quarto de costura era nosso quintal; o escritório, a sala de visita. Este, o território do não; aquele, o do sim. Um, o dos livros fora do alcance, na estante – o outro, o de sentar no chão, entre cortes de cambraia, retalhos de feltro, amostras de cetim.

Apesar de estar lá a cultura, de lá ficarem as letras, foi no lado de cá que se deu a descoberta de que cada palavra tem sua textura, seu caimento.

Assim o morim, a chita e o riscado, tão distantes da organza, do tafetá, do organdi – não só ao tato, mas também ao ouvido. Assim o linho e a flanela (ele, ríspido; ela, suave), o impecável poliéster e o suscetível algodão.

O mundo do Direito e o do avesso, o das Cortes e o da costura, o das Leis e o das linhas acabaram por se coser num só, este em que se pode chulear as frases, rematar sentenças e nelas ir alinhavando ideias e pregando as palavras como quem prega botão.

(publicado originalmente em 11 de abril de 2018)

Fonte:
https://eduardoaffonso.com/2019/06/23/direito-e-avesso/

O Soneto – Parte 4

Texto de José Roberto Gullino

- - - - - - - - - - - - - - - - - –
Quando se estuda música ou pintura, inicia-se pelos clássicos, para depois, cada um seguir o caminho que melhor vislumbrar. Na poesia também deveria caminhar na mesma sequência, porém, como está atrelada ao aprendizado da língua escrita, as pessoas não se preocupam em estudar suas origens.

Particularmente, com o soneto, não basta absorver suas regras e normas, simplesmente – há inúmeros detalhes que o poeta tem que se ater para não tirar o valor de seu trabalho, além da métrica e da acentuação. É a rima – um dos quesitos primordiais, que deve ser sempre apurada, mas não sofisticada, procurando fazê-la entre verbos, substantivos e adjetivos para não perder seu sabor auditivo e evitar o abuso de verbos no infinitivo, principalmente os da 1ª conjugação, que provocam uma sonoridade cansativa e da mesma maneira não se deve rimar singular com plural, nem cometer o pecado de utilizar rimas iguais, que quebram um pouco a musicalidade. Há poetas que procuram se sofisticar com palavras diferentes – possivelmente para mostrar intelectualidade ou por falta de rimas – isto poderia ser usual no passado quando o vocabulário era mais requintado, já que hoje os bons dicionários de rimas nos livram de tal necessidade, como bem nos alerta Mello Nóbrega em seu livro. Atualmente, o que dá beleza ao poema é a simplicidade de linguagem, propiciando uma fácil assimilação e compreensão, pois o que pesa num poema é seu conteúdo, sua essência, o desenvolver do tema abordado – seu efeito.

Tratando-se de soneto, o maior expoente no assunto, entre nós, foi o poeta Vasco de Castro Lima (1904/2002?) com o livro “O mundo maravilhoso do soneto”, quando penetrou com tanta profundidade em suas reentrâncias, ao longo de mais de 1.000 páginas. Geir Campos também deu uma grande contribuição com o “Pequeno Dicionário de Arte Poética”. Edgard Rezende participou com seus exemplos em “Os mais belos sonetos brasileiros”, que reproduz pequenos dados sobre cada poeta e J. G. de Araújo Jorge completou com a coletânea “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”, em quatro volumes, abrangendo trabalhos de todos os cantos do mundo. São detalhes importantes para os que querem seguir os meandros do soneto e cujos livros já estão desaparecidos (só conseguidos raramente nos sebos) e que, se vivêssemos num país realmente preocupado com a cultura, reeditariam tais obras para satisfação e incentivo dos cultivadores do segmento poético, pois são textos que não saem de moda mas que também não são de vendagem imediata, como é desejo das editoras, porém, bem poderiam ser editados pela Biblioteca Nacional. Outros trabalhos, ainda, deveriam ser revividos como “Tratado de versificação”, de Bilac e Guimarães Passos e “Rima e Poesia” de Mello Nóbrega (embora com conteúdo mais amplo, exemplificando em vários idiomas), além de muitos outros que vão sumindo da lembrança de todos. Hoje não há mais necessidade de se seguir regras nem de um poeta se nortear – “todos são poetas”.

Quanto à metrificação, por ser um assunto mais complexo, trataremos mais adiante com minúcias de detalhes, mas um item importante e que já ressaltei, é o final do último verso – a dita “chave de ouro” – que deve ser observada nos sonetos aqui apresentados, detalhes que os valoriza e enaltece.

Existem trabalhos que, por sua beleza, depois de lidos, nos deixa invejosos – no bom sentido – por não termos tido tal inspiração. Assim é o trabalho de Vasco de Castro Lima, que morreu quase centenário (1905/2002?), referido lá na frente, que trilhou A ESTRADA DO SONHO :

Cada dia em que o sol se abre, risonho,
e desfralda o seu leque de esplendores,
eu saio pela Estrada Azul do Sonho,
pisando espinhos e plantando flores…

E vou contente. Nos meus passos, ponho
a luminosidade dos alvores.
Sigo a Estrada. E é sorrindo que a transponho
eu, o mais sonhador dos sonhadores…

Sim, quero ter, na noite da velhice,
o mesmo coração da meninice –
um ninho de alvoradas luminosas –

para ser, no jardim dos desenganos,
uma alegre roseira de cem anos,
ardendo em sonhos, florescendo em rosas!


Da mesma maneira, outro dos nossos patronos, Décio Duarte Ennes (1926/1982), nos brinda com a beleza de uma CARTA :

Escrevo-te, querida, a última carta,
e nela envio o meu saudoso adeus
com o qual seguirão os dias meus,
que de viver minha alma já esta farta !

Tudo de mim agora já se aparta,
e o próprio Amor – este menino-deus –
já me renega e põe-me entre os ateus,
a mim, cuja existência quis eu dar-ta !

Poucas palavras restam-me, bem poucas,
( talvez, até as julgues tu bem loucas… ) :
Ofereci-te o amor – e o recusaste !

Ofereci-te a vida – e a não quiseste !
Agora eu te devolvo o que me deste :
– Os versos de um poeta que inspiraste !


E Romildes de Meirelles, do Rio de Janeiro – um dos idealizadores da ABRASSO – Academia Brasileira do Soneto, extremamente melancólico, se sentiu SÓ!…

Estou completamente só… O dia
acaba, a tarde morre docemente
e eu estou só em meio a tanta gente,
nesta tarde chuvosa, cinza e fria…

A solidão da tarde me angustia,
deixa-me imerso em um torpor dolente
e eu vejo o tempo ir-se lentamente
de gota em gota, em triste nostalgia.

A chuva aumenta a minha ansiedade,
enchendo-me de mística saudade,
numa tristeza atroz que o olhar me embaça.

E vejo tudo qual se fosse um sonho,
onde o tempo se escoa tão tristonho
na cadência da chuva na vidraça.
----------------
continua...
 
Fonte:
Texto de José Roberto Gullino disponível na Casa Raul de Leoni, http://rauldeleoni.com.br/soneto/

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 7 –

 


A. A. de Assis (A Grande Gincana)


Durante muitos anos Lucilla e eu participamos de uma equipe que promovia encontros de preparação de noivos para o casamento. Um dos momentos mais bonitos era quando o Dr. João Batista Leonardo falava sobre a maravilha que é o nascimento de uma criança.

Todos nós – dizia ele – iniciamos nossa existência disputando uma fantástica gincana. No ápice de um ato de amor, o homem transfere para a mulher cerca de trezentos milhões de espermatozoides, ou seja, trezentos milhões de candidatos à vida, dentre os quais apenas um sobrevive: o que chega em primeiro lugar ao óvulo que o aguarda na tuba uterina. Os demais perdem a chance de existir, a não ser nos raros casos em que nascem gêmeos.

Você, eu, Pelé, a rainha da Inglaterra, aquela moça que ontem o atendeu na loja, todos passamos um dia pela grande gincana. Para que pudéssemos estar aqui agora, trezentos milhões de irmãos nossos foram privados da graça de vir à luz. Fascinante mistério.

Toda vez que penso nisso me dá um arrepio. Um privilegiadíssimo espermatozoide se une a um privilegiadíssimo óvulo e juntos possibilitam a geração de uma nova vida, que por sua vez será uma mistura de genes – metade do pai, metade da mãe.

Mas por que justamente aquele espermatozoide? Por que justamente aquele óvulo?

E por que razão teria sido justo você o campeão da gincana? Decerto você não venceu por acaso, nem por ser o mais formoso, nem por qualquer outro mérito desse tipo. Você foi o eleito porque lhe estava reservado algum papel muito especial.

Cada um de nós é chamado a cumprir determinada missão na história do nosso tempo, no lugar onde existimos. Somos atletas do time de Deus, e ele nos escala para atuar nessa ou naquela posição, confiando-nos para tal os necessários talentos.

Vale repetir: por que nasci? Por que você nasceu? Por que justamente você e eu e não outro daqueles trezentos milhões de irmãos que conosco disputaram a graça da vida? A responsabilidade é muito grande.

Sei lá... Não dá para imaginar como será a prestação de contas ao final de nossa passagem por este planeta. Mas na porta da eternidade, diante de Deus e de nossa consciência, teremos que justificar de algum modo a enorme confiança que em nós foi depositada.

Acredito que os pecadinhos e outras travessuras da gente nem serão contabilizados. Não será por eles que perderemos pontos na carteira. O que vai contar mesmo será o que tivermos feito, ou não, dos talentos postos à nossa disposição quando aqui chegamos.

Cada um de nós entrou na vida equipado para fazer algo de bom pela humanidade: produzir alimentos, construir pontes, alfabetizar crianças, propagar a fé, pilotar veículos, curar doentes, defender as leis, lidar com números, governar, tocar piano, escrever poesia, jogar futebol, costurar, cantar, pintar, fazer rir. Seja lá o que for, penso que pecado realmente grave será não ter feito, e da melhor maneira possível, o que nascemos para fazer.
============================================
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 19-11-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 6


EU VI UMA ROSA

Eu vi uma rosa

- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua.

Sozinha no mundo.

Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia,
Toda a natureza
Em toda formas e cores
E sons esplendia.

Tudo isso era excesso.
A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.

Sozinha no tempo.
Tão pura e modesta,
Tão perto do chão,
Tão longe da glória
Da mística altura.
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.
****************************************

IMPROVISO

Cecília, és libérrima e exata
Como a concha.
Mas a concha é excessiva matéria,
E a matéria mata.

Cecília, és tão forte e tão frágil
Como a onda ao termo da luta.
Mas a onda é água que afoga:
Tu, não, és enxuta.

Cecília, és, como o ar,
Diáfana, diáfana.
Mas o ar tem limites:
Tu, quem te pode limitar?

Definição:
Concha, mas de orelha:
Água, mas de lágrima;
Ar com sentimento.
- Brisa, viração
Da asa de uma abelha
****************************************

LETRA PARA UMA VALSA ROMÂNTICA

A tarde agoniza
Ao santo acalanto
Da noturna brisa.
E eu, que também morro,
Morro sem consolo,
Se não vens, Elisa!

Ai nem te humaniza
O pranto que tanto
Nas faces desliza
Do amante que pede
Suplicantemente
Teu amor, Elisa!

Ri, desdenha, pisa!
Meu canto, no entanto,
Mais te diviniza,
Mulher diferente,
Tão indiferente,
Desumana Elisa!
****************************************

MADRIGAL MELANCÓLICO

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
****************************************

MASCARADA

Você me conhece?
(Frase dos mascarados de antigamente)

Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores...
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.

Se eu falava, um mundo
Irreal se abria
à tua visão!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia...
Era a minha fala
Canto e persuasão...
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.

Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!

Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?

- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição.

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa". 1967.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 29) Tarja com Caveira


O EUFRATES ESTAVA PRA LÁ DE CONTENTE. Havia arranjado um serviço de última hora em São Paulo e não via chegar o dia para se apresentar no escritório da empresa e começar a trabalhar. Procurava uma ocupação há meses e pensava até em desistir e não sair mais da casa materna, em Catingal, a sua cidade natal incrustada no interior bem escondido da Bahia. O novo batente prometia salário mínimo na carteira, vale transporte e refeição, cesta básica, plano de saúde e uma pequena ajuda de custo. Não muita coisa, mas, de imediato, ajudaria a sair da pindaíba na qual estava metido até os cafundós do pescoço.

Fora conversando praticamente todos os dias por telefone com um amigo que fora antes para a capital dos paulistas, o Rochê, que trabalhava na dita empresa havia anos e, ao saber da vaga, indicara seu nome:

— Eufrates, pra quebrar o galho, você deve pegar. Depois aparece coisa melhor...

— ‘Cê sabe’ qual vai ser a minha função?

— Pelo que me passou a Umbelina, alguma coisa ligada à preservação de espécies.

— Quem é Umbelina?

— A secretária linda e maravilhosa do Doutor Bepantol.

— Doutor o quê?

— Bepantol. Marquei a sua entrevista com ele, para segunda-feira, às dez horas em ponto. Mandei dinheiro suficiente na conta da sua mãe, para você comprar a passagem e comer alguma coisa na estrada. Procure chegar um pouco mais cedo. No Tietê você pega um táxi, mostra o endereço para o motorista. É pertinho...  

— Preservação de espécies, você disse?

— É. Pelo menos foi o que me passou a secretária, quando nos esbarramos, muito rápido, no refeitório, na hora do lanche.

— Rochê, estou me sentindo um nadador solitário dando braçadas em águas turbulentas. Ao meu redor, percebo que os peixes estão inquietos...

— Impressão sua. Vai dar tudo certo. Confia. Passa os cinco dedos em você, embarca no primeiro buzão e se manda pra cá.

— Quanto ao mar ou aos peixes...

—... Deixe de filosofar, Eufrates. Aproveita o resto do dia de hoje, faça a barba, corte os cabelos, engraxe os sapatos, ponha a sua melhor roupa e siga em frente. Não me decepcione. Até segunda feira, você tem pela frente, a seu favor, quase cinco dias.

— Certo. Voltando a tal da preservação...

— O que você quer saber exatamente?

— Não tem como me adiantar alguns detalhes?

— Fora de cogitação, cara.

— E por quê?

— Porque eu trabalho num setor e a Umbelina e o doutor Bepantol em outro. Existe um imenso corredor cheio de portas com cartões magnéticos nos separando. Soube da disponibilidade da vaga por mero acaso.

— Rochê, e se você levasse um papinho com a tal da Umbelina?

— Não tenho intimidades para isso, meu amigo. A gente só se vê, de vez em quando, no refeitório, no horário de almoço ou no lanche da tarde. Fora do expediente é quase impossível.

— Bem, se é assim, na segunda-feira estarei marcando presença  no pedaço.

— Não perca a oportunidade. Se abolete num quarenta janelinhas e queima o chão.  No mais, Fé em Deus e pé na tábua.

Na segunda-feira, um pouco antes das seis horas, o Eufrates depois de uma viagem esmagadoramente estafante, apeava no Terminal Tietê. No Terminal Tietê pegou um táxi e se mandou para o endereço onde ficava o seu futuro promissor.

Compenetradamente sentado na recepção que antecedia à sala do doutor Bepantol, cheio de malas e bolsas, o infeliz olhava cheio de curiosidade para as pernas roliças da apetitosa e inimitável Umbelina.

Nas mãos trêmulas trazia (num envelope comprado às pressas) o currículo básico, com uma foto de terno e gravata tirada no ano passado — na verdade, um pequeno histórico da sua profissionalidade feito por Rochê — meio que às carreiras (e enviado para Catingal via WhatsApp), contendo os dados essenciais, experiências profissionais, essas coisas que geralmente as pessoas colocam para encherem linguiça e chamarem a atenção e impressionarem os futuros patrões.

Na prática, as pérolas pinçadas geralmente da imaginação dos candidatos não colam. Os entrevistadores estão carecas de saber que cinquenta por cento das experiências apresentadas são meras balelas, ou seja, um punhado de quesitos elencados onde o candidato, às vezes, não têm a mínima noção ou ideia do que é e para que serve. O caso de Eufrates, não ia muito além desta dura realidade.

Da vasta experiência profissional que apresentava, de verdade mesmo, sabia apenas lavar garfos, facas e colheres e  enxugar pratos e copos em restaurantes de sua querida e pacata Catingal, além de cuidar de pequenos serviços, como desentupir vasos sanitários e lavatórios, trocar lâmpadas queimadas, varrer corredores das casas dos ricos, cuidar de jardins e armazenar sacolas de lixos tóxicos dos hospitais da região em carrocerias nos caminhões de coletas.

No mais, digitação, cursos disso e daquilo, idiomas, redação própria, etc. etc. “neca de pitibiriba”. Eufrates passava quilômetros de distância dessas preciosidades. Não deu outra. Na hora em que ficou frente a frente com a estrepitosidade da Umbelina e pior, com o chefe sisudo e de pouca conversa dela, o doutor Bepantol, o cenário se fez mais infeliz e desanimativo. Após uma série de testes psicológicos, preenchimentos de fichas, prova disto e daquilo, sem falar nos exames médicos, os pré-adicionais exigidos, o cidadão foi admitido.

A função, enfim descoberta: auxiliar de serviços gerais: abreviando a história do Eufrates. Cuidar de um bando de animais sarnentos,  abandonados e recolhidos das ruas pelas carrocinhas da prefeitura. A empresa onde o Rochê trabalhava dispunha de um imenso galpão na Freguesia do Ó  e se dedicava, entre outras coisas, a este seguimento de cunho social, objetivando tirar das ruas cachorros e gatos famintos e doentes, deixados, na maioria das vezes por seus donos, aos reveses da má sorte e as intempéries do destino.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza, pela Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro.
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis)


Análise pelo Me. Fernando Marinho


“Memórias póstumas de Brás Cubas”, publicado em 1881, é uma das principais obras do escritor Machado de Assis. A publicação desse romance é considerada o marco inicial do Realismo no Brasil,  e seu autor, por consequência, é reconhecido como o pai de tal movimento em terras brasileiras.

CARACTERÍSTICAS DE MACHADO DE ASSIS

O autor criticou vários valores burgueses por meio de ironias e metalinguagens. Precedendo não só o próprio realismo, instaurou o realismo psicológico, claramente visto em seus romances por fazer diálogos diretos com o leitor e também por conta de pensamentos pontuais que surgem ao longo da narrativa como uma reflexão sobre os acontecimentos que se passam no romance, similar à quebra da quarta parede no teatro, quando o ator cria um diálogo direto com o espectador.

Machado tratava com frequência sobre a ascensão social e a manutenção das aparências sociais por meio de críticas à burguesia, dando luz ao realismo brasileiro. Suas obras, recheadas de ironias, abordam o que o autor observava na sociedade da época. O Rio de Janeiro do Brasil passava por uma transição da falta de infraestrutura, ganhando planejamento baseado no urbanismo de Paris, na França: sofisticação para satisfazer a proeminente parcela burguesa da população da época. Estima-se que de 200 mil cidadãos cariocas, 100 mil eram escravos e, desse total, apenas 20% eram letrados, configurando uma população em que 80% eram analfabetos.

Sua carreira pode ser dividida em duas fases, sendo a primeira caracteristicamente mais romântica, predominando obras como seu primeiro romance, ‘Ressurreição’; sua primeira peça, ‘Queda que as mulheres têm pelos tolos’; e o livro de poesias ‘Crisálidas’. A fase romântica perdurou entre 1864 e meados de 1878.

Sua segunda fase teve início com a publicação do livro ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’, livro escrito logo após ser internado devido ao seu quadro de epilepsia, que o forçava a tomar remédios fortes, que lhe desgastavam a saúde. Ainda internado, chegou a enviar alguns capítulos do romance à sua esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais. Como um marco entre uma fase e outra, percebe-se que, nessa nova fase, Machado apresenta fortes traços de pessimismo e ironia, que se tornam grandes características da obra do autor, acompanhando-o até seus últimos dias.

RESUMO DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

Trata-se de uma narrativa feita em primeira pessoa, com o inusitado de o narrador já ter morrido quando começou a escrever;

Narra-se, de maneira breve, a infância do protagonista;

São contados os diversos amores de Brás Cubas, protagonista da história;

Descreve-se a vida adulta de Cubas, suas diversas tentativas de trabalho e de invenção (tal qual o emplasto);

Por fim, o narrador descreve sua vida como um conjunto de negativas que acabam com um único saldo positivo: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

CONTEXTO

O contexto histórico que dialoga com o romance Memórias póstumas de Brás Cubas é o de um Brasil construindo sua urbanidade, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, capital nacional no período. De modo geral, a obra de Machado de Assis retrata os tipos e cenas comuns dessa sociedade carioca.

 A libertação dos escravos , em 1888, e seus efeitos na vida urbana, assim como a reestruturação política brasileira a partir da Proclamação da República, em 1889, são alguns dos fatos históricos que permeiam o livro machadiano.

Veja, a seguir, um trecho do romance em que o narrador retrata sua relação com os escravos na infância:

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô!” — ao que eu retorquia: — “Cala a boca, besta!”

ANÁLISE DA OBRA


O romance Memórias póstumas de Brás Cubas é uma obra complexa, e os diversos detalhes presentes no seu enredo só podem ser apreendidos a partir da leitura, na íntegra, do livro de Machado de Assis. Não obstante, a seguir descrevemos alguns dos pontos fundamentais para a compreensão da narrativa.

NARRADOR: DEFUNTO AUTOR

O romance machadiano é narrado em primeira pessoa, possuindo, portanto, um narrador em primeira pessoa e, nessa estruturação, há duas questões fundamentais:

Primeiramente, essa escolha afasta a obra das narrativas realistas europeias – ali se usava o narrador onisciente para transferir à obra maior grau de objetividade;

Em segundo lugar, para além do uso de um personagem narrando sua vida a partir de uma visão particular – e subjetiva, portanto –, Brás Cubas, antes de começar a contar sua história, morre. Nesse sentido, a personagem intitula-se não um autor defunto, mas sim um defunto autor – haja vista que a morte ocorre antes da escrita de suas memórias póstumas.

INFÂNCIA

A infância de Brás Cubas é contada brevemente nos primeiros capítulos do romance. Ali, percebemos a representação de uma infância não idealizada e, em muitos casos, até cruel – conforme se pode ver na descrição da relação entre o narrador e um escravo, transcrita anteriormente.

Feito dessa forma, o retrato dos anos de criança afasta o romance de Machado de Assis do Romantismo, movimento em que a mocidade é vista como ideal e motivo de saudade.

AMORES

O amor é outro elemento que afasta o romance Memórias póstumas de Brás Cubas da estética romântica  – movimento que foi sucedido pelo Realismo.

Para os românticos, tais quais José de Alencar  e Álvares de Azevedo , o sentimento amoroso era representado como maior meta da vida e, em muitos casos, inatingível. Além disso, a figura da amada era idealizada e única.

No romance de Machado de Assis, entretanto, não há idealização do amor ou da mulher. De fato, Brás Cubas tem uma grande paixão na vida, a personagem Virgília. Entretanto, ela nem é única e tampouco completamente correspondida e eterna. Outros amores do protagonista são Marcela, Eugênia e Nhã-Loló.      

Trecho do romance em que Brás Cubas descreve seu maior amor, Virgília:

Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois?... A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que ia lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, — devoção, ou talvez medo; creio que medo.

EMPLASTO BRÁS CUBAS

Já no final da vida, Brás Cubas assume para si a responsabilidade de criar um medicamento capaz de curar todas as doenças do mundo. Tal projeto, obviamente, não dá certo e torna-se mais uma das frustrações do narrador.

Leia, a seguir, o momento em que o narrador conta da ideia do remédio, intitulado “Emplasto Brás Cubas”:

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.

Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.


O CAPÍTULO DAS NEGATIVAS

O último capítulo do romance tornou-se célebre por resumir a ironia e o pessimismo típicos da escrita de Machado de Assis. Nele, Brás Cubas faz uma espécie da ponderação acerca da própria vida, que, segundo ele, pode ser resumida como uma sucessão de negativas. Não obstante, um saldo positivo acaba restando para o narrador, conforme se lê a seguir:

    Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

PERSONAGENS

O romance Memórias póstumas de Brás Cubas é longo – conta-se toda a vida e morte do protagonista. Por isso, não é curta a lista de personagens presentes na obra. Não obstante, alguns deles são de fundamental importância e vale a lembrança:

Brás Cubas, protagonista da história;

Virgília, maior paixão de Brás Cubas;

Lobo Neves, marido de Virgília e político;

Marcela, prostituta e primeiro amor de Brás Cubas;

Eugênia, segundo amor do narrador;

Nhã-Loló, que se casaria com Brás Cubas, mas falece vitimada pela febre amarela;

Quincas Borba, amigo de infância de Brás Cubas. Esse específico personagem teve seu próprio romance também publicado por Machado de Assis.

Fonte:
MARINHO, Fernando. "Memórias póstumas de Brás Cubas". Disponível em Brasil Escola:  Acesso em 07 de dezembro de 2020.

domingo, 6 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 6 –

 

Otto Lara Resende (A Chave do Mistério)


Anos atrás andei com a mania de estudar o fenômeno da coincidência. O Carlos Lacerda também. Tanto que até traduziu, com Maria Thereza Correia de Mello, “As razões da coincidência”, de Arthur Koestler (desculpem, mas sou obrigado a abrir este parêntese. No momento em que escrevi estas primeiras linhas, desabou da minha estante um quadro e na queda arrastou o quê? O livro do Koestler). Ninguém é, porém, mais obcecado com o tema do que o Luís Edgar de Andrade.

Obcecado e entendido. A partir daí, as coincidências com ele se sucedem. Ele documenta e põe tudo no computador. Outro dia, estava lendo a história de um trem que caiu na baía de Newark e, no dia seguinte, deu na loteria de Nova York o número do último vagão. Neste exato instante, o Luís Edgar viu na televisão uma locomotiva que bateu num ônibus, no Rio. Anotou o número da locomotiva, que no dia seguinte saiu na foto do acidente. E bem visível: 3384.

Vejam a centena que deu na loteria federal: 384. O Luís Edgar não jogou no bicho, porque não sabe. Nem parece brasileiro. À tarde, na extração da Paratodos, deu o milhar 3384. Qual a relação entre desastre ferroviário e sorteio de loteria? A pergunta do Luís Edgar antigamente me tiraria o sono. O Jung estudou o mistério da coincidência a partir da sincronicidade. Matemáticos mergulham na análise combinatória e na serialidade. Filósofos especulam. A literatura é farta. O Luís Edgar está agora lendo os alemães.

Como muita gente, posso contar coincidências que aconteceram comigo. Andei com essa ideia fixa e passei à parapsicologia. Quase fui parar numa clínica de repouso. Nada como um eufemismo. Até que um dia, aliás uma noite, descobri tudo. Parti da própria palavra coincidência, que quer dizer encontro de duas ou mais incidências. Incidere no latim é cair em ou sobre, acontecer, sobrevir.

Eis a chave do enigma: tudo é coincidência, desde a criação do mundo, qualquer que seja a sua teoria ou crença. A vida é isto: incidências simultâneas que obedecem a uma ordem. Também a morte. Chame essa ordem de primeiro motor, ou providência. Ou Deus. Já não há mistério nem enigma. O Brasil é uma coincidência. Um dia explico. Mas você chegou até aqui por quê? Eu escrevi e você leu ‒ que bruta coincidência!

Fonte:
Folha de São Paulo. 28 julho 1991.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 7

. . . . . . . . . . .

além alma
(uma grama depois)


Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?
****************************************

arte do chá

ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo

ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo
****************************************

desencontrários

Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.
****************************************

o par que me parece

Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
aquela língua sem fim
feita de ais e de aquis.
Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
alguma coisa de hitita,
praia do mar de Java.
Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
Gritos eram os únicos.
O resto ia pro lixo.
Dois leos em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.
****************************************

plena pausa

Lugar onde se faz
o que já foi feito,
branco da página,
soma de todos os textos,
foi-se o tempo
quando, escrevendo,
era preciso
uma folha isenta.
Nenhuma página
jamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.
****************************************

signo ascendente

Nem todo espelho
reflita este hieroglifo.
Nem todo olho
decifre esse ideograma.
Se tudo existe
para acabar num livro,
se tudo enigma
a alma de quem ama!

Fonte:
Paulo Leminski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.
Livro enviado pelo autor.

Ivan Lessa (Cães e camelôs)


O sujeito vai andando pela avenida às três horas da tarde sem um só amigo no mundo mas com duas notas de cinco mil na carteira e várias promissórias na praça. Vai a caminho do Cineac fazer sua hora de trinta minutos com torpezas de Chicago e nus ousados. Seu humor não é grande coisa: acaba de insultar uma senhora que tentava impingir-lhe um bilhete de loteria. Faz calor e ele se sente mal dentro do terno de brim. Se pudesse daria um soco em nossa cara, não podendo passa o lenço pelo rosto como se o quisesse arrancar fora torcer o suor e botar para secar. Vai pela avenida fraco de vida. E vê, na esquina, o camelô. Para, escuta e sossega. Não é o espetáculo que o acalmou, mas sim, o desafio. Um camelô, para ele, é um teste, alguém com quem pode pôr à prova sua argúcia. Instantaneamente seco e bem passado, rosto esperto de quem sabe alguma coisa que todos desconhecem, fica num canto mais exposto à espera que a atenção do vendedor caia sobre ele. E se retesa em negação: é o homem que não compra, que não cai no conto, que não é bobo: nele não passam a perna. Sorri de suas alturas, nota com superioridade que o camelô tem um certo jeito para a coisa, olha com desdém os mais crentes na assistência, vai dar de cara com o “esparro” a apalpar e aprovar o descascador de batata, o cola-tudo, o limpador de metais, o quebra-cabeças. Olha em torno, certificando-se que o “rapa” não está por perto (se estivesse seria o primeiro a dar o aviso, é um homem com fair-play). Com a terceira venda retoma seu caminho com a moral um pouco mais alta. Mais uma vez ele ganhou. Não vai na conversa de ninguém. Ele é fogo, ele é cem por cento.
*

Com respeito à arquitetura do Leme, uma coisa me ficou clara: os cachorros preferem as esquinas. Nunca vi uma esquina com tanto cachorro. Hoje de manhã contei seis. Seis cachorros quietos, uns deitados, outros com aquela cara estúpida de olhos fechados para o sol e a seis segundos de um bocejo. Deve ser a hora: O sol bate ali, eles o procuram, acham e deitam. São uns cachorros gordos de dono de padaria e açougue, não aborrecem, não dão atenção a assobios, nem correm atrás de carro e criança. O pelo desses cachorros oferece brilho singular, deve ser a maresia e a refeição na hora. Mas estão quietos demais para cachorros. Falta alguma coisa. Não dão impressão de liberdade ou irresponsabilidade. Há gravidade nos espaços que deixam entre um e outro. E não se olham, não se farejam, não se estranham. Estão ali como também poderiam não o estar. Tanto faz ser seis ou quatro, ou dois. Estão unidos por um movimento secreto que faz em um todo, uma coisa só. Cães improváveis: súcia, malta, bando. Um coletivo é isso: todos feitos um só. Num homem, está certo, num cachorro, não. Deve ser porque é de manhã. Vai ver de tarde, quando estou pela cidade, eles pulam para cima e para baixo, chateando os outros, latindo para os aviões, fazendo suas cachorradas. E quem sabe como me veem? Quem sabe como nos veem a todos, estes seis cachorros? Parados, sem graça, cheios de movimentos previsíveis, andando e mudando de cara, todos à uma distância respeitosa, uns dos outros, com medo, uns dos outros ‒ e por isso ‒ a se meter na vida sossegada dos cães na esquina.  

Fonte:
Diário Carioca. RJ. Coluna Rosa-dos-ventos. 4 dez 1965.

O Soneto – Parte 3


Em 2000, no Rio de Janeiro, um grupo de reconhecidos poetas se reuniu para fundar uma academia exclusivamente dedicada ao soneto e ali foi criada a Academia Brasileira do Soneto – a ABRASSO. Uma ideia, lapidar que tinha tudo para dar certo, organizada, entre outros, pelo falecido poeta Dario de Sá, com a finalidade de preservar o soneto em sua integridade física, só admitindo como válidos os heroicos e alexandrinos. Após sua implantação, fui convidado e a ela me juntei.

Quando se fala em soneto, a referência é sempre ao heroico e ao alexandrino, mas na minha opinião, mesmo com toda rigidez de concepção, não acho que devamos chegar a tais extremos, pois acredito ser preferível incluir-lhes os estilos desde o sonetilho até o dodecassílabo (diferente do alexandrino) – obviamente, respeitando suas regras básicas quanto à métrica, rima e acentuação sem agredi-lo – do que permitir que seja mutilado entre versos brancos e pés quebrados, como sempre vemos tal heresia ser cometida. Assim acredito e defendo serem incluídos, também, os seguintes estilos, embora raramente usados :

05 sílabas – a redondilha menor, comumente chamado de sonetilho;

06 sílabas – o heroico quebrado, também sonetilho;

07 sílabas – a redondilha maior , ainda sonetilho;

08 sílabas – o sáfico de pé quebrado;

09 sílabas – o gregoriano ou jâmbico;

10 sílabas – o heróico, sáfico ou moinheira;

11 sílabas – o hendecassílabo – soneto de o arte maior

12 sílabas – o alexandrino com dois hemistíquios e

12 sílabas – o dodecassílabo, diferente na acentuação.

Os sonetilhos (termo ignorado por Geir Campos) são denominados de “arte menor” e a partir do sáfico até o dodecassílabo, são os de “arte maior”. Tratando-se de soneto, não é permitido a existência de versos acima de 12 sílabas métricas. E as acentuações a serem respeitadas, para os diversos tipos, são :

05 sílabas – nas 2ª e 5ª sílabas

06 sílabas – nas 4ª e 6ª Sílabas

07 sílabas – nas 2ª, 3ª ou 4ª.e na 7ª sílabas

08 sílabas – nas 4ª e 8ª sílabas

09 sílabas – 3ª, 6ª e 9ª sílabas

10 silabas – para o heroico, 6ª e 10ª sílabas

para o sáfico – 4ª, 8ª e 10ª sílabas

para o moinheira – 5ª e 10ª sílabas

11 sílabas – 3ª, 5ª, 8ª e 10ª.sílabas

12 sílabas – alexandrino – 6ª e 12ª sílabas, separando os hemistíquios, porém, Roger Feraudy ensinava que deveriam ser nas 3ª, 6ª, 9ª e 12ª sílabas, para melhor cadência, mas marcação não obrigatória – só questão de gosto.

12 sílabas – dodecassílabo – entre as várias combinações, a mais usada é acentuação nas 4ª, 8ª e 12ª sílabas.

Reafirmo aqui que tais variações de tipos são dentro da minha concepção particular, sem querer extrapolar as regras do soneto clássico, mas uma conclusão a que cheguei para minimizar as constantes agressões ao estilo e que acredito, com lógica, embora os mais utilizados sejam, sem sombra de dúvida, o heroico e o alexandrino. No máximo, o que alguns poetas se permitem é a mistura, num mesmo soneto, de versos heroicos e sáficos, em termos de acentuação.

HEMÍSTÍQUIOS:
são as duas partes de seis sílabas que compõem o verso alexandrino, observando-se que o verso do primeiro só poderá terminar com palavra oxítona ou paroxítona. Se oxítona, o segundo hemistíquio pode começar com vogal ou consoante. Se paroxítona, a palavra sempre terá que terminar em vogal e a seguinte iniciar com vogal para permitir a elisão.

Portanto, esse é o complexo mundo do soneto, talvez difícil para as novas gerações, mas não impossível de entendê-lo e absorvê-lo – como já constatei no trabalho de alguns jovens. Como podem deduzir na comparação com os versos livres, é um estilo totalmente diferente e especial, tanto que o poeta, pintor e trovador Noel Bergamini, assim se expressou :

“O soneto, queiram ou não, é indiscutivelmente, a base da poesia, a sua estrutura máxima, o seu alicerce ponderável e indestrutível, por ser imortal como as conquistas imperecíveis da ciência; quanto às leis imutáveis da Natureza; quanto o brilho solene dos astros e a beleza magnética das estrelas! Ninguém destrói as glórias do passado; os vultos que vivem na lembrança dos que prezam a cultura, exortam a sabedoria e sublimam a inteligência. Todos eles serviram, servem e servirão de exemplo a todas as gerações como fonte permanente de inspiração!”

E para exemplificar o que disse acima sobre o soneto de 11 sílabas, transcrevo um do poeta Roger Feraudy (1923/2006), escrito em ´95, para mostrar sua sonoridade nos TEMPOS MODERNOS ( ao genial Charles Chaplin ) :

No meu desalento procuro entender,
se passo na vida, ou a vida é que passa !
Eu devo estar velho, ou cansei de viver,
e agora não sei realmente o que faça !

E vejo confuso o probo hoje ser
aquele que honesto serviu de chalaça,
por ser virtuoso cumprir seu dever.
Só vence quem usa da fraude, a trapaça !

Na música o som meus ouvidos tortura,
no verso, na prosa e até na pintura,
se exalta o vulgar com incenso e louvor.

Nos tempos modernos – é regra geral,
porque sem critério, no mundo atual,
mudou-se o conceito, inverteu-se o valor !


E Atos Fernandes, lá da cidade de Itaperuna/RJ, falecido em ´79 nos mostrou a súplica dos PEDINTES :

O pobre pede pão. O nobre pede o trono.
O santo pede o altar, o crente pede a missa,
e quem das leis sociais sofre amargo abandono
ergue as mãos para o Céu, pedindo por justiça.

Quem ama pede amor. O insone pede o sono.
O mártir pede a cruz, e pede o herói a liça.
Pede o inverno o verão; a primavera o outono,
e o sábio pede a luz da verdade castiça!

Quem luta pede a paz. O enfermo pede a cura.
O verme pede a terra e a águia pede a altura,
e quem sofre a opressão pede a mão que o redima.

E o Poeta, também, seguindo a mesma norma,
é um mendigo a pedir a pureza da Forma,
a beleza da Ideia e a riqueza da Rima!

________________________
continua…

Fonte:
Texto de José Roberto Gullino disponível na Casa Raul de Leoni (http://rauldeleoni.com.br/soneto/
)