sábado, 10 de abril de 2021

Carla Rejane Silva (Ela só queria ser feliz, nada mais...)

Ela queria ser feliz. De qualquer maneira. Feliz! Não sabia como, nem quando, qual dia e qual hora. Ficava então, amuada, aperreada, chateada, sem chão, sem cabeça... As coisas boas não sorriam para seu lado, não ligavam para seu rosto carrancudo, tampouco para o seu eterno ar de preocupação.

Ela queria ser feliz, custasse o que custasse, não importava. Queria, apenas ser feliz. Sair fora de seu “apê”, sentar no banco de pedra em frente à portaria do seu prédio e espiar... Espiar longamente para todos os lados, e depois, para o infinito.

O céu haveria de lhe dar um sinal, um toque, dizer alguma coisa em seu ouvido que lhe fizesse ser feliz. Entretanto, entrava dia, saia noite, entrava noite, saia dia e nada. Absolutamente coisa alguma acontecia. Teria esta ausência de coisas novas a  ver com a pandemia? Qual o quê!

A pandemia não estava nem aí para ela. Ela se cuidava. Usava máscaras, passava álcool em gel. Trocava toda hora de roupas, tomava de quatro a cinco banhos por dia. Nessas lavagens todas, asseava a alma, esfregava as manchas do coração, ensaboava as tristezas  e deixava que tudo o que fosse de ruim e danoso se perdesse pelo ralo as suas infelicidades e ‘desalegrias’.  

Então, aconteceu! A Felicidade chegou. Sorrateira, alegre, e febril, ela chegou.  Sem dizer nada. Simplesmente chegou. Bateu na porta. Uma, duas, vezes. Ela abriu. E quando a porta se escancarou, seu pequeno espaço vazio se fez de um encantamento inebriante.

Seu sorriso voltou, seus olhos se contaminaram com um sorriso  perfeito que invadiu toda a sua alma entristecida. Ela, até então, solitária, dentro da sua solidão oca e vazia, se transmudou.

Tudo ao seu entorno se fez de uma paz acolhedora, bonita, cativa... Envolvente...  E ela, ela se abriu inteira, em festa. E a festa foi tão perfeita, tão fenomenal, que seu coração dançou a noite inteira embalada por uma música que vinha diretamente dos olhos maviosos de Deus.    

Fonte:
Texto enviado por Aparecido R. De Souza

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Moacyr Scliar (Uma casa)

Um homem estava chegando ao fim de sua vida sem ter comprado uma casa. Na segunda-feira tivera um ataque de angina; perguntou ao médico se era grave e quanto tempo lhe restava de vida.

— Quem sabe? — disse o doutor secamente. — Talvez uma hora, talvez dez anos.

O homem se impressionou e pôs-se a pensar, o que não fazia há longo tempo. Porque estava aposentado. Levantava-se, lia o matutino, à tarde, o vespertino, e à noite olhava televisão, coisas que embalavam suavemente seu espírito, sem mobilizá-lo em excesso. Órfão e solteiro, não tinha maiores emoções, nem cuidados. Vivia num quarto, de pensão, e a senhoria — boa mulher — velava por tudo.

Mas então, vê o homem sua vida extinguir-se. Lavando-se, ele observa a água escoar pelo ralo e pensava:

“É assim.” Enxuga o rosto, penteia-se com cuidado. “Ao menos uma casa.” Qualquer coisa: um chalé, um apartamento minúsculo, um porão que seja. Mas morrer em casa. No seu lar.

O corretor imobiliário mostra-lhe plantas e fotografias.

O homem olha, impaciente. Não sabe escolher. Ignora se precisa de dois quartos ou de três. Uma tem até ar-condicionado, porém ele não está seguro de viver até o verão.

De repente, encontra: “Esta aqui. Fico com ela.” É um velho bangalô de madeira; um fóssil, com suas beiradas coloniais e a pintura desbotada.

“É longe...” — pondera o corretor. Longe!.. O homem sorri. Assina o cheque, pega as chaves, toma nota do endereço e sai.

A tarde vem caindo e o homem move-se entre pessoas. Caminha ligeiro e contente: vai mudar-se para a sua casa. Na praça estão os carroceiros. Conversa com um deles em voz baixa, acerta a hora e a paga.

O carroceiro ajuda-o a transportar malas e quadros. E já é noite fechada quando eles se põem a caminho. O homem está silencioso; nem sequer se despediu da dona da pensão. Limitou-se a dar o endereço ao carroceiro e não proferiu mais palavra.

A carroça avança rangendo pelas ruas desertas. Embalado pelo movimento, o homem cochila, e tem sonhos, visões ou lembranças. Canções da infância ecoam longínquas, ele ouve a mãe chamá-lo para o café. As estrelas cintilam na quieta noite de inverno.

— É aqui — resmunga o carroceiro. O homem olha: é a mesma casa que viu na fotografia. Levam as coisas para dentro. Num impulso, o homem agarra a mão do carroceiro, deseja-lhe felicidades. Tem vontade de convidá-lo para entrar, para que tomem juntos o chá; em casa.

Mas não há chá; nem luz. O carroceiro recebe o pagamento e parte, tossindo.

O homem fecha a porta e dá duas voltas à chave. Acende uma vela, estende o colchão no assoalho empoeirado e deita, cobrindo-se com o sobretudo.

As tábuas estalam, ele ouve sussurros. Estão todos aqui, pai, mãe, tia Júlia e até o avô, com seu risinho irônico.

O homem não tem medo; seu coração é um pedaço de couro seco, onde o sangue já não penetra. Bate automático no ritmo de sempre. E então a vela se apaga, ele dorme e já é manhã.

É manhã; mas o sol não surgiu. Ele abre a janela; uma luz fria e cinzenta infiltra-se na sala. Nem é luz de sol, nem é luz de lua. Mas clareia e ele pode ver.

Uma rua passa diante da casa. Um pedaço de rua, que surge do nevoeiro e termina nele. Não há casas; pelo menos, ele não consegue vê-las. Diante do bangalô há um terreno baldio, onde descansa, meio coberto pela vegetação, o esqueleto enferrujado de um velho Ford.

De repente, um animal pula do terreno baldio para a estrada. É um bicho estranho: parece um rato, mas tem quase o tamanho de um cavalo. “Que bicho será?” — pergunta-se o homem, irritado. No ginásio, gostara muito de zoologia. Estudara em detalhe o ornitorrinco e a zebra; os roedores também. Quisera ser zoólogo, profissão que, como o bom senso sobejamente demonstra, não existe.

Esquisita emoção tem o homem ao ver o curioso espécime. E nem bem se recuperara, quando ouve alguém assobiando. Da neblina vem saindo um homem. Um homem baixo e moreno, com cara de índio. Caminha devagar, batendo nas pedras com um cajado; e assobiando sempre.

— Bom-dia!

O nativo não responde; para, ficou olhando e sorrindo.

Um tanto desconcertado, o homem insiste:

— Mora por aqui?

O outro continua a sorrir; murmurou algumas palavras em idioma
bizarro e desaparece.

“É um idioma bizarro” — pensa o homem. Então, é outro país. Bem
que o corretor lhe avisara! Mas isso fora há longo tempo.

O homem corre para o bangalô, sobe as escadas velozmente (“E não me dá angina!”), galga os degraus do torreão e abre a janelinha. Já a névoa se dissipava e ele pode ver. Rios brilhando ao longo das planícies, lagos piscosos, florestas imensas, picos nevados, vulcões fumegantes. Nos portos, as caravelas atracadas, os marinheiros subindo pelos mastros e soltando as bujarronas. E o mar; muito longe.

Nem se escuta o bramir das vagas contra os rochedos.

O homem suspira.

“Sim, é outro país” — pensa — “e tenho de começar de novo”.

Seriam dez horas da manhã — se é que o tempo ainda existia — e a
temperatura estava agradável.

O homem começa tirando o sobretudo.

Fonte:
Moacyr Scliar. Melhores contos. 
(Seleção de Regina Zilbermann) Edição digital: Global, 2012.

Alvitres do Professor Renato Alves - 4 -

30.
Escrita num pequeno cartaz, a trova abaixo foi colocada sobre a urna mortuária de João Freire Filho. Segundo uma de suas irmãs, ela foi feita logo após o seu primeiro AVC, pois ele julgava ter chegado sua hora. Enganou-se, para a nossa alegria, que ainda pudemos desfrutar o tesouro de sua companhia por mais quatro anos. Enganou-se também na modéstia de seu autojulgamento, porque, na realidade, foi um excelente poeta e trovador.
    
Fui poeta... trovador...
Mas não fui tão bom assim!
Por isso, peço o favor
De não chorarem por mim!
João Freire Filho
(21/6/08)

3l.
Em criança, para eu poder ver o desfile dos blocos e Escolas de Samba na Avenida (Nos anos quarenta o carnaval carioca ainda era do povo...), meu pai me punha nos ombros. Para mim, aquilo era um deleite!... Vejam, na trova abaixo, como a sensibilidade do trovador conseguiu captar e traduzir esta sensação tão gostosa!
    
Pra ver o mundo de cima
da lembrança não me sai,
torre alguma se aproxima
do cangote do  meu pai!
Moacyr  Sacramento


32.
Depois de um dia inteiro de indisposição, o poeta José Lucas de Barros quis dar a boa notícia da melhora em sua saúde aos apreensivos trovadores que hospedava na casa de Pirangi. Ainda na cama, ao acordar, fez esta trova para recitá-la no café da manhã. Mesmo improvisada, a trova saiu com ótima qualidade e duas expressivas antíteses: ontem/hoje, compra/venda.
    
Nada de dor nem de tédio,
sinto quase a juventude:
Ontem, comprando remédio;
hoje, vendendo saúde!
José Lucas de Barros


33.
Nesta bela trova, vencedora nos  Jogos Florais de Niterói em 2007,  vejam como a sensibilidade do trovador retoma a metáfora de Deus-poeta, que a cada manhã reescreve o “poema da alvorada” para presentear Seus  filhos.

 De exuberância suprema,
que nos encanta e extasia,
cada alvorada é um poema
que Deus compõe todo dia.
João Costa


34.
O SÍMILE (ou comparação) é uma figura de linguagem semelhante à metáfora, porém bem mais direta. Ela exige apenas o uso claro de uma partícula comparativa (como, qual, tal, etc).   Na trova abaixo, por exemplo, o poeta se compara à cana, da qual se extrai o doce caldo com a “dor” do esmagamento. Assim é também o poeta: quanto mais sofre, mais produz doçura em seus versos...

Veja como o uso desta figura tão simples no 1º verso propiciou a preparação para o achado contido no belo  fecho de ouro dos 3º e 4º versos.

Sou como a cana do engenho...
Quem dera que assim não fosse!
Quanto mais dores eu tenho,
o meu cantar sai mais doce!
Luiz Otávio


35.
A língua é o instrumento de expressão da arte literária e, por consequência, da trova, um de seus gêneros poéticos.  Por isso, a correção gramatical é uma preocupação constante dos trovadores e, às vezes, serve até de tema para a criação de algumas trovas.  

Observem que os erros na pronúncia da palavra “poliglota” e na flexão de plural da palavra “degrau” constituem o ponto central dos achados das trovas humorísticas abaixo:

Sempre contando lorota,
diz que fala até chinês,
e, ao dizer-se “poligrota”,
assassina o português.
Maria Nascimento S. Carvalho

"CUIDADO COM OS DEGRAIS!"
- dizia o aviso ao freguês.
E ninguém tropeçou mais...
A não ser no português!
Renato Alves


36.
Calmamente vem o rio deslizando em seu leito... De repente, suas águas agitam-se, tornam-se esbranquiçadas, e ele despenca em queda livre, oferecendo-nos um imponente espetáculo visual como um véu de noiva. Mais adiante, retoma a calma e continua tranquilamente a fluir no seu curso... Esta é a descrição de uma cena linda, mas prosaica, como qualquer pessoa comum a vê.

Observemos, agora, como a sensibilidade de um poeta-trovador recria a mesma imagem  visual, através de bela metáfora no primeiro verso para compor uma linda trova:

Vestem-se as águas de prata,
saltam no espaço vazio.
Findo o show da catarata,
sereno refaz-se o rio...
A. A. de Assis


37.
O importante poeta pré-modernista brasileiro, Augusto dos Anjos,  é conhecido por transmitir em sua poesia uma reflexão amargurada da vida. Tornou-se muito popular principalmente por usar temas  inusitados e bem sombrios. Por isso, passou a ser  chamado de “O poeta da Morte”.  

Reparem que, na trova abaixo, dentro desta mesma linha temática do pessimismo, o poeta cria uma metáfora inusitada onde um “coração-coador” filtra as alegrias da vida e retém todas as tristezas:

Pobre de mim! Por desgraça,
meu coração é um coador...
Nele, o riso escorre... e passa...
E fica tudo que é dor...
Augusto dos Anjos


38.
A metáfora é uma figura de linguagem que consiste numa  espécie de comparação implícita. Por mais simples que seja, a metáfora sempre valoriza o texto poético onde é usada.
 
Vejam, no exemplo abaixo, como as palavras “chegada”, significando nascimento, e “partida”, significando morte, valorizaram o achado da trova  onde são cotejadas a dor da mãe (no nascimento do filho) e a dor do filho (na morte da mãe).

Mãe, se dor fosse julgada,
não sei qual a mais doída:
Se a que te dei na chegada,
se a que me dás na partida.
José Fabiano


Fonte:
Textos/trovas enviadas pelo prof. Renato

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) A versatilidade da crônica como gênero literário

O termo crônica tem origem no latim “chronica” e do grego “Khrónos” (tempo). No início do cristianismo, significava o relato dos fatos em sua ordem cronológica. Com o surgimento da imprensa, no século XIX, a crônica começou a aparecer nos jornais, sendo que a primeira foi publicada no Journal des Débats de Paris, em 1799.

Até hoje, a crônica é um tipo de texto muito comum em jornais e revistas, além dos sites e blogs. São geralmente mais compactos e costumam ser narrados em primeira pessoa, o que dá um ar mais pessoal e próximo do leitor.

A crônica é um dos gêneros literários mais ecléticos e, por essa razão, se apresenta de várias formas:

>> Descritiva: explora a caracterização de seres animados e inanimados em um espaço vivo como uma pintura, precisa como uma fotografia ou dinâmica como um filme publicado;

>> Narrativa: se baseia em uma história, assim como o conto. O que difere é que na crônica existe a opinião do autor embutida. Pode ser narrada em primeira e na terceira pessoa;

>> Dissertativa: opinião explícita, com argumentos mais sentimentalistas do que racionais. Escrita tanto na primeira pessoa do singular quanto na do plural;

>> Narrativo-descritiva: descreve e mostra fatos do dia a dia. Narrada em primeira na terceira pessoa do singular;

>> Humorística: tem linguagem informal e é marcada pela ironia e pela comédia;

>> Lírica: com uma linguagem poética e metafórica, comunica emoções, sentimentos como paixão e saudade, por exemplo;

>> Poética: apresenta versos poéticos em forma de crônica, expressando sentimentos e reações de um determinado assunto;

>> Jornalística: apresenta notícias ou fatos do cotidiano. Pode ser policial, desportiva etc.;

>> Histórica: baseada em fatos reais ou históricos;

>> Crônicas de viagem: narra experiências de viagens vividas pelo autor.

A crônica pode não ser o gênero mais aclamado pela Literatura, mas a verdade é que ela atrai um grande número de fãs pelo mundo. Escritores encontram nela um lugar de conversa com o seu público, em que podem se expressar sem tantas formalidades e regras. Leitores veem na crônica uma oportunidade de estarem mais próximo dos escritores e de saber o que pensam, como se estivessem conversando com eles.

Muitos escritores conseguem se destacar escrevendo este gênero. Um exemplo disso é Mia Couto, um escritor que transita por vários gêneros e que escreve crônicas aclamadas pelo público do mundo todo. Outro escritor conhecido pelas suas crônicas é o Luis Fernando Veríssimo, que usa o humor para tratar de temas do cotidiano com maestria.

Para falar sobre crônicas, entrevistamos o escritor Rubem Penz, professor da Metamorfose e criador da Santa Sede, que ministra cursos e oficinas de crônicas. Confira a entrevista na íntegra:

Na sua opinião, quais as características da crônica que mais atraem o leitor?

A crônica seduz o leitor por diversas razões, e elas estão todas relacionadas com as exigências de seu suporte – a coluna do jornal. A primeira que destaco é a informalidade pois, em função dela, o leitor se vê próximo ao autor. Trocando confidências, até. Isso humaniza a relação, tornando-a equânime, franca, descompromissada. Verdadeira.

A segunda característica que atrai leitores é o estilo: são textos breves, fluidos, sedutores do começo ao final. Como “tomar um cafezinho” com o cronista, alguém bom de papo, é a oportunidade de colocar em dia os assuntos do momento.

A terceira é a promessa. São escritores que marcam dia e hora para o próximo encontro, para quando se comprometem em trazer outra vez pontos de vista surpreendentes e relevantes sobre algo que dialogue com a vida do leitor. Enfim, encanta na crônica a soma de relevância, estilo e informalidade.

Se a crônica pode ser considerada o meio do caminho entre o artigo e o conto, como fazer para reconhecê-la? Quais os elementos que a diferem dos dois gêneros citados?

A crônica é um texto antropofágico por natureza – permite que o autor se alimente de outros gêneros (literários ou não) e, postos em sua coluna, transforme-os em crônica. Porém, com o artigo – ou ensaio – e o conto esse fenômeno é ainda mais profundo, uma vez que carregam duas matrizes diferentes na sua própria gênese.

De um lado, os ensaios dos ingleses (como disse Vinicius de Moraes) se transformaram na crônica artigo. Nela, o escritor apresenta um ponto de vista sobre determinado tema. De outro lado, o flâneur dos franceses inspirou autores como João do Rio a contar histórias colhidas de seu trânsito pela sociedade carioca, em folhetins, retirando das tramas a oportunidade de reflexão – raiz da crônica conto.

Quando comparamos a formalidade do artigo/ensaio (filosófico ou de humanidade) e do conto (literário) com a informalidade da linguagem crônica, somos capazes de perceber com clareza as nuances que os diferenciam. Lembrando sempre: a crônica, antes mesmo de ser um “o quê”, é um “quando” e um “onde”.

Quais os escritores de crônicas que mais te inspiram?

O primeiro de todos, disparado, é Luis Fernando Veríssimo. Dele, sou mais do que leitor: sou discípulo. Sua verve humorística conversa com autores como Woody Allen na arte de criticar a sociedade de modo sutil, ferino e elegante. Além do mais, LFV é o mais criativo do gênero, marca distintiva que persigo em minha produção. Depois, elenco uma tríade formadora da crônica brasileira a partir de meados do século XX: Rubem Braga, Antônio Maria e Paulo Mendes Campos. Outros autores que movem minha inspiração são Drummond, Vinicius, Scliar e Caio F. – este desenhando os contornos da crônica intimista ao lado de Clarice Lispector. Ainda assim, procuro sempre acompanhar todos.

Que dicas você gostaria de dar para quem gosta de crônica e pretende escrever este gênero?

Em primeiro lugar, ler diversos cronistas. Então, perseguir – e encontrar – sua voz própria. Crônica é o autor, um texto com impressão digital em todas as palavras. Ela precisa ser um crime imperfeito: cheio de marcas, modus operandi e rastros para denunciar a autoria. E isso só é possível escrevendo. Muito. Por fim, criar uma rotina e uma periodicidade de produção. Diferentemente do clichê da espera pelas musas, a inspiração jamais virá até o cronista – será dele a iniciativa. E quem ajuda nisso é o prazo. Aliás, eis aí uma das grandes vantagens de cursar uma oficina de crônicas: a imperiosa necessidade de escrever sob demanda. Só isso já ensina muito!

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 15: Safadinha e ordinária

O PACHECO ESTÁ NOIVO de aliança e prestes a se casar com a coisinha mais adorável do bairro. A Puritana da Conceição. Uma moça bonita, de apenas dezessete anos, olhos verdes, alta, esbelta, os cabelos negros, repartidos, sem falar que possui um corpo escultural, de princesa (daqueles saídos dos fantásticos contos de fadas) que parece capaz de pegar fogo na hora e no lugar certos. Pacheco vai para a casa dela, todas as noites, porém, como é um homem evangélico e, acima de tudo respeitoso e consciente, não mantém relações mais íntimas com a jovem. Fica apenas nos abraços e beijos, deixando os finalmentes, para quando estiver devidamente em dia, ou seja, legalmente matrimoniado perante as sagradas leis da sua igreja e as bênçãos de Deus.

Nesta noite, os pombinhos, se acham na varanda do quarto dela, debruçados no parapeito, olhando à rua movimentada, quando cruza, em direção à pracinha da Matriz de Santa Perpétua, a Suzana Pinga Fogo. Pacheco, ao ver a cachopa, chama a atenção de Puritana.

— Amor, veja quem está passando aqui em frente!

Puritana, finge uma distração longe de ser verdadeira, dá uma espiadela breve e reconhece, de pronto, a ex-namorada de seu futuro marido.

— Não é a lambisgoia da Suzana com quem você teve um caso?

— Ela mesma, amor...

— Por quê? Está com saudades?

— Olhando para ela, me lembrei que frequentei a casa de seus pais, por quase um ano e meio...

— E daí?

— Me veio à memória o pensamento de que eu tinha, de fato, vontade me casar com ela, formar uma família, ter filhos...

Puritana, desliza os dedos pelos cabelos que lhe caem, em ondas espetaculares, até à altura da cintura.

— Por que lhe deu na telha remoer isto agora? Acaso está arrependido? Quer pedir arrego para ela?

Pacheco, carinhoso, abraça a garota.

— Não, é nada disto, minha fofa. Eu te amo. De forma alguma... quero pedir arrego ou reatar com a Suzana...

— Então...?

— No começo do nosso relacionamento eu achava ela bastante esperta e inteligente, meio tímida é verdade, mas dava para o gasto. Fiquei em dúvida quando me revelou que contou para a mãe dela —, imagine você, que doideira —, chegou ao ponto de se abrir para dona Pombinha, que sempre que a gente ia para o quarto dela, eu ficava sentado em sua cama até altas horas da noite, e que depois eu ia embora e que rolava somente uns beijinhos...

Toma fôlego e prossegue, muito sério.

— Em razão disto passei a ver nela uma pessoa meio burrinha e sem juízo... Onde já se viu falar destas particularidades logo para a mãe?

— Cá entre nós, vocês ficavam só sentados, ou...?

—... Ora, amor, às vezes eu dava umas deitadinhas. Me espichava... Mas veja bem, sem colocar a carroça diante dos bois. Melhor que ninguém, você sabe como sou e como ajo.

Faz nova pausa e conclui.

— Você tem consciência que jamais abusaria, ou melhor, fosse qual fosse as circunstâncias, euzinho me atreveria a ultrapassar o sinal, tirando algum tipo de proveito. Hoje somos noivos e logo lhe farei a minha esposa. Sua pessoa é a prova viva da minha integridade e de tudo o que estou afirmando...

Puritana se abre num sorriso meio malicioso e completa, com certo desdém na voz:

— Realmente, a sua fulaninha foi mesmo uma idiota. Bem diferente de mim, amor... Não chega nem aos meus pés...

— Por que diz isto, minha princesa?

— Porque eu não sou assim tão vulgar e nunca serei. Tampouco faria o que ela fez. A sua ex deu diploma para ela mesma de bobinha, de tola e sem experiência... O meu vizinho aqui do lado, o Gilberto, tem passado noites inteiras aqui no meu quarto, deitado aqui na minha cama, nós dois estudando para as provas do ENEM, e eu nunca disse nada à mamãe.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Varal de Trovas 492

 


Mia Couto (Conversas em camponês)


- Estamos aqui sentados debaixo da árvore sagrada do seu quintal. Pode-me dizer qual o nome dessa árvore?

- Porquê?

- Porque gosto de conhecer os nomes das árvores.

- O senhor devia saber é o nome que a árvore lhe dá a si.

- Depois de tanta guerra: como vos sobreviveu a esperança?

- Mastigámo-la.

- E que aconteceu com as casas?

- As casas foram fumadas pela terra. Com tanta maldição só faltava a cobra ser canhota. Agora só me entristece a recordação. A lembrança do cajueiro me faz crescer cheiros nos olhos.

- E estes campos tradicionalmente vossos, foram-vos retirados?

- Sim. Nós ficamos só com o descampado. Agora somos descamponeses.

- E bichos, ainda há aqui bichos?

- Agora, aqui só há inorganismos. Só mais adiante, no mato é que abundam.

- Nós ainda ontem vimos flamingos...

- Esses se inflamam no crepúsculo: são os inflamingos.

- E outras aves da região, pode falar delas?

- Antes de haver deserto, a avestruz voava de galho em flor. Se chamava de arvorestruz. Mas há outras que necessitam de revisão. Exemplo do beija-flor. Beija-flor é nome que aqui deve ser consertado. A flor é que levaria título de beija-pássaro.

- Mas outros animais não há?

A bicharia vai acabando. O mabeco, dito cão-selvagem, vai sofrendo as humanas selvagerias. Acabada a lição, ele saberá não existir.

- Parece desiludido com os homens.

- O vaticínio da toupeira é que tem razão. Um dia, os bichos restantes lhe farão companhia em suas subterraneidades. Eu acredito é na sabedoria do que não existe. Afinal, nem tudo que tem luz é besouro. É o caso do pirilampo. Pirilampo morre? ou funde? Suas réstias mortais aumentam o escuro. Limpo é o pássaro que não evacua no céu.

- Acredita em ensinamento de bichos?

- Todo caranguejo é um engenheiro de buracos. Ele sabe tudo de nada. Há outros, demais. O mais idoso é o escaravelhinho. Mas, de todos, quem anda de janela é o cágado.

- Você não sofre um certo isolamento?

- Sou homem abastecido de solidões. Uns me chamam bicho do mato. Em vez de me diminuir, eu me incho com tal distinção. Como antes disse, a gente aprende do bicho a não desperdiçar. Como a vespa que do cuspe faz a casa.

- Mas a sua mulher lhe faz companhia...

- Ela é a minha patroa. Vez em quando a gente dedilha umas conversas.

– Uma última mensagem.

- Não sei. Feliz é a vaca que não pressente que, um dia, vai ser sapato.

Caldeirão Poético XLIII

Antônio Francisco Pereira
Queluzito/MG

A TRAVESSIA


O meu encontro com a Morte quero
que seja assim: leal e sem receio.
Ela virá me receber, espero,
tão consciente como a Vida veio.

Uma me entregará à outra de frente,
pois entre ambas não deve haver rodeio.
Mas pretendo ouvir, mesmo inconsciente,
a conversa das duas (eu, no meio).

Dirá a Vida: "Cuida bem de sua alma
como cuidei do corpo que se evade".
E a Morte então responderá com calma:

"Fica tranquila, minha irmã rival.
Só não colherá o Bem, na eternidade,
quem antes dela semeou o Mal".
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Eugênia Carra'h
Fortaleza/CE

AS PÉROLAS DA VIDA
(PALAVRA CANTADA)


Numa arca ou concha, bem guardada,
Minúscula joia e, com muito carinho,
Regada com o amor; seiva emprestada,
E aquele abrigo transformado em ninho.

Assim cuidada nessa espera longa,
E embora longa pareça a espera,
Desde que jamais se interrompa,
Chegará sã e salva, forte e bela!

E a arca ou concha agora aberta,
Expõe com júbilo preciosa pérola:
Não só um ser mas, mais uma vida.

Umas "serão jogadas aos porcos",
Com certeza outras serão adornos,
Pelas escolhas que o coração dita.
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José M. M. Pedro
Lisboa/Portugal

ANTES QUE SURJA O AMOR


Longo percurso ainda temos de percorrer
Antes que surja o Amor! Julgamos finda
A nossa missão, antes de estar cumprida
É mais uma das loucuras do nosso viver.

Sim, o percurso é longo, é uma subida
Agreste e íngreme e traz tanto que sofrer!
É necessária toda a coragem pra não correr
O risco de "sair" numa paragem proibida...

Oculta dos outros mundos, então, estas cidades
Em que nós vivemos, e para nela caminhar
É necessário toda a agudeza de uma fera.

De olhos atentos... e com passos leves,
Caminho pé ante pé... quase a arrastar
Na direção dos píncaros das altas auréolas!
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Oswaldo Francisco Martins
Jequié/BA

AMOR E BEM VERDADEIROS


Na visão de gente reta,
Que transborda de carinho,
Que remove todo espinho,
Há a paz maior como meta.

Jaz respeito e tem amor.
Linda estrela-amor cadente
Permanece então ardente
Alegrando-nos feito o humor.

Céu descortinado brilha
E em sua batuta há Deus
Sobre todos filhos Seus

E o bem que se compartilha.
Com acenos para o bem
Há fé e preces sãs, também,
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Oswald Barroso
Cariri/CE

AMOR SEM MEDIDA


Tu me ensinaste a amar sem ter medida
sem ter limite, sem temer o inesperado.
E com teu corpo de paixão nunca contida
eu aprendi que o grande amor é sempre ousado.

Nas fundas águas de um mar desconhecido
ao meu amor, ao meu desejo insaciado,
meu coração é como um barco, que impelido
vai navegando em horizonte ilimitado.
 
Mesmo sabendo que o amor é perecível
e do abismo no meu rumo atravessado,
jogo o meu barco para além do previsível

e corro o risco desse mar encapelado,
pois meu amor fez de possível o impossível
e já não teme mesmo amar sem ser amado.

Fonte:
Luciano Dídimo (org.). 100 sonetos de 100 poetas.
Fortaleza/CE: Expressão Gráfica e Ed., 2019.

Alexandre Herculano (O Castelo de Faria)

(1373)

A breve distância da vila de Barcelos, nas fraldas do Franqueira, alveja ao longe um convento de Franciscanos. Aprazível é o sítio, sombreado de velhas árvores. Sentem-se ali o murmurar das águas e a bafagem suave do vento, harmonia da natureza, que quebra o silêncio daquela
solidão, a qual, para nos servirmos de uma expressão de Fr. Bernardo de Brito, com a saudade de seus horizontes parece encaminhar e chamar o espírito à contemplação das coisas celestes.

O monte que se levanta ao pé do humilde convento é formoso, mas áspero e severo, como quase todos os montes do Minho. Da sua coroa descobre-se ao longe o mar, semelhante a mancha azul entornada na face da terra. O espectador colocado no cimo daquela eminência volta-se para um e outro lado, e as povoações e os rios, os prados e as fragas, os soutos e os pinhais apresentam-lhe o panorama variadíssimo que se descobre de qualquer ponto elevado da província de Entre-Douro-e-Minho.

Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu regado de sangue: já sobre ele se ouviram gritos de combatentes, ânsias de moribundos, estridor de habitações incendiadas, sibilar de setas e estrondo de máquinas de guerra. Claros sinais de que ali viveram homens: porque é com estas balizas que eles costumam deixar assinalados os sítios que escolheram para habitar na terra.

O castelo de Faria, com suas torres e ameias, com a sua barbacã e fosso, com seus postigos e alçapões ferrados, campeou aí como dominador dos vales vizinhos. Castelo real da Idade Média, a sua origem some-se nas trevas dos tempos que já lá vão há muito: mas a febre lenta que costuma devorar os gigantes de mármore e de granito, o tempo, coou-lhe pelos membros, e o antigo alcácer das eras dos reis de Leão desmoronou-se e caiu. Ainda no século dezessete parte da sua ossada estava dispersa por aquelas encostas: no século seguinte já nenhuns vestígios dele restavam, segundo o testemunho de um historiador nosso.

Um eremitério, fundado pelo célebre Egas Moniz, era o único eco do passado que aí restava. Na ermida servia de altar uma pedra trazida de Ceuta pelo primeiro Duque de Bragança, D. Afonso. Era esta lájea a mesa em que costumava comer Salat-ibn-Salat, último senhor de Ceuta. D. Afonso, que seguira seu pai D. João I na conquista daquela cidade, trouxe esta pedra entre os despojos que lhe pertenceram, levando-a consigo para a vila de Barcelos, cujo conde era. De mesa de banquetes mouriscos converteu-se essa pedra em ara do cristianismo. Se ainda existe, quem sabe qual será o seu futuro destino?

Serviram os fragmentos do castelo de Faria para se construir o convento edificado ao sopé do monte. Assim se converteram em dormitórios as salas de armas, as ameias das torres em bordas de sepulturas, os umbrais das balhesteiras e postigos em janelas claustrais. O ruído dos combates calou no alto do monte, e nas fraldas dele levantaram-se a harmonia dos salmos e o sussurro das orações.

Este antigo castelo tinha recordações de glória. Os nossos maiores, porém, curavam mais de praticar façanhas do que de conservar os monumentos delas. Deixaram, por isso, sem remorsos, sumir nas paredes de um claustro pedras que foram testemunhas de um dos mais heróicos feitos de corações portugueses.

Reinava entre nós D. Fernando. Este príncipe, que tanto degenerava de seus antepassados em valor e prudência, fora obrigado a fazer paz com os castelhanos, depois de uma guerra infeliz, intentada sem justificados motivos, e em que se esgotaram inteiramente os tesouros do Estado. A condição principal, com que se pôs termo a esta luta desastrosa, foi que D. Fernando casasse com a filha Del-Rei de Castela: mas, brevemente, a guerra se acendeu de novo, porque D. Fernando, namorado de D. Leonor Teles, sem lhe importar o contrato de que dependia o repouso dos seus vassalos, a recebeu por mulher, com afronta da princesa castelhana.

Resolveu-se o pai tomar vingança da injúria, ainda que o aconselhavam outros motivos. Entrou em Portugal com um exército e, recusando D. Fernando aceitar-lhe batalha, veio sobre Lisboa e cercou-a.

Não sendo o nosso propósito narrar os sucessos deste sítio, volveremos o fio do discurso para o que sucedeu no Minho.

O Adiantado de Galiza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela província de Entre-Douro-e-Minho com um grosso corpo de gente de pé e de cavalo, enquanto a maior parte do pequeno exército português trabalhava inutilmente ou por defender ou por descercar Lisboa.

Prendendo, matando e saqueando, veio o Adiantado até as imediações de Barcelos, sem achar quem lhe atalhasse o passo. Aqui, porém, saiu-lhe ao encontro D. Henrique Manuel, conde de Ceia e tio Del-Rei D. Fernando, com a gente que pôde ajuntar. Foi terrível o conflito, mas, por fim, foram desbaratados os portugueses, caindo alguns nas mãos dos adversários.

Entre os prisioneiros encontrava-se o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno Gonçalves. Saíra este com alguns soldados para socorrer o conde de Ceia, vindo, assim, a ser companheiro na comum desgraça. Cativo, o valoroso alcaide pensava em como salvaria o castelo Del-Rei seu senhor das mãos dos inimigos.

Governava-o em sua ausência, um seu filho, e era de crer que, vendo o pai em ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar, muito mais quando os meios de defesa escasseavam. Estas considerações sugeriram um ardil a Nuno Gonçalves. Pediu ao Adiantado que o mandasse conduzir ao pé dos muros do castelo, porque ele, com as suas exortações, faria com que o filho o entregasse, sem derramamento de sangue.

Uma tropa de besteiros e de homens de armas subiu a encosta do monte da Franqueira, levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves. O Adiantado de Galiza seguia atrás com o grosso da hoste, e a costaneira ou ala direita, capitaneada por João Rodrigues de Viedma, estendia-se, rodeando os muros pelo outro lado. O exército vitorioso ia tomar posse do castelo de Faria, que lhe prometera dar nas mãos o seu cativo alcaide.

De roda da barbacã alvejavam as casinhas da pequena povoação de Faria: mas silenciosas e ermas. Os seus habitantes, apenas enxergaram ao longe as bandeiras castelhanas, que esvoaçavam soltas ao vento, e viram o refulgir cintilante das armas inimigas, abandonando os seus lares, foram acolher-se no terreiro que se estendia entre os muros negros do castelo e a cerca exterior ou barbacã.

Nas torres, os atalaias vigiavam atentamente a campanha, e os almocadens corriam com a rolda pelas quadrelas do muro e subiam aos cubelos colocados nos ângulos das muralhas. O terreiro onde se haviam acolhido os habitantes da povoação estava coberto de choupanas colmadas, nas quais se abrigava a turba dos velhos, das mulheres e das crianças, que ali se julgavam seguros da violência de inimigos desapiedados.

Quando a tropa dos homens de armas que levavam preso Nuno Gonçalves vinha já a pouca distância da barbacã, os besteiros que coroavam as ameias encurvaram as bestas, e os homens dos engenhos prepararam-se para arrojar sobre os contrários as suas quadrelas e virotões, enquanto o clamor e o choro se levantavam no terreiro, onde o povo inerme estava apinhado.

Um arauto saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou para a barbacã, todas as bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas converteu-se num silêncio profundo.

- "Moço alcaide, moço alcaide! - bradou o arauto - teu pai, cativo do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento, Adiantado de Galiza pelo mui excelente e temido D. Henrique de Castela, deseja falar contigo, de fora do teu castelo."

Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro e, chegando à barbacã, disse ao arauto: - "A Virgem proteja meu pai: dizei-lhe que eu o espero."

O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves, e depois de breve demora, o tropel aproximou-se da barbacã. Chegados ao pé dela, o velho guerreiro saiu dentre os seus guardadores, e falou com o filho:

"Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castelo, que, segundo o regimento de guerra, entreguei à tua guarda quando vim em socorro e ajuda do esforçado conde de Ceia?"

- "É - respondeu Gonçalo Nunes - de nosso rei e senhor D. Fernando de Portugal, a quem por ele fizeste preito e homenagem."

- "Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de nunca entregar, por nenhum caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das ruínas dele?"

- "Sei, oh meu pai! - prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar. - Mas não vês que a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste a resistência?"

Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então: - "Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo, sem tropeçarem no teu cadáver."

- "Morra! - gritou o almocadem castelhano - morra o que nos atraiçoou."

E Nuno Gonçalves caiu no chão atravessado de muitas espadas e lanças.

- "Defende-te, alcaide!" - foram as últimas palavras que ele murmurou.

Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacã, clamando vingança. Uma nuvem de flechas partiu do alto dos muros; grande porção dos assassinos de Nuno Gonçalves misturaram o próprio sangue com o sangue do homem leal ao seu juramento.

Os castelhanos acometeram o castelo, no primeiro dia de combate o terreiro da barbacã ficou alastrado de cadáveres tisnados e de colmos e ramos reduzidos a cinzas. Um soldado de Pedro Rodriguez Sarmento tinha sacudido com a ponta da sua longa chuça um colmeiro incendiado para dentro da cerca, o vento suão soprava nesse dia com violência, e em breve os habitantes da povoação, que haviam buscado o amparo do castelo, pereceram juntamente com as suas frágeis moradas.

Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldição de seu pai. Lembrava-se de que o vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos os momentos o último grito do bom Nuno Gonçalves - "Defende-te, alcaide!"

O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos muros do castelo de Faria. O moço alcaide defendia-se como um leão, e o exército castelhano foi constrangido a levantar o cerco.

Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente louvado pelo seu brioso procedimento e pelas façanhas que obrara na defesa da fortaleza cuja guarda lhe fora encomendada por seu pai no último instante da vida. Mas a lembrança do horrível sucesso estava sempre presente no espírito do moço alcaide. Pedindo a El-Rei que o desonerasse do cargo que tão bem desempenhara, foi depor ao pé dos altares a cervilheira e o saio de cavaleiro, para se cobrir com as vestes pacificas do sacerdócio.

Ministro do santuário, era com lágrimas e preces que ele podia pagar a seu pai o ter coberto de perpétua glória o nome dos alcaides de Faria.

Mas esta glória, não há hoje ai uma única pedra que a ateste. As relações dos historiadores foram mais duradouras que o mármore.

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Adega de Versos 10: Professor Garcia

 

Arthur de Azevedo (Uma por outra)

O Paulo jantou apressadamente e, mal acabou de sorver o último gole de café, pôs o chapéu, saiu de casa, tomou na Rua do Catete um bonde que passava, apeou-se no largo da Carioca, desceu a Rua da Assembleia e dirigiu-se para o lado das barcas.

Estava febricitante: a Isabel, que durante quatro meses não fez o menor caso de seus protestos de amor, resolvera, afinal, conceder-lhe uma entrevista.

A linda costureira (a Isabel era costureira) ficara de estar às oito em ponto à porta da estação das barcas. Eram sete e quarenta.

Estava tudo muito bem combinado. Entrariam ambos na estação sem se falar, como se não se os conhecessem; tomariam a primeira barca e subiriam para a tolda, a fim de conversar à vontade. Desembarcando em São Domingos, um bonde levá-los-ia a Icaraí. Na saudosa praia esperava-os um ninho discreto, onde passariam a sua primeira noite de amor. Estava tudo muito bem combinado.

Por que Icaraí?... Por que não Copacabana ou Tijuca?... Por nada: tinha sido um capricho da Isabel.

Notou o Paulo que, um pouco distante do lugar em que ele se achava, isto é, da porta da estação, estava, como que protegida pela sombra, uma senhora de preto, que tinha, pouco mais ou menos, o corpo e a estatura de Isabel. Seria ela que, por qualquer circunstância, não tivesse querido chegar mais perto? Ele aproximou-se, disfarçou, observou, e voltou para o seu posto. A senhora de preto não se parecia nada com a outra. Era aliás mais bonita.

Passou meia hora... passou uma hora; chegaram e partiram numerosos bondes... as barcas de vez em quando despejavam gente sobre a praça, mas nem a Isabel aparecia, nem aquele misterioso vulto de mulher se movia do recanto sombrio em que estava.

Paulo ficou desesperado. O seu desejo era sair dali, não esperar nem mais um momento; dizia, porém, consigo: - Mais um bonde, o último! - e ia esperando...

Convencendo-se, afinal, de que a Isabel não vinha, resolveu ir para a casa, mas, ao retirar-se, passou rente à senhora de preto; que esperava sempre, e encarou-a.

Ela perguntou-lhe, sorrindo:

- Faz favor de me dizer que horas são?

- Pois não, minha senhora! Passam vinte das nove.

- Decididamente não vem! Que maçada!

- Espera alguém, minha senhora?

- Que tem o senhor com isso?

- É que eu também esperava uma pessoa... e, quem sabe? talvez que a analogia das nossas situações pudesse estabelecer entre nós certa... certa... como direi?... certa simpatia...

- Não imagina como estou contrariada!

- Naturalmente porque gosta muito do homem que a faz esperar...?

- Como sabe o senhor que é um homem?

- Uma mulher não espera tanto tempo por outra...

- Isso é verdade...

E, depois de uma ligeira pausa, continuou assim o diálogo:

ELA - Sim, é por um homem que eu esperava, mas não pense o senhor que o ame loucamente. O que ele hoje me fez, varreu-o cá de dentro!

ELE - O mesmo digo da mulher que me pôs aqui de plantão! Era a nossa primeira entrevista... Foi melhor assim!

ELA - Ora!, amanhã ela conta-lhe quatro caraminholas, e o senhor desculpa-a...

ELE - Está enganada! Não quero vê-la!

ELA - Na realidade, temos ambos razão de estar queixosos...

ELE - Se nos vingássemos, eu dela e a senhora dele?

ELA - Como?

ELE - Se eu tomasse o lugar dele e a senhora o dela?

ELA - Que diria o senhor de mim?

ELE - Diria: "É uma mulher de espírito, que sabe vingar-se!" A senhora não me conhece, mas...

ELA - E se eu o conhecesse, Paulo?

ELE - Conhece-me?

ELA - Pelo menos de fotografia. Foi a Isabel que me mostrou.

ELE - A Isabel?!, conhece-a?

ELA - Trabalhamos juntas no mesmo atelier de costuras, e somos amigas... íntimas.

ELE - Ah!...

ELA - Ela falou-me do senhor... mostrou-me o retrato... disse-me que o achava feio... Eu, pelo contrário, achei-o...

ELE - Bonito?

ELA - Pelo menos simpático.

ELE - Muito obrigado.

ELA - Não há de que.

ELA - Hoje ela disse que o senhor estaria aqui à sua espera às oito horas... mas que o deixaria esperar em vão, para desenganá-lo. Fiquei com muita pena do senhor e disse comigo: "Como pode esta mulher enganar assim a um moço tão simpático?" Resolvi, então, um pouco por comodidade e... um pouco por simpatia... verificar se o senhor tinha vindo... Quando o vi interrogando com os olhos ansiosamente os bondes que chegavam, tive ímpetos de preveni-lo de que ela não vinha, mas não me atrevi.

ELE - Então a senhora não estava à espera de ninguém?

ELA - Não, vim simplesmente vê-lo... e vingá-lo. Que quer? Tenho um coração tão mole. .
.......................................................

Uma hora depois, estavam ambos no doce ninho de Icaraí.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Nilton da Costa Teixeira (Ramalhete de Trovas) – 2

A jura é a falsa aliança
pela incerteza marcada
e faz da verde esperança
uma esperança frustrada!
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A mentira do sorriso
é silenciosa e indulgente,
e sempre vem de improviso
aos lábios tristes da gente!
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As campanhas meritórias
têm mais autenticidade
quando o resplendor das glórias
guardam silêncio e humildade
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Castro Alves é o verso ativo
da palavra em explosão,
fazendo o protesto vivo
contra a negra escravidão.
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Cruzes toscas nos caminhos
são mostras de iniquidades
remarcando nos espinhos
os silêncios das saudades.
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Despreocupado com a morte,
para quem tão pouco resta,
mesmo os rigores da sorte
são verdes sonhos de festa!
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Em majestoso clarão,
tendo desenhos no centro,
parece a lua um balão,
levando São Jorge dentro.
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Em momentos silenciosos
relembrando meus desejos.
Volto aos dias venturosos
das doçuras dos teus beijos.
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Em silêncio, entre matizes,
estrelas postas ao léu,
mostram sorrisos felizes
dos anjos que estão no Céu.
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Em triste recolhimento,
a saudade enternecida
guarda em silencio o tormento
de um beijo de despedida.
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Entrando pela vidraça,
o clarão do sol nascente
traz otimismo de graça
para os anseios da gente.
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Entre clarões de indulgência,
a humildade e a tolerância
vencem, com muita frequência,
o fantasma da arrogância.
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Esse clarão que traduz
boa amizade e confiança
é como um facho de luz
feito de amor e esperança.
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Eu, eterno sonhador,
portei-me como um menino,
vendo clarões de esplendor
nas mentiras do destino.
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Fiel a tantos mistérios,
a noite vem, sem alarde,
no luto dos cemitérios,
dormir nos ombros da tarde!
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Fiel ao sonho desfeito
há, no mundo, certa gente
guardando dentro do peito
toda a descrença que sente!
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Fiel aos sonhos vassalos,
qualquer grande sonhador
guarda o medo de guardá-los
escondendo sua dor.
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Há silêncios manifestos
calando sempre mais fundo,
porque são mudos protestos
aos desaceitos do mundo.
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No coração do mendigo,
todo o verdor da esperança
vive em carência de abrigo
do sonho que nunca alcança!
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No mundo das fantasias,
sinto clarões de esperança,
fingindo ter alegrias.
tendo ilusões de criança.
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Nos clarões da madrugada,
as estrelas, céu a fora,
parecem joias coladas
nos cortinados da aurora.
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No silêncio das esperas,
entre meus dias tristonhos,
vou sonhando primaveras
nos espinhos dos meus sonhos.
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O dia 22 de abril,
Cabral e Porto Seguro.
são na História do Brasil,
sempre degraus do futuro.
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O Judas de hoje, moderno,
maneiroso, demagogo,
não teme os clarões do inferno
porque dança sobre o fogo!
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() Sol dobrando o poente,
mostra um clarão moribundo
qual uma vela descrente
que se apaga para o mundo.
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Quando a manhã se agiganta
e mais clarão irradia,
a esperança se levanta
para sonhar mais um dia.
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Santos Dumont com coragem
e com a nave pioneira
foi ao céu soltando a aragem
a Bandeira Brasileira.
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Se, ao silêncio nos induz,
um pedido de segredos,
tem sempre a forma de cruz
sobre os lábios, nossos dedo.
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Sempre a palavra saudade
entre o silêncio e a emoção,
tem um quê de eternidade
morando no coração.
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Sempre em silêncio profundo,
no mais triste desencanto,
vamos nós por este mundo,
chorando e escondendo o pranto.
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Sempre em silêncio vivendo,
eu venho, desde criança,
por entre espinhos sofrendo
sem ter qualquer esperança.
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Silencioso em meus versinhos
escrevendo-os sempre a esmo,
eu retrato pedacinhos
dos pedaços de mim mesmo.
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Tem cautela, não te iludas,
entre silêncios, contigo,
haverá um novo Judas
que se veste como amigo!

Fonte:
Trovas enviadas por Nilton Manoel.

Ivan Lessa (Fiquemos quietos)

O calor são doze pessoas que você não quer ver nem a cara a imprensar os corpos de encontro ao seu. Você está sempre num elevador no centro da cidade, elevador correndo para os lados, a olhar para cima o ventilador parado, o cabineiro deixando pingar o suor na farda parda.

O sol é secundário, calor são as pessoas a fazer perguntas, querendo pegar na mão, olhando nos seus olhos, pedindo coisas, dando coisas. Se pudesse ficar sozinho, não sentiria calor, nem precisaria do ar condicionado: entre o teto e o chão da minha casa estaria eu ‒ refrigerado e a refrigerar.

As pessoas que sentem muito calor são as que mais o fazem. Deveriam ir para fora, para Araruama, por exemplo, e se contentar com o vento, o sal e um bronzeado. Faria menos calor aqui no Rio, eu abriria e fecharia menos a geladeira, minha boca se contentaria em sorver refrescos, meus ouvidos se acalmariam com os pedaços de gelo batendo de encontro ao copo. As pessoas sentem calor e nos procuram como se fôssemos uma praia, com barraca e mar. Não tem o que dizer, querem nos ouvir falar, e vêm à nossa casa como se fosse um vernissage ou uma sala de conferências. Vão à praia: fechem os olhos; ponham os óculos escuros; deixar queimar; banhem-se. Façam tudo isso. Façam todos os gestos, todos os programas em que o silêncio esteja envolvido: ele é parte de vocês. E é meu também, se eu o puder recapturar.

O pouco que fiz de bem e de bom foi feito com silêncio, em silêncio, pelo silêncio. Coisas de sombra, brisa, fim de tarde. Cada vez que pronuncio uma frase, formulo uma sentença, sujeito, predicado e verbo, sinto-me como se tivesse perdido uma coisa. Cada vez que vejo uma pessoa de cara amarrada ou triste e, dizendo eu uma besteira qualquer, vejo-a dois minutos depois sorrindo, sinto-me, mais uma vez, como se tivesse perdido outra coisa (não que me tenham tirado, foi perdido e por mim só). O muito falar, a importância que se dá ao falar, é roubar-se da ordem das coisas encontradas a sós na solidão.

Calor dá vontade de falar, ou ouvir. Experimente ficar sozinho um pouco, repare então: ligou-se o inverno. As coisas frias não têm barulho, são aconchegantes, e bastam para dois, no máximo. Dois é o quanto basta. Três já é verão, chopada, acaba mal.

Vamos fazer isso então: lavar bem o rosto, molhar os pulsos, abrir as cumbucas de gelo e ficar quietos: tem vitrola, barulhos mornos na janela (você ouve o mar se quebrar), dá para um escutar a respiração do outro. E depois, quietos assim, se baterem na porta a gente escuta e não precisa atender. Ficamos lá, quietos, quietos, admirando-se mais. Não tem calor, não tem frio, o relógio parou às dez horas, não tivemos que dizer nada. Tudo que houve, ou terá que haver, é mansidão. Com poucas palavras, raros gestos e uma imensidão de coisas pequenas, mexendo-se, mornas, como se houvesse no canto do quarto uma porção de cachorrinhos recém-nascidos e nós estivéssemos apenas de passagem assistindo. E nós estamos escute bem apenas, apenas, apenas de passagem.

Fonte:
Diário Carioca. 29 dez 1965.

Estante de Livros (Ibiamoré, o trem fantasma – de Roberto Bittencourt Martins)

Ibiamoré, o trem fantasma (1981), de Roberto Bittencourt Martins, apesar de ser um dos mais admiráveis romances da literatura do Rio Grande do Sul, é pouco lido e estudado. Publicado pela primeira vez em 1981, voltou a receber uma nova edição somente em 2006.

A paisagem vista pelas janelas da leitura – tomada em ato – cobre tempos, coxilhas e memórias que se apresentam, lançando pistas e fumaças, e sorriem como mágico seccional, distraindo a plateia com a direita para não desvendar o truque narrativo da mão esquerda. A lenda do Trem da noite surge, de súbito, alimentada na fornalha da Maria Fumaça por um gaúcho velho e cantor que passa a palavra e a ordenação das histórias e relatos aos narradores, os quais foram pesquisados e documentados pelo autor. Exatamente neste ponto, um apito surge e alerta-nos das nebulosas no escuro do sul platino e nas aventuras desta jornada que aprisiona e liberta a todos para que as páginas rumem a outros olhos no meio da noite da ação produzida no solo gaúcho, em especial, no da localidade de Ibiamoré.

O romance divide-se em 11 estações. Cada uma delas encerra uma parada e várias histórias, que se entrecruzam, apesar de os narradores muitas vezes não o saberem. O leitor é convidado a usar a sua memória, exercitá-la, a fim de criar sentido na narrativa que surge aparentemente confusa, para ajudar a construí-la. A narrativa realiza, tal como o trem, percursos variados, exigindo escolhas de nortes para orientar o passeio de leitura. Os onze capítulos, assim como os vagões, transportam histórias dos diferentes viventes e povoadores do extremo sul do Brasil, fazedor de divisas com o Uruguai e a Argentina. Cada capítulo é uma nova estação, a qual se apresentará compartimentada; sabe-se que os sujeitos semiapagados numa narrativa voltam de modo estelar e dramático na seguinte, pois essas personagens também pegarão o trem que:

Ninguém vê de onde vem,
aonde vai nem o que é.
Um trem correndo nos campos,
sem trilhos nem chaminé.
O trem fantasma encantado
dos campos de Ibiamoré. (1981, p. 15)

O cenário principal do romance seria Ibiamoré, uma região que se localizaria em um lugar indeterminado na fronteira do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Uma fronteira imaginária no tempo e no espaço que separaria o que somos do que poderíamos ter sido. De lá o trem fantasma, ou trem da noite, partiria, sem respeitar fronteiras, passando pelas onze estações que compõem o romance. O trem cruza guerras como a guerra guaranítica e lutas por territórios; espreita-se por entre o medo do progresso e da mudança; confronta-se com preconceito e racismo. Durante o seu percurso pelas malhas da narrativa, entram e saem de cena muitas personagens e vários narradores: capitães, heróis, índios, jesuítas, espanhóis, portugueses, imigrantes, mulatos, mestiços, cronistas e até um autor. O ponto de partida remete ao fim do Império (1870-1888), época em que as primeiras locomotivas começavam a correr pelos trilhos recém-construídos no Estado do Rio Grande do Sul.

Em Ibiamoré, o trem fantasma, encontramos, porém, um tempo histórico anterior, pois surgem como personagens seguras que estariam entre os fundadores do Rio Grande do Sul, tais como Afonso Inácio, o capitão-menino, que seria o representante do português açoriano, o índio Teireté, representando a violência das guerras guaraníticas (1753-1756) e até um tal Frei Esteban Cortez, um padre jesuíta espanhol, que seria um dos primeiros a narrar a lenda do Trem Fantasma. Lendas de tempos e espaços diferentes encontram-se nas estações do romance, sugerindo que uma concepção diferente de tempo e espaço é defendida nas páginas do romance, através das vozes dos vários narradores que se dividem para dar conta da lenda do trem fantasma e de suas inúmeras versões. Se nossa identidade é também formada por nossa memória, por um determinado entrecruzar de tempo e espaço, pela história de nossa vida, a construção da identidade do gaúcho e a construção das identidades dos narradores de Martins são mostradas na obra. Os narradores funcionam como espelhos de si mesmos e de nós mesmos.

A lenda do trem

A narrativa principia com a descrição de uma cena comum a muitos gaúchos: um dia de friagem. O frio dos campos é contrastado com o calor da beira de um fogo, ao redor do qual se reúnem viventes em torno de um velho homem para ouvi-lo contar suas histórias. Ele pega sua viola e inicia a cantoria. O velho nos intima a ouvir a sua história assim como Martins nos chama para a beira do seu fogo a fim de ouvir a sua narrativa e não deixar que “o fogo de lenha ardendo no chão de terra” (1981, p. 9) se apague. Há uma clara referência à importância de contarmos histórias e de ficarmos “calados para escutar” (1981, p. 9). O valor da tradição oral da contação de histórias é reforçado, pois a perda da memória de um vivente pode converter-se na perda de memória de todos. Quem vai contar a história se o velho índio não a contar a outros? E se deixarmos o fogo se apagar? Qualquer narrativa é uma luta contra o esquecimento. A repetição, mesmo com diferença, cria lembrança. O importante é contar, contar, contar, contar repetidas vezes a mesma história até que pareça verdade ou faça sentido.

A narrativa do velho índio, e por aproximação a de Martins, oferece-se como uma tentativa de driblar o esquecimento, o apagamento da lenda do trem fantasma ou trem da noite e das lendas que formam a nossa história e a nossa identidade.

Em todas as 11 estações, repete-se uma estrutura. A estação recebe um nome e é composta por quatro partes. Na primeira, há uma narrativa sobre a lenda do trem fantasma, através de um dos seus narradores. Depois há uma parada, que recebe o nome da estação, e finalmente duas outras histórias, que recebem ou o nome de seu protagonista ou de uma localidade. Apesar de aparentemente não manterem relação com narrativas anteriores ou posteriores, acabam entrecruzando-se. De modo particular, os capítulos nominados como estações/paradas estão organizados.

No primeiro capítulo, ou estação, há um relato intitulado “O trem: a Lenda” que apresenta a lenda do trem fantasma ao leitor. Esse relato é precedido por um poema de autor sul-rio-grandense usado como epígrafe como acontece em todos os capítulos. O poema, como na maioria dos casos, é de um poeta pouco conhecido da literatura do Rio Grande do Sul; entretanto, também são usados fragmentos de obras de autores mais conhecidos como Simões Lopes Netto. No primeiro capítulo, Martins apresenta um fragmento de um poema de autoria de Alberto Ramos, poeta pelotense que viveu entre 1871 e 1941 e que hoje é pouco lembrado. O poema versa sobre a morte e a ligação entre o trem e a morte é estabelecida mais adiante:

Após explicar a lenda, o narrador apressa-se em apresentar as variantes da lenda, trazendo as razões que levariam pessoas a entrarem nesse trem do esquecimento do qual nunca mais se sairia: crianças, lindas mulheres, bebidas, festas (1981, p. 14-15). O narrador deixa claro que aqueles que no trem ingressam, esquecem-se do que está fora do trem, pois somem “da vista e da memória”, pois “nada mais existe além do trem”. (1981, p. 14)

Após esse relato, na primeira parada, é contada a história de Afonso Inácio, o capitão menino, que “lutava buscando a morte”, pois “Era menino, mas o que desejava era morrer” (1981, p. 21). Ao longo de sua vida de batalhas, questionava-se “haverá por que viver?”, assombrado por seus fantasmas, mortos, escombros e ruínas, sendo “estrangeiro ao mundo, viajando em si mesmo” (1981, p. 23). Afonso Inácio “por duas vezes sofreu o mesmo infortúnio, como se o Destino lhe houvesse traçado o passar duas vezes pelo mesmo ponto de sua existência” (1981, p. 25).

Tempo e espaço são equiparados. Assim, a narrativa de Martins estrutura-se misturando a história sul rio-grandense a mitos e ficção. Isso nos traz a questão de que a narrativa se situaria em um tempo mítico. A cada estação os trilhos se cruzam e se sobrepõem, levando os vagões da memória a estações surpreendentes. O leitor é convidado a embarcar em uma jornada guiada pelas malhas associativas dos inúmeros narradores. Todos têm a sua versão da lenda do trem fantasma. A estrutura é associativa, pois a memória, como já dito, é seletiva e associativa. Mais do que isso: a memória é afetiva. Rastros ou vestígios memoriais podem ser cartas, poemas, relatos orais, anotações, que interpolados na narrativa remetem a outro tempo ou lugar e com os quais se mantém uma memória afetiva.

A relação entre esses elementos e os narradores dá o tom aos relatos.

O capítulo II intitula-se Santa Joana e enfoca outra versão da lenda “O Trem: Relato de João José Cohimbra”. João José relata, no jornal O Mercantil, a história de um menino de 15 anos que embarca no Trem Fantasma, restando a mãe no desespero; ao final do artigo, avalia a lenda e o povo interiorano como rústico e supersticioso frente à modernidade que o novo meio de transporte que os espanta. Posteriormente, somos informados sobre a trajetória do cronista João José que, depois de retornar da Europa, casa-se, passando a residir “numa fazenda do sogro, nas cercanias de Campos Claros”. Foge, às pressas, com a esposa e o filho para o Uruguai por ter assediado a menina de 13 anos, Carlinda. Aos 43 anos, morre num desastre de trem ao sair da estância de Las Mercedes em direção a Montevidéu a fim de assistir a opera verdiana “La forza del Destino”, à qual havia assistido em Porto Alegre, na voz da italiana Angela Gattini. Seu ex-sócio Mr. John Kendall assume os negócios e também o substitui “junto ao leito da viúva”, criando os dois fi lhos do casal Cohimbra. O mais velho morre louco num hospício em Montevidéu; sendo que o filho mais novo, Adido Comercial do Uruguai em Londres, morre durante um bombardeio na cidade inglesa, durante a Segunda Guerra Mundial. Encerra-se o capítulo, apontando a proximidade das sepulturas da Mrs. Malvina Kendall de Cohimbra Garcia com a de João José, e ambas afastadas, no mesmo cemitério, da de Mr. Kendall.

Já o capítulo III, Solidões, traz, em “O Trem: Relato de Frei Esteban Cortez”, a figura do padre jesuíta que dirige e escreve no semanário católico A Cruz. Frei Esteban Cortez reconfigura a lenda do trem fantasma, usa-o para desaprovar a todos da comunidade porto-alegrense: fiéis, fazendeiros e políticos. Todos gananciosos, corruptos e pecadores. Retoma o desaparecimento dos trinta trabalhadores nas ferrovias da região de Santo Onofre, igualando-os a Dr. Fausto. Morre aos 65 anos, sem grandes amigos nem companheiros.

Sobre os cobiçosos, procurava associações bíblicas nas lendas como a do Negrinho do Pastoreio e as histórias de mártires, por exemplo, Sepé Tiaraju e Nhenguiru para maldize-los, ressaltando a ambição deles, a qual os conduziria “às labaredas rubras do inferno”.

No capítulo IV, Gastonville, “O Trem: Versão de Camilo Vaz e Viagem de Frei Esteban” apresenta história do terceiro cronista da lenda, tendo a publicado no início do século 20, no jornal A Federação. Reporta que durante a construção da via férrea de Ibiamoré teria sido encontrado um baú enterrado cheio de tesouros dos jesuítas pelos trabalhadores e o engenheiro. Pela impossibilidade de abri-lo, rumaram num trem para a cidade. Com o engenheiro e seus dois assistentes na locomotiva, os demais conseguem abrir o baú, levando a trem ao seu desaparecimento, reza a lenda.

O romance desenvolve-se mantendo essa estrutura e, assim como nas versões da lenda trazidas por Martins na narrativa, os habitantes de Ibiamoré entram no trem e desaparecem, para reaparecerem, páginas mais tarde, de uma outra forma, nas memórias de alguém. De forma geral, a narrativa de Martins fala de medo, do medo de entrar no trem e sumir; do medo do fantasma do apagamento, do esquecimento, da perda da memória, do viver sem deixar marcas. Esse, talvez o maior medo de todos nós. O medo de sumir e não deixar nada nosso para aqueles que ficam. Nenhuma contribuição à história dos outros. Isso se relaciona à necessidade das marcas, de deixar marcas, em outros ou em nós mesmos, mesmo que sejam somente marcas na memória.

Um dos narradores, Almagre, ao questionar-se sobre a veracidade de suas memórias pergunta-se: “O tempo, contudo, faz com que duvide de si mesmo. Terá sido verdade?” (1981, p. 48).

Através do romance de Martins e da vida de seus múltiplos e multifacetados narradores, somos convidados a repensar a nossa história, desde a formação do Rio Grande do Sul. Os entrecruzamentos geográficos provocados pelas malhas da narrativa são também o entrecruzamento de memórias. A memória é um lugar e suas malhas e vagões nos levam a recintos imaginados ou imaginários. O esquecimento é a contrapartida necessária da memória, do lembrar, pois esquecer pressupõe sempre a possibilidade de lembrar. Não se lembra de tudo, assim como não se esquece de tudo. Se a memória é seletiva, ou melhor dizendo, afetiva, há razões para lembrarmos e esquecermos. A relação que temos com o passado, ou com incidentes passados, nos leva ou nos traz certos elementos do passado. A esse respeito, é relevante pontuar que somente sujeitos lembram e esquecem, ou seja, têm memória.

A partir de um certo presente, Martins constrói uma narrativa. O que é ficção inventada por Martins ou o que é parte da nossa história? Não importa, pois a dissolução da história como absoluta é muito bem representada pelo desaparecimento, na língua portuguesa, da palavra estória. A aproximação de história e estória remete aos limites tênues, e talvez inexistentes, entre a ficção e o real.

A estrutura do romance Ibiamoré – o trem fantasma é bastante homogênea, apresenta-se circular e encaixante, há a cena e o cenário de abertura e de encerramento assemelhados, os quais molduram os onze capítulos, no total, com os subcapítulos, trinta e três. Na de abertura, todos, calados, se encontram em volta do fogo de chão, pois o frio os une no galpão e os impulsiona para ouvirem o velho que pega a viola e entoa a “Cantiga do folclore de Ibiamoré” (1981, p. 322), enquanto a chama da memória e da arte literária crepita na voz canora. No entanto, na cena de fechamento da obra literária, o “nós” (ouvintes, narrador e leitor) – que escutava silenciosamente o artista – retira-se. Também o contador/cantor vai silenciando o texto literário, deixando, no espaço textual, o rastro, a cinza e o carvão (cemitério ígneo) das linhas narrativas visitadas na noite de leitura/audição e de reminiscências no decorrer da andança. “Ninguém para escutar o cansaço de sua voz”, diz o romance; entretanto, a cantiga/lenda/narrativa avança no final do livro, pulando para o espírito do leitor, feito locomotiva que espiona um túnel ou que se equilibra numa ponte: “Tem um trem correndo os campos, / nos campos de Ibiamoré.” (1981, p. 331).

Todas as estações, ou capítulos da narrativa, apontam para o vazio, a solidão, o esquecimento, ou seja, a morte. Para o autor, “A fonte de Letes, o ‘esquecimento’, faz parte integrante do reino da Morte. Ter memória significa estar vivo, manter-se vivo, e contar as suas memórias lutar contra o esquecimento. Novamente, a personagem Chico Doce, que achou o amor e dele fugiu. Nas suas palavras, fugiu da mulher amada, Frederika, “pra conservar a lembrança” bela que dela tinha (1981, p. 270). Ainda, outra personagem, Madame Delorme, afirma: “Foi tolice querer reviver o passado que deveria ser lembrado somente pela memória” (1981, p. 243), ou seja, este não deveria ter sido revivido, como o padre que volta à Guanambi perdida para perceber que a cidade não existe mais, ou Chico Doce que tenta voltar para a jovem Frederika e a encontra matrona muitos anos depois, após desistir de conservar a lembrança. Todos eles são personagens atormentados pelo trem da morte e do esquecimento e assombrados por seus medos e memórias.

A formação do nome Ibiamoré, ligado ao rio Ibiá, mencionado várias vezes na narrativa, remete à vida, amor, e morte. Todos os elementos estão em uma só palavra, fazendo referência ao ciclo da vida, a nossa realidade enquanto “índios da mesma taba”, umas expressão tantas vezes usada por Martins ao longo da narrativa. Os vários narradores da lenda do trem fantasma, e de lendas quase esquecidas da região de Bagé, como a lenda da Lagoa da Música, retomadas por Martins, apontam para a necessidade de que várias histórias sejam contadas a partir de vários pontos de vista, complementares e não excludentes, para que possam ser ouvidas, e porque não, lidas. A realidade não pode ser compreendida, somente construída, a partir de vários pontos de vista.

A obra de Martins remete a luta em não esquecer, que motiva Martins e seus narradores a dirigir-se a outros e a narrarem, pois cada pessoa vê as coisas de maneira diferente. Uns veem mais outros menos. Uns veem demais enquanto outros são quase cegos. Os fatos são para sempre perdidos, pois sobram só visões recuperadas pela memória. O que nos marca, o que nos chama atenção, é o que vemos, é o que lembramos. Há uma verdade, mas é uma verdade particular, que pode ser compartilhada. Todos precisam contar a sua história. Só ela nos salva do esquecimento. Assim, devemos aceitar o convite de Martins para reler e recontar. Só isso nos salva do trem da noite, do trem da morte, do trem do esquecimento.

Fonte:
Excerto do artigo de Valéria Brisolara  e Roberto Medina. Pelas malhas e vagões da memória: Uma análise de Ibiamoré, o trem fantasma. In Revista do Instituto de Letras Organon, UFRGS, n. 57, v. 29, 2014. Disponível na íntegra em pdf, https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/48268/31800

terça-feira, 6 de abril de 2021

Silmar Böhrer (Croniquinha) 21

Molhadas noites pluviais. Existem. Densas, imensas, presenças aguaceiras. Duas ou três da madrugada acordamos com o tropel das águas, pingos pingando, telhados derramando, vigor molhado da natureza.

As analogias. São muitas. Usamos seguidamente. Comparações? Não sei . . .

São verdades misturadas. Pensares que se cruzam.

Pensamentos também chegam repentinos - quais chuvas, invadem, agitam - rebordosas às vezes, serenidades noutras. Obuses ligeiros faiscando.

Eis a vida, cadinho de chuvas e trovoadas, de céu azul, sol intenso. Vivência atormentada, vivência alcandorada. Vivemos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Antonio Bruno e Ernesto Zwarg (Litoral Musical)


SANTOS POEMA

SANTOS POEMA, jardins pela praia
Cidade e Porto de Mar...
Tens a magia, dos barcos estranhos
na Barra esperando adentrar
 
Morros, varandas alegres...
Suspensas no arvoredo...
Santos, das ruas antigas,
Da beira do cais, que
escondem segredos...
 
Tuas paineiras floridas,
salgueiros que choram
nos velhos canais
 Santos, cuidado menina,
As tuas belezas, não percas jamais...
Os flamboyants florescentes
Palmeiras imperiais...
Ilha Urubuqueçaba
O verde reduto, nas ondas do mar...(bis)
 
Oh Santos - és linda demais!!!
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O MAR DE SÃO VICENTE

O mar de São Vicente é um gigante sem igual
Diz versos às estrelas, faz poemas no areal
E quando é lua cheia, das sereias traz o canto
Que se ouve muito ao longe
 
- Das ondas ao quebranto
- Das ondas ao quebranto (bis)
 
 Pequena não percebes o que diz o velho mar
Que o amor é infinito qual estrada de luar
E o vento repetia o que o mar me segredou
Quando fez São Vicente
 
- Até Deus se admirou
- Até Deus se admirou (bis)
 
As velas no horizonte e a história começou
Subindo a serrania o planalto conquistou
Aos olhos de uma índia o guerreiro se curvou
O mar da Ponte Pênsil
 
- Tudo isso me contou
- Tudo isso me contou (bis)
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O CORREIO DO LITORAL

Itanhaém da praia grande tão bonita
Como a saudade que é infinita (bis)
 
O Correio de Iguape
Que chegava a Cananéia
Namorava uma índia
Lá na Serra da Juréia (bis)
 
Saía de São Vicente
Nem ligava pra maré
Praia Grande, Peruíbe
Percorria tudo a pé (bis)
 
Itanhaém da praia grande tão bonita
Como a saudade que é infinita (bis)
 
Mas chegando na Juréia
Que nas nuvens se escondia
Só por causa dessa índia,
Do "correio" se esquecia (bis)
Certa vez na Primavera,
Nem chegou à Cananéia,
Dizem que ficou pra sempre
Lá na Serra da Juréia!
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PRAIA GRANDE

Quando a Ponte Pênsil cruzares
Prepara o teu coração
Pra vislumbrar Praia Grande
De Solemar, Boqueirão
 
É tanto sol, tanta praia
Renda de espuma de Yemanjá
Suas areias recebem
 Os mais belos versos do Mar
Praia Grande é a estrada
Que conduz ao firmamento
Caminhando pela praia
Eternize esse momento...
 
Quando as areias pisares
Eleva teus pensamentos
Manda mensagens pra longe
Pelo correio dos ventos
E pés descalços na areia
Juntinhos de braços dados
Ouçam a voz da Sereia
Que canta aos namorados
Praia Grande é a estrada
Que conduz ao firmamento
Caminhando pela praia
Eternize esse momento
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Ernesto Zwarg Júnior, nascido em Piracicaba em 1925. Morou por um tempo na capital paulista com seus pais e irmãos. Com a aposentadoria de seu pai, Ernesto Zwarg, a família toda mudou-se para Itanhaém nos idos de 1950, adotando a pitoresca cidadezinha para sua moradia. Foi o jornalista responsável e o editor dos jornais "Jornal de Itanhaém" e "Correio do Litoral". Vereador por três mandatos consecutivos e ambientalista, defendendo a ecologia na região que abrange da Baixada Santista até Cananéia, principalmente Itanhaém e a, hoje, Estação Ecológica da Juréia. Autor, junto com seus irmãos Antonio Bruno e Tino das MÚSICAS DO LITORAL
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Antonio Bruno Rocha Zwarg, nome artístico Antonio Bruno, nascido em São Paulo em 1923, foi músico (compositor, cantor e arranjador. Formado pela USP, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, lecionou Português na Rede Estadual e Municipal em São Paulo. Estudou Harmonia e Composição. Atuou como pianista e acordeonista nas principais estações de rádio e canais de TV de São Paulo, como solista, dirigindo conjuntos musicais e acompanhando cantores brasileiros e internacionais. Autor de músicas que foram gravadas por Maysa, Silvio Caldas, Isaura Garcia, Elizete Cardoso, e premiado no concurso Cinzano da Canção Brasileira com três músicas entre as dez primeiras colocadas. Junto com seus irmãos, Ernesto Zwarg e Ascendino Zwarg compôs muitas canções sobre Itanhaém e o Litoral e que resultou em Três Lps. Gravou, cantando no CD de Hermeto Pasqual "SÓ NÃO TOCA QUEM NÃO QUER", algumas músicas de sua autoria.

Fernando Sabino (Como melhorar a memória)

Antes que eu me esqueça, compro o livro e trago-o para casa. Há muito tempo ando atrás dele: “Como Melhorar Sua Memória”, de um americano cujo nome no momento não me vem à memória.

Logo às primeiras páginas o autor se propõe a fazer com que eu tenha uma memória tão extraordinária como a do General Marshall. Quem foi mesmo o General Marshall? Além do plano que tomou seu nome, o que mais que ele fez? Diz o autor que o General Marshall, durante a guerra, concedeu uma entrevista coletiva a mais de sessenta correspondentes. Cada um fez a sua pergunta, o general ouviu atentamente, e depois respondeu uma por uma, pela ordem, e lembrando-se ainda do nome de cada jornalista e do respectivo jornal.

Não peço tanto. Meu problema com relação à memória é muito mais primário e toca às vezes as raias da oligofrenia: simplesmente não sou capaz de guardar o nome ou a cara das pessoas.

Uma fisionomia familiar, que não identifico, deixa-me logo naquele estado de inquietação que prenuncia a eclosão desastrosa de uma gafe. Então bato cordialmente às costas de um desafeto, ou forjo outro, virando a cara a um velho conhecido. Já cheguei, por equívoco, a despedir-me num bar estendendo a mão a um por um dos que compunham uma roda de gente inteiramente desconhecida — a minha mesa era outra, fato que me escapou ao voltar do toalete. Certa vez, noutro bar, eu era servido por um velho e conhecido garçom, com ares de desembargador aposentado. Foi o homem ir lá dentro mudar de paletó para sair, e retive-o quando voltava, convidando-o para tomar alguma coisa: para mim agora se tratava mesmo de um conhecido desembargador aposentado.

Não que minha falta de memória se circunscreva aos bares, onde se bebe para esquecer. Ainda há pouco tempo eu me referia aos vexames que o esquecimento me tem feito passar, nascido da mais diabólica distração. Em matéria de nomes e fisionomias, então, o General Marshall é, para mim, um dos grandes gênios da humanidade: não creio que em toda a minha vida tenha guardado corretamente sessenta nomes na cabeça. O pior é que me vem sempre a insopitável cretinice de designar alguém que conheço por um nome semelhante ao seu, ou mesmo completamente diferente, sem nenhuma procedência, aumentando a confusão. É fácil perceber por que o Esmaragdo para mim é Maraschino, o Vinícius é Demetrius e o Josué é Samuel. Mas por que diabo chamo o Paulo Mendes Campos de Nicodemus e o Pedro Gomes de Ramon?

Pois encontrei no tal livro um capítulo especialmente dedicado ao meu caso. Propõe um método prático e infalível de ligar para sempre uma fisionomia ao seu verdadeiro nome, evitando confusões futuras e as distorções que fazem surgir na minha mente uma floresta de apelidos. Consiste simplesmente no seguinte: primeiro destacamos no rosto da pessoa que não queremos esquecer um detalhe qualquer — o bigode, por exemplo; depois ligamos o indivíduo em questão ao lugar em que o encontramos — vamos dizer a Praça General Osório; finalmente, juntamos seu nome — digamos Carlos Penteado — aos dois dados anteriores, numa frase que ficará para sempre na memória, representando simbolicamente a pessoa da qual não queremos nos esquecer. Assim: o General Osório penteou o bigode do Carlos. Ou então: o penteado do Carlos Osório foi feito pelo general de bigode.

Fácil, como se vê. Diz o livro que então a presença da referida pessoa fará logo saltar-nos na mente a frase que compusemos, e nosso único trabalho será traduzir. Como medida de precaução, devemos sempre que possível anotá-la num caderninho, para não esquecer.

Outra coisa que o livro ensina, e que não me saiu mais da cabeça, é que não adianta quebrá-la, tentando arrancar dela aquilo que a gente esqueceu. Esta lição, pelo menos, imediatamente aprendi: deixei de fazer força para me lembrar do que quer que seja, e continuo vivendo como sempre, sem me lembrar de nada, mas pelo menos sem me aborrecer mais com isso. Ainda há pouco me veio à lembrança um sugestivo exemplo com que ilustrar o meu progresso em matéria de memória, e que serviria de brilhante fecho a esta crônica. Como veio, foi — pouco importa: fecho-a assim mesmo.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.