segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 463

 

Contos e Lendas do Mundo (A Floresta de Lata)


Era uma vez um lugar amplo, varrido pelo vento e quase esquecido, que estava cheio de coisas que ninguém queria.

Mesmo no centro desse lugar, e exposta ao mau tempo, encontrava-se uma pequena casa, de janelas igualmente pequenas, com vista para o lixo que outros haviam feito.

Nessa casa vivia um velho.

Todos os dias, o homem tentava livrar-se do lixo, apartando e escolhendo, queimando e enterrando.

E, todas as noites, o homem sonhava.

Sonhava que vivia numa floresta cheia de animais selvagens, na qual havia aves coloridas, árvores tropicais, flores exóticas, tucanos, rãs-de-árvore e tigres.

Contudo, sempre que acordava, o mundo que via continuava igual.

Certo dia, algo chamou-lhe a atenção e uma ideia ganhou forma na sua cabeça.

Uma ideia que ganhou raízes e germinou.

Que ganhou folhas, alimentando-se do lixo.

Que ganhou ramos cada vez maiores.

Então, uma floresta inteira emergiu das mãos daquele homem.

Uma floresta feita de lixo. Uma floresta feita de lata. Não era a floresta dos seus sonhos, mas era, ainda assim, uma floresta.

Um dia, o vento trouxe consigo um pequeno pássaro para a planície deserta. O homem deitou no chão algumas migalhas que o pássaro logo comeu, empoleirando-se depois no ramo de uma árvore de lata. No dia seguinte, a ave partiu, e o velho ficou sozinho a vaguear pelo silêncio, com o coração a doer de vazio.

Nessa mesma noite, ao luar, o homem formulou um desejo…

No dia seguinte, acordou com o canto de pássaros. O seu visitante tinha voltado e trazia consigo um companheiro. Nos bicos, transportavam sementes, que largaram no solo árido. Em breve, havia rebentos por toda a terra.

O canto dos pássaros misturou-se com o zumbido dos insetos e o sussurrar da folhagem.

O tempo foi passando.

E foram surgindo pequenos animais, a rastejar por entre a floresta de árvores. Apareceram animais selvagens, que deslizavam por entre as sombras verdes.

Era uma vez uma floresta e quase esquecida, que agora estava cheia de coisas que todos queriam.

No meio dela, havia uma pequena casa, de janelas igualmente pequenas. Nessa casa, vivia um velho homem que nunca tinha deixado de sonhar…

Fonte:
Tradução e adaptação de Helen Ward; Wayne Anderson. The Tin Forest
New York, Puffin Books, 2003. Disponível em Contar e Encantar.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) 5


Ah, pobre palhaço!
O teu sorriso é pintado
E tua alma de criança
Chora soluçando em silêncio.
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Ansiedade.

Às vezes
É preciso acrescentar
A letra C na palavra alma
E calmamente
Deixar os sonhos ronronando feito um gato
Nas tardes envelhecidas.
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Busquei estrelas
Mas as do céu da tua boca
Tinham gosto de inocência
Sabor de quero mais.
===================================

Chovia...
A janela do meu eu lacrimejava
E a solidão,
Essa velha louca
Adormecida no porão da minh'alma,
Amanheceu resmungando
E arrastando os seus chinelos pela casa.
======================================

Ela era dissimulada,
Tipo "olhos de Capitu"
Até que um dia
"Caiu a máscara"
E o beijo deslizou
Pelo corpo nu.
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Gratidão
É uma caixinha de veludo
Onde se guarda o que é eterno.
PS.: Guardei você!
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Na fotografia
A poesia se revela
Cheia de poses
Espelhada
Com muitas caras e bocas
Se veste de fantasias
Tão coloridas
Mas às vezes doída
Se desnuda em pranto
Em preto e branco
Sem início
Sem fim

* Homenagem aos meus amigos fotógrafos
=====================================

No entardecer de mais um ano
As meninas dos meus olhos
Se vestem de esperança.
As roupas usadas, amassadas e manchadas nos 365 dias
Vão ficando esquecidas nos varais.
Ah, meninas teimosas!
Algumas vezes se cansam
Mas não desistem de cada dia se reinventar.
Na dor, brincam de esconde-esconde
Nadam em lágrimas,
Mas não se deixam afogar.
Ah, meninas preciosas!
Na alegria, sorriem sem disfarçar.
Apaixonadas pela vida,
Sonham, sofrem, mas logo trocam de roupas
E voltam brilhantes
Quando surge uma nova chance para amar.
Que no amanhecer do Novo Ano
As meninas dos meus e dos teus olhos
Brinquem felizes
Sem ver a tristeza
Que às vezes morre num olhar.
===================================

Nos olhos do menino
Madrugavam sonhos.
Sem entender direito o que era fé
Esperava pelo sol
Mesmo diante das "chuvas de nãos"
Que tentavam borrar o seu sorriso.
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Que sorte
Quando por ti
Perdi o meu norte
Foi que eu me encontrei.
===================================

Tu dizes
Que em ti
Fiquei plantado
Como uma boa lembrança.
Mas em mim,
Tu ainda floresces
Independentemente da estação.

Fonte:
Academia Facebookiana de Letras e das Artes

Rubem Braga (As Teixeiras e o Futebol)


Com os Andradas tínhamos feito uma espécie de pacto; a gente não jogava bola na rua defronte a casa deles, mas um pouco para cima, onde havia um muro que dava para o quintal da casa; em compensação, eles deixavam a gente pular o muro e apanhar a bola quando caía lá. Mas o muro não era bastante comprido, e assim o nosso campo abrangia, como eu ia dizendo, algumas janelas das Teixeiras. As quais, eu também já disse, não apreciavam o futebol.

Quando a gritaria na rua era maior, uma das Teixeiras costumava nos passar um pito da janela, mandando a gente embora. O jogo parava um instante, ficávamos quietos, de cara no chão – e logo que ele saía da janela a peleja continuava. Às vezes aquela ou outra Teixeira voltava a gritar conosco – começavam por nos chamar de “meninos desobedientes” e acabavam nos chamando de “moleques”, o que nos ofendia muito (“Moleque é a senhora!” – gritou Chico uma vez), mas de modo algum nos impedia de finalizar a pugna.

Uma das Teixeiras era mais cordial, chamava um de nós pelo nome, dizia que éramos meninos inteligentes, filhos de gente boa, portanto poderíamos compreender que a bola poderia quebrar uma vidraça. “Não quebra não senhora! Não quebra não senhora!” – gritávamos com absoluta convicção, e tratávamos de tocar o jogo para frente para não ouvir novas observações.

Um dia ela nos propôs jogar mais para baixo, então o Juquinha foi genial: “Não, senhora, lá não podemos porque tem a Dona Constança doente”, desculpa notável e prova de bom coração do nosso time.

“Então por que vocês não jogam mais para cima? – propôs ela com certa astúcia, e falando um pouco baixo, como se temesse que os vizinhos de cima ouvissem: “Ah, não, lá o campo não presta!”, argumento, aliás sincero, de ordem técnica, e portanto irrespondível.

“Eu vou falar com papai! Quando ele chegar vocês vão ver” – gritou certa vez uma das Teixeiras mais antipáticas. Pois naquele momento o coronel de bigodes brancos ia chegando, o jogo parou, ele perguntou à filha o que era, ela disse “esses meninos fazendo algazarra aí, é um inferno, qualquer hora quebram uma vidraça” – mas o velho ouviu calado e entrou calado, sem sequer nos olhar, nem dar qualquer importância ao fato. Sentimos que o velho, sim, era uma pessoa realmente importante e um homem direito, e superior, e continuamos a nossa partida.

As queixas que algumas Teixeiras faziam em nossa casa eram bem recebidas por mamãe, que lhes dava toda razão – “esses meninos estão mesmo impossíveis” -, e uma ou duas vezes nos transmitiu essas queixas sem convicção. De outra feita, como a conversa lá em casa versasse sobre as Teixeiras, ouvimo-la dizer que fulana ou sicrana (duas das irmãs) eram muito boazinhas, muito simpáticas, mas beltrana, coitada, era tão enjoada, tão antipática, “ainda ontem esteve aqui fazendo queixas de meus filhos”.

Mamãe era a favor de nosso time; mamãe, no fundo, e papai também (hoje, que o time e eles dois morreram, esta súbita certeza, ao meditar no distante passado, tem um poder absurdo, inesperado de me comover, até sentir um ardor de lágrimas nos olhos) – eles sempre foram a favor do nosso time!

E nosso caso com as Teixeiras foi se agravando.

Fonte:
Rubem Braga. 200 crônicas escolhidas.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) 4. Conto – O Ilustre Menezes


O ILUSTRE MENEZES


Ambiente:
cidade do Rio de Janeiro nos fins dos anos 1800. Residência da família Menezes.

Foco narrativo:
Primeira Pessoa.

Personagens:
Menezes: Homem de meia idade, "escrivão bem situado" de certas posses que lhe ficaram da primeira esposa, casado pela segunda vez com Conceição.

Conceição: Atual esposa de Menezes.

D. Inácia: Sogra de Menezes.

Amélia: Primeira esposa de Menezes, já falecida.

Pastora: Amante de Menezes.

Nogueira: Jovem primo da primeira esposa de Menezes que veio ao Rio para estudar.

RESUMO:
"Bem sei que já não sou o mesmo. Ainda que eu atrase o relógio, que trago sempre atado à presilha da calça, passa-me o tempo com demasiada pressa. E qual não é o meu espanto ao já não mais ver-me em 1860, mas já a pisar, e sem a firmeza de outrora, o chão de 1862. Eis dois anos decorridos sem a minha cumplicidade, deles sequer dei-me conta."

O narrador, Menezes, é casado com Conceição, uma mulher educada num rigoroso sistema moralista. Proíbe-se ter prazer ou conversar sobre sua intimidade. Menezes conta que tem o hábito de dormir fora de casa nas Quintas-feiras , pois vai ver sua amante Pastora. Apesar da impertinência da sogra, D. Inácia, ele dobra a mulher com as desculpas mais esfarrapadas, como por exemplo ir ao teatro sozinho com medo que a esposa se aborreça com as peças. Ele arruma uma segunda amante, Delfina, que acaba por abandona-lo. No conto, predomina a atmosfera de século XIX, com uma linguagem no estilo Machado de Assis. Aliás, o final da história faz referência ao célebre conto Missa do Galo, do referido autor.

COMENTÁRIO:
Menezes quer que tudo lhe gire em torno, de acordo com suas necessidades ou caprichos. Conceição é obediente e submissa ao extremo, devido à educação e às circunstâncias em que vive. O próprio marido impede-a de manifestar pensamentos ou opiniões e exige dela um comportamento de acordo com os moldes que ele lhe impõe. Mais que submissão ou obediência. O fato de o marido surpreender Conceição chorando demonstra o sofrimento da esposa, tolhida pelo autoritarismo da mãe e sela falta de amor do marido.

Os diálogos entre os dois são tão contidos que um não manifesta seus sentimentos ao outro. Recorrem às evasivas. Menezes sonha e não dá esse direito à esposa. “Os sonhos poderiam fazê-la” querer mudar de vida e ele não quer que a vida mude. £ como será que Conceição encara a vida?

Conceição tenha por ele os mesmos sentimentos que Amélia tinha por ele. Ele queria os bens de Amélia. Conceição quer; agora, os seus bens.

“A ameaça de que estava a ir-me muito breve não comoveu Conceição”.

Apoia-se na certeza de que, à minha morte, hão de restar-lhe alguns bens. Julgamos as pessoas conforme julgamos a nós mesmos. A mudança de comportamento de Nogueira demonstra que as coisas começam a fugir do controle de Menezes, em sua própria casa: "sua presença na casa brevemente seria incômoda. Não quero molestar-me agora com tais problemas.

O final do conto, sem desfecho, dá ideia de que a vida, para aquela família, vai continuando com lentas modificações.

Fontes:
– Manuel Comellas Coimbra. In Algo Sobre, Resumos Literários.
– Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

domingo, 10 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 20 –

 


Amélia Luz (Nem Romeu, Nem Julieta)


Já perdi a conta dos casos que ouvi de namorados românticos. Coisas do passado, é claro. Hoje em dia tudo está muito diferente, as moças não ganham mais as serenatas nas noites de lua cheia, mas elas vão com os seus “ficantes” curtir a balada vazando noites de agito total.

Bom seria mesmo ser a Colombina do Pierrô, ser a Julieta do Romeu, ganhar flores, chocolates, poesias autografadas e, no álbum da vida estar na primeira página ao lado do eterno namorado, aquele do primeiro olhar, do primeiro aperto de mão e do primeiro beijo no portão a despertar a primeira taquicardia.

Receber atenções especiais, corações flechados desenhados nas árvores do jardim com direito a nomes e datas. Ser escravos do Cupido até o fim da vida e contar e recontar todas as viagens, todos os presentes de aniversário, natal, dia das mães e, por que não, dia dos namorados mesmo comemorando as Bodas de Prata ou de Ouro.

Embora tudo isso seja sonho enterrado vivemos o pesadelo da falta de sensibilidade, de virarmos geleiras humanas sem a menor emoção a manifestar. Já não mais existem românticos que mesmo de “jeans e de calça desbotada” mandam “flores para a namorada” como na antiga canção. Que pena!

Com a revolução feminista visando a igualdade de condições, a mulher deixou de ser o sexo frágil que dependia da proteção do homem, preocupado em lhe proporcionar o melhor em muitos casos. Será que a mulher só ganhou ou também perdeu?

Despiu-se de rendas e cetins, vestiu uma bruta calça de brim, tirou o chapéu e a flor dos cabelos e saiu por aí tentando fazer a sua liberdade, ou melhor, a sua igualdade de poderes diante do sexo oposto.

Os homens comodamente se retraíram, guardaram os seus violões e suas poesias com declarações de amor e nem sabem se a lua é cheia ou minguante, porque minguados estão os seus sentimentos neste jogo da vida em que a nudez da mulher, reveladora de todos os seus encantos, agora é exposta, não despertando mais aquela curiosidade que despertavam excitações. Vivemos um tempo de amores passageiros, de divórcios e separações e casamento à moda dos nossos avós e pais é coisa de cafona.

Viajando pelo cinema Hollywoodiano, palco de grandes amores, com músicas e ídolos famosos e beijos inesquecíveis que marcaram um tempo temos as mais preciosas cenas de amor.Como esquecer Scarlett O’hara e o Capitão Rhett Butter no filme E o Vento Levou encantando plateias que se espelhavam nas cenas de amor verdadeiro?

Hoje é a telinha do WhatsApp ou do computador a ditar regras que viciam e castram as emoções de todos criando um outro mundo de gente fria e isolada, inconsciente do que está se passando, na verdade, a seu redor. Escravizados pela máquina segue o homem por esta nova estrada, “deletando” emoções, plugando links, acessando sites no cansaço de se sentir vazio num horizonte onde o arco-íris agora nasce sempre em preto e branco.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Baú de Trovas XXV


Depois que partiste os elos
de nosso Infeliz amor,
os meus sonhos são mais belos,
e eu te devo esse favor...
ALVES JÚNIOR
--------------
Meu destino não lamento
nesta vida transitória.
— O amor pode ser tormento,
mas amar é minha glória!
ANTÔNIO TORTATO
--------------
As tuas mãos carinhosas,
que eu beijo com tanto ardor,
são dois lírios cor-de-rosas
no jardim do meu amor.
APARÍCIO FERNANDES
--------------
Quem ama sente pudor
de falar em quem quer bem:
quem fala multo de amor
não tem amor a ninguém.
A. S. DE MENDONÇA JÚNIOR
-------------–
Mãe! Teu nome pequenino
quanta beleza contém!
Poema de amor divino,
que os anjos cantam no além!…
CELESTE BRAGA
--------------
Quando a mulher é bonita,
tem-se o direito de vê-la,
como se olha uma paisagem
ou se contempla uma estrela.
HORMINO LYRA
--------------
Meu amor não foi desejo,
foi sonho, fatalidade.
Foi a ternura de um beijo
que se perdeu na saudade.
IVONETH PILASTRE DE GOIS
--------------
És rico... mas que tristeza!
Tens vazio o coração...
Não ter amor é pobreza
mais triste que não ter pão.
JESY BARBOSA
--------------
Sendo o amor uma batalha,
sentimos que, em sua trama,
não há vitória que valha
a rendição de quem ama.
JOÃO RANGEL COELHO
--------------
Tudo na vida se alcança,
difícil é começar:
— se dar um beijo é custoso,
depois... custoso é não dar!
JOSÉ FONSECA DUARTE
--------------
Devia ser orgulhosa,
mas anda na rua, aflita,
como se andasse pedindo
perdão de ser tão bonita!
JOSÉ JANNINI
--------------
Sofro e choro resignado,
tu nem ouves minha dor...
Quanto amor desperdiçado
por tanta falta de amor!
JUNQUILHO LOURIVAL
--------------
Envelheci te esperando,
tanto, tanto que nem sei
se a vida é que foi passando
ou se fui eu que passei.. .
KLEBER CRUZ
--------------
O amor, que às vezes nos mata,
outras vezes vivifica.
— É a loucura mais sensata
que o mundo inteiro pratica!
LEOPOLDINA DIAS SARAIVA
--------------
Crer nas juras lisonjeiras
que dos teus lábios ouvi
foi a maior das asneiras
que na vida cometi.
JAYME PAULO FILGUEIRA
--------------
Maria, leva teu beijo
que em minha boca ficou,
para que tenhas o ensejo
de dá-lo a quem te levou.
LUIZ ANTÔNIO PIMENTEL
--------------
Desconfio que a saudade
não gosta de ti, meu bem:
— Quando tu vens, ela vai...
quando tu vais, ela vem...
LUIZ OTÁVIO
--------------
Bendigo a minha tristeza
que em poemas se traduz.
Quem transforma a dor em versos
faz suave a sua cruz...
LYAD DE ALMEIDA
--------------
Ah, se eu pudesse saber
qual a mulher que ele quer...
Que não iria eu fazer
para ser essa mulher?
MAGDALENA LÉA
--------------
Cantei do amor a vitória
e nem me lembrei, sequer:
— efêmera é toda a glória
dos sonhos de uma mulher.
MARIA IDALINA JACOBINA
--------------
Na tarde que se ensombrece
de formas tristes, bizarras,
como num coro de prece
choram todas as cigarras!
MARIA SYLVIA DE CERQUEIRA LEITE
-------------–
A morte vem do Infinito
e canta para ninar.
Vai cantando tão bonito
que não se pode acordar.
MERCÊS MARIA MOREIRA LOP
--------------
O sonho que nasce em mim,
se não puder florescer,
terá comigo o seu fim:
— só morre quando eu morrer...
MARIA DALVACI DANTAS
-------------–
Nesta vida tão injusta,
que tanto me faz sofrer,
só eu sei quanto me custa
passar dias sem te ver!
NELLY D. WERNECK
--------------
O coração que é vencido
quase sempre tem razão.
E a razão, que sempre vence,
nunca teve coração...
NEWTON ROSSI

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Gregório Duvivier (Epitáfio para um Bar que Acolhia Equinos Bípedes e Elegia aos seus Garçons)


“No Alcorão não há camelos”, diz o Borges, e isso, pra ele, prova que se trata de um livro árabe. Qualquer estrangeiro teria enchido a história de camelos. “Maomé, como árabe, não tinha por que saber que camelos eram essencialmente árabes. Estava tranquilo. Sabia que podia ser árabe sem camelos.”

O Hipódromo vai fechar. Isso não muda quase nada pra quase ninguém, mas muda quase tudo pra uma dúzia de pós-adolescentes como eu. Aqui na Guanabara não chamamos de hipódromo o lugar onde trabalha o jóquei —lugar este que chamamos de Jockey— mas o bar perto do hipódromo, na praça do Jockey —praça esta jamais frequentada por algum jóquei.

O bar abriu em 1945, dizia o letreiro, e estava tranquilo. “Sabia que podia ser um hipódromo sem cavalos.” Acolhia todos os tipos de equinos bípedes: poetas, jornalistas, comediantes, adolescentes e divorciados em geral, ou seja: todos aqueles que não tinham senso estético nem paladar apurado e que, por não terem encontrado seu lugar no mundo, ali encontravam consolo num chope aguadinho, numa fatia de pizza com ketchup e num garçom que sabia seu nome e o da sua família toda.

Cada garçom tinha sua expertise e seus clientes preferenciais. Sorriso trazia no olhar ao te ver a alegria de uma criança que vê seus pais chegando à creche, enquanto João de Deus, o Boi, trazia na testa o maço de cigarro equilibrado nas sobrancelhas, entre outros truques impagáveis.

Lacerda tinha a memória mais prodigiosa e o humor mais veloz —o melhor garçom do mundo segundo qualquer concurso que preste. Existia ali uma tecnologia do serviço avançadíssima e que mantinha o bar aberto apesar dele mesmo.

A luz fria, o cardápio imutável, o teto de espuma, nas paredes a foto de um pedaço de carne crua no espeto com os dizeres “esta é a churrasqueira do Hipódromo”. Aquilo era pra ser uma publicidade, mas soava como uma denúncia.

Em seu lugar, abrirá uma filial do Brewteco —espécie de importação carioca da ideia que um paulista faz do que é um botequim carioca. Não reclamo: a imitação da imitação supera muitas vezes o original. A comida será melhor, o chope nem se fala. Mas falta alma. Não faltam camelos. O botequim carioca dos paulistas está mais pra Aladim que pra Alcorão.

A prova: demitiram os garçons. Rezo pra que todos apareçam recontratados. O tal do novo normal tem muito a aprender com o velho. Prometo que, se assim for, estarei lá (assim que encontrarem a vacina, que não sou doido de compartilhar perdigoto com desconhecido).

Fonte:
Folha de São Paulo. 21 julho 2020.

I Concurso de Trovas e Poemas Eliane Mariath Dantas (Prazo: 18 de Janeiro)


ACADEMIA DE LETRAS E ARTES DE PARANAPUÃ -ALAP
Fundada em 21/10/1989
E-mail: alap.paranapua@gmail.com


REGULAMENTO:

No intuito de homenagear a saudosa Presidente Eliane Mariath Dantas, a Academia de Letras e Artes de Paranapuã lança o presente concurso de trovas e poemas, sendo que cada concorrente poderá participar de ambas as modalidades.

Os membros da ALAP participarão na categoria Acadêmicos, ao passo que os concorrentes que não forem membros participarão da categoria Especial.

I - PARA O ENVIO DE TROVAS

01- Tema: LIVRE.

02- Categoria: ESPECIAL e ACADÊMICO

03- Cada candidato poderá concorrer com no máximo 03 (três) trovas.

04- As trovas deverão estar digitadas e serem inéditas (nunca publicadas ou classificadas em concursos).

Observação: 07 (sete) sílabas poéticas em cada verso, com o 1º rimando com o 3º e o 2º com o 4º, em sentido completo.

05- O concorrente deverá enviar a(s) trova(s) com pseudônimo no corpo do e-mail para alap.paranapua@gmail.com. Já a sua identificação deverá vir em anexo (nome completo, categoria em que concorre (acadêmico da ALAP ou especial), pseudônimo, endereço completo com CEP, e-mail, nº do telefone celular).

06- Período de inscrição: de 9 de janeiro a 18 de janeiro, até 23:59 do horário de Brasília.

07- A Comissão Julgadora será composta por membros de renome literário, e sua decisão será soberana e irrevogável.

08- Premiação: Certificado virtual de destaque para os 3 primeiros lugares, Menção Honrosa e Menção Especial.

09- Certificado virtual de participação a todos os participantes.

10- O resultado será publicado no mês de fevereiro no perfil da ALAP - RJ do Facebook.

II - PARA O ENVIO DE POEMAS

01- Tema: LIVRE.

02- Categoria: ESPECIAL e ACADÊMICO

03- Cada candidato poderá concorrer com 01 (uma) poema.

04- Os poemas deverão ser inéditos (nunca publicados ou classificados em concursos), digitados, com o máximo de 35 (trinta e cinco) versos.

05- O concorrente deverá enviar o poema com pseudônimo no corpo do e-mail para alap.paranapua@gmail.com. Já a sua identificação deverá vir em anexo (nome completo, categoria em que concorre (acadêmico da ALAP ou especial), pseudônimo, endereço completo com CEP, e-mail, nº do telefone celular).

06- - Período de inscrição: de 5 de janeiro a 18 de janeiro, até 23:59 do horário de Brasília.

07- A Comissão Julgadora será composta por membros de renome literário, e sua decisão será soberana e irrevogável.

08- Premiação: Certificado virtual de destaque para os 3 primeiros lugares, Menção Honrosa e Menção Especial.

09- Certificado virtual de participação a todos os participantes.

10- O resultado será publicado no mês de fevereiro no perfil da ALAP - RJ do Facebook.

Rio de Janeiro (RJ), 5 de janeiro de 2021.

Fonte:
Email enviado pela ALAP

sábado, 9 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 462

 


São Tomé (Poemas Além Fronteiras)


ALTAS MONTANHAS

   
Pelas montanhas andam meus olhos,
Seguindo o vento que nuvens varria
E a neve esparsa que ainda persistia,
Cobrindo cumes, livres de abrolhos.
 
Das altitudes vi o Mundo a meus pés,
Tão belo e frágil aos olhos meus,
Como será visto aos olhos de Deus?...
Talvez reduzido a mar e suas marés.
 
Ou uma linda bola dum azul terso,
Para enfeitar o altar do Universo,
Que queremos destruir, como cristal.
 
Talvez o Seu jardim verde e florido,
Agora pela poluição destruído,
Oh Deus! Porque fazemos tanto mal?
****************************************

A MINHA CASINHA

Era uma casinha
Que toda sorria
Logo pela manhã
Quando o sol se erguia.

Tinha três janelas
Viradas ao monte
Onde murmurava
Uma fresca fonte.

Tinha uma varanda
Virada pra rua
Onde eu sonhava
Ao mirar a lua.

Tinha uma escada
Em pedra talhada
Já muito antiga
E bem desgastada.

E fora de portas
Havia um pilar
Feito de uma pedra
Para eu cavalgar.

Para eu cavalgar
Por mundos além
Junto com os sonhos
Que a criança tem.

Mas esta casinha
Já não é mais minha
Restam as lembranças
Da graça que tinha.
****************************************

DONOS DO MUNDO

Dentro de mim coabitam em dualidade
O silêncio explodindo num trovão
Que catapultam a voz da minha razão
Aos vastos campos da irracionalidade!

Que caminho percorre a humanidade
Por este planeta frágil, assaz moribundo
Porque não se chega à consensualidade
De que ninguém é o dono do mundo!?
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OS MEUS VERSOS

Guarda esses versos que te fiz amor,
Para que um dia os possas recordar,
Mas se a saudade der lugar à dor,
Lança-os ao fogo deixa-os queimar.

Se esses versos que arranquei da alma,
Eles não chegarem ao teu coração,
Abre-lhe caminho de flores e palma,
Quem sabe um dia voltará nossa paixão.

Quisera eu fazer deles uma canção,
P’ra que juntos a possamos escutar,
Sem ter por perto a sombra da solidão.

Se esses versos te causarem aversão,
Podes soltá-los nas brumas do mar,
Que o vento oculto, lhe dará a mão.
****************************************

TERRAS DE ALÉM-MAR

Tão longe de mim, tão longe,
Que não as posso alcançar,
Mas estou presa à saudade
Das terras de além-mar…
Onde o tempo não corria,
A noite era igual ao dia
E o sol sempre a madrugar.
Se o mar na areia batia,
Era só para se espraiar.
E pelos longos caminhos,
Com o capim a verdejar,
Havia rosas sem espinhos,
Para as poder abraçar.
E à noite quando surgia
A lua no céu a brilhar,
Ouvia-se o som do batuque
Se expandindo pelo ar.
****************************************

UM DIA VOLTAREI
 
Um dia, voltarei ao meu sertão,
Quando o Sol iluminar mais uma vez
O manto verde que envolve sua tez
E avivar os matizes do rubro chão.
 
Para sorver o orvalho de cada flor
Doce néctar saciando a minha sede
Sentir o frescor do cajueiro verde
Quando intensificar mais o calor.
 
Então espalharei o meu cansaço,
Pela solidão do tempo e espaço,
E no meio a essa magia envolvida
 
No revoar duma ave de rapina
Que por mim adeja em surdina.
Sentirei que de novo voltei à vida.
****************************************

Maria da Conceição Pinto Tomé, cujo nome literário é: Conceição Tomé e São Tomé o seu pseudônimo, nasceu em S. Mamede Ribatua, Concelho de Alijó (Trás-os-Montes), à beira dos rios Douro e Tua. Depois de ter vivido por longos anos em Angola e Brasil, reside atualmente em Amora – Seixal. Casada com o poeta e escritor Pinhal Dias. Escreve versos desde 1958, colaborando em vários Jornais e Antologias Poéticas, com adesão ao Recanto das Letras; Associação Portuguesa de Poetas; Poetas Del Mundo e AVSPE – Brasil; Horizontes da Poesia. Participou nas VI; VII e VIII Antologias Poéticas do Mensageiro da Poesia, 2ª Antologia de Contos Cardeais da Editora Mosaico de Palavras. Tem vários trabalhos publicados em Jornais e Revistas.

Foi Diretora do Mensageiro da Poesia. Vice-Presidente e Fundadora de “Os Confrades da Poesia”; também Diretora-adjunta do Boletim. Tem 2 CD's Gravados/Declamados.

Livros digitais: A Verdura do Meu Olhar; A Verdura do Meu Sentir; Uma prosa de vida; Entre o Verde e o Mar...
Livro Artesanal: "Meus Escritos”

Sites: http://conceicaotome.blogs.sapo.pt e 
http://www.confradesdapoesia.pt

Fontes:
- Os Confrades da Poesia Boletim Nr 57 | Julho/Agosto 2013, p. 20.
- http://www.confradesdapoesia.pt/Biografia/ConceicaoTome.htm
- http://conceicaotome.blogs.sapo.pt

Nilto Maciel (O Pecado de André Gide)


Bomfim fechou a porta e parou na calçada. Olhou para um lado, para outro e tirou a sorte: esquerda ou direita? Acendeu um cigarro, ergueu os olhos para o céu e seguiu. Nem os cachorros da noite davam sinal de vida e a luz fraca das lâmpadas dos postes se derramava sonolenta pelo chão. Sua sombra ia e vinha, a crescer e desaparecer, como num filme de terror.

Não havia nenhuma pressa em seus pés, nem sequer algum desígnio em seus olhos. Bastava andar, acompanhar o desenho dos próprios passos, para cansar-se e poder dormir. Em casa, os ratos brincavam de esconde-esconde, enquanto o gato morria de emoção no canto da parede. Os livros se espremiam na estante, Proust a empurrar Gide para lá, Thomas Mann a sufocar Hermann Hesse. Na sala, o alcatrão e a nicotina se misturavam à alfazema do desejo. A cama esparramava-se pelo quarto, desajeitada, fria, feia, feito mulher indesejável  – coberta de mofo, de lodo, de todos os cheiros ruins da solidão.

Na ponta da rua, uma nesga de luz cortava o chão da calçada de um amarelo claro e projetava a imagem retorcida e tosca de um fantasma. Que rugia, ou blasfemava, ou ameaçava. E Bomfim conteve mais a maciez dos passos e outra vez tirou a sorte: seguir ou voltar? Em seus olhos brilhou o último desígnio – o medo. E não voltou.

A figura se contorcia no chão, aureolada de ouro, poderosa, fascinante, a boca a espumar de desespero – insanamente.

Bomfim desviou-se para a ponta da calçada, quase apressado, um olho na réstia, outro em casa. Os ratos escalavam as paredes, o gato miava de prazer. Uma voz se colava aos seus calcanhares. Gide tombava, Hesse gemia.

Súbito, o braço agudo irrompeu de dentro da luz e Bomfim correu. E saltou pedras, chutou barros e espantou burros. Até desequilibrar-se e ir ao chão.

No corre-corre, o outro também tombou, deixando cair um punhal às mãos de Bomfim, que o agarrou e cravou na goela traiçoeira.

De volta à casa, encontrou tudo como antes – os ratos riam do gato, Proust empurrava Gide, a sala fedia a nicotina e o mofo inundava o quarto. Nem esperou pelo sono e caiu desajeitado no meio da cama – feito um homem repugnante.

E dormiu, muito, como nunca, a noite inteira, sem um sonho para contar. Amarguradamente só.

De manhã, correu aos jornais: o monstro havia voltado, o louco sanguinário, a fera noturna tinha feito mais uma vítima. O mesmo processo: punhaladas no pescoço. A cidade alarmada, a caça infrutífera, a violência urbana, o descalabro social.

Bomfim deu meia volta, abriu a porta de casa, aspirou a nicotina da sala, chamou os ratinhos de safados, alisou a lombada de Proust, abraçou-se a Gide e sentou-se na beira da cama. E se fosse à polícia contar tudo? Não, só se fosse muito ingênuo. Para virar monstro, louco, fera?

Abriu, ao acaso, seu Gide: “Nathanael, não acredito mais no pecado.”

Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) 3. Conto - I Love My Husband

I LOVE MY HUSBAND


Ambiente:
Interior do coração de uma mulher submissa e solitária.

Foco narrativo:
Primeira pessoa.

Personagens:
Marido e mulher.

RESUMO:
Eu amo meu marido, De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre mal dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição."

O marido é frio como o café que ele deixa esfriar. Ela lhe arruma o nó da gravata. Ele diz que esse é seu menor problema. Ela ri. Quer que ele saia tranquilo, “capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto.”

Ela é aclamada por cuidar do marido. Sabe que é a sombra dele. Os objetos “da casa são adquiridos pelo esforço comum”. Ele diz que ela gasta o dinheiro que ele ganha. Ela quer trabalhar, ser produtiva. Ela sente saudade do passado, do tempo em que sua vida não era ditada pelo marido, do tempo em que o marido não era seu dono. Ela sente que não é dona de si mesma. O marido lhe atara as mãos.

Revolta-se. Acaso é mulher apenas pelas unhas longas e coloridas? Já que ele não quer falar de amor, ela diz que talvez possam falar do futuro. Ele põe o jornal de lado. Ela torna a falar no futuro. Anseia por liberdade.

"O marido, com a palavra futuro a boiar- lhe nos olhos e o jornal caldo no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranquilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal?"

"Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredirem doze meses. Encarregava-me, eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada sonhado meu marido era mantido por mim: E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia contabilizar."

"Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério Jamais revelado ao mundo."

"Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao não se cumprira história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude.”

O pai lhe garantira que não envelheceria se vivesse só para o marido. E ela agora se vê numa vida que não quis. Ela se casara na expectativa da novidade do casamento. Na “esperança de que o marido modelaria suas feições até o último dia de vida juntos.

"Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. Não preciso Interpretar os fatos, Incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento."

COMENTÁRIO:
O conto quer mostrar o interior de uma mulher com um casamento só de aparências. Ela sofre, culpa-se pelos próprios sentimentos. E se vê incapaz de modificar a situação em que se encontra e com a qual é obrigada a conformar-se.

Narrado em primeira pessoa, trata dos enredos da vida de uma esposa conformada, educada sob o signo de uma cultura moralizadora e patriarcal. Ao longo da narrativa, mesmo depois de pensar em uma ou outra situação que não a agradou, ela afirma, tanto para si mesma, quanto para o leitor “Eu amo meu marido”, e ocupa-se imediatamente da descrição de atividades que possam favorecer sua felicidade ao lado de seu companheiro.

Embora não haja abordagem explicita, através de seus relatos, podemos notar seu posicionamento diante da sociedade e perante seu marido, a personagem é consciente de sua (in)existência. Sua vida se restringiu a ser, tão somente, a sombra do companheiro, em suas palavras “sou a sombra do homem que todos dizem eu amar”.

Logo no início da narrativa, já verificamos os indícios de sua aceitação diante da opressão, bem como de sua conformidade. A narradora, de certo modo, mostra-se satisfeita com fato de permanecer em uma zona de conforto. Como assinala Simone de Beauvoir (1986) ela, como tantas outras mulheres, é uma cúmplice de sua escravização, é apenas um objeto no relacionamento:

“Não posso reclamar. Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.

O excerto acima destaca o processo cíclico do enredo que começa e termina da mesma maneira. A afirmação da dominação masculina, representada pela figura do marido, nasce a partir da negação de sua condição humana, seus desejos e vontades são anulados pela falsa certeza de que as coisas precisam ser assim. Segundo Maria Consuelo Cunha Campos (1992) esta aceitação está relacionada à aceitação da naturalização de papéis, o homem, enquanto provedor, cumpre seu papel de chefe de família, cabendo a mulher, em contrapartida, assumir sua função submissa.

Outra marca que perpassa toda a narrativa é a ironia do discurso da narradora que demonstra estar consciente de opressão à qual é submetida.  A certeza de estar no mundo, proporciona um momento de epifania, no qual sua identidade leva-a a enxergar o quanto tem sido subjugada pelo marido.

Ao dar conta da de perda sua identidade, a narradora põe-se a buscá-la. Imersa em seus pensamentos, a memória insiste em visitar os conselhos da mãe, a satisfação do pai ao vê-la recebendo uma educação para o casamento e, como reflexo deste processo, encontrara-se agora diante do comportamento machista do marido. Em “I love my husband” a família é apresentada como a principal incentivadora da dominação masculina.

Dividida entre a dominação e a submissão, podermos afirmar que a personagem de Nélida Piñon é mais um exemplo de mulher em busca de sua identidade: mulher/esposa/mãe. Não obstante, é importante destacar ainda que, ao longo da narrativa ao considerar a função de dominador assumida pelo marido, a narradora passa por três momentos: submissão, epifania e resignação. O conflito entre as duas mulheres, sujeito e objeto, fica evidente nas sobreposições de pensamento, sendo a vitória da mulher-objeto afirmada tanto pela sociedade patriarcal, quanto pelo modelo familiar tradicional.

Fontes:
– As relações de gênero em I love my husband, de Nélida Piñon. Jornal Vetor. 4 nov 2015.
– Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 19 –

 

Montagem da trova sobre imagem da Libreria Fogolla Pisa

Contos e Lendas do Mundo (A Discussão dos Talheres)


Garfo, faca e colher estavam numa gaveta discutindo um assunto sério: quem era o melhor e o mais útil no mundo dos homens.

A faca, vaidosa, dizia:

- Eu facilito a vida do homem. Corto coisas enormes que ele jamais poderia utilizar ou comer sem a minha ajuda.

O garfo, muito metido, disse com empáfia:

- Sem mim os homens teriam de usar os dedos para levarem os alimentos à boca, e como esquecem de lavar as mãos engoliriam tanta bactéria que teriam indigestão bacteriana.

- Você sabe por que o homem comia com os dedos?

- Não. – disse o garfo.

- Porque achavam que o alimento era sagrado e por isso devia ser comido com os dedos.

- Mas sem lavar as mãos, não é, dona faca? Eu continuo dizendo que sou a ferramenta indispensável na mesa dos humanos.

A faca, nervosa, retrucou:

- Deixa de ser burro, garfo tonto. Garfo sem faca é o mesmo que relógio sem ponteiro, um não funciona sem o outro. Eu sou o talher mais antigo da história! Fui feita de pedra e servia para a caça e defesa. Depois passei a ser feita de bronze, isso numa outra época.

- Eu sei, seu bobo enxerido, que o homem oriental usava pauzinho a guisa de garfo, feito de bambu e tinha um nome engraçado, hashi. Isso você não sabia. Sabia? Sei, também, que apesar de você ser antigo só chegou ao mundo ocidental no século XI, na Itália. Você foi criado pelos gregos e adotado no século VII pelo Império Bizantino. Na Inglaterra, até o início do século XVII você era considerado utensílio efeminado.

- Não fale assim de mim, dona faca! – choramingou o garfo - Eu não sou efeminado. Eu nasci para facilitar, não para complicar. Eu sei tudo isso que você falou. Sei que ainda hoje, entre os orientais, permanece o uso dos pauzinhos. Com os pauzinhos o homem demorava muito tempo para comer. Cada vez que ele pegava uma porção para levar à boca, caía tudo de volta para o prato. Comigo não. Ele me enche de comida e eu entulho a sua boca.

- Você, seu garfo, é malvado porque incita o homem a comer demais e muito rápido. O costume de comer muito e rápido é prejudicial à saúde. Os pauzinhos são uma forma de disciplinar a alimentação. Aos poucos e devagar. Com eles não se pode pegar um bolão de comida.

- Não adianta, dona faca, sem esse garfinho aqui o homem é nada vezes nada.

- Ora, não seja convencido! - exclamou a faca – às vezes você machuca a boca das pessoas.

- Ah, é!? E você que corta os dedos das crianças?

- Só das crianças desobedientes. Eu ouço sempre as mães dizendo: “- Crianças não brinquem com facas...”

E o garfo exultante acrescentou:

- Viu, viu como eu sou mais útil do que você? Eu nunca ouvi uma mãe dizer: “- Não peguem o garfo, crianças!” Ah, ah, ah, eu sou bom demais!!!

- Pode rir seu bobo. – disse a faca amuada – O seu deboche não me atinge, porque eu sei que você também é perigoso nas mãos das crianças.

E a discussão continuou. A colher, que estava quietinha lá no seu cantinho, numa das divisões do porta-talher, interferiu:

- Dá licença!

- Pois não, dona colher – disse o garfo.

- Vocês estão nessa discussão boba de quem é melhor, quem é mais útil sem pensar que somos um conjunto. Deus permitiu que o homem tivesse a inspiração para nos criar e fazer de nós o pai, o filho e o espírito santo das cozinhas. Somos a tríade que facilita o trabalho de preparar e ingerir os alimentos. A minha história é meio nebulosa. Foram encontrados, em escavações, objetos semelhantes a mim, provavelmente, com mais de vinte mil anos. Sei que os gregos antigos utilizavam a colher de pau para preparar e comer os alimentos. Como vocês podem ver a minha história não é tão interessante quanto as suas. O que tenho certeza é que já fomos objetos rústicos, hoje somos mais modernos. Somos feitos de metal, plástico e madeira. Somos até joias feitas em ouro e prata. Mas a nossa função é a mesma, desde que surgimos na civilização: ajudar o homem na sua alimentação.

Nós somos a união, e a união faz a força. Lembrem-se que um é complemento do outro. E se é para se gabar de utilidade, eu quero fazer uma pergunta:

- Diante de um fumegante prato de sopa, quem é o mais útil? Ah, ah, ah, ah, peguei vocês.

Fonte:
Maria Hilda de Jesus Alão, in Contar e Encantar

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 4


ARTE E MISTÉRIO


Um olhar misterioso...
No palco: palmas, sapateado
Num ritmo intenso e belo!
No olhar da Dançarina Flamenca
Cintilam sonhos, espelhos,
Ao som encantado das castanholas, despede-se...
Palmas!
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CENTAURO DE CRISTAL

Veloz, ele passeia em meus sonhos
Sedutor, brinca de esconde – esconde...
Disfarça-se nas poesias
Cobre- se  de folhas...
Quase, desisto de tocá-lo,
Mas, o vento Cupido aproxima-nos…
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CUMPLICIDADE

Há uma cumplicidade linda,
Entre o claro e o escuro;
O dia e a noite,
O certo e o errado e,
Entre meus pensamentos
e a companhia do por-do-sol…
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JANELA ENTREABERTA

Noite de novembro
Janela entreaberta:
Aos poucos, a poesia abre a janela
Meus pensamentos seguem meus sonhos,
E escapam  buscando encontrar você…
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JANELAS AZUIS

Nas paredes brancas
Desabrocham flores...
Nas antigas  janelas azuis
Lembranças e poesias…
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MADRUGADA

Cessam os toques...
Descansam as teclas do computador
Teu rosto tão distante,
Silêncio…
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MÁGICO ESPELHO

Noite fria
Envolve o silêncio...
A saudade cintila
Desenha teu rosto
No espelho…
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NOITE DE PRIMAVERA

Noite de primavera
Janela aberta...
Na quietude do jardim
Desabrocham as rosas,
O  vento  suave passeia nas pétalas
Enquanto a saudade envolve-me…
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SAUDADE E RETICÊNCIAS...

A saudade transborda em lágrimas
E amor intenso deságua nas páginas em branco
Em forma de poesias e reticências…
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SONS DO ESPELHO

No espelho caem gotas d’água
Deslizam pequenos retratos,
Reflexos,  rostos e versos
Sussurram um nome…
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TULIPAS E PORTA-RETRATOS

Das tulipas vermelhas
Algumas gotas d'água deslizam
no porta-retratos
Breves lágrimas…
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VENTO...

 Fim de tarde
 A suavidade do vento
 desperta lembranças
 tece sonhos…

Fonte:
Recanto das Letras da Poetisa

Fernando Sabino (Macacos me Mordam)


Morador de uma cidade do interior de Minas me deu conhecimento do fato: diz ele que há tempos um cientista local passou telegrama para outro cientista, amigo seu, residente em Manaus:

“Obséquio providenciar remessa um ou dois macacos”.

Necessitava ele de fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado na localidade. Um belo dia, já esquecido da encomenda, recebeu resposta:

“Providenciada remessa 600 restante seguirá oportunamente”.

Não entendeu bem: o amigo lhe arranjara apenas um macaco, por seiscentos cruzeiros? Ficou aguardando, e só foi entender quando o chefe da estação veio comunicar-lhe:

– Professor, chegou sua encomenda. Aqui está o conhecimento para o senhor assinar. Foi preciso trem especial.

E acrescentou:

– É macaco que não acaba mais!

Ficou aterrado: o telégrafo errara ao transmitir “um ou dois macacos”, transmitira “1.002 macacos”! E na estação, para começar, nada menos que 600 macacos engaiolados aguardavam desembaraço. Telegrafou imediatamente ao amigo:

“Pelo amor de Santa Maria Virgem, suspenda remessa restante!”

Ia para a estação, mas a população local, surpreendida pelo acontecimento, já se concentrava ali, curiosa, entusiasmada, apreensiva:

– O que será que o professor pretende com tanto macaco?

E a macacada, impaciente e faminta, aguardava destino, empilhada em gaiolas na plataforma da estação, divertindo a todos com suas macaquices. O professor não teve coragem de aproximar-se: fugiu correndo, foi se esconder no fundo de sua casa. À noite, porém, o agente da estação veio desentocá-lo:

– Professor, pelo amor de Deus vem dar um jeito naquilo.

O professor pediu tempo para pensar. O homem coçava a cabeça, perplexo:

– Professor, nós todos temos muita estima e muito respeito pelo senhor, mas tenha paciência: se o senhor não der um jeito eu vou mandar trazer a macacada para sua casa.

– Para minha casa? Você está maluco?

O impasse prolongou-se ao longo de todo o dia seguinte. Na cidade não se comentava outra coisa, e os ditos espirituosos circulavam:

– Macacos me mordam!

– Macaco, olha o teu rabo.

À noite, como o professor não se mexesse, o chefe da estação convocou as pessoas graduadas do lugar: o prefeito, o delegado, o juiz.

– Mandar de volta por conta da Prefeitura?

– A Prefeitura não tem dinheiro para gastar com macacos.

– O professor muito menos.

– Já estão famintos, não sei o que fazer.

– Matar? Mas isso seria uma carnificina!

– Nada disso – ponderou o delegado: – Dizem que macaco guisado é um bom prato...
*

Ao fim do segundo dia, o agente da estação, por conta própria, não tendo outra alternativa, apelou para o último recurso – o trágico, o espantoso recurso da pátria em perigo: soltar os macacos. E como os habitantes de Leide durante o cerco espanhol, soltando os diques do Mar do Norte para salvar a honra da Holanda, mandou soltar os macacos. E os macacos foram soltos! E o Mar do Norte, alegre e sinistro, saltou para a terra com a braveza dos touros que saltam para a arena quando se lhes abre o curral – ou como macacos saltam para a cidade quando se lhes abre a gaiola. Porque a macacada, alegre e sinistra, imediatamente invadiu a cidade em pânico. Naquela noite ninguém teve sossego. Quando a mocinha distraída se despia para dormir, um macaco estendeu o braço da janela e arrebatou-lhe a camisola. No botequim, os fregueses da cerveja habitual deram com seu lugar ocupado por macacos. A bilheteira do cinema, horrorizada, desmaiara, ante o braço cabeludo que se estendeu através das grades para adquirir uma entrada.

A partida de sinuca foi interrompida porque de súbito despregou-se do teto ao pano verde um macaco e fugiu com a bola sete. Ai de quem descascasse preguiçosamente uma banana! Antes de levá-la à boca um braço de macaco saído não se sabia de onde a surrupiava. No barbeiro, houve um momento em que não restava uma só cadeira vaga: todas ocupadas com macacos. E houve também o célebre macaco em casa de louças, nem um só pires restou intacto. A noite passou assim, em polvorosa. Caçadores improvisados se dispuseram a acabar com a praga – e mais de um esquivo notívago correu risco de levar um tiro nas suas esquivanças, confundido com macaco dentro da noite.
*

No dia seguinte a situação perdurava: não houve aula na escola pública, porque os macacos foram os primeiros a chegar. O sino da igreja badalava freneticamente desde cedo, apinhado de macacos, ainda que o vigário houvesse por bem suspender a missa naquela manhã, porque havia macaco escondido até na sacristia.

Depois, com o correr dos dias e dos macacos, eles foram escasseando. Alguns morreram de fome ou caçados implacavelmente. Outros fugiram para a floresta, outros acabaram mesmo comidos ao jantar, guisados como sugerira o delegado, nas mesas mais pobres. Um ou outro surgia ainda de vez em quando num telhado, esquálido, assustado, com bandeirinha branca pedindo paz à molecada que o perseguia com pedras. Durante muito tempo, porém, sua presença perturbadora pairou no ar da cidade. O professor não chegou a servir-se de nenhum para suas experiências.

Caíra doente, nunca mais pusera os pés na rua, embora durante algum tempo muitos insistissem em visitá-lo pela janela.

Vai um dia, a cidade já em paz, o professor recebe outro telegrama de seu amigo em Manaus:

“Seguiu resto encomenda”.

Não teve dúvidas: assim mesmo doente, saiu de casa imediatamente, direto para a estação, abandonou a cidade para sempre, e nunca mais se ouviu falar nele.

Fonte:
Fernando Sabino. O Homem Nu. RJ: Record, 1984.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) Segundo Conto

AS QUATRO PENAS BRANCAS


Ambiente:
Rio de Janeiro, Niterói, bares/ uma fazenda, um hotel. Época atual.

Foco narrativo:
Terceira Pessoa.

Personagens:

Rubem e Pedro: Amigos do cotidiano.

Colombo: Alguém que Rubem conhece como vendedor de amendoim.

Bulhões: amigo de Colombo.

Alice: ex-esposa de Rubem com quem tem quatro filhos.

RESUMO:

São dois amigos: Rubem e Pedro. Pedro pega o amigo à porta do jornal onde Rubem deixara o artigo para o dia seguinte. Diz que vai com Rubem parar Niterói para que ele não fuja do Rio de Janeiro. A mulher do Rubem exige a pensão atrasada, dos quatro filhos dos dois. Em Niterói o pai empresta o dinheiro. Mas adverte que é só um empréstimo Admoesta o filho, chama-o à responsabilidade Rubem reage. Quer dividir responsabilidade e culpa com os pais que queriam netos, então acha que eles têm que ajudar a pagar a pensão deles. Acaba reconhecendo a própria culpa.

Rubem toma a barca para voltar ao Rio. Senta-se ao lado de um vendedor de amendoim. Puxa conversa. O homem diz que já fora rico, de ir em "boate grã-fina e dar gorjeta". Rubem interrompe-o. A vida do outro é melhor que a sua. Rubem pede-lhe que comece de novo. “O homem amarrou a cara. Escuta aqui, quem organiza a narrativa sou eu, escolho a porta por onde entrar e a janela por que sair. Quem não está satisfeito com o volume e a posição das palavras, abandona a sala.”

Colombo conta-lhes sua estranha e obsessiva amizade por Bulhões. O tempo que moraram juntos e sua vida na fazenda comprada por Colombo no tempo em que era rico. Após a separação dos amigos, Colombo vai à falência e passa a viver da venda de amendoins na barca Rio-Niterói.

Rubem apalpa o dinheiro no bolso. Tem que entregá-lo à mulher. Considera aquilo um roubo. Sua vingança consiste em saber que a mulher ter que cuidar dos quatro filhos e que ninguém a quer com a criançada.

Aceita um amendoim. Pergunta o nome do outro, Colombo, como o descobridor da América.

Enfim, após muita conversa, os quatro decidem ir beber umas cervejas. Num bar escuro, os três conversam quando, de repente chega Bulhões. Os quatro, então gastam todo o dinheiro da pensão dos filhos de Rubem.

COMENTÁRIO:


Penas soltas são leves e costumam ser levadas ao sabor do vento. Penas brancas são referências aos quatro amigos. Que não pisam em terra firme. Vivem o hoje, mas são despreocupados, não encaram a vida, deixam-se levar por ela. É como diz Colombo: "Eu só sabia viver a vida de modo confuso.

Nayoka significa a ilusão atrás da qual Rubem parte. A vida com Alice não correspondera à ilusão. Rubem nem sabe explicar porque se separou dela e sente até saudade de sua comida. O amanhecer significa a volta à realidade da vida, quando reconhecem; "as máscaras somos nós, e elas agora se derreteram, foram feitas de cera.”

Fontes:
Análise pela Profª Sônia Targa, in OBRAS DA UEM - 2012 – 2013.
Trecho do resumo por Manuel Comellas Coimbra em Algo Sobre

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 461

 


Carlos Eduardo Novaes (Kni e Giv)


Desde que a nave espacial Viking amartissou (é isso mesmo?) Juvenal Ouriço e o Boca não descolam o ouvido do rádio. Parecem dois paraíbas de obra depois do expediente.  Juvenal aguarda com a maior ansiedade a notícia de que há vida em Marte. E afirma que quando a informação chegar vai dar uma festa. Causa-lhe uma profunda ansiedade a ideia de que ”nós, terráqueos, somos os únicos seres viventes em trânsito pela Via-Láctea”.

- Já imaginou a sensação de solidão universal? – diz arregalando os olhos. - Eu já não gosto de me sentir só nem em casa, que dirá no planeta?

Haverá vida em Marte? Tudo indica que sim, pois ao mesmo tempo que enviamos daqui a Viking, os marcianos mandavam de lá a nave Gnikiv, movidos pela mesma curiosidade: haverá vida na Terra? As duas naves, por sinal, se cruzaram ali pelo quilômetro 46 milhões 578 mil 300 da estrada do Sol. A Viking viaja por instrumentos. A Gnikiv, porém, traz dois cosmonautas a bordo: Kni e Giv. Quando Kni olhou pela escotilha e viu a nossa nave passando, berrou para o companheiro: ”Ei, Giv, olhe. Que é aquilo? Um disco voador?

- Disco voador o quê, rapaz! Que mania a sua de pensar que todo objeto que se move no espaço é disco voador. Disco voador não existe.

- Pra mim existe. E lhe digo mais: é tripulado por seres da Terra.

- Duvido muito.

- Duvida por quê? Você não acha possível que exista uma civilização adiantada na Terra?

- Não sei nem se há vida na Terra.

- Claro que há. Pode não ser muito antiga, mas há. Alguns cientistas suspeitam de que a vida na Terra começou em 1945. Foi a partir dessa época que eles passaram a observar a formação de gigantescos cogumelos luminosos.

- Deixa de bobagem. Aquilo eram explosões provocadas pelo choque de meteoritos com a superfície do planeta.

- Então esse negócio que passou por aí veio de onde?

- Sei lá. Olha aí no mapa. Qual é a outra estação depois da Terra?

- Vênus.

- Vênus não deve ser. Tem outra?

- Tem Mercúrio, uma estaçãozinha pequena.

- Também não creio que seja de lá. E depois? Vem o quê?

- Depois acaba. Mercúrio é o fim da linha.

Os dois ainda discutiam a procedência da Viking quando a Gnikiv trepidou um pouco, perdeu altura e surgiu sobre o céu do Rio de Janeiro. Kni observou lá de cima e comentou com Giv: ”Creio que nos distraímos e saímos da rota”.

- É mesmo? Por que você diz isso?

- Está cheio de crateras lá em baixo. Acho que estamos sobrevoando a Lua.

Os dois tornaram a consultar os mapas, refizeram os cálculos e constataram surpresos que estavam realmente sobre a Terra. ”Engraçado” - disse Kni - ”os nossos mapas estão todos errados, eu nunca soube que havia tanta cratera na Terra”.

- Quem sabe não são erupções vulcânicas que ocorreram após nossa saída de Marte?

- Não creio. Não daria tempo. É muita erupção pra pouca viagem.  Você se esquece de que viemos praticamente ali da esquina. Foram apenas 384 milhões de quilômetros.

O módulo da Viking amartissou, auxiliado por três foguetes e um pára-quedas em 3h20min. A Gnikiv demorou menos. Pouco mais de meia hora. Bem verdade que já nos movimentos finais a nave foi auxiliada em terra por dois crioulos que orientavam as manobras: ”Dá ré, agora vira tudo pra direita, isso, chega um pouquinho à frente, tá bom aí”. Os marcianos saltaram e um dos crioulos logo perguntou:

 ”Posso tomar conta?”

A nave desceu num local ermo, próximo à Favela da Rocinha. Ao botar os pés na Terra, Giv farejou o ar, respirou  fundo e observou: ”Estou sentindo um cheirinho de nitrogênio”.

- Eu também - disse Kni puxando ar - mas pra mim está misturado com oxigênio. E se você respirar na direção do vento ainda vai sentir um leve aroma de argônio. Sentiu?

- Senti. Acho que com essa composição é muito difícil haver vida na Terra.

A atmosfera em Marte é quase toda composta de anidrido carbônico. Sua temperatura é mais baixa que a nossa. Os marcianos estranharam o calor. Um crioulo ao lado sorriu e disse: ”Os senhores não são os primeiros, tudo quanto é gringo reclama do nosso calor”.

Kni virou-se para o crioulo e foi direto ao assunto: ”Será que você pode nos informar se existe vida na Terra?” O crioulo pensou alguns segundos, encavalou o lábio inferior no superior e balançou a cabeça negativamente: ”Não sei não senhor”.

- Ele não sabe de nada - aparteou o outro crioulo - é completamente analfabeto.

- E você sabe? Sabe se existe vida na Terra?

- Eu? - perguntou o outro crioulo que era meio folgado. - Eu acho que não tem não, mas não posso dar certeza.

Explicou que estava começando o Mobral agora, mas ”se os senhores quiserem a gente pode perguntar ao meu irmão que tem algum estudo”. Os três iniciaram então uma caminhada pelo atalho (o outro crioulo ficou tomando conta da nave) até o barraco. Enquanto andavam, Kni e Giv assediavam o crioulo com perguntas: ”Você sabe se há mais alguma coisa no ar, aqui, além de nitrogênio, oxigênio e argônio?

- Não sei dizer, não senhor. Dizem que há muita poluição mas eu mesmo nunca vi.

- E de que é a camada que cobre a superfície da Terra?

- De que é? De asfalto.

- Isso que nós estamos pisando é asfalto?

- Não senhor. Aqui é terra.

- Que é a Terra eu sei. Vocês são quantos aqui?   .

- Na Rocinha?

- Não. Na Terra.

- Toda? - perguntou o crioulo fazendo uma bola com os braços. - Não sei não senhor, mas deve ser mais de 2 milhões.

Os três chegaram ao barraco. O crioulo apresentou aquelas figuras (cada um imagina o seu marciano como quiser) ao irmão explicando antes que ”estes senhores acabaram  de chegar de . . de onde mesmo? Nevoer quê?

- Não. Nós viemos de Marte.

- Pois é - prosseguiu o crioulo na maior tranquilidade, provavelmente  imaginando que Marte ficasse ali depois de Nova  Iguaçu - esses senhores chegaram de Marte e estão querendo saber se existe vida na Terra. Eu não soube responder. Você sabe?

- Bem - disse o irmão do crioulo meio indeciso – eu acho que existe.

- De que forma? - perguntou Kni. - São moléculas?

- Isso eu não sei.

- Claro que são - intrometeu-se o crioulo folgado.

- Eu me lembro de quando era garoto as pessoas chegavam pra mim e diziam: ”Não faça isso, seu molécula”.

Kni e Giv se entreolharam e cheios de dúvidas pediram maiores explicações ao irmão do crioulo. Os quatro sentaram-se  em volta de uma mesa (uma mesa de dois pés). O irmão do crioulo, então, foi desfiando toda a sua existência, desde o dia em que nasceu naquele mesmo barraco.

Ao terminar, Kni, incrédulo, perguntou-lhe: ”Isso que você acabou de contar: é essa a vida que existe na Terra?” O irmão do crioulo disse que sim.

- Não. Não é possível - disse Kni. - Você está brincando. Isso não é vida.

Os dois saíram. Voltaram à nave e de lá informaram a Marte que não havia vida na Terra.

Fonte:
Carlos Eduardo Novaes. O Quiabo Comunista. RJ: Nórdica, 1977.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 7


MINHA GRANDE TERNURA


Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.

Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.

Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.

Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.
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NATAL SEM SINOS

No pátio a noite é sem silêncio.
E que é a noite sem o silêncio?
A noite é sem silêncio e no entanto onde os sinos
Do meu Natal sem sinos?

Ali meninos sinos
De quando eu menino!

Sinos da Boa Vista e de Santo Antônio.
Sinos do Poço, do Monteiro e da igrejinha de Boa Viagem.

Outros sinos
Sinos
Quantos sinos!

No noturno pátio
Sem silêncio, o sinos
De quando eu menino.
Bimbalhai meninos,
Pelos sinos (sinos
Que não ouço), os sinos de
Santa Luzia.
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NATAL

Penso em Natal. No teu Natal. Para a bondade
A minh’alma se volta. Uma grande saudade
Cresce em todo o meu ser magoado pela ausência.
Tudo é saudade... A voz dos sinos... A cadência
Do rio... E esta saudade é boa como um sonho!
E esta saudade é um sonho... Evoco-te... Componho
O ambiente cuja luz os teus cabelos douram.
Figuro os olhos teus, tristes como eles foram
No momento final de nossa despedida...
O teu busto pendeu como um lírio sem vida,
E tu sonhas, na paz divina do Natal...
Ó minha amiga, aceita a carícia filial
De minh’alma a teus pés humilhada de rastos.
Seca o pranto feliz sobre os meus olhos castos...
Ampara a minha fronte, e que a minha ternura
Se torne insexual, mais do que humana - pura
Como aquela fervente e benfazeja luz
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NEOLOGISMO

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
E mais quotidiana.
inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo
Teadoro, Teodora.
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NOITE MORTA

Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.
Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.
No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras
Sobras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.
O córrego chora.
A voz da noite...
(Não desta noite, mas de outra maior.)
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NOVA POÉTICA

Vou lançar a teoria do poeta sórdido
Poeta sórdido:
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim
muito bem engomada,
e na primeira esquina passa um caminhão,
salpica-lhe o paletó de uma nódoa de lama:
É a vida.
O poeta deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas,
as estrelas alfas,
as virgens cem por cento
e as amadas que envelheceram sem maldade.
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O ANEL DE VIDRO

Aquele pequenino anel que tu me deste,
- Ai de mim - era vidro e logo se quebrou
Assim também o eterno amor que prometeste,
- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, -
Aquele pequenino anel que tu me deste,
- Ai de mim - era vidro e logo se quebrou

Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo no peito a saudade celeste
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste.

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa. 1967.

A. A. de Assis (O Sofrido Natal de Mário)


Eram os anos 1950, Maringá uma cidade nascendo. Mário, solteiro, português recém-chegado da pátria, morava em hotel, comia em restaurantes, nenhum parente no Brasil.

Naquela véspera de Natal, saiu às ruas pensando em como passar o tempo. A missa do galo seria às 20h. Mário acompanhou os passantes, foi rezar também. Terminada a celebração, a cidade esvaziou-se, as famílias recolhidas para o aconchego em torno da ceia.

Rodou à procura de um lugar onde pudesse afogar a tristeza numa taça de vinho, num jarro de chope. Nenhum restaurante aberto, sequer um botequim. Em ocasiões assim a dor do imigrante solitário é terrível. Mário recordava as festas de Natal em sua aldeia. A árvore enfeitada. A troca de presentes. O presépio. A grande mesa reunindo pais, avós, irmãos, vizinhos. Menestréis gorjeando nas esquinas. Sinos alegres saudando a vinda de Jesus.

Caminhando pelas ruas poeirentas, ele ouvia a felicidade que brotava de dentro das casas. O hotel só dava dormida, não servia refeições, e estava sem hóspedes naquele Natal. Mário não tinha nem mesmo uma namorada aqui, só pensava na noivinha que deixara à sua espera na Europa. Tinha alguns conhecidos na cidade, porém não queria incomodá-los: estariam reunidos em família, alguns teriam viajado. Retornando ao hotel, trancou-se no quarto, chorou. Tão fortes os soluços, que a proprietária ouviu, bateu à porta: “O que houve, meu jovem? Está sentindo alguma coisa? Quer que lhe chame um médico?

Ora, médico! Não existe injeção para saudade. A dona do hotel logo compreendeu, trouxe um copo d’água, emprestou o ouvido ao moço para que ele desabafasse. Ao percebê-lo mais calmo, convidou: “Você vai cear conosco. Estamos em casa somente eu, meu marido e um filho; gostaríamos muito de ter a sua companhia”.

Vieram-lhe à lembrança histórias que seus pais contavam. A angústia de Maria e José hospedados numa estrebaria para o Menino nascer. Aquelas palavras do Mestre: “Fui estrangeiro e você me acolheu”. Ele ali sentindo fundo o drama do imigrante solitário, e ao mesmo tempo conhecendo a graça de encontrar amigos numa terra tão distante da sua. A mesa farta, a família feliz, as orações. Ele jamais agradecera a Deus com tamanha emoção.

Tudo isso borbulhava forte no coração de Mário. Trabalhou muito, fez seu pé-de-meia, mandou vir da pátria os irmãos, foi lá, voltou casado, nunca mais passou um Natal sozinho. Ficou, porém, a marca. Pensou nas crianças abandonadas. Como seria o Natal dos órfãos? Como se sentiriam os meninos sem lar?

Aquela simpática dona de hotel talvez jamais viesse a saber que Mário, ao longo da vida, retribuiria a generosidade dela diminuindo as aflições de centenas de crianças pobres. Fez do amparo a elas uma razão de existir. Tanto quanto estivesse a seu alcance, não deixaria ninguém chorar de solidão como chorou ele naquele sofrido Natal em Maringá.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 17-12-2020)

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) Primeiro Conto

O JARDIM DAS OLIVEIRAS


Ambiente:
Rio de Janeiro nos tempos da ditadura militar. E a consciência do personagem- autor do monólogo.

Foco narrativo:
Primeira Pessoa.

Personagens:
O autor da carta: Alguém que sofreu a tiranias da ditadura.

Zé: O destinatário da carta. Alguém que pode ser um amigo ou um conhecido ou alguém necessário para desabafar o que explode no coração do autor da carta.

Sequestrador: "Tinha olhar de vidro e nariz...ligeiramente adunco."

"Um crioulo, um mulato e um branco, etnia carioca": algozes ou companheiros do autor da carta.

Antônio: Alguém que morreu após ser torturado.

Luíza: Namorada do autor da carta.

Resumo:
Ele escreve uma carta, urgente para o Zé. ......

Começa contando como foi levado para a tortura. Uma pessoa trava-o pelo braço quando sai de casa. Essa pessoa, da qual não consegue ler o semblante, lembra-lhe a humanidade.

"Ah, Zé, como a alma é uma gruta sem luz.”

Os dois caminham furtivamente. Ninguém os nota...Ele é jogado no banco traseiro do carro onde já estão seus algozes: "Um crioulo, um mulato e um branco, etnia carioca". Levam-no a um local, uma sala com apenas três cadeiras.

Ele sente medo, sente-se asfixiado, tem ânsia e vontade de vomitar; Já havia sido torturado antes. Sente-se covarde, “a desesperança de saber que a dignidade dependia de um corpo miserável a serviço da força alheia". O Zé não lhe compreende os sentimentos. Ele já fora herói. Agora não mais consegue sê-lo.

O branco ameaça, quer saber do Antônio. Ele diz que não sabe. Já confessara tudo nove anos antes. O interrogador insiste em saber do Antônio embora todos saibam que Antônio já está morto. Estilete no peito. Ele sente medo e remorso por ter dado as pistas para a prisão de Antônio. Sente vergonha e ódio.

Eu era as palavras arrancadas à força, era a covardia que eles souberam despertar em mim, e antes me fora desconhecida”. E era ainda a vida que eu descobrira preciosa entre os suplícios infligidos.

Não desistem. Querem saber do Antônio, Torturadores com mãos como as de qualquer pessoa, aparentemente limpas. Mãos que enterraram Antônio.

Ele diz que não tem visto Antônio. Quer voltar à vida. Diz que Antônio desapareceu. O mulato assume. Ele se lembra de que vira Antônio, no ano passado, na saída do cinema. Gritara por ele que não ouviu e desapareceu. Estava mais gordo e com bigode. Surge um novo Antônio. É um jogo que lhe custa suor, vida e honra.

"Eu sei que a vida prova-se com a palavra, mas quando nos é ela extraída à força e ainda assim, a vida nos fica, não é a vida o único tesouro com que se recomeça a viver?"

Antônio está na sala, "Vivo, ardente, combatendo o mundo em tudo igual ao que havia deixado antes de partir.”

O branco diz que Antônio é um assassino de mulheres e crianças, que precisa ser levado à justiça. Sai da sala. Ele é levado para uma ceia. Pensa no suplício da manhã seguinte, ou da semana, ou de mês... Pegam-no de madrugada, colocam-no no carro, jogam-no perto de casa. Nem uma palavra.

Acalentavam o sangue e o suor de um país com o torniquete da naturalidade e da supremacia”.

Advirto-o assim, Zé, que temos Antônio de volta.”

Mas Antônio não dá notícias a ninguém. Menos a quem lhe facilitara a captura. Mas ele lhe deve a vida. Não o mataram.

"Terá sido desonroso reviver Antônio? O poder não fragiliza apenas a quem domina. O poder educa para que não esqueçamos as suas lições. Mas, como será quando a lição passar a ser aplicada por nós, povo pálido e submisso?"

Luíza não o recebe. Ele vai para casa. A vida de sempre. A espera do carrasco, um dia. O que se pode esperar de uma criatura fiel ao Estado a cobrar-lhe obediência como meio de assegurar a coletividade uma existência feliz? E que expulsa do seu corpo social todo e qualquer organismo infectado de pus, palavra e ação rebeldes? Ele se perfuma "moderado e elegante". Pequenas atenções conseguem mesmo. Acomodação à vida possível.

“ah, Zé, quantos capítulos são diariamente redigidos numa infindável série de resignações?

Nada de paz, de sossego. Perplexidades. Sono difícil. Ele se sente culpado. Não crê na própria inocência.

E com que direito protesto, fortaleceu-me quem tinha a arma na mão, dei-lhe a munição que escasseava.”

Mas ele não quer sofrer. Reconhece a própria fragilidade. Reclama da autoridade, mas, no intimo, quer ser autoridade, ter domínio, poder.

Até Luiza desconfia de Zé. O Zé fala bem, mas não se comove. Luiza não gosta de seu olhar crítico. Ela é cheia de pudor. “Onde esteja, sua linguagem é impecável. Sua ordem mental alija a paixão. Não sei onde se abriga o coração daquela mulher.

COMENTÁRIO:

O Jardim das Oliveiras foi o local onde Jesus Cristo sofreu grande agonia antes de ser crucificado. . “O jardim das oliveiras”, de Nélida Piñon, as personagens principais evocam seu passado e expõem suas dores e seus medos, demonstrando uma relação tensa das personagens com o mundo. Nesses contos, ganham mais relevo a vida emocional das personagens e as sensações provocadas pelos acontecimentos do que os acontecimentos em si.

A autora usa esse título para demonstrar que o texto trata de uma grande agonia interior, de alguém que foi preso e torturado nos porões da ditadura militar. E um texto altamente filosófico, emaranhado de pensamentos que se sucedem numa tentativa dolorosa de explicar a própria vida que foge ao controle do personagem. O personagem é torturado física e psicologicamente. Sofre tanto que desiste de ser idealista. Faltam-lhe forças para isso. Encolhe-se em si mesmo para não sofrer. “Quer ter a ilusão de ser livre embora” sinta-se "como um polvo embaralhado nas 'próprias pernas". Descobre que o próprio amor que sente por Luíza não passa de egoísmo. Ela é a sua tábua de salvação. Descrição exata de uma vida sem fé. Vida que se transforma, para o personagem, numa luta desesperada para preservá-la, pois descobre o quanto é preciosa, Quem é o Zé? O dominador? O rico? O poderoso? A elite cultural? O amigo? Ou todos? Em todo caso, é o interlocutor do personagem a quem ele se desvenda.

Fonte:
Análise pela Profª Sônia Targa, in OBRAS DA UEM - 2012 – 2013.