terça-feira, 6 de abril de 2021

Silmar Böhrer (Croniquinha) 21

Molhadas noites pluviais. Existem. Densas, imensas, presenças aguaceiras. Duas ou três da madrugada acordamos com o tropel das águas, pingos pingando, telhados derramando, vigor molhado da natureza.

As analogias. São muitas. Usamos seguidamente. Comparações? Não sei . . .

São verdades misturadas. Pensares que se cruzam.

Pensamentos também chegam repentinos - quais chuvas, invadem, agitam - rebordosas às vezes, serenidades noutras. Obuses ligeiros faiscando.

Eis a vida, cadinho de chuvas e trovoadas, de céu azul, sol intenso. Vivência atormentada, vivência alcandorada. Vivemos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Antonio Bruno e Ernesto Zwarg (Litoral Musical)


SANTOS POEMA

SANTOS POEMA, jardins pela praia
Cidade e Porto de Mar...
Tens a magia, dos barcos estranhos
na Barra esperando adentrar
 
Morros, varandas alegres...
Suspensas no arvoredo...
Santos, das ruas antigas,
Da beira do cais, que
escondem segredos...
 
Tuas paineiras floridas,
salgueiros que choram
nos velhos canais
 Santos, cuidado menina,
As tuas belezas, não percas jamais...
Os flamboyants florescentes
Palmeiras imperiais...
Ilha Urubuqueçaba
O verde reduto, nas ondas do mar...(bis)
 
Oh Santos - és linda demais!!!
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O MAR DE SÃO VICENTE

O mar de São Vicente é um gigante sem igual
Diz versos às estrelas, faz poemas no areal
E quando é lua cheia, das sereias traz o canto
Que se ouve muito ao longe
 
- Das ondas ao quebranto
- Das ondas ao quebranto (bis)
 
 Pequena não percebes o que diz o velho mar
Que o amor é infinito qual estrada de luar
E o vento repetia o que o mar me segredou
Quando fez São Vicente
 
- Até Deus se admirou
- Até Deus se admirou (bis)
 
As velas no horizonte e a história começou
Subindo a serrania o planalto conquistou
Aos olhos de uma índia o guerreiro se curvou
O mar da Ponte Pênsil
 
- Tudo isso me contou
- Tudo isso me contou (bis)
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O CORREIO DO LITORAL

Itanhaém da praia grande tão bonita
Como a saudade que é infinita (bis)
 
O Correio de Iguape
Que chegava a Cananéia
Namorava uma índia
Lá na Serra da Juréia (bis)
 
Saía de São Vicente
Nem ligava pra maré
Praia Grande, Peruíbe
Percorria tudo a pé (bis)
 
Itanhaém da praia grande tão bonita
Como a saudade que é infinita (bis)
 
Mas chegando na Juréia
Que nas nuvens se escondia
Só por causa dessa índia,
Do "correio" se esquecia (bis)
Certa vez na Primavera,
Nem chegou à Cananéia,
Dizem que ficou pra sempre
Lá na Serra da Juréia!
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PRAIA GRANDE

Quando a Ponte Pênsil cruzares
Prepara o teu coração
Pra vislumbrar Praia Grande
De Solemar, Boqueirão
 
É tanto sol, tanta praia
Renda de espuma de Yemanjá
Suas areias recebem
 Os mais belos versos do Mar
Praia Grande é a estrada
Que conduz ao firmamento
Caminhando pela praia
Eternize esse momento...
 
Quando as areias pisares
Eleva teus pensamentos
Manda mensagens pra longe
Pelo correio dos ventos
E pés descalços na areia
Juntinhos de braços dados
Ouçam a voz da Sereia
Que canta aos namorados
Praia Grande é a estrada
Que conduz ao firmamento
Caminhando pela praia
Eternize esse momento
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Ernesto Zwarg Júnior, nascido em Piracicaba em 1925. Morou por um tempo na capital paulista com seus pais e irmãos. Com a aposentadoria de seu pai, Ernesto Zwarg, a família toda mudou-se para Itanhaém nos idos de 1950, adotando a pitoresca cidadezinha para sua moradia. Foi o jornalista responsável e o editor dos jornais "Jornal de Itanhaém" e "Correio do Litoral". Vereador por três mandatos consecutivos e ambientalista, defendendo a ecologia na região que abrange da Baixada Santista até Cananéia, principalmente Itanhaém e a, hoje, Estação Ecológica da Juréia. Autor, junto com seus irmãos Antonio Bruno e Tino das MÚSICAS DO LITORAL
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Antonio Bruno Rocha Zwarg, nome artístico Antonio Bruno, nascido em São Paulo em 1923, foi músico (compositor, cantor e arranjador. Formado pela USP, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, lecionou Português na Rede Estadual e Municipal em São Paulo. Estudou Harmonia e Composição. Atuou como pianista e acordeonista nas principais estações de rádio e canais de TV de São Paulo, como solista, dirigindo conjuntos musicais e acompanhando cantores brasileiros e internacionais. Autor de músicas que foram gravadas por Maysa, Silvio Caldas, Isaura Garcia, Elizete Cardoso, e premiado no concurso Cinzano da Canção Brasileira com três músicas entre as dez primeiras colocadas. Junto com seus irmãos, Ernesto Zwarg e Ascendino Zwarg compôs muitas canções sobre Itanhaém e o Litoral e que resultou em Três Lps. Gravou, cantando no CD de Hermeto Pasqual "SÓ NÃO TOCA QUEM NÃO QUER", algumas músicas de sua autoria.

Fernando Sabino (Como melhorar a memória)

Antes que eu me esqueça, compro o livro e trago-o para casa. Há muito tempo ando atrás dele: “Como Melhorar Sua Memória”, de um americano cujo nome no momento não me vem à memória.

Logo às primeiras páginas o autor se propõe a fazer com que eu tenha uma memória tão extraordinária como a do General Marshall. Quem foi mesmo o General Marshall? Além do plano que tomou seu nome, o que mais que ele fez? Diz o autor que o General Marshall, durante a guerra, concedeu uma entrevista coletiva a mais de sessenta correspondentes. Cada um fez a sua pergunta, o general ouviu atentamente, e depois respondeu uma por uma, pela ordem, e lembrando-se ainda do nome de cada jornalista e do respectivo jornal.

Não peço tanto. Meu problema com relação à memória é muito mais primário e toca às vezes as raias da oligofrenia: simplesmente não sou capaz de guardar o nome ou a cara das pessoas.

Uma fisionomia familiar, que não identifico, deixa-me logo naquele estado de inquietação que prenuncia a eclosão desastrosa de uma gafe. Então bato cordialmente às costas de um desafeto, ou forjo outro, virando a cara a um velho conhecido. Já cheguei, por equívoco, a despedir-me num bar estendendo a mão a um por um dos que compunham uma roda de gente inteiramente desconhecida — a minha mesa era outra, fato que me escapou ao voltar do toalete. Certa vez, noutro bar, eu era servido por um velho e conhecido garçom, com ares de desembargador aposentado. Foi o homem ir lá dentro mudar de paletó para sair, e retive-o quando voltava, convidando-o para tomar alguma coisa: para mim agora se tratava mesmo de um conhecido desembargador aposentado.

Não que minha falta de memória se circunscreva aos bares, onde se bebe para esquecer. Ainda há pouco tempo eu me referia aos vexames que o esquecimento me tem feito passar, nascido da mais diabólica distração. Em matéria de nomes e fisionomias, então, o General Marshall é, para mim, um dos grandes gênios da humanidade: não creio que em toda a minha vida tenha guardado corretamente sessenta nomes na cabeça. O pior é que me vem sempre a insopitável cretinice de designar alguém que conheço por um nome semelhante ao seu, ou mesmo completamente diferente, sem nenhuma procedência, aumentando a confusão. É fácil perceber por que o Esmaragdo para mim é Maraschino, o Vinícius é Demetrius e o Josué é Samuel. Mas por que diabo chamo o Paulo Mendes Campos de Nicodemus e o Pedro Gomes de Ramon?

Pois encontrei no tal livro um capítulo especialmente dedicado ao meu caso. Propõe um método prático e infalível de ligar para sempre uma fisionomia ao seu verdadeiro nome, evitando confusões futuras e as distorções que fazem surgir na minha mente uma floresta de apelidos. Consiste simplesmente no seguinte: primeiro destacamos no rosto da pessoa que não queremos esquecer um detalhe qualquer — o bigode, por exemplo; depois ligamos o indivíduo em questão ao lugar em que o encontramos — vamos dizer a Praça General Osório; finalmente, juntamos seu nome — digamos Carlos Penteado — aos dois dados anteriores, numa frase que ficará para sempre na memória, representando simbolicamente a pessoa da qual não queremos nos esquecer. Assim: o General Osório penteou o bigode do Carlos. Ou então: o penteado do Carlos Osório foi feito pelo general de bigode.

Fácil, como se vê. Diz o livro que então a presença da referida pessoa fará logo saltar-nos na mente a frase que compusemos, e nosso único trabalho será traduzir. Como medida de precaução, devemos sempre que possível anotá-la num caderninho, para não esquecer.

Outra coisa que o livro ensina, e que não me saiu mais da cabeça, é que não adianta quebrá-la, tentando arrancar dela aquilo que a gente esqueceu. Esta lição, pelo menos, imediatamente aprendi: deixei de fazer força para me lembrar do que quer que seja, e continuo vivendo como sempre, sem me lembrar de nada, mas pelo menos sem me aborrecer mais com isso. Ainda há pouco me veio à lembrança um sugestivo exemplo com que ilustrar o meu progresso em matéria de memória, e que serviria de brilhante fecho a esta crônica. Como veio, foi — pouco importa: fecho-a assim mesmo.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Varal de Trovas 491

 

Lenda Indígena (Uaupés*: o Sepulcro de Nama-kuru)

Antigamente uma personagem chamada Nama-kuru** matava muita gente e, por isso, todos o odiavam e queriam mata-lo, mas nunca conseguiam vê-Io.

Estava uma viúva chorando a morte do marido quando Nama-kuru disse: "Vou ter com ela". No outro dia a mulher foi apanhar camarão à beira do rio e Nama-kuru, andando na sua frente sem se deixar ver, jogava-lhe peixes que ela apanhava com facilidade. Então a mulher gritou: "Quem é que me dá esses peixes? Quero vê-lo! Por que se esconde? Ensina-me como se apanha tantos peixes!".

Nama-kuru respondeu:

"Ensinar-te-ei se me abres a porta da tua casa!".

Replicou a muIher: "Vem quando quiseres, abrir-te-ei a porta da casa".

De noite, quando os filhos da viúva estavam dormindo, Nama-kuru foi ter com ela, que o recebeu com muita alegria e o tratou bem. Nama-kuru trazia muito moqueado: tatu, peixe, inambu, paca etc e tudo lhe entregou.

Ela, porém, escondeu-o, e todos os dias comia sem partilhar com os filhos. Entretanto, Nama-kuru, todas as noites ia ter com a muIher e com ela comia e bebia.

Uma noite os filhos da viúva acordaram e descobriram o mau proceder da mãe. Disseram: "Nossa mãe não gosta mais de nós, vamos fugir!".

Assim fizeram. No outro dia, fugiram para o mato onde cavaram um buraco para se esconderem. A mulher não chorou a fuga dos filhos.

Quando ela ia à roça deixava sempre a cuia de manicuera*** para Nama-kuru beber. Um dia, enquanto ela estava trabalhando na roça, os filhos entraram em casa e misturaram na cuia de manicuera um forte veneno de cipó****, e depois fugiram.

Nama-kuru veio, fumou primeiro um grande cigarro, depois bebeu a manicuera com veneno e morreu. A viúva queria sepulta-Io na terra, mas ele não quis e foi sepultar-se no firmamento. Seu sepulcro está no grupo de estrelas que rodeiam o Cruzeiro do Sul.

Como a viúva tinha coabitado com Nama-kuru, deu à luz um filho que (ela) costumava colocar sempre em um atura*****, amarrado debaixo do telhado. Quando (ela) ia tomar banho, os filhos entravam em casa para ver o irmãozinho. Como ia crescendo muito devagar, um dia, quando a mãe estava na roça, os filhos levaram o irmãozinho para o mato. Lá cortaram galhos de imbaúba, amarraram com eles os pés do pequeno, colocaram-no perto de uma planta de batatas. Ele comeu as folhas e cresceu muito depressa. Quando foram vê-lo, deu um pulo e fugiu: tinha virado veado.

Por isso a mulher indígena, quando está para dar à luz, não come carne de veado porque teme que o filhinho morra.
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* Uaupés: Os índios que vivem às margens do Rio Uaupés e seus afluentes – Tiquié, Papuri, Querari e outros menores – integram atualmente 17 etnias, muitas das quais vivem também na Colômbia, na mesma bacia fluvial e na bacia do Rio Apapóris (tributário do Japurá), cujo principal afluente é o Rio Pira-Paraná. Esses grupos indígenas falam línguas da família Tukano Oriental (apenas os Tariana têm origem Aruak) e participam de uma ampla rede de trocas, que incluem casamentos, rituais e comércio, compondo um conjunto sócio-cultural definido, comumente chamado de “sistema social do Uaupés/Pira-Paraná”. Este, por sua vez, faz parte de uma área cultural mais ampla, abarcando populações de língua Aruak e Maku.
As etnias que estão na região do Rio Uaupés são, além dos Arapaso, Bará, Barasana, Desana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Mirity-tapuya, Pira-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Kotiria, Tatuyo, Taiwano, Yuruti (as três últimas habitam só na Colômbia). Estão no noroeste da Amazônia, às margens do Rio Uaupés e seus afluentes

**É uma lenda "dos Tukanos sobre o Cruzeiro do Sul". Nama é 0 nome tukano do veado, ungulado da familia Cervídeos.

*** Manicuera: suco de mandioca amarga (Manihot esculenta Cranz) que, pela fervura, perde a toxicidade do ácido cianídrico.

**** Cipó: trata-se do timbó, 0 veneno de pesca preparado corn vários cipós Lonchocarpus sp.

***** Atura: 0 cesto-cargueiro feito de cipó imbé (philodendron imbé) que as mulheres costumam trazer às costas pendendo de uma embira que lhes contorna a testa e que é de fabricação exclusiva dos indios Maku.


Fontes:
– P. Alcionilio Brüzzi Alves da Silva SDB. Crenças e lendas dos Uaupés. Ediciones Abya-Yala, 1994.
– Sobre os Uaupés: Povos indígenas do Brasil.

Castro Alves (Poemas Avulsos) – 2

 ANJO


"Ai! Que vale a vingança, pobre amigo,
Se na vingança a honra não se lava?...
O sangue é rubro, a virgindade é branca —
O sangue aumenta da vergonha a bava.

"Se nós fomos somente desgraçados,
Para que miseráveis nos fazermos?
Desportados da terra assim perdemos
De além da campa as regiões sem termos...

"Ai! não manches no crime a tua vida,
Meu irmão, meu amigo, meu esposo!...
Seria negro o amor de uma perdida
Nos braços a sorrir de um criminoso!...”
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CANÇÃO DO BOÊMIO

Que noite fria! Na deserta rua
Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua,
Ladram de tédio vinte cães vadios.

Nini formosa! por que assim fugiste?
Embalde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vós?... Meu coração é triste
Como um calouro quando leva ponto.
A passos largos eu percorro a sala
Fumo um cigarro, que filei na escola...

Tudo no quarto de Nini me fala
Embalde fumo... tudo aqui me amola.
Diz-me o relógio cinicando a um canto
"Onde está ela que não veio ainda?"
Diz-me a poltrona "por que tardas tanto?
Quero aquecer-te rapariga linda."

Em vão a luz da crepitante vela
De Hugo Garcia uma canção ardente;
Tens um idílio — em tua fronte bela...
Um ditirambo— no teu seio quente...
Pego o compêndio... inspiração sublime
P'ra adormecer... inquietações tamanhas...

Violei à noite o domicílio, ó crime!
Onde dormia uma nação... de aranhas...
Morrer de frio quando o peito é brasa...
Quando a paixão no coração se aninha!?...
Vós todos, todos, que dormis em casa,

Dizei se há dor, que se compare à minha!...
Nini! o horror deste sofrer pungente
Só teu sorriso neste mundo acalma...
Vem aquecer-me em teu olhar ardente...
Nini! tu és o cache-nez dest'alma.
Deus do Boêmio!... São da mesma raça

As andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem de mim se a primavera passa
Se já nos campos não há flores de ouro...
E tu fugiste, pressentindo o inverno.
Mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por um riso terno

Mesmo eu tomara a primavera a prêmio..
No entanto ainda do Xerez fogoso
Duas garrafas guardo ali... Que minas!
Além de um lado o violão saudoso
Guarda no seio inspirações divinas...
Se tu viesses... de meus lábios tristes

Rompera o canto... Que esperança inglória...
Ela esqueceu o que jurar lhe vistes
Ó Paulicéia, ó Ponte-grande' ó Glórial...
Batem!... que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!

Sejam teus braços... do martírio a cruz!…
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A DUAS FLORES

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu…

Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar…

Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
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ONDE ESTÁS

É meia-noite. . . e rugindo
Passa triste a ventania,
Como um verbo de desgraça,
Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa
Por meus cabelos fugaz:
"Vento frio do deserto,
Onde ela está? Longe ou perto?
" Mas, como um hálito incerto,
Responde-me o eco ao longe:
"Oh! minh'amante, onde estás?...

Vem! É tarde! Por que tardas?
São horas de brando sono,
Vem reclinar-te em meu peito
Com teu lânguido abandono!...
'Stá vazio nosso leito...
'Stá vazio o mundo inteiro;
E tu não queres qu'eu fique
Solitário nesta vida...
Mas por que tardas, querida?...
Já tenho esperado assaz...
Vem depressa, que eu deliro
Oh! minh'amante, onde estás?..

Estrela—na tempestade,
Rosa—nos ermos da vida,
Iris—do náufrago errante,
Ilusão—d'alma descrida!
Tu foste, mulher formosa!
Tu foste, ó filha do céu!...
. . . E hoje que o meu passado
Para sempre morto jaz...
Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do Norte...
"Oh! minh'amante, onde estás?..."

Fonte:
Castro Alves. Espumas flutuantes. Publicado em 1870.

Benedita Cristófoli (As faces)

O vento soprava suavemente nas folhas do arvoredo que ainda restava ao lado direito do lago; à esquerda o milharal confrontava num cenário tão belo e de compatível encanto! Completando o círculo, um bambuzal que reforçava o aterro e também sombreava as manhãs de sol. O sítio da vovó fazia divisão com o da mamãe apenas por um pequeno riacho.

O céu ostentava magnificamente um azul mais lindo do que nunca e uma temperatura agradável naquele final de dia.

Vovó disse: –  Vamos fazer uma pescaria hoje?

– Vamos, sim. – Não pensei duas vezes.

– Então vai lá experimentar se as águas do lago estão mornas.

– Não é preciso, já dei um mergulho nele agora há pouco.

– Vai tirar essa roupa molhada enquanto vou atrás das iscas.

Saí correndo descalça pisando aqui, ali, sabe Deus onde e muito feliz. Adentrei faltando o fôlego à porta da cozinha. Mamãe preparava o jantar. Olhou meio assustada:

– O que foi, filha?

– Mamãe, a senhora não vai acreditar, vou pescar com a vovó,

– Que bom, fique calma, para uma pescaria a receita é tranquilidade.

– Acha que é fácil? Há tempo que sonho com isso!

Num segundo tirei as roupas substituindo-as por umas mais apropriadas.

Desci o morro observando já a posição do sol quase rente no horizonte, a filtração dos raios entre as árvores caindo nas águas borbulhando um amarelo forte. Virei a direção dos olhos para o aterro, lá estava a mulher mais linda do mundo! De anzol iscando, jogou a linha quase no meio do lago com uma arte espetacular! Confesso que senti no momento um pouco de inveja... Pensei em imitá-la com tanta maestria, mas logo passou. A ideia de pegar a minhoca, aquilo encolhendo e espichando sempre foi escabrosa e nunca bem aceita... A vó Joana, apontou para a cumbuca, senti um frio na barriga quando vi a metade das bichinhas fora, naquele encolhe, encolhe. O ímpeto foi de sair correndo, não, tinha de me mostrar valente, não deixando transparecer nenhum medo, meti a mão em uma minhoca grandota, atorei-a pelo meio enfiando-a goela abaixo do anzol e jogando nas águas, sentei-me no chão segurando a vara como gente adulta.

Reparei no rosto dela. Não havia nada que me comprometesse.

– Vejo na minha companheira muita segurança!

– O que me deixaria insegura?

– Nada, a minhoca é um bicho inofensivo.

– É, a senhora tem razão.

Ela notou o quanto me esforçava na hora da repetição e Deus também sabia.

A noite caía de mansinho aparecendo as primeiras estrelas. Os grilos cantavam alegremente e alguns sapos coaxaram bem perto de nós. O cesto da vovó cheio até à borda de traíras, o meu, apenas duas e até conformada, sem experiência nenhuma, estava bom demais.

Nisso passou pela minha cabeça... Se fosse mais cedo, deixaria a vara de espera, e iria à casa dela mexer no tear, quem sabe fiar um pouco na roda de fazer fio. Tudo aquilo era por demais tentador. Imaginei o tear na sala. Não tinha outro lugar para vovó tecer seus lençóis e as cobertas? Quantas vezes ela me pegou tocando a roda de frente para trás, desperdiçando o algodão dela.

– Por hoje chega, ela disse, amanhã você tem aula cedo.

– É mesmo.

– Faremos outra se você quiser, gostou?

– Claro! Bastante.

Vovó era descendente de índio, sua pele escura, cabelos lisos e pretos, magra, alta, muito bonita, mesmo a quantidade de anos não deformou a sua beleza.

O nosso relacionamento não ficava só nas pescarias, mas dos passeios às rezas e me ensinou a costurar, bordar e na cozinha a fazer coisas deliciosas.

A semana se aproximava, mamãe disse: - Iremos todos, vovó, as primas e alguns inquilinos.

O aluguel da casa na cidade, o meu padrasto já havia combinado e os peixes também eram tarefa de assim como pescar, limpar e colocar o sal e secar no sol. Mamãe fazia as broas de fubá, os biscoitos de polvilho e os doces. Os preparativos, correr atrás de costureira, era tudo às pressas. Chega o tal dia e ia pondo tudo dentro do carro de boi, super-carga, mas tudo se ajeitava, a gente ir a pé era muito sacrifício, mas já que fazia parte da devoção, tudo valia.

Paramos o carro em frente à casa. Deus do céu, não me lembro de ter visto uma tão feia antes. Meu padrasto disse: – Foi a única disponível.

Se por fora desanimamos imagine por dentro, nem se fale, a parede fazia um século que não era pintada, o chão todo esburacado. Mamãe fez sinal para que ficássemos quietos. Iniciamos a arrumação dando-nos por satisfeitos. E assim foi essa semana santa como as outras, as procissões, o cheiro de vela, os cabelos sapecados, tudo isso fazia parte da programação, a igreja cheia, a morte de Jesus, a ressurreição e no sábado a queima do Judas, o domingo de aleluia.

Na segunda-feira a chatice das aulas da professora Ilda. Mamãe nem sonhava que matávamos aula adoidado. A caminhada era seis quilômetros todos os dias. De vez em quando os primos, minhas irmãs, mesmo sendo nós as mais novas tínhamos de concordar em passar as horas de aula sem abrir a boca. A brincadeira era para valer jogar bola com as bobeiras, colher frutos silvestres, sangravamos a boca com os gravatás, a colheita era uma tarefa dificílima, as mãos e as pernas arranhadas, mas nem assim havia desistências.

As pescarias, as novenas e os passeios foram aumentando e fortalecendo a nossa amizade, quem não reparasse bem, tomava-nos por duas adolescentes. Vovó teve uma participação fundamental na transição da minha infância para a adolescência. Mamãe não explicava nada. A vovó era quase igual uma médica, fazia remédio para bronquite, parteira, benzia as crianças, curava tudo e todos.

As novenas longas. Caminhadas quando à noite enluarada, tudo beleza a heroína seguia em frente como soldado em combate. Nas rezas ela ia para cozinha fazer café e chá para depois da novena servir com os biscoitos, enquanto lá fora as moças e rapazes brincavam de roda, de passar anel e namoravam, tudo bem escondido.

Um certo dia mamãe e padrasto inventaram de ir visitar a irmã mais velha de mamãe no Sul... Admirados com o progresso, a terra fértil. Deixaram uma fazenda com proposta de compra... E dentro de pouco tempo venderam a fazenda no interior de Minas Gerais e partimos para o Sul.

Pensei que não ia aguentar a grande dor, uma tristeza inconsolável, deixar tudo no momento mais gostoso de minha vida. A manhã está clara e mais linda do que nunca para nossa despedida. O caminhão super-lotado de gente em cima de colchões, trouxas e roupas e as coisas de casa, meu padrasto trouxe junto os agregados da fazenda.

Virei para trás, um vulto na janela, meus olhos cheio de lágrimas tampavam a imagem da vozinha, tudo embaçado, imaginei ela na mesma situação minha.

Depois de alguns meses a tia Marieta nos escreveu contando, "a ida de vocês foi tão triste para mamãe, pois teve momento que achei que ia morrer de tanto se lamentar, ficava horas na janela olhando a casa fechada".

À última curva mais esforço, nada definido, tudo turvo. O desespero foi tão grande! O coração batia mais forte... Comecei a enumerar as perdas, eram muitas, deixando a vozinha amada, meus pássaros, minha terra onde vivi a infância e metade da adolescência, minha casa onde nasci e a goiabeira, pousada do meu pintassilgo, que mesmo depois que o vaqueiro deixou-o escapar da gaiola, ele retornava todos os dias para cantar e comer a canjiquinha de milho, junto com os pintinhos.

Um belo dia contei a história do meu pintassilgo à vovó que mesmo depois de sua liberdade, ainda éramos amigos.

– Como o Sezão soltou o pássaro? Que maldade!

– Não vovó, a senhora sabe o jeito que ele é estabanado.

– Você acha que é o mesmo pintassilgo?

– É sim, ele não tem um dedinho do pé esquerdo.

– Que coisa interessante! – disse rindo muito.

– Sabe que eu não quis prendê-lo de novo?

– É muito bom ouvir isso, pois ninguém pode mudar a direção correta das coisas.

No dia seguinte vovó chegou no lugar que havíamos combinado para ver a chegada do pássaro... Espalhamos a comida farta no terreiro, as chocas e seus pintinhos foram se aproximando junto com alguns pardais e os canários amarelos. Percebi que vovó atenta procurava o tal pássaro, tranquilamente continuava jogando a canjiquinha que restava na latinha, esperando uma interrogação. E lá vem ele então soberbo! Pousou no chão no meio da pintaiada, enfiou seu delicado bico a catar comida e saboreando com gosto as delícias.

– A senhora viu?

– Sim, querida, não que duvidasse mais voltar depois de solto.

A felicidade está nestas pequenas coisas, não é preciso ir longe para atingi-las. O semblante dela animadíssimo e sorridente como nos dias das pescarias.

As estradas, a maior parte de terra e vários dias penosos, uma viagem difícil, chegamos ao destino. Ficamos algumas semanas no sítio da titia até resolverem comprar o nosso.

As matas verdes, não dando por satisfeita em contemplá-la de longe, adentrava e permanecia longas horas observando as belezas naturais do Sul.

No meado do ano, as geadas vinham vigorosas, queimavam tudo, os cafezais, morriam até as raízes. Batia a tristeza, a cicatriz profunda das perdas que ali tinha tido, florescia novamente a saudade da infância, do meu mundo de sonhos agarrava a minha alma, voltava ao passado.

Naquele ano mesmo surgiram outras paixões, senti-me dominada por um amor louco, era a primeira vez que amava sem dúvida. Isso me fez mergulhar no mundo dos romances, ia fundo dedicando-me à leitura.

Quando se completou um ano de minha vinda, me casei e dessa união nasceram quatro filhos, dois casais, presentes de Deus, foi uma maravilha! Pois enquanto cuidava esquecia o fracasso que fora o casamento. Nunca podia imaginar que aquilo fosse acontecer, milhões de sonhos acalentados foram se distorcendo. Bati frente a frente com a dura realidade!... O romantismo não existe... Nunca existiu? As lindas histórias de amor só existiam nos livros.

Entregava-me inteiramente às crianças, ao serviço doméstico e agradecia a Deus por ser tão carregada de trabalhos. Quando as crianças dormiam e mais tarde quando iam para o colégio, começava a pensar, sempre procurando respostas que justificassem as atitudes desonestas e frias do esposo. Adormecia perdida, na maioria, no meio das reflexões.

E assim foram trinta e quatro anos e não trinta e quatro meses e nem trinta e quatro dias. "Sem direito a nada". E então, imenso desejo de esquecê-lo. Mas através do sofrimento e bastante luta consegui, numa manhã, pôr quatro mudas de roupas, um par de sapatos, alguns livros na maleta e a vontade de retomar ao sul de onde ausentei dez anos, na última tentativa de salvar meu casamento.

Muitas vezes cheguei a pensar que Deus havia me abandonado, mas não, todo sofrimento, as repressões tudo fez com eu fosse em busca da liberdade. Oito anos divorciada e disposição sem limites. E desejava renovar o destino para mim e para as pessoas que achavam tudo sem solução, só porque já passaram dos sessenta anos de idade. Infelizmente na minha geração ninguém tinha a ousadia de dizer, vamos lá, você pode, estudar não é um crime. Então, procurava realizar meus sonhos e ensinar o que havia aprendido durante esses anos de experiências, passando às pessoas que não tiveram oportunidades antes.

Lecionei como voluntária alfabetizando jovens e adultos, ninguém saberia medir a minha felicidade quando uma aluna de setenta anos escrevera as primeiras palavras, depois as frases e as lera corretamente. Acreditei, sempre acreditara no amor, na sua força misteriosa! Onde Ele está tudo é possível fazer. Ao completar sessenta anos de idade conclui o magistério e depois de várias tentativas (4 vezes), consegui passar no vestibular, cursei Pedagogia. O mais importante sempre fora a persistência, nunca desistia enquanto não alcançava o meu objetivo.

Encontrava-me dedicando a um mundo maravilhoso e cheio de esperança, participando da maturidade, das danças, me sentia feliz no meio de amigos verdadeiros e até encontrando um grande amor, quando pensava que ele só existia nos romances.

A convivência com os netos fora, sem dúvida, uma troca de experiências e fez com que acabasse voltando ao passado e revivendo a infância, a doce lembrança que fora a minha avó.

Fonte:
Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
Livro enviado por Sinclair Pozza Casemiro.

Estante de Livros (Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto)

Publicado em 1912. O livro é composto por dezenove contos e neles percebemos as qualidades do narrador e paralelamente, os seus limites. Dois traços tornam-se nítidos:

– a fixação do mundo gauchesco;
– a oralidade e o regionalismo da linguagem.

Para isso, muito vale a estratagema do escritor, cedendo a palavra ao vaqueano Blau Nunes.

Blau Nunes contará os seus casos, recolhidos no "trotar sobre tantíssimos rumos". E a sua fala - por ser teoricamente a de um gaudério, a de um peão sem trabalho fixo - se esquivará, por vezes, da exaltação dos pampas e da condição gaúcha, que no fundo, foi sempre uma auto-exaltação dos oligarcas sulinos.

Há no tom narrativo de Blau certa neutralidade, destruída aqui e ali pela saudade dos antigos tempos e por certo moralismo de origem cristã. Porém a sua nostalgia vincula-se a uma época na qual o gado ainda xucro era campeado - conforme o relato Correr eguada - e os peões tinham direito a sua tropilha nova, fato que não se repetiria numa sociedade cada vez mais dividida entre fazendeiros e trabalhadores.

Por outro lado, a significação moral das histórias exige-se sobre um sentimento de relativo desconforto no narrador com a violência imperante no território gaúcho: a destruição do boi em serventia (O boi velho), a carnificina guerreira (O anjo da vitória), etc.

Ainda que esforço documental presida a obra, o registro dos costumes nunca é gratuito. Liga-se à ação dos contos e a psicologia simples dos indivíduos. Em três ou quatro narrativas, contudo, o valor do documento é superado por uma legítima sensibilidade artística: Trezentas onças, O contrabandista e O boi velho transcendem à condição de espelho da região, atingindo a chamada universalidade das grandes produções literárias.

Se muitos contos permanecem apenas como registro de costumes ou como anedotas bem contadas (eis o limite do autor pelotense), a linguagem em todos eles é viva e cheia de dialetismos, o que, em parte, dificulta a leitura. O linguajar gauchesco é reproduzido pelo escritor. Mas a utilização que Simões Lopes Neto faz do regionalismo linguístico não visa o pitoresco, como acontece na maioria das manifestações artísticas dita regionais. Nele, a expressão típica é uma decorrência dos conteúdos trabalhados, e, por isso mesmo, somos capazes de superar as dificuldades de seu vocabulário.

Como disse Augusto Meyer, há em sua obra "o cuidado de reconstruir o timbre familiar das vozes". E isso forneceria a mesma um efeito surpreendente de oralidade, encanto e frescor.

TREZENTAS ONÇAS

O narrador Blau Nunes conta que, certa vez, viajando sozinho a cavalo, acompanhado apenas de seu cachorro, levava na guaiaca trezentas onças de ouro, destinadas a pagar um gado que compraria para seu patrão. Um certo ponto da viagem, para para sestear num passo, onde, depois de uma boa soneca, vai refrescar-se com alguns mergulhos na água fresca.

Tornando a vestir-se e a encilhar o zaino, parte em direção à estância da Coronilha, onde devia pousar. Logo que sai a trotar pela estrada, o gaúcho nota que seu cachorro estava inquieto, latindo muito e voltando sobre o rastro, como se quisesse chamar seu dono para o pasto outra vez. Mas Blau Nunes segue seu caminho até chegar à estância da Coronilha. Lá chegando, ao apear do cavalo e cumprimentar o dono da casa, nota que não estava com sua guaiaca. Anuncia que perdera trezentas onças do patrão e, preocupadíssimo, monta o cavalo outra vez para voltar ao lugar onde teria deixado a guaiaca.

Depois de nova cavalgada, sempre acompanhado do fiel cãozinho, Blau Nunes chega ao passo, já de noite, e não mais encontra a guaiaca no lugar onde tinha certeza de que havia colocado quando se despira para o banho. Desespera-se tanto por imaginar que seu patrão o consideraria um desonesto, que pensa em suicidar-se. Chega a engatinhar o revólver e colocá-lo no ouvido, mas o cusco lambendo-lhe as mãos, o relincho de seu cavalo, o brilho das Três Marias, o canto de um grilo, tudo lhe invoca a presença e a força divina, que o demove daquele ato transloucado.

Assim, o gaúcho reequilibra-se e decide que venderá todos os seus bens e dará um jeito de pagar ao patrão o prejuízo da perda das trezentas onças. E volta para a pousada na estância da Coronilha. É então que tem uma feliz surpresa: sobre a mesa da sala do estanceiro, ao lado da chaleira com que se servia a água do mate, estava a sua guaiaca "empanzinada de onças de ouro". Uma comitiva de tropeiros, que chegava à estância no momento em que ele voltava ao passo de sesteada, havia encontrado a guaiaca e a trouxera intacta. E esta foi a saudação que ele recebeu quando entrou na sala:

" - Louvado seja Jesus Cristo, patrício! Boa noite! Entonces, que tal le foi de susto?"

Conto narrado em 1ª pessoa, com muita descrição de paisagem.

NO MANANTIAL

Narração em 3ª pessoa. Na tapera do Mariano há um manantial. Bem no meio dele, uma roseira, plantada por um defunto, e gente vivente não apanha flores por ser mau agouro.

Carreteiros que ali perto acamparam viram duas almas: uma chorava, suspirando; outra, soltava barbaridades. O lugar ficou mal-assombrado.

Com Mariano morava a filha Maria Altina, duas velhas, a avó da menina e a tia-avó, e a negra Tanásia.

Tudo em paz e harmonia.

Certa vez foram a um terço na casa do brigadeiro Machado. Maria Altina encontrou o furriel André, e os dois se apaixonaram (conchavo entre o pai e o brigadeiro). André lhe deu uma rosa vermelha. Em casa, ela plantou o cabo da rosa e a roseira cresceu e floresceu. Surgiu o trato do casamento...o enxoval...

Chicão, filho de Chico Triste, andava enrabichado pela Maria Altina, que não se interessava por ele e tinha-lhe medo.

Na casa de Chico Triste houve um batizado. O pai e a tia-avó foram ajudar. Chicão aproveitou-se, foi à casa do Mariano, matou a avó e quis pegar à força Maria Altina.

Esta, vendo a avó morta, pegou o cavalo e saiu às disparadas, entrando no manantial. Chicão atrás. Ela some e só fica a rosa do chapéu boiando.

Mãe Tanásia, que se escondera e vira tudo, vai à procura de Mariano.

Nesse meio-tempo chegaram a casa os campeiros para comer. Viram a velha morta. Uns ficaram, e outros foram avisar Mariano e procurar Maria Altina....

Mariano apavorou-se, pensando que a filha fugira com o Chicão. Nisso chegou a mãe Tanásia e conta o sucedido. Todos vão ao manantial e encontram Chicão atolado, boiando. Mariano atira e acerta Chicão. O padre que ali está, coloca a cruz na boca da arma e pede que não atire mais. Mariano entra no lamaçal, luta com Chicão e os dois afundam e morrem.

A avó foi enterrada também na encosta do manantial. Uma cruz foi benzida e cravada no solo pelos quatro defuntos.

Mãe Tanásia e a tia-avó foram por caridade, morar na casa do brigadeiro Machado.

E como lembrança do macabro acontecimento, ficou, sobre o lodo, ali no manantial, uma roseira baguala, roseira que nasceu do talo da rosa que ficou boiando no lodaçal no dia daquele cardume de estropícios.

O CONTRABANDISTA

Narração em 1ª pessoa. Informações históricas.

O contrabandista é Jango Jorge. Mão aberta e por isso sem dinheiro. Foi chefe de contrabandistas. Conhecia muito bem lugares (pelo cheiro, pelo ouvido, pelo gosto).

Fora antes soldado do Gen. José Abreu.

Estava pelos noventa anos, afamilhado com mulher mocetona, filhos e uma filha bela, prendada, etc.

O narrador pousa na casa dele, era véspera do casamento da filha.

Tudo preparado, Jango Jorge parte para comprar o vestido e os outros complementos de contrabando. É atacado, na volta, pelo guarda que pega o contrabando, mas ele não solta o pacote contendo o vestido e, por isso, é morto. Os amigos levaram o cadáver para casa, contaram como ocorreu e a alegria da festa vira tristeza geral.

Obs.: no meio do conto é contada a história do contrabando na região, do comércio entre os lugares, os mascates...

JOGO DE OSSO

Narração em 1ª pessoa, bastante descritivo.

Começa, dizendo que já viu jogar mulher num jogo.

Depois descreve a vendola do Arranhão (um pouco para fora da vila, de propriedade de um meio-gringo, meio-castelhano, que tem faro para negócios: bebida, corrida, jogos, etc.).

Certo dia choveu e atrapalhou a jogatina. Cessada a chuvarada, resolvem jogar o osso. (Explica como se desenvolve a jogatina.)

Os jogadores eram Osoro (mulherengo, compositor) e Chico Ruivo (domador e agregado num rincão da Estância das Palmas; vivia com Lalica.

Chico só perde e acaba apostando Lalica. Esta com raiva de Ter sido incluída na aposta, começa a dançar com Osoro (o ganhador) provocando Chico Ruivo, que não agüentando mais, vara os dois ao mesmo tempo com um facão.

O povo à volta grita para que peguem Chico Ruivo, mas ele foge no cavalo de Osoro.

"-Pois é, jogaram, criaram confusão, mas nenhum pagou a comissão...Que trastes!..." (falou o meio-gringo do bolicho).

domingo, 4 de abril de 2021

Adega de Versos 9: Severino Feitosa

 

Júlia Lopes de Almeida (O Último raio de luz)

A Júlia Cortines


Ainda me lembro do último raio de luz que me feriu as pupilas. Sol! sol! por que não te hei de esquecer?

Era em maio. A janela do meu quarto dava para o mar, e havia uma larga moldura de rosas amarelas que a circundava toda. Eu tinha quinze anos só. O médico ia todos os dias ver os meus olhos e quedava-se longo tempo a falar com minha mãe, descrevendo-lhe o meu mal, pedindo-lhe desvelo, arregaçando-me as pálpebras, admirando a limpidez do meu olhar azul e inocente.

Eu ouvia-o falar em amaurose* com uma piedade tão comovente, que me enternecia. Qual era a minha doença? Ignorava-o eu; minha mãe compreendia-a, respondia com voz mal firme às perguntas e prescrições do doutor. Ele era moço, era formoso e era meigo; que havia de estranhável em que eu o amasse?

Amei-o; mas eu só tinha quinze anos e ele já tinha trinta! Para ele eu era uma criança apenas, uma flor mal desabrochada e triste. Sorria-me com a doçura que os desgraçados inspiram, eu bebia-lhe a voz com a sofreguidão indefinida que o primeiro amor dá! Para mim, ele era tudo! Tremia com o vê-lo e senti-lo ao meu lado, o coração batia-me com força, as fontes latejavam-me, um desmaio de ventura percorria as minhas veias, ia no meu sangue; era o meu sangue mesmo, girando dentro da minha carne fresca, rosada e pura, ora impetuoso, ora brando, que me sobressaltava, avermelhando-me as faces, ou me enlanguecia, matando-me de gozo. Quinze anos! oh, meus quinze anos! quão longe estais! Quando passo as mãos pelos meus cabelos, que devem estar brancos, e os dedos encontram no meu rosto as rugas da velhice, treme-me no peito uma saudade daquele tempo de primavera, e sinto as lágrimas rolarem-me pelas faces. Só para chorar não morreram os meus olhos, bendito seja Deus!

Um dia o médico tapou-me a vista com um lenço escuro. Senti–lhe as mãos emaranhadas no meu cabelo loiro, e a sua voz clara e sonora dizer-me junto ao ouvido:

– Conserve-se assim alguns dias; não retire esse lenço sem meu consentimento... do contrário ficará cega... cega, ouviu? Promete-me obediência?

Prometer-lhe obediência foi para mim uma felicidade. Obedecer ao homem que ama é para a mulher um gozo esquisito, terno e perfeito. Acenei-lhe que sim. Passei alguns dias imóvel; mãos cruzadas no colo, como uma figura de santa paciente, feliz na sua resignação!

Ao redor de mim tumultuava a casa. As crianças corriam, chamavam-me, diziam que o tempo estava formoso, que havia novas flores na minha roseira; que a mamãe fizera outro manto para a imagem do meu oratório... As criadas vinham contar proezas dos meus animais favoritos; minha mãe, tão discreta, essa mesma deixava-se levar no entusiasmo de quem vê, e volta e meia tinha uma exclamação de espanto ou de alegria que me impeliam a arrancar o lenço para ver também.

As mãos, porém, não se descruzavam; o sacrifício feito para obedecer-lhe tornava a obediência mais querida ao meu coração. Eu supunha que ele conheceria, perceberia, apalparia, por assim dizer, todas aquelas atribulações, todos aqueles sentimentos que se agitavam dentro de mim. Eu devia ser como um cristal, e cuidava sê-lo aos olhos do meu médico! De todas as pessoas da família, minha irmã mais velha era a mais doce. Ao pé de mim não gabava a beleza que os seus olhos vissem; acariciava-me como a uma pomba cansada, a quem se teme magoar as asas. Pobre de minha irmã! Com a falta de vista fui apurando o ouvido, de tal sorte que o mínimo som chegava até mim perfeitamente limpo. Uma agulha que caísse no chão, uma palavra mal segredada, um suspiro retido a meio, um sopro, um voar de asas finas do mais pequenino inseto constituíam o meu drama, todo o meu mundo visível, porque enfim eu via pelo ouvido, pelo ouvido reconstruía imaginariamente todas as cenas! Chegava a adivinhar a intenção das pessoas, a maneira de ocultarem sob palavras brandas e quase indiferentes a admiração que algum objeto lhes causasse; a recusa íntima de coisas que os lábios consentiam, ou o consentimento de outras que o espírito recusava!

Principiei a conhecer que toda a gente mentia mais ou menos em minha casa, e que o exemplo vinha desde minha mãe e de meu pai.

Não era só a mentira grosseira, áspera, rude, vulgar; o que eu percebia ia mais longe: sentia a mais tênue, a mais fina, a mais vaporosa sombra de falsidade. Tristes momentos em que a cegueira nos descortina segredos, que desejaríamos ignorar toda a vida! Para eu não ser má, valia-me a paixão pelo médico. O amor abria-me a alma, enchia-me o coração de bênçãos, e para cada defeito que eu descobrisse na voz de alguém, tinha um perdão no meu seio!

Um dia, não se puderam calar e entoaram todos louvores ao sol.

– Há muito que não faz um tempo assim! exclamava um.

– Dá vontade à gente de passear! dizia outra, rindo.

Eu sentia o calor brando e doce do sol de maio, e as minhas narinas dilatavam-se ao aroma das rosas francamente abertas. Voavam andorinhas perto das janelas, e o flu-flu das asas soava no ar deliciosamente. Alguém passava na praia cantando uma cançoneta alegre, e as crianças riam alto na varanda, correndo atrás do meu cão predileto.

Oh, se eu pudesse correr ao sol! colher flores para o meu amado, cantar as canções felizes que a vista do mar me inspirasse, como seria bom, como seria bom! E as mãos apertavam-se mais, com medo de desobedecer ao meu senhor, ao dono do meu destino, do meu terno coração de quinze anos, todo primavera, todo amor, todo esperança.

Comecei a rezar baixo, mentalmente mesmo, pedindo à virgem minha patrona que desse saúde aos meus olhos cansados da escuridão. Tive de interromper a minha prece... No jardim havia um sussurro brando que me fez estremecer. Ergui-me e fui, tateando, à janela.

Vi todas as flores, nos seus perfumes, o calor ameigou-me a pele, o mar rolou uma queixa doce aos meus ouvidos; as mãos trêmulas desligaram-se-me: ouvi então a voz do meu médico falando de amor a minha irmã...

Uma ilusão! sim! era uma ilusão tudo aquilo; e, para convencer--me, eu, desgraçada, arranquei dos olhos o lenço escuro. O sol! Só vi o sol... mais nada! O sol furioso, dardejante, afogueando tudo, mar, céu, terra, plantas, como brasa ardente e cáustica a rebrilhar em toda a natureza, tingindo de ouro vivo as cores mais delicadas, ferindo de morte os meus pobres olhos de virgem apaixonada...

Agora, quando os filhos de minha irmã me perguntam qual foi a última impressão que tive pelo olhar, mal lhes respondo e quedo-me a rever-me nos meus quinze anos, sentindo que, ao menos para chorar, ainda vivem os meus olhos, louvado seja Deus!
____________________________________
* Amaurose ou Gota Serena é a perda total da visão, sem lesão no olho em si, mas com afecção do nervo óptico ou dos centros nervosos, podendo afetar a visão de um ou ambos os olhos.
 
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Sammis Reachers (Poemas Avulsos) 2


 Casadoiro

Procuro uma menina
que me dê amor verdadeiro,
não fingido, não sonhado

amor de abraço longo
e comida benfeita

confiança
como telhado novo sem goteiras

De minha parte
faço-lhe uma promessa:
ainda que eu não encontre
as palavras certas
eu encontrarei as ações
e isso
é o que de maior um poeta
pode prometer.
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Equívocos

Perdi o poema que vinha
eu sangrei meu seio

supus primavera na esquina
era algazarra de um tiroteio

e eu lá de sonhos abertos
com os olhos intoxicados e quietos

na solidão central de seu meio
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Lamento à maneira antiqua

Um coração de tipo e viés cigano
valia-me mais que este meu, pacato
eu amaria as que me constrangem, sem recato
trocaria minha farda por colorido pano.

Beberia vinho em fundas tascas de cristal
sem atinar para a vil aparência do mal;
deitaria meu rosto de pranto em todo colo
e redimiria de o vazio delas todo o dolo...

Mas temo e tremo, pela alma e destino meus;
recolho-me à minha taba, espero em meu Deus.
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Menina-mulher

Renovas o mundo,
Deita-o a girar

A tapeçaria do Caos
Tecem-na teus dedos
Delicados-brancos
tecem-na para que eu me deite,
leito de intempestivas andorinhas

há paz & forças sulfurosas
em teu beijo langoroso
pacificação e lento incêndio
em teus olhos-de-dilacerar

A balbúrdia em teu iPod
o último louvor da última levita,
ou o Pearl Jam cantando Last Kiss
a todo o momento, ressuscitando
um dia de poemas realizados
que talvez nunca tenha sido

A forma como entregas a tua vida
Como se fora dela o dia derradeiro

Teu sorriso tange os homens,
Arrebanha a minha dispersão

Hoje é o teu dia, lua cadente-sorridente
- Parabéns
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O poeta é um desvelado

O poeta é um desvelado,
Qualquer criança, num qualquer soslaio,
Lhe desnuda o segredo:
Ele escreve
porque não sabe voar
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Peter Pa(i)n

Perfile as tropas, Sininho.
Não há volta para nenhum de nós;
Crianças, nossas ações
são as ações de homens desesperados.
Desconecte os Bulbos de Realidade,
mergulhe tudo no Sonho.

Ele é um anjo caído, o que se nos opõe;
sequer podemos vê-lo,
conhecer-lhe o plano ou a extensão do braço;

No Sonho e no Sonho apenas
é o único lugar onde poderemos
assassinar o nosso tão injustamente
poderoso inimigo.

Fonte:
Sammis Reachers. Pulsátil. Poemas canhestros & prosas ambidestras.
 São Gonçalo/RJ, 2014.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Germani, um sábio

Quase um século de heroísmo, talento, generosidade. Belíssima história inserida na fascinante história do Sul – Rio Grande, Santa Catarina, Paraná.

Conheci Emílio Germani em 1955, logo que cheguei a Maringá. Ele já era um vitorioso empresário, um dos mais respeitados pioneiros da cidade. Participante ativo de todas as entidades já aqui existentes, entre as quais a Santa Casa, a Associação Comercial, o Rotary Club – o rotariano mais rotariano que até hoje conheci. E ainda achava tempo e fôlego para escrever ótimos artigos para os nossos primeiros jornais e revistas.

Catarinense nascido no dia 22 de junho de 1917 em Capinzal, em 1950 Germani residia em Videira, após haver morado durante algum tempo em Caxias do Sul. Em Videira ele era já um homem importante, exercendo alta função na empresa Ponzoni Brandalise, que mais tarde se tornaria a Perdigão.

Deu-se, porém, o inesperado: numa noite de chuva, ao atravessar de jipe a linha férrea, foi atropelado por um trem, o que o obrigou a ficar 40 dias no hospital. Ao receber alta, pediu mais 10 dias de licença e aproveitou para vir conhecer o norte do Paraná, eldorado do qual muito se falava na época. Maringá estava novinha ainda, nem município era. Ele chegou aqui exatamente no dia 15 de agosto, dia de Nossa Senhora da Glória, futura padroeira da cidade.

Ao passar em frente ao escritório da Companhia Melhoramentos, Germani viu um montão de gente entrando e saindo. Entrou, foi conversar com um dos corretores. Resultado: comprou um terreno na Avenida Mauá, uma chácara nos arredores e alugou um salão na Avenida Paraná. Voltou a Videira levando a surpresa, contou a aventura para Dona Elza e no dia seguinte apresentou aviso prévio à firma onde trabalhava.

Dois meses após já estava em Maringá de mala e cuia, em companhia do seu irmão Guido. Montaram primeiro um escritório de representações, depois uma fábrica de camas, depois uma cafeeira, e alguns anos mais tarde entraram no ramo do milho. Logo cresceram e se tornaram grandes industriais, com prestígio internacional. Uma história de gente forte, parecida com a de tantos outros peitudos que ajudaram a construir esta pujante cidade.

Mas o que eu queria mesmo dizer era que para mim foi uma bênção haver conhecido Emílio Germani e ter com ele convido durante muitos anos nas reuniões de Rotary, na Academia de Letras de Maringá e em muitos e inesquecíveis encontros nas redações de jornais e revistas.

Gostava demais de conversar com ele, ouvir suas histórias, aprender com ele tantas e tão preciosas lições de vida. Germani era um sábio, um homem bom, um modelo de cidadania. Um ser humano realmente fora do comum.

Autor de três ótimos livros – “Encruzilhadas”, “Fragmentos Históricos do Distrito 4630” e “Retalhos da Vida”, além de centenas de artigos, poemas e crônicas. Despediu-se no dia 2 de junho de 2010, com 93 anos. Deixou uma bela família – 11 filhos, 25 netos, 11 bisnetos.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 28--01-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sábado, 3 de abril de 2021

Monteiro Lobato (O Sabiá e o Urubu)

Era à tardinha. O sol morria no horizonte, enquanto as sombras se alongavam na terra. Um sabiá cantava tão lindo que até as laranjeiras pareciam absortas à escuta.

O urubu contorce-se de inveja e queixa-se:

– Mal abre o bico esse passarinho e o mundo se enleva. Eu, entretanto, sou um espantalho de que todos fogem com repugnância... Se ele chega, tudo se alegra, mas se eu me aproximo, todos recuam... Ele, dizem, traz felicidade, mas eu, mau agouro... A natureza foi injusta e cruel comigo. Mas está em mim corrigir a natureza; mato-o, e desse modo me livro da raiva que me provocam seus gorjeios.

Pensando assim, aproximou-se do sabiá, que ao vê-lo armou as asas para a fuga.

– Não tenha medo, amigo! Venho para mais perto a fim de melhor gozar as delícias do canto. Julga que por ser urubu não dou valor às obras-primas da arte? Vamos lá, cante! Cante ao pé de mim aquela melodia com que há pouco você extasiava a natureza.

O ingênuo sabiá deu crédito àqueles mentirosos grasnos e permitiu que dele se aproximasse o traiçoeiro urubu. Mas este, logo que o pilhou ao alcance, deu-lhe tamanha bicada que o fez cair moribundo.

Arquejante, com os olhos já envidrados, geme o passarinho:

– Que mal eu fiz para merecer tanta ferocidade?

– Que mal fez? É boa! Cantou!... Cantou divinamente bem, como nunca urubu nenhum há de cantar. Ter talento: eis o grande crime!...
………………………
A inveja não admite o mérito.
= = = = = = = = = = =

Dona Benta suspirou e disse:

– Está aqui outra fábula muito dolorosa, meus filhos. Põe em foco a inveja – o sentimento pior que existe. A maior parte das desgraças do mundo vem da inveja, e creio que não há sentimento mais generalizado. A inveja não admite o mérito – e difama, calunia, procura destruir a criatura invejada.


Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas. Publicado em 1922.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXIV


NÃO AMAR...

MOTE:
Não amar nem ser amado,
é o mesmo que não ser nada,
é pisar no chão eivado
de acúleos pelas estradas.
(Abel B Pereira)

GLOSA:
Não amar nem ser amado,
viver sempre em solidão,
sem presente e sem passado,
faz chorar o coração!

Viver sem amor, é triste,
é o mesmo que não ser nada,
pois somente, o nada existe
na solitária jornada!

Estar, assim, angustiado,
nos leva à desilusão,
é pisar no chão eivado
(descalços) – de pés no chão!

Sozinhos e sem carinhos,
somente as nossas pegadas
deixaremos, nos caminhos
de acúleos pelas estradas.
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PORTAS DO DIA

MOTE:
Termina a noite estrelada...
E, por estranha magia,
vejo as mãos da madrugada
abrindo as portas do dia.
(Abigail Rizzini)


GLOSA:
Termina a noite estrelada...
Vão dormir, nossas estrelas!
A noite fica apagada,
não conseguimos mais vê -las!

Mas um milagre acontece
e, por estranha magia,
o sol no céu aparece
revestido de poesia!

Como uma bênção dourada
nessas luzes multicores,
vejo as mãos da madrugada
tecendo novos amores!

Assisto, com emoção,
essa aurora de alegria,
que acarinha o coração
abrindo as portas do dia!
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VIDA E MORTE

MOTE:
Não teme a morte temida
quem na vida não tem sorte:
Há tanta morte na vida
e há tanta vida na morte...
(Aderbal Melo)

GLOSA:

Não teme a morte temida
quem vive sozinho e triste,
pois sem amor, sem guarida,
somente o vazio existe!

Segue sempre em depressão,
quem na vida não tem sorte,
pois viver sem emoção
faz perder o próprio norte!

E vendo a razão vencida
sofremos pelo caminho...
Há tanta morte na vida
pela falta de carinho!

Devemos crer de verdade
na vida e no amor. Ser forte!
Pois vida é felicidade,
e há tanta vida na morte...
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BORDADOS DO SOL

MOTE:
O sol em brilho fecundo,
tecendo fios dourados,
pinta na tela do mundo
os mais luzentes bordados.

(Ailson Cardoso de Oliveira)

GLOSA:
O sol em brilho fecundo,
matizando, com mil cores,
no seu último segundo
pinta um ocaso de amores!

Sendo artista primoroso
tecendo fios dourados,
torna bem mais amoroso
um casal de namorados!

Com um carinho profundo
compõe o quadro mais belo,
pinta na tela do mundo
um pôr-de-sol amarelo!

E esse pintor de universos
pinta os sonhos mais sonhados
e põe, no sol dos seus versos,
os mais luzentes bordados.
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ESTEIRA DO SONHO

MOTE:
Na suave esteira do sonho
seguirá minha poesia,
pois é nos versos que ponho
meu mundo de fantasia.

(Almira Guaracy)

GLOSA:
Na suave esteira do sonho

eu descanso os meus cansaços,
e o meu sorriso tristonho
relembra, então, teus abraços!

A vagar pelo infinito
seguirá minha poesia,
sonhar é bom e é bonito,
e nos traz muita alegria!

Com meus versos eu transponho
o patamar da emoção,
pois é nos versos que ponho
a minha imaginação!

Um novo mundo, eu desvendo,
como em toque de magia,
e vejo sempre, nascendo
meu mundo de fantasia.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XIX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2004.

Contos de Alvorada – Histórias da nossa cidade (Prazo: 22 de Abril)


Coletânea do Clube dos Escritores de Alvorada.

Com o patrocínio da Serigrafia Porto Screen e apoio da editora meia-noite, o CLUBE DOS ESCRITORES DE ALVORADA vai lançar mais uma coletânea. Depois de seis outros livros de participação nacional, vamos lançar mais esta coletânea impressa, com a divulgação nas redes sociais.

Desta vez, vamos escrever textos em prosa (contos e crônicas) cenarizados na nossa cidade. Qualquer história que se passe com personagens ou cenários em Alvorada, fictícia ou não, será lida neste próximo livro que contará com participação livre de autores de nossa cidade. Qualquer autor poderá participar da coletânea, desde que sua história se passe em qualquer época de Alvorada.

Queremos incentivar a produção literária de nossa cidade, que sabemos ser enorme, e tentar encontrar algumas maneiras de fazer a interação dos literatos alvoradenses, como o CEA já fez em outras eras, sempre pretendendo reconhecer e valorizar o trabalho de autores de todo o Brasil

Regulamento

É fácil participar. Basta enviar seu texto no formulário de inscrição para a editora meia-noite, seguindo as indicações deste regulamento até 22 de abril de 2021.

A inscrição é online e gratuita.

O importante será mostrar uma boa narrativa literária, sem tendências políticas, religiosas ou que de alguma forma façam apologia ou ofendam a grupos, a lei brasileira ou nossa língua culta.

Bastará informar os dados solicitados. O texto deverá constar no local indicado. A editora meia-noite fará a configuração final para o livro e todos autores terão uma amostra antes da impressão.

Após preencher o formulário, bastará clicar em ENVIAR, e esperar a confirmação por um de seus contatos. Se preferir, poderá usar outros meios de comunicação.

Cada autor é dono de seu devido texto devendo por ele se responsabilizar quanto a criação, tendo o pleno direito de autoria intransferíveis.

A ideia de nossas publicações é a de que mais pessoas escrevam e outras muito mais leiam.

Nosso custo inicial será bancado pela Serigrafia Porto Screen, que não está pensando em ficar rica com as publicações (rs) e sim, ajudar os autores iniciantes a mostrarem seus trabalhos para o maior número possível de leitores. E divulgar nosso trabalho para o Brasil inteiro.

Cada escritor receberá um exemplar da coletânea, como forma de retribuição pela sua participação, que será entregue com frete custeado pelos organizadores.

Os direitos de publicação ficam automaticamente cedidos para o Clube dos Escritores de Alvorada com o envio do material para a publicação da coletânea.

Ao submeter seu trabalho para apreciação, tenha o cuidado de manter seu endereço eletrônico ativo para contatos sobre o material enviado e atualizações do nosso projeto. Seus contatos sociais também serão úteis.

Os textos passarão por edição dos responsáveis pela editora meia-noite e qualquer alteração será submetida à avaliação e aprovação do autor, antes de sua publicação, bem como a preparação de texto e revisão gramatical.

Nenhum autor será obrigado a comprar qualquer quantidade de livros. Se algum dos participantes puder, querer, poderá encomendar exemplares pelo preço de custo.

E aguarde:

Nossa próxima publicação, já tem até tema: Poesias em Alvorada.

Qualquer um que tenha uma ideia parecida, ou melhor, e que queira compartilhar, nós sempre estaremos prontos para continuar sentindo o cheiro de livro novo.

Não esqueça de baixar o formulário de inscrição. Ele é o passaporte para a sua participação. Click aqui

Siga o blog do CEA para acompanhar as notícias dos próximos projetos.
https://clubedosescritoresdealvorada2.blogspot.com/

editora meia-noite
editorameianoite@gmail.com
Alvorada – RS

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 38) Receita rápida

O LUIZÃO BOCA ZANGADA chega no escritório de sua advogada, às nove horas em ponto, cumprimenta a secretária Maria do Carmo e revela, sem mais delongas, o motivo da sua presença:

— Bom dia, dona Maria do Carmo. Preciso urgentemente falar com a minha advogada. Por favor, é muito importante. Diga a ela que estou aqui na recepção e, se puder me atender agora, agradecerei.

Dona Maria do Carmo, a secretária, está com o rosto entristecido e a voz embargada. Toda ela é uma angústia de proporções gigantescas:

— Bom dia, seu Luizão. A doutora Efigênia não poderá mais atendê-lo...

Luizão Boca Zangada se queda pasmo e interrogativo:

— Como não? Eu marquei com ela na sexta-feira retrasada. Houve um problema, precisei faltar ao nosso encontro. Liguei para a casa dela, no mesmo dia, e ela me disse que eu poderia vir hoje cedo.

De repente a Maria do Carmo começa a chorar copiosamente:

— Seu Luizão, infelizmente...

Luizão Boca Zangada não deixa que a funcionária complete o que tem a dizer. Interrompe:

— Dona Maria do Carmo, veja bem. Me escuta. Estou em dia com os honorários. Nada devo à doutora Efigênia... É um caso novo... Caso novo...

Com toda paciência a garota tenta explicar:

— Seu Luizão... A doutora..

Todavia, o Luizão parece por demais irritadiço e fora de si:

— Dona Maria do Carmo, não tem mais nem menos. Vá lá dentro e diga para a doutora que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Eu...

Desta vez, a atendente corta a conversa pelo meio:

— Seu Luizão, a doutora Efigênia morreu neste sábado. Nos deixou, a todos, comovidos e sem ação. Como pode perceber, a grosso modo, nos pegou de calças curtas. Sinto muito...

Luizão Boca Zangada resmunga alguma coisa que ninguém entende, dá meia volta e vai embora.

Dia seguinte, mesmo horário, está ele, de volta, ao escritório. Ao chegar, cumprimenta as pessoas sentadas na recepção, se serve de um cafézinho e encara a bela recepcionista:

— Bom dia, dona Maria do Carmo. Como lhe disse ontem, careço urgentemente falar com a minha advogada. Por favor, é muito importante. Diga a ela que estou aqui e, se puder me atender agora, agradecerei...

Maria do Carmo pede licença a uma cliente com uma bebê de colo, encara o Luizão Boca Zangada e, calmamente, volta a esmiuçar o que ele sabia desde o dia anterior:

— Seu Luizão Boca Zangada, infelizmente a doutora Efigênia não poderá lhe atender. Ela...

Luizão Boca Zangada perde a esportiva e se enfurece:

— Dona, não quero saber. Não tem mais, nem menos. Vá lá dentro e diga para a doutora que tenho urgência em falar com ela... É um caso novo... Não saio daqui hoje...

A pacienciosa tenta, de novo, com toda calma, definir o infortúnio que pegou a todos  de surpresa:

— Seu Luizão, Seu Luizão, como lhe disse ontem... Está lembrado? A doutora Efigênia faleceu...

— Como é que é?

— A doutora Efigênia não está mais entre nós...

— Como não? Eu marquei com ela na sexta-feira passada. Ela me disse que eu poderia vir. Eu vim. A senhorita me enrolou e, agora, de novo, me vem com este papo furado...

— Seu Luizão, como lhe disse ontem, e volto a repetir hoje. A doutora Efigênia partiu. Sinto muito, sinto de verdade... Estava explicando a esta senhora, quando o senhor chegou...

— Não é possível. Na sexta-feira ela...

Precisa a criatura repetir, em meio a um suor de angústia que lhe molha as têmporas (apesar do ar condicionado ligado), o que havia dito no dia anterior, para que o Luizão Boca Zangada entendesse. Apesar disto, o imbecil vai embora abespinhado, batendo a porta de vidro que guarnece a sala de espera.

Quarta-feira, nove horas em ponto, o hall cheio. Entra, de novo, o Luizão Boca Zangada, como um furacão. Desta feita, sem cumprimentar ninguém. Vai direto ao balcão e vocifera:

— Dona Maria do Carmo, aqui estou em carne e osso. Rogo que vá lá dentro agora e diga para a doutora que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Só saio daqui depois que me entrevistar com ela. Não quero saber de lero-lero. Vai... Vai... Não tenho o dia todo... Trouxe para ela um caso novo...

Assustada com os modos brutalizados, a Maria do Carmo se levanta da sua cadeira e encara o ranzinza parado a sua frente:

— Seu Luizão, pelo amor de Deus. A doutora Efigênia morreu. Disse isto ontem ao senhor e na segunda também. E torno a repetir, agora e sempre: a doutora Efigênia veio à óbito.

Luizão Boca Zangada bate fortemente na superfície da bancada tentando intimidar a funcionária:

— Veio à quê?

— À óbito, seu Luizão. À óbito. A doutora Efigênia morreu. Morreu...

Luizão perde as estribeiras e encara as pessoas que ocupam o ambiente. Grita:

— E toda esta gente que aqui está? O que me diz, qual a explicação que me dará em vista disto?

Sem perder a serenidade, Maria do Carmo repete, pela milésima vez, a triste notícia:

— A doutora Efigênia, seu Luizão, morreu... Morreu...

Estabanado, derrubando um vaso de plantas, o anormal sai da sala, e, desta feita, quase põe abaixo a porta envidraçada de acesso ao ambiente.

Quinta-feira, nove horas em ponto, a sala se encontra como nos dias anteriores, superlotada. A Maria do Carmo segue atendendo, devolvendo documentos, fazendo a restituição de valores recebidos. Eis quem surge, do nada... Luizão Boca Zangada. Ao vê-lo entrar sem modos e com ares de poucos amigos, se adianta e peita o inconveniente:

— Seu Luizão, de novo? Pelo amor de Deus, não acredito! Será que joguei pedras na cruz?

Luizão não dá tratos à bola:

— Dona Maria do Carmo, aqui estou, mais uma vez, nos seus calcanhares. Não vou pedir, vou intimar a senhora. Falarei uma vez só. E não pretendo repetir. Vá, pois, lá dentro, agora — eu disse agora — e diga para a doutora Efigênia, que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Lembrando à sua cara de espantada, que somente sairei daqui depois que ela me encarar frente a frente. Hoje estou disposto a tudo. Não quero saber de desculpas. Vai logo, o que está esperando?

Encurraladamente acuada, Maria do Carmo se debulha em lágrimas. Algumas senhoras que aguardam a vez, acorrem a atendê-la, em face do estado emocional deplorável em que a moça se encontra.

— Senhor – diz uma cliente — Sinto muito dizer, mas a doutora Efigênia morreu no sábado. Estamos aqui pegando a nossa papelada para levarmos para outro defensor.

Um idoso entra na discussão e procura, de igual modo, acalmar os ânimos do irrequieto travesso:

— Sentimos muito, senhor. Todos nós aqui sentimos muito. Fomos vítima do inevitável. A amável e querida doutora Efigênia, nos deixou...

Luizão Boca Zangada, desfere um soco, ao oposto da primeira vez, não na bancada, desta feita, na parede ao lado da mesinha de café. Não contente, atira na cesta de lixo um amontoado de copinhos plásticos, onde os clientes da extinta podiam se servir de uma bebida quentinha, feita na hora:

— Morreu? Morreu? Como esta desgraçada morreu? E o meu processo?

À imitação das vezes em que ali esteve, o chato de galochas sai raivoso e encrespado, como se não entendesse o que acontecia.

Sexta-feira, amanhece chovendo. À cântaros. Apesar disto, o espaço destinado aos clientes da doutora Efigênia, se faz superlotado. De resto, tudo em paz, em ordem, até que o relógio assinala nove horas em ponto. Trajando capa de chuva preta e guarda chuva, adentra, no maior estardalhaço, o Luizão Boca Zangada.

Deseducado, como de costume, e soltando fogo pelas ventas, sem cumprimentar quem ali chegara antes dele, encosta direto na beira da pobre e indefesa Maria do Carmo:

— Dona Maria do Carmo... Senhora, os cambaus... Maria... Vou lhe dar dois minutos para ir lá dentro e chamar a sua patroa, a maldita doutora Efigênia. Repare, um minuto acabou de passar... Não ande, voe...

Maria do Carmo faz, então, sinal para um homem alto, vestido num elegante terno preto que se acha encostado ao lado da porta do banheiro. O seu corpo atlético lembra um desses armários embutidos de doze portas com maleiro e tudo:

— Seu Eurico, seu Eurico, por favor...

O seu Eurico prontamente se aproxima, todo volumoso, na frente da pequena Maria do Carmo.

— Pois não, senhora!

— Este é o senhor do qual falei. — aponta o Luizão Boca Zangada — Veio aqui a semana inteira e cansei de explicar à ele que a doutora Efigênia não poderá atendê-lo, em face do... O senhor sabe o motivo, da pobrezinha ter nos enlutado. Como pode ver, acho que precisará levar um papinho mais sério com o nosso teimosinho...

O grandalhão encara o Luizão Boca Zangada de uma maneira tão fria que todos os presentes certamente alimentaram a mesma impressão. Aquele olhar do segurança parece ter varado o fundo da alma pegajosa do buliçoso fanfarrão:

— Pois não, cavalheiro? Em que posso ajuda-lo?

— Com quem estou falando? Não me lembro de ter topado, pelo menos, até agora, com a sua carinha de mau. Quem é o prezado?

— Um amigo da doutora Efigênia. Antes que fale alguma coisa, até onde sei, a senhorita Maria do Carmo lhe passou os devidos esclarecimentos a semana toda.

Luizão Boca Zangada, por seu turno,  arrosta o brutamontes, sem se deixar ser intimidado pela energia prodigiosa que emana de sua superioridade. Carece esticar bem o pescoço, em face da estatura do seu interlocutor ser um pouco incomum.

— Verdade. Ela me disse que a minha advogada morreu. Ora, se ela morreu, o que toda esta gente veio fazer aqui? Ela está atendendo e se nega a me receber? Saiba, seu rascunho de Torre Eiffel, que estou em dia, em dia. O senhor quer ver os recibos?

— Não quero ver nada. Se o senhor, por acaso, pagou e não deve nada, ou se pagou a mais e a senhorita Maria do Carmo disser que o senhor tem alguma soma a ser reembolsada, ou via outra, documento faltoso, que ficou para trás, por favor, pegue o que tem de pegar, ou de receber e caia fora.

E prossegue, no mesmo tom, sem mover um músculo da face carrancuda.

— A doutora Efigênia morreu, bateu as botas...

Luizão Boca Zangada, em resposta, aponta o dedo em riste para a galera ao redor:

— Morreu né? E toda esta gentalha aqui sentada? Está esperando por quem? Se a doutora Efigênia escafedeu... Até onde sei, ela trabalhava sozinha... E então, desembucha...

— Estas pessoas estão retirando seus documentos para irem procurar outro advogado. Deu para entender?

— Não dei, nem vou dar. Ficou louco? “Ta me tirando?”.

— Senhor, um conselho. De novo. Pela derradeira vez. Pegue seus documentos e se tiver dinheiro, rogo que resgate e, da mesma forma, depois de tudo nos conformes, vaza daqui. Fui claro, ou quer que eu desenhe?

Em continuo, o robusto pergunta à Maria do Carmo (para que todos o escutem) se aquele mala sem alça tinha dinheiro a ser devolvido ou documentos.

— Nada, seu Eurico. A doutora acertou tudo com ele. Aliás, aqui está a pasta com todo o andamento do caso que ela resolveu para ele. O processo deste senhor está finalizado faz tempo.

— Ouviu, meu camarada. Nada mais resta a fazer aqui. Dê meia volta e evapore...

— Quero falar com a doutora...

— Quantas vezes terei que dizer para o senhor que a sua advogada, a doutora Efigênia morreu?

Rindo a mais não poder, e exprimindo uma audácia tranquila, o Luizão Boca Zangada tenta passar, num gesto carinhosamente revestido de uma ironia vulgar, a mão esquerda em torno do rosto carrancudo do impenetrável segurança.

— A doutora morreu?

— Morreu, morreu... Repete o segurança, meio pê da vida e prestes a encaçapar o sujeito.

— MORREU... M...O...R...R...E...U!...

— Desculpe, meu lindo — completa Luizão Boca Nervosa em voz tronituante. A doutora morreu. Desculpe, de verdade, mas é que eu adoro, amo de paixão ouvir isto! De paixão, está me compreendendo? A doutora morreu... Uau! Que ótimo... Que legal... A doutora, a minha doutora morreu... Viva, viva, a doutora virou defuntaaaaaa...

A datar, porém, deste dia em diante, o Luizão Boca Zangada virou as costas e nunca mais apareceu no pedaço.

Fonte:
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘Comédias da vida na privada’ – Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021. Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Varal de Trovas 490

 


Leon Eliachar (A Experiência)

Eu era a cobaia. Quando subi na balança, depois de um regime apertadíssimo de dois anos e meio, estava pesando “menos 48 quilos”. Era a primeira vez que via um homem pesar “menos” — e esse homem era eu. Pra subir na balança eu precisava descer: colocaram no meu pé uma espécie de âncora que me puxava pra baixo. Pra sair, era só destarrachar a corrente que eu saltava. Foi o que fizeram, quando comecei a subir. Lá em baixo, os cinco cientistas esfregavam as mãos, cada vez menores. Uma sensação de alívio, à medida que me afastava deles. Não sentia o meu corpo e, pra ser franco, nem sei mesmo se ainda tinha corpo, pois não era possível pesar “menos” e ainda ter um corpo. Tentei me apalpar, mas não tinha forças pra mover os braços. Só a muito custo percebi que nem sequer tinha braços. Isso de não ter braços foi o que mais me preocupou — até eu descobrir que também não tinha pernas. Nem tronco. Nem pescoço, incrível, eu não tinha mais eu. Era um absurdo. Como é que eu estava pensando? Pelo menos devia ter cabeça —- mas como verificar, se não podia perguntar a ninguém e os cientistas ficaram lá em baixo, cada vez mais pequenininhos e cada vez menos cientistas? Tentei me lembrar do primeiro dia em que me apresentei como voluntário e para isso usei o sistema do “flashback”, muito usado pelo cinema americano. Tudo foi ficando fora de foco e quando começou a ficar nítido, o tecnicolor estava impecável — e eu sempre imaginei que só se pensava em preto no branco.

— Voluntário 1.335!

Era eu. Aquela voz gritando o meu número nunca mais me saiu da cabeça. E dizer que a cabeça era a única coisa que me restava. Acredito que sim, porque sem ela eu nunca poderia pensar tudo isso que vou pensar. Eu estava num desses laboratórios de pesquisas cósmicas e aceitei sentir as emoções de uma cobaia para um novo invento. Ouvi dizer que estavam tentando lançar no espaço um homem sem máquina e isso era um bom assunto para uma grande reportagem. E os outros 1.334 voluntários, que fim levaram?

— Está com medo?

Lembro-me que sorri quando desafiaram a minha vaidade. Achei que seria uma grande reportagem e pensei na cara incrédula dos diretores do jornal, quando eu chegasse à redação com uma série de artigos: “eu voltei do espaço”. E se eu não voltasse, como mandar a reportagem? Pensei num novo título: “eu não voltei do espaço”, primeira e última de uma série. Mas quem escreveria? Não pude nem terminar de raciocinar: um homem barbado me olhou dos pés à cabeça (bons tempos aqueles em que eu ainda tinha pés) e disse categórico:

— O senhor será submetido a um severíssimo tratamento de despersonalização material. Está disposto?

Não tive tempo pra decidir. Dois braços fortes me carregaram e me colocaram dentro de um cofre de vidro. Do lado de fora, dezenas de olhos faiscavam de curiosidade pra ver o que acontecia. O Dr. Krutschneider, ou Kafinotch, não me lembro bem, chegou a falar em desintegração do corpo humano como o primeiro passo para a nova conquista da ciência.

Nessa altura dos acontecimentos eu só pensava na reportagem, mesmo porque não havia outro remédio, pois do lado de fora eu tinha a impressão que ninguém ouvia nada.

— Ligue o comutador n.° 3!

— Pronto.

— Comutador n.° 4!

— Pronto.

— Comutador n.° 5.

Até aí eu ouvia tudo o que diziam, nitidamente.

Não sei se chegaram a ligar o comutador n.° 6 porque quando me tiraram do cofre me disseram que eu já estava lá há um mês. Pedi uma Coca-cola, a única coisa que me ocorreu pedir, e fiquei sabendo que ali era o único lugar do mundo onde não havia chegado a Coca-cola. Fantástico. Se eu contasse isso na reportagem, ninguém acreditaria. Me levaram para um salão todo branco e me submeteram a um processo de desidratação e, logo em seguida, de descalcificação, o que era muito perigoso, pois estavam fazendo de mim um sujeito descalcificado: qualquer errinho de revisão, seria fatal para a minha reputação.

— Tire a roupa.

Tirei.

— Tire o corpo.

— Como?

— Tire o corpo.

Vontade eu tinha de tirar o corpo fora, mas de que jeito? Dois enfermeiros se aproximaram com uma máquina de calcular. Na contagem dos meus glóbulos vermelhos e brancos houve um saldo de 0,00000000002 a favor dos vermelhos e, pra acertar as contas, foi preciso contratarem o maior contabilista do país pra tirar a diferença. Segundo a teoria do Dr. Germigold, que estava fazendo um estágio ali, pois ganhara uma bolsa de estudos, o meu desaparecimento seria feito consubstancialmente e quando lhe perguntei o que significava isso, ele limitou-se a me olhar com um ar de superioridade, como quem quer evitar de me chamar de ignorante.

— Ignorante!

Mas não evitou. Foi justamente aí que comecei a perder rapidamente o peso. Quando cheguei a “zero grama” era como se não existisse mais. Não tinha fome, não tinha sede e ainda que tivesse não tinha por onde engolir, pois a minha garganta havia sumido. Ainda assim, eles não ficavam satisfeitos: queriam que eu pesasse menos do que menos.

Um ano e meio depois eu não sentia mais o corpo, só sentia a cabeça. Pedi um comprimido e me disseram que isso de nada adiantaria pois o comprimido não tinha por onde circular. Me imaginei só cabeça, com manchetes nos jornais e fotografia do meu rosto: “foi visto em Belo Horizonte a cabeça voadora”. No princípio ninguém acreditaria, porque em Belo Horizonte acontece de tudo. Mas depois minha cabeça seria vista no Alasca, na Indochina, no Afeganistão, no Meyer e em Cabo Canaveral. Provavelmente eu seria fotografado pelo João Martins, só pra meter inveja nos discos voadores. Haveria enquetes a meu respeito: “você acredita na “cabeça voadora”?”

O IBOPE faria pesquisas e concluiria que 57% dos homens já haviam visto a “cabeça voadora”; 24% das mulheres também; 13% das crianças tinham pavor e 0,6% se negariam a responder. Possivelmente um vespertino americano ofereceria cem mil dólares pela minha cabeça — “viva ou morta”.

Parece que descobriram que eu estava pensando demais. Só pode ser isso, do contrário não lhes ocorreria nunca me submeterem também à prova de desmemorização. Afinal, se só me restava a cabeça que é que eles queriam que eu fizesse com ela? A última dúvida que tive foi se já haviam mandado o meu corpo ao espaço ou se pretendiam mandar a minha cabeça, depois de darem sumiço no meu corpo. Que pretendiam eles? Se fizessem desaparecer também a cabeça nada lhes restaria pra mandar ao espaço.

Assim não era vantagem: mandar nada ao espaço era muito simples, era o mesmo que não mandar pois não havia o que mandar. Quem estaria falhando: os cientistas, que já estavam perdendo a minha cabeça ou eu que já estava perdendo a cabeça dos cientistas? O certo é que se me fizeram ficar sem memória como é que não conseguiam me impedir de raciocinar? Outro coisa: e quem poderia garantir que eu estivesse raciocinando direito? Vou ser franco: este, aliás, foi o meu último raciocínio lógico, porque daí em diante não consigo me lembrar de mais nada. Absolutamente nada. 
 
Foi quando perdi a cabeça.

Fonte:
Histórias do Acontecerá -1. RJ: GRD.