terça-feira, 27 de abril de 2021

Varal de Trovas 495

 


Rubem Penz (Cebolinha: esse plano não vai dar certo)

Passei a infância inteira acompanhando os planos infalíveis do Cebolinha para derrotar a Mônica. E, seja por solidariedade masculina, seja por admirar quem encarna a mais vã esperança, torci pelos meninos em cada uma das histórias. No entanto, nenhuma das mirabolantes criações (havia sempre o Cascão para ser o coadjuvante) foi capaz de suplantar a força da heroína dentuça.

Recordo disso porque soube que Maurício de Sousa prometeu uma data para o casamento de Mônica e Cebolinha. Um destino a ser adivinhado por quem acompanha a série de desenhos desses personagens dirigida ao público teenager - tenho na memória a polêmica revista na qual os dois, jovens, trocaram o primeiro beijo. Enfim, mais ou menos o que aconteceu com os (ex) implicantes Hermione e Rony na saga Harry Potter, marido e mulher ao final,

Agora, se isso for mais um dos planos do Cebola (seu nome na versão crescida) para vencer a Mônica, tenho uma má notícia: não vai dar certo. Talvez ele tivesse sucesso nos longínquos anos 1960, quando as personagens saíram do lápis do criador para ganhar o mundo. Na época, a autoridade masculina predominava na composição familiar. Vivíamos o tempo do pai provedor e da mãe dona de casa - papéis expressos nas próprias tirinhas do bairro do Limoeiro.

Os tempos são outros. As "Mônicas" que ousavam ser donas da rua durante a infância, hoje também são donas do próprio nariz - no mínimo. Viram suas mães exercendo o intangível controle sobre os maridos pelos fios do sentimento (maneira de deixar o jogo parelho) e almejaram mais. Para elas, já não bastam os afazeres domésticos ou a maternidade; dominam desde o mercado de trabalho aos destinos da República. Os "Cebolinhas" piam cada vez mais fino.

Mas, se, ao contrário, o "sim" no altar for um armistício (para não dizer uma rendição), aí o rapaz pode estar agindo com esperteza. Alguns homens já perceberam que nosso projeto vencedor está muito mais parecido com as antigas estratégias femininas. Nada de confronto: contornos. Nada de violência: carinho. Nada de autoridade: cooperação. Nada de controle: liberdade.

Pois é, Cebola... Ter para si o coração da Mônica pode valer mais do que qualquer outro domínio que ela – elas? – tanto perseguem. Mesmo que o casamento esteja longe de ser um plano infalível. Quanto ao Cascão, por favor: nessa história, seja no máximo padrinho. Senão é avançar demais com a carruagem.

Fonte:
Rubem Penz. Enquanto tempo: crônicas. 
Porto Alegre: BesouroBox, 2013.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) VI

ÁGUAS

Quantas águas já moveram moinhos
mas hoje, dormem no fundo do mar,
ajudaram a desbravar caminhos
sem jamais do trajeto reclamar.

Transformaram caudalosos espinhos
em novas razões para caminhar,
carregando nos seus braços magrinhos
pesadas pedras sem desanimar.

De origens humildes e tão franzinas
vertentes serenas e borbulhantes,
sempre calmantes, limpas, cristalinas.

Sem um rumo certo, passos constantes
foram alimento para as turbinas
deixando os lares mais aconchegantes.
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PREÇO DA VIDA

O preço da vida, às vezes, é a morte,
de tantos que morrem sem nada ver
e o vento que nem sempre segue o norte
de longe a lembrança nos faz sofrer.

Outros prosseguem, numa luta forte,
sentem sob os pés tudo estremecer
e o amargo pranto talvez só conforte
uns poucos passos antes de morrer.

Muitos atalhos ao longo da estrada
simples hiato na mata dos sabores
velho e rude prato na mesa errada.

Sem saber por certo quais os valores
que andam à frente de cada jornada
há quem deixe a paz pra comprar temores.
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TERNURA

Se de Deus sede sente o caminhante
nos caminhos que sulcam esta terra,
mergulha na água viva que lhe dera
a chancela de mudar seu semblante.

Seja eterno o terno dom que lhe gera
novo afeto, noutro teto, aconchegante,
verta paz, converta em luz fulgurante,
todo o sinal onde o mal prepondera.

Que a fonte forme a ponte circulante
muito forte que à morte firme espera,
dando alento ao momento mais gritante.

Quando em tudo vemos dor fatigante
surge a voz com poder que recupera,
todo o passo em compasso relutante.
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VALORES

Dos muitos dotes que outrora valiam,
alguns se perderam na caminhada,
outros morreram porque só traziam
meras ilusões, sonhos e mais nada.

Hoje, o que temos são novos valores,
considerados fortes vanguardeiros,
de cada passo, eternos mediadores,
brilhando nos céus de tantos roteiros.

Sempre ligados nas transformações,
brilhantes frutos das lutas sociais,
temos nas mãos suas confirmações.

Ninguém pode com formas radicais
querer mudar as próprias convicções,
nem por pressões inconstitucionais.
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VOLTAS DA VIDA

Muitas voltas por nós já foram dadas
outras tantas quiçá, venhamos dar,
nesta vida palmilhando as estradas
sem ter medo de talvez fracassar.

Forte luz, procuramos dar à vida,
para que outras tantas possam brilhar,
mas nem sempre a vitória pretendida,
chega e traz mais vigor pra incentivar.

Quem souber caminhar entre os espinhos
sem nunca desviar dos seus caminhos
pode obter tudo o quanto quer buscar.

Nada tem que não possa ser obtido,
mesmo que parecer tudo perdido
e as chamas do querer já não brilhar.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Mosqueteiro do Milho

Há uma velha anedota (será que alguém ainda sabe o que é anedota?) segundo a qual o garçom perguntou ao cliente se ele gostava de rãs. O cliente respondeu: “Gosto sim, muito, porém não a ponto de comê-las”. Não tem nada a ver com isso, mas se alguém me perguntar se gosto de milho, responderei que gosto muito sim... a ponto de comê-lo do jeito em que vier.

Um dia, lá pelos meados dos anos 1970, publiquei no “O Diário do Norte do Paraná”, do amigo Frank Silva, uma crônica falando disso. Contei que desde criança curtia paixão pelas coisas feitas de milho: curau, mingau, paçoca, pipoca, polenta, canjiquinha, milho cozido. Era chegadão especialmente numa gostosura que em nossa família chamavam de “farinha de macacão” – um fubá grosso misturado com toucinho de porco, torrado num tacho. Com feijão preto e bananinha-ouro frita era a delícia das delícias.

Tá, mas vejam o que aconteceu: nem bem a crônica entrou em circulação, bateu na minha casa um rapaz trazendo um pacotão cheio de pacotinhos com subprodutos do milho. Tudo o que você possa imaginar. “Foi Seu Oswaldo que mandou, e mandou um abraço também”.

Oswaldo Chiucheta. Só podia ser ele. O mosqueteiro do milho. Um dos personagens mais simpáticos e irrequietos que Maringá já conheceu. Tudo o que fazia era movido a paixão e com total vigor.

Nascido na heroica e bela Concórdia, veio para cá em 1956, já decidido a mexer no enredo da cidade. Todo mundo aqui só falava em café; ele chegou falando de trigo. Montou na Avenida Mauá o primeiro moinho do norte/noroeste do Paraná. Depois passou a trabalhar também com milho – nasceu a Trigomil. Simultaneamente, como bom filho do meio-oeste catarinense, Chiuchetta foi pioneiro aqui na criação de suínos de alta linhagem.

Enquanto isso, na mesma época, foi um dos líderes na campanha pela criação do Instituto Agronômico em Londrina e ajudou na fundação da Associação das Indústrias Moageiras de Milho do Brasil.

Sim. Do milho. Na verdade o guerreiro Chiuchetta veio para Maringá programado para incentivar o cultivo do trigo na terra dos cafezais. No entanto penso que ele gostava mesmo era de lidar com o milho. Achava que o milho era o cereal mais tipicamente brasileiro, presente em todas as cozinhas nacionais, além de ser a ração mais natural para todos os animais dos pastos e todas as aves domésticas.

Um dia o jornalista Sérgio da Costa Franco escreveu no jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre: “Não conheço defensor mais ardente da cultura do milho, de sua moagem e do consumo dos seus derivados do que o industrial Oswaldo Chiuchetta, estabelecido em Maringá”.

De fato era. E com razão. O trigo pode ser mais chique, mas o milho é muito mais gostoso. Tudo o que é feito de milho é uma delícia, além de saudável. Tanto que comi todo aquele pacotão de canjica e fubá que o bom Oswaldo me mandou de presente, e nem engordei.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 08-4-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Lima Barreto (Uma Vagabunda)

É um caso bem curioso o que te vou contar e que me parece digno de registro. Para muitos parecerá fantástico, mas como tu sabes, já houve quem dissesse que a realidade é mais fantástica do que imaginamos.

— Dostoievski?

— Sim, creio que foi ele, embora não afiance que fosse com estas palavras. Sabes bem como são as palavras dele?

— Não, mas estou certo que não lhe trais o pensamento... Enfim! Isso não vem ao caso. Conta lá a história.

— Conto-a a ti com todos os detalhes, para que possas tirar dela todo o profundo sentido que tem. Se tratasse de outro, havia de abreviá-la, transforma-la-ia em anedota, mas tratando-se de ti, não há nada que seja prolixo para a compreensão de semelhante fato.

Eles estavam no Campo de Sant'Ana e aquelas cotias sempre ariscas e aquelas saracuras de galinheiro, apesar de tudo, não deixavam de dar um toque selvagem naquele jardim educado.

O narrador continuou:

— Foi isto há alguns anos passados. Bebia eu muito nesse tempo, muito mesmo porque tinha por divisa ou tudo ou nada. Além disso adotam uma frase não sei de que autor, como complemento da divisa.

— Qual é? perguntou o outro.

— "O burguês bebe champanha; o herói bebe aguardente".

— Essas duas sentenças cobiçadas deviam dar resultados surpreendentes.

— Deram como tu sabes, mas eu te quero contar uma que tu não sabes.

— Duvido.

— Pois vais ver.

— Não acredito, pois sei todas as tuas proezas desse tempo.

— Essa proeza, porém, não é minha, é de outro ou de outra.

— Que outra?

— Conheceste a Alzira?

— Sim! Aquela vagabunda que ia á casa do "Guaco", na rua do Carmo.

— É isso mesmo: aquela vagabunda que ia à casa do "Guaco", na rua do Carmo. É isso.

— Homem! Pelo modo por que falas, parece que tiveste paixão por ela...

— Não tive paixão, mas sou-lhe grato.

— Por quê?

— Lembras-te bem que ela bebia conosco calistos de "Guaco".

— Lembro-me bem.

— E que ela tivera um passado de lustre, de opulência, no alto mundanismo?

— Perfeitamente. Contudo, Frederico, eu penso que ela exagerava um pouco.

— É verdade. Aquele caso que ela nos contou de ter perdido uma noite, não sei em que jogo, em São Paulo, oitenta contos, não me parece verossímil. Entretanto...

— Não é só isso. Todas as sumidades da República haviam sido seus amantes. Ora, isso não é possível, porquanto muitas delas, quando começaram, eram pobretões que não podiam aspirar a semelhante "objeto de luxo".

— Tens razão, mas...

— Uma coisa: quando me recordo da Alzira, só me vem à mente o seu famoso chapéu-de-chuva de alpaca, com que, às vezes, quando embriagada, desancava um qualquer e ia parar no xadrez.

— Eu, quando me vem ela à lembrança, com a sua fisionomia triste, fanada, é com o seu orgulho de ter tido muito dinheiro, por meios tão baixos...

— A observação é boa. Ela não parecia ter dor em recordar os belos dias passados, parecia antes ter prazer... Afinal, que tem ela com a tua história?

— Estavas fora, lá, para Alagoas. Continuei a frequentar o "Guaco", onde ia todas as tardes encontrar os companheiros. Ocasionalmente topava com Alzira e pagava-lhe um cálice. As nossas relações eram as mais amistosas possíveis. Ela me contava as histórias de aventuras passadas, quer as de jogo, quer as de amor e eu as ouvia para aprender a vida com aquela mulher batida pela sorte, pelo infortúnio e pela maldade dos homens. Gostava até da emoção que ela sentia, narrando o seu triunfo, quando, trepada no alto dos carros de Carnaval, era aclamada pelas famílias, nas ruas apinhadas por onde passava. Pelo modo que ela me contava esses episódios, julguei que Alzira nesses dias se supunha resgatada. Talvez tivesse razão...

— Coitada! fez o outro.

— Bem. Como te contava, ia sempre ao "Guaco" e, em certo dia do pagamento, lá fui. Tinha os vencimentos quase intactos na algibeira. Encontrei-a, sentei-me e pedi cerveja. Ela não quis, ficou no seu cálice habitual. Em dado momento, ao passar o proprietário, o Martins - tu te lembras dele?

— Pois não.

— Disse-lhe: Martins, vê quanto te devo. Ele respondeu e, logo que ele se afastou, Alzira perguntou-me: "Frederico, tens dinheiro?" Disse-lhe que sim. E ela me pediu: "Podes 'passar' cinco mil-réis?" Não me fiz esperar e dei-lhe uma nota de cinco mil-réis que tinha na algibeira do colete. Ela guardou e continuou a conversa. Veio a hora de sair e de pagar a despesa atual e as passadas. Martins fez a soma e tirei da algibeira da calça o grosso do dinheiro, dando-lhe uma nota que satisfizesse a conta. Logo que o Martins se dirigiu ao balcão, ela me disse ao ouvido: "Tu não podes dar mais cinco mil-réis?" Disse-lhe peremptoriamente: não! Não teve um momento de hesitação: levantou-se e atirou-me a nota na cara. Foi saindo e descompondo-me baixamente.

— Era muito malcriada.

— Pensei isso e o Martins aconselhou-me a evitá-la, por isso. Um acontecimento posterior, porém, fez-me julgá-la melhor.

— É daí que...

— Vais ouvir: passaram-se meses e, para publicar um livro, meti-me em complicações. Se o livro deu dinheiro eu não sei, porque só perdi com ele, entretanto, fez um sucessozinho, mas cai de roupas, etc., etc. Uma noite estava sentado entre desanimados, como eu, num banco do largo da Carioca, considerando aqueles automóveis vazios, que lhe levam algum encanto. Apesar disso, não pude deixar de comparar aquele rodar de automóveis, rodar em tomo da praça, como que para dar ilusão de movimento, aos figurantes de teatro que entram por um lado e saem pelo outro, para fingir multidão, e como que me pareceu que aquilo era um truque do Rio de janeiro, para se dar ares de grande capital movimentada... Estava assim, quando me bateram ao ombro: "Oh! Frederiquinho!"

— Quem era?

— Era a Alzira.

— Queria ela alguma coisa?

— Queria dar-me. Nada mais.

— O quê?

— A passagem do bonde.

— Tu não a tinhas?

— Tinha. Disse-lhe isso até; mas o meu aspecto era da mais completa miséria. Minha roupa estava sebosa, meu chapéu de palha muito sujo, cabeludo, barba velha; e, além de tudo, sobreviera-me uma fraqueza de pálpebras, que me obrigava a usar uns sinistros óculos escuros de mendigo semi-cego. Apesar da minha recusa, ela insistiu de tal modo, de forma tão cheia de piedade e ternura, que me pareceu uma cruel desfeita não lhe aceitar o cruzado.

— Aceitaste?

— Aceitei.

— Curioso.

— Está aí a vagabunda do "Guaco", meu caro Chaves.

Levantaram-se, saíram do jardim e o advento da noite, misteriosa e profunda, era anunciado pelo acender dos lampiões de gás e o piscar dos globos de luz elétrica, naquele magnífico fim de crepúsculo.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. 
Publicado originalmente em 1920.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 11

 féretro para uma gaveta
 
esta a gaveta do vício
rimbaud tinha uma
muitas hendrix
mallarmé nenhuma

esta a gaveta
de um armário impossível
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fazia poesia

e a maioria saía
tal a poesia que fazia

fazia poesia

e a poesia que fazia
não é essa
que nos faz alma vazia

fazia poesia

e a poesia que fazia
era outra filosofia

fazia poesia

e a poesia que fazia
tinha tamanho família

fazia poesia

e fez alto
em nossa folia

fazia tanta poesia
ainda vai ter poesia um dia
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entro e saio

dentro
é só ensaio
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a máquina
engole página
cospe poema
engole página
cospe propaganda

MAIÚSCULAS
minúsculas

a máquina
engole carbono
cospe cópia
cospe cópia
engole poeta
cospe prosa

MINÚSCULAS
maiúsculas
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você para
a fim de ver
o que te espera

só uma nuvem
te separa
das estrelas
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não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino
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o sol escreve
em tua pele
o nome de outra raça

esquece
em cada uva
a história do céu
do vento
e da chuva
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confira

tudo que respira
conspira
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ana vê alice
como se nada visse
como se nada ali estivesse
como se ana não existisse

vendo ana
alice descobre a análise
ana vale-se
da análise de alice
faz-se Ana Alice
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riso para gil
teu riso
reflete no teu canto
rima rica
raio de sol
em dente de ouro

“everything is gonna be alright”

teu riso
diz sim
teu riso
satisfaz

enquanto o sol
que imita teu riso
não sai

Fonte:
Paulo Leminski. Polonaises. 
Curitiba: Ed. do Autor, 1980.

Rachel de Queiroz (O Telefone)


FESTA COM FOGUETE, discurso e banda de música marcou a inauguração da Companhia Telefônica na cidade de Aroeiras. Se bem não fosse grande a rede e poucos os aparelhos instalados, mais ou menos uma dúzia. Os telefones oficiais eram o da delegacia, o da estação do trem, o da Câmara e o da casa do juiz; e, entre os particulares, havia dois especialmente importantes, que uniam pelo fio elétrico o casarão do major Francisco Leandro, chefe do partido marreta, com o sobrado do coronel Benvindo Assunção, chefe rabelista, ricaço, com loja grande no térreo, de onde lhe vinha a fortuna.

E, tanto numa casa como na outra, a presença do telefone, suscitando a possibilidade de uma comunicação impossível, criava uma tensão perigosa.

Imagine-se que já há umas duas gerações aquelas famílias não se falavam, a não ser em hora de briga. Em perto de cinquenta anos, o mais que um Assunção ouvia de um Leandro, eram frases assim: “Se prepare pra morrer, cabra!” ou: “Essa eleição foi roubada!” ou ainda: “Se é homem puxe a arma.”

Também nessas horas de arrebatamento, diziam outras coisas, dessas que os jornais chamam de “termos de baixo calão”.

Houve igualmente uma frase dita por um Leandro a um Assunção e que ficou célebre: na famosa briga do adro da matriz, quando Carlinho Leandro baleou de morte o moço Donato Assunção, a bela Sinhá Leandro, mulher de Carlinho, que saía da missa atrás do marido, ajoelhou-se ao pé do moribundo, disse: “Jesus seja contigo”, e depois lhe cerrou os olhos. Aí, Carlinho quis matar Sinhá no sufragante, achando que aquele “Jesus seja contigo” já era começo de adultério. Sinhá saiu correndo e gritando através da praça e se asilou em casa de um irmão; e desse caso nasceu uma briga subsidiária, que felizmente não rendeu muito. Pois Sinhá, que estava grávida, morreu de mau sucesso; e o irmão, pegou-o a febre amarela, numa viagem que fez ao Rio de Janeiro.

Um Assunção, para um Leandro, era assim uma ideia proibida, imagem proibida, palavra proibida. Nas melhores fases de tréguas, quando um Assunção ia pela calçada e avistava um Leandro, dobrava a primeira esquina ou, na falta de esquina, tomava ostensivamente a calçada oposta.

Ainda uns poucos meses atrás, passando pela rua do Carmo o coronel Benvindo, montado no seu melado campolina (de nome Dois de Ouro), e o filho de Chico Leandro chegando à calçada, o menos que pôde fazer foi cuspir no rastro dele. Frente a frente só se encontravam em hora de luta, e até na igreja tinham os seus bancos separados, um do lado do altar de são José, o outro no da Boa Morte.

Pois agora lá estava o telefone, como uma estrada franca, uma porta aberta entre as duas casas. Com o seu ar preto e sonso, pendurado na parede do corredor, bastava alguém rodar a manivela, dizer à telefonista o número inimigo, o dos Leandro era 15-22, o dos Assunção era 15-21 (pelo seguro, para não haver preferências, o vigário, presidente da Companhia Telefônica, tirou os números na sorte) — e logo, do lado proibido, alguém responderia!

Calcule só! Ali, junto ao retrato mortuário do finado Donato, debaixo do quadro do Coração de Jesus, se poderia escutar a voz de um Leandro. Era uma tentação do inferno.

E nessas coisas meditava o coronel Benvindo, balançando-se na sua rede branca, armada no alpendre do sobrado, que dava para o jardim. Aspirava o cheiro das rosas abertas depois da chuva e olhava de viés para o bicho falante, tão quieto na sua caixa envernizada. Ora, sim, senhor, ter o Chico Vinte ao alcance da voz! (O Chico Vinte assim se chamava por ser o vigésimo filho do finado Carlinho Leandro, havido da sua segunda esposa, que lhe dera quatorze filhos, depois dos seis da desditosa Sinhá.) Chico Vinte, sendo, embora, o caçula, herdara do pai a chefia, por ser o mais disposto, o mais amante da família, o mais dedicado à política, o que se deixara ficar pelas Aroeiras, criando gado e destilando cachaça na sua fazenda da Trapoeiraba. A velha casa da família, na praça da Matriz, com dezoito portas e janelas de frente, oito para a praça e dez no oitão, era o seu pouso na cidade.

Sim, essas coisas pensava o coronel Benvindo, enquanto fazia a sua sesta. Pensava nelas, quando de repente o telefone tocou, como se respondesse àqueles pensamentos. Tocou, repetiu, bem alto e impertinente.

O pessoal de casa acorreu todo para ver o que seria, mas ninguém se atreveu a pegar o fone. Falar no telefone era falar em nome da casa, prerrogativa do chefe da família. E assim o coronel, quando achou que a campainha já tocara o suficiente, levantou-se da rede e atendeu. O padre lhe ensinara o que dizer:

— Alon! — berrou, pois, o velho, na sua voz fanhosa.

Do outro lado, uma fala irreconhecível, num falsete disfarçado, gritou em resposta ao alon:

— É você, Benvindão?

Assombrado com a insolência, o coronel nem soube o que responder. E então o falsete deu um riso e soltou a injúria suprema:

— Benvindão, vim te convidar! Hoje tem missa por alma da Pomba Rola!

Pomba-Rola era o gordo esqueleto de família da estirpe dos Assunção. Não vê que são descendentes do antigo vigário colado de Sant’Ana das Dores; mas o padre velho, em vez de fazer igual aos outros do seu tempo, e escolher moça de família, como tantos que chegavam a trazer uma prima para casa, vestida de noiva, dando assim origem a uma família que podia não ser legal, mas era respeitável; o padre velho, não, foi arranjar amizade com uma rapariga de ponta de rua, por alcunha a Pomba-Rola, a quem montou casa e deu estado. Verdade que, depois de ama do vigário, mãe de sua prole numerosa, na qual se distinguiram dois doutores e um alferes herói do Paraguai, Pomba-Rola assumiu o seu nome legítimo de dona Dorotéia e se tornou matrona de respeito. Ademais, agora, já estava morta há quase um século. Contudo, quando alguém queria insultar um Assunção, era só falar em pomba, em rola, ou nas duas juntas. Também usavam arrulhar de longe, imitando a rolinha fogo-pagô.

Quanto sangue correu na rua, lá nas Aroeiras, por causa dessa ave inocente, saberá são Miguel Arcanjo, que toma nota dessas coisas, e mais ninguém.

E pois o coronel, ao ouvir aquela palavra, soltou o fone da mão como se tivesse um bicho dentro, e o fone ficou balançando no fio, tal uma cobra que acabasse de morder. Mas durou pouco o assombro do velho. Com aquela rapidez de ação que lhe dera a chefia do seu clã, meteu a mão na manivela e se pôs a berrar para a telefonista:

— Quem foi o moleque sem-vergonha que falou agora pra minha casa?

Maria Mimosa, filha da professora, que fizera estágio em Fortaleza aprendendo para telefonista, honrou o ensino que recebera e respondia apenas as fórmulas regulamentares:

— Faz favor? Número, faz favor?

O coronel, cego de raiva, berrou mais alto:

— Maria Mimosa, deixe de se fazer de boba! Sou eu que estou falando! Me diga já quem foi o malcriado que ligou pra cá!

Meio trêmula, mas ainda oficial, a voz da telefonista resistiu:

— Desculpe, coronel, mas o regulamento não permite revelar o nome do assinante que pediu ligação... Temos o segredo profissional...

— Maria Mimosa, se você não contar já esse segredo profissional, eu vou aí e rebento essa joça!

Maria Mimosa gaguejou um pouco e acabou confessando tremulamente:

— A chamada partiu de 15-22...

— Casa de quem, com todos os diabos?

Mais trêmula ainda, já em prantos, prevendo a gravidade da sua revelação, Maria Mimosa confessou:

— É a residência do major Francisco de Assis Leandro...

Devagarinho, com mão firme, o coronel depôs o fone no gancho. O entrevero com Maria Mimosa lhe dera tempo para recuperar a sua famosa calma dos momentos de ação. Majestosamente, desceu até a loja. Mandou espalhar uns recados. Aos poucos foram chegando os seus homens de confiança. Dois cabras que mandara vir há tempos do riacho do Sangue. Zé Vicente, seu caixeiro, Amarílio, cabra roxo-gajeru que tinha fama de perverso e a moda de reclamar contra pau de fogo, que não é arma de macho: com ele, só no aço frio. Depois veio do cercado, no Juremal, o cavalo Dois de Ouro. O coronel montou, acompanhado por dois cavaleiros: o dito Zé Vicente e seu Pedrinho Queiroz, o genro, marido de Juvenília, a filha mais velha, meio feiosa, mas que tocava piano e lia livro em francês.

Os demais seguiam a pé, cada um com o seu rifle na bandoleira; até Amarílio carregava o seu, não por gosto, dizia ele, mas pelo “regulamento”.

Alcançando a praça da Matriz, parou a expedição para tomar chegada. Já correra, na rua, a nova da saída do grupo encangaçado, e já se apinhavam curiosos em cada esquina. O delegado de polícia trancou os praças na cadeia (era partidário do coronel Benvindo) para “evitar arruaças”.

Chegando defronte à porta da casa das dezoito portas e janelas, o coronel sofreou o Dois de Ouro. Sem desmontar, bateu palmas. Ninguém atendeu. Mas escutou-se, no lado do oitão, o fechar brusco de uma janela. O coronel então chegou mais perto, e com o cabo do chicote martelou a porta e gritou:

— Ô de casa!

A medo entreabriu-se uma rótula e apareceu na frincha o olho enviesado de uma cunhã, perguntando quem era.

— Quero falar com o dono da casa!

A cunhã abriu mais um dedo de janela:

— Major Chiquinho foi no sítio, só vem de noite.

— Pois que me apareça outro homem! Não haverá outro homem nessa
casa?

Aí a porta da rua se escancarou nos dois batentes e surgiu a magra figura de Francisquinho, também chamado o Vinte-e-Um, porque, além de ser o filho único de Chico Vinte, era viciado em baralho, no jogo do vinte e um.

Dizia-se que Francisquinho era tísico. Magrelo, nos seus dezoito anos, a mãe o queria padre, mas o seminário o expulsara depois de umas histórias mal contadas. E, no abrir da porta, também Francisquinho foi gritando:

— Homem tem! Tá falando com ele! Mas homem é que não estou vendo! Só um baiacu velho em cima de um cavalo!

Com o que dizia, queria era distrair a atenção dos atacantes. Pois no que falava, puxou a mão que trazia às costas e na mão vinha uma garrucha com que atirou na direção do coronel quase à queima-roupa. Por fortuna do velho, no momento em que partia o tiro ele levantava a mão com o chicote; a carga de chumbo passou-lhe raspando entre a costela e o braço e foi pegar bem na arca do peito do infeliz Zé Vicente, que caiu de borco por cima do cavalo. Aí Amarílio se adiantou com a faca nua na mão. Embolou com o meninote e rolaram os dois pela calçada. O coronel apeou do melado e se meteu casa adentro, sem olhar para trás nem tirar o chapéu. Subia os três degraus do corredor quando se ouviu um alarido de mulher chorando, depois uma voz severa a comandar:

— Parem com essa prantina!

E dona Joaquininha, mulher de Chico Vinte, apareceu na porta da sala a perguntar, muito calma:

— Que é que o senhor quer na minha casa, coronel Benvindo?

O velho tirou o chapéu:

— Minha senhora, eu só quero punir um criminoso.

Dito isso, passou pela dona, entrou na sala, localizou o telefone e o indicou para os dois cabras que o seguiam na pisada:

— Arranquem esse bicho daí.

E quando os homens puxaram a faca para cortar os fios, o coronel recomendou:

— Não. Arranquem. Quero com tripa e tudo.

Os cabras fizeram força, a caixeta do telefone se largou dos pregos, junto com pedaços de reboco; e as entranhas da coisa falante ficaram indecentemente à mostra.

— Levem pra rua.

Puseram o telefone no chão da praça, no meio do capim-de-burro, todo eriçado de fios, como se fosse uma aranha-caranguejeira. E aí o coronel mandou acender fogo com os paus arrancados à cerca de um terreno baldio.

A chama subiu. “Em cima do bicho! Em cima do bicho!”, recomendava o coronel. E o telefone ardeu muito tempo, exalando um cheiro ruim de celuloide e borracha queimada. Por fim, só ficaram os pedaços de ferro e louça dos isoladores, entre as cinzas.

O coronel se manteve imóvel e calado, assistindo, enquanto os seus cabras, de armas na mão, guardavam o fogo. Ao acabar tudo, o velho correu os olhos pelo povo que espiava medroso e disse bem alto:

— Foi pra aprender a não soltar má-criação a homem.

Vinte-e-Um não morreu, embora a facada de Amarílio lhe houvesse ofendido os bofes. Morrinhou, morrinhou, acabou escapando, sempre magro e amarelo. Quem morreu foi o pai, Chico Vinte. Veio-lhe uma paixão tão grande, ao saber da desfeita, que lhe deu um ar. Entrevou-se e, com poucos meses, era finado.

E o Leandro defunto, o filho fraco do peito, a guerra entre as duas famílias se amainou. Benvindão ficou chefe absoluto e fez o prefeito e seis oitavos da Câmara, na primeira eleição. Agora, teve uma coisa: nunca mais, em casa de um Leandro ou de um Assunção, na cidade de Aroeiras, se viu um telefone.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco: crônicas. 
RJ: J. Olympio. Publicado em 1999.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Silmar Böhrer (Croniquinha) 22

Se me fosse dado comparar e descrever musicalmente este dia, eu começaria dizendo que pela manhã - cedo - a orquestra tomava o seu lugar no palco do espaço para a grande apresentação de hoje (ouvia-se o barulho de instrumentos, viam-se luzes que se cruzavam, sentia-se que algo de muito importante seria apresentado).

Como intróito os músicos encenaram uma melodia de ritmo bastante rápido - uma sinfonia de Beethoven, talvez - e então passaram para um huapango mexicano, no melhor estilo do Caribe. Como o ritmo foi se tornando mais suave, executaram um sublime bolero, daqueles que fazem lembrar as casas noturnas de Acapulco.

Após a apresentação destas melodias, por volta da onze horas, os grandes músicos instalados no proscênio do espaço iniciaram uma valsa vienense, no mais puro sabor europeu, e alcançaram a tarde neste ritmo entre dócil e sonífero que, penso, embalará meus sentimentos ao longo das horas.

Quase desnecessário dizer-se que a sinfônica é composta por elementos respeitáveis - as nuvens, os ares, a gravidade - e os instrumentos têm acústica e sonoridade formidáveis, todos com um desempenho perfeito dentro do conjunto do tempo - parte integrante da orquestra da natureza.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Voltaire (Sonho de Platão)

Platão sonhava muito, e não menos se tem sonhado até agora. Imaginava ele que o ser humano era outrora duplo e que, como castigo de suas faltas, foi dividido em macho e fêmea.

Demonstrara que não pode haver senão cinco mundos perfeitos, porque, na matemática, só há cinco corpos regulares. A sua República foi um de seus grandes sonhos. Sonhara ainda que o dormir nasce da vigília e a vigília do dormir, e que se perde infalivelmente a vista contemplando um eclipse, a não ser numa bacia d’água.

Eis aqui um de seus sonhos, que não é dos menos interessantes. Fantasiou que o grande Demiurgo, o eterno Geômetra, depois de povoar o infinito de globos inumeráveis, quis experimentar a ciência dos gênios que haviam testemunhado o seu trabalho. Deu a cada um deles uma pequena porção de matéria para que a afeiçoasse a seu modo, da mesma forma que Fídias e Zeuxis distribuiriam a seus discípulos o material para fazerem estátuas e quadros, se é permitido comparar as pequenas coisas às grandes.

Demogórgon recebeu, como partilha a porção de lama que se chama a terra; e, tendo-a arranjado tal como hoje a vemos, julgava ter feito uma obra-prima. Pensava haver subjugado a inveja e esperava elogios, até mesmo de seus confrades; muito surpreso ficou de ser recebido com forte vaia.

Um deles, que não poupava gracejos, disse-lhe: — Na verdade, fizeste um excelente trabalho: dividiste o teu mundo em dois e puseste um grande espaço d’água entre os dois hemisférios, a fim de que não houvesse comunicação entre ambos. Os humanos vão enregelar-se nos teus dois polos e morrer de calor na tua linha equatorial. Distribuíste prudentemente, pelas terras, grandes desertos de areia, para que os viajantes morressem de fome e de sede. Estou muito satisfeito com os teus carneiros, as tuas vacas e as tuas galinhas; mas, francamente, não vou muito com as tuas cobras nem com as tuas aranhas. As tuas cebolas e alcachofras são excelentes; mas não concebo qual foi a tua intenção ao cobrir a terra de tantas plantas venenosas, a menos que tivesses o desejo de envenenar seus habitantes.

Parece-me, por outro lado, que formaste umas trinta espécies de macacos, muito mais espécies de cães e apenas quatro ou cinco espécies de homens; é verdade que deste a este último animal aquilo a que chamas razão; mas, para te falar com toda a sinceridade, essa tal razão é demasiado ridícula e muito se aproxima da loucura.

Parece-me aliás que não fazes grande caso desse animal de dois pés, visto lhe haveres dado tantos inimigos e tão pouca defesa, tantas doenças e tão poucos remédios, tantas paixões e tão pouca sabedoria. Pelo que se vê, não queres que fiquem muitos desses animais sobre a face da terra: pois, sem contar os perigos a que os expões, arranjaste de tal modo as coisas que um dia a varíola arrebatará regularmente todos os anos a décima parte dessa espécie e a irmã dessa varíola envenenará a fonte da vida nos nove décimos restantes; e, como se ainda não bastasse, fizeste de modo que metade dos sobreviventes se ocupará em demandas e a outra metade em matar-se. Eles, sem dúvida, muito te ficarão devendo, e fizeste na verdade uma bela obra.

Demogórgon enrubesceu: bem sentia que na sua obra havia mal moral e mal físico; mas sustentava que havia mais bem que mal.

— É fácil criticar – disse ele, – mas achas tão fácil fazer um animal que seja sempre razoável, que seja livre, e que jamais abuse da sua liberdade. Pensas que, quando se tem de nove a dez mil plantas para fazer proliferar, seja tão fácil impedir que algumas dessas plantas tenham qualidades nocivas? Imaginas que, com certa quantidade de água, de areia, de lama e de fogo, não se possa ter nem mar nem deserto? Acabas, senhor trocista, de arranjar o planeta Marte; veremos como te houveste com os teus costados e que belo efeito não hão de fazer as tuas noites sem lua; veremos se entre a tua gente não há nem loucura nem doença.

Com efeito, os gênios examinaram Marte e caíram de rijo sobre o galhofeiro. Nem o grave gênio que modelara Saturno foi poupado; seus confrades, os fabricadores de Júpiter, de Mercúrio, de Vênus, tiveram cada um de suportar censuras.

Escreveram grossos volumes e brochuras; disseram frases de espírito; fizeram canções, ridicularizaram-se uns aos outros; as facções se desmandaram na linguagem; até que o eterno Demiurgo impôs silêncio a todos:

— Fizestes (lhes disse ele) coisas boas e coisas más, porque tendes muita inteligência e sois imperfeitos; as vossas obras durarão somente algumas centenas de milhões de anos; após o que, já possuindo mais experiência, haveis de fazer coisa melhor: só a mim é dado fazer coisas perfeitas e imortais.

Eis o que Platão ensinava aos discípulos. Quando parou de falar, um deles disse-lhe:

– E aí então vós acordastes.
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Conto escrito na segunda metade do século XVIII.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) VI, pantuns


AMOR INFINITO


Trova-tema:

Tudo é tão encantador,
Nosso amor é tão bonito,
"que em cada noite de amor
Ultrapassa o infinito."
(Gislaine Canales - RS +)


Nosso amor é tão bonito!
Até nos leva a cantar...
Ultrapassa o infinito
nossa vontade de amar.

Até nos leva a cantar
baladas e cavatinas...
Nossa alegria de amar
vem das paragens divinas.

Baladas e cavatinas,
canto para ti, querida;
Vêm das paragens divinas,
nos ternos sonhos da vida.

Canto para ti, querida,
meus versos de trovador...
Nos ternos sonhos da vida,
tudo é tão encantador!

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MAU CAÇADOR

Trova-tema:

-Caçador, foste pra o mato,
mataste mil passarinhos,
e eu te pergunto, insensato:
Quem leva comida aos ninhos?
(José Amaral - Natal/RN)

Mataste mil passarinhos
sem a menor piedade.
Quem leva comida aos ninhos,
onde impuseste a orfandade?

Sem a menor piedade,
foste aos sítios inocentes,
onde impuseste a orfandade
e a fome, que tu não sentes.

Foste aos sítios inocentes
com a morte, de surpresa,
e a fome que, que tu não sentes,
para espalhar a tristeza!

Com a morte, de surpresa,
ficou provado em teu ato:
Para espalhar a tristeza,
caçador, foste pra o mato!

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SOM DA VIOLA

Trova-tema:

Na execução de meus dedos,
toco na viola bela;
Ela guarda meus segredos
e eu guardo os segredos dela.
(Chico Mota)


Toco na viola bela,
buscando as rimas do além,
e eu guardo os segredos dela
sem revelar a ninguém.

Buscando as rimas do além,
tanjo a viola querida;
Sem revelar a ninguém,
ela embala minha vida.

Tanjo a viola querida,
ao som que há muito me encanta;
Ela embala minha vida,
faz milagre sem ser santa.

Ao som que há muito me encanta,
ela relembra segredos;
Faz milagre sem ser santa,
na execução de meus dedos.
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SONHO TRISTE

Trova-tema:

– Disfarço meu sonho triste
Nas cordas do bandolim,
porém o chorinho insiste,
sem querer, fala por mim.
(Selma Patti Spinelli – São Paulo/SP)


Nas cordas do bandolim,
eu busco a tranquilidade.
Sem querer, fala por mim
um som de antiga saudade.

Eu busco a tranquilidade
de um coração de criança;
Um som de antiga saudade
me traz querida lembrança.

De um coração de criança,
a flor do sonho mais lindo
me traz querida lembrança,
na aurora que vem sorrindo.

A flor do sonho mais lindo
em minha alma ainda existe...
Na aurora que vem sorrindo,
disfarço meu sonho triste.

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SONHOS DE CRIANÇA

Trova-tema:

– Em meus sonhos de criança,
desejei pescar a lua,
e pus anzóis de esperança
nas poças d'água da rua.
(Delcy Canalles – Porto Alegre/RS)

Desejei pescar a lua
pela imagem refletida
nas poças d'água da rua
que, para mim, tinha vida.

Pela imagem refletida,
embalei doce quimera,
que, para mim, tinha vida
como a flor na primavera.

Embalei doce quimera
buscando o que sempre quis,
como a flor na primavera,
e fui, de fato, feliz.

Buscando o que sempre quis,
fiz com Deus uma aliança,
e fui, de fato, feliz
em meus sonhos de criança.

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TEMPOS DE CRIANÇA

Trova-tema:

– Nos meus tempos de criança,
sem-dores nem pesadelos,
tinha a brisa da esperança
pra brincar nos meus cabelos.
(Antônio Roberto - Campos/RJ)


Sem dores nem pesadelos
no meu coração liberto,
pra brincar nos meus cabelos
minha mãe ficava perto.

No meu coração liberto,
na ternura de meu ninho,
minha mãe ficava perto
pra me apontar o caminho.

Na ternura de meu ninho,
havia um anjo do bem
pra me apontar o caminho...
Fui feliz como ninguém.

Havia um anjo do bem,
a vida era linda e mansa...
Fui feliz como ninguém
nos meus tempos de criança.


Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. 
Natal/RN: CJA Ed., 2014

Luís Fernando Veríssimo (Sissica)

Não sei se fecha com a estatística geral, mas, naquela sala de espera do aeroporto, entre trinta pessoas, uma tinha telefone celular. E ele tocou.

— Alô? Eu. Oi, querida.

As outras vinte e nove pessoas continuaram fazendo o que se faz numa sala de espera de aeroporto quando o avião atrasa. Lendo, tentando dormir, olhando fixo para nada. E fingindo que não ouviam a conversa.

— Não, ainda estou no aeroporto. O avião atrasou. Sei lá. Devo chegar pela meia-noite.

Um homem mais velho sacudiu a cabeça com leve irritação. Saco, ser obrigado a ouvir a conversa dos outros daquele jeito. E não poder ouvir o que estavam dizendo do outro lado.

— Você vai me esperar acordada? Ah, é? Quero só ver. Qual, aquele curtinho? Ai meu Deus. Já estou vendo. E o que é que você vai me dar? Hein?

Houve uma certa inquietação em torno do homem que falava. Um certo mexe-mexe nas cadeiras e arrastar de pés. Um casal que já conversara muito e ficara em silêncio retomou a conversa, animadamente, agora falando mais alto. Alguns olharam para as duas freiras que, a poucos metros do homem do celular, mantinham os olhos baixos e não se mexiam.

— O quê? Estou levando, sim. Está aqui na maleta. E com pilha nova. É. Te prepara, Sissica.

Ao som de “Sissica” o homem mais velho empinou a cabeça num espasmo involuntário e duas outras pessoas levantaram-se rapidamente e dirigiam-se para o bar, para a livraria, para qualquer ponto longe daquele celular e do seu dono. As freiras continuavam de olhos postos no chão.

— Cê vai fazer o quê? Ah, é? Tá bom. Só acho que hoje eu não vou poder, não. Tou com um furúnculo.

Uma mulher soltou uma espécie de grito e depois tentou disfarçar com tosse. O homem mais velho também se levantou, olhou para o relógio, exclamou “Não é possível” e foi procurar alguém da companhia para reclamar do atraso. Afastou-se quase correndo.

— Sei lá. Apareceu hoje. E acho que está supurando. Ta um roxo meio esverdeado.

Mais pessoas saíram de perto, procurando o que fazer. O casal aumentou o volume da sua conversa, tentando falar mais alto do que o homem. Outros também começaram a falar. Pessoas que nunca tinham se visto antes agora puxavam conversa uma com a outra e todas falavam ao mesmo tempo. Mas o homem do celular falava mais alto.

— Onde? É, lá mesmo. Bem na dobra.

Uma das freiras olhou para o alto com um sorriso triste enquanto a outra se encurvou para olhar o chão mais de perto. Um homem, fora de si, veio perguntar se as duas não gostariam de ir ao banheiro. Ele as acompanharia. As duas sacudiram a cabeça. Ficariam firmes, o Senhor lhes daria força.

— Como é que eu sei que ta roxo? Eu olhei, né Sissica. Com um espelho. Rá, cê pensou o quê?

Várias pessoas estavam agora de pé, tomadas de uma súbita revolta com aquela demora no embarque. Caminhavam de um lado para o outro. Por que o avião não saía?

— Cê pensa que eu pedi pra camareira olhar, é? Dá uma olhadinha aqui no meu furúnculo, minha filha, pra ver que cor é. É só levantar o...

Houve uma debandada. Algumas pessoas se precipitaram para o balcão de informações e começaram a bater com os punhos no balcão, exigindo embarque imediato ou explicações. Outras se dispersaram pelo aeroporto, em pânico. Só as duas freiras continuaram sentadas, com os olhos fechados e uma expressão de martírio, entre doce e dolorida, no rosto. Finalmente o homem despediu-se da Sissica, guardou o celular no bolso e disse para as freiras:

— Minha filhinha. Estou levando um joguinho eletrônico para ela e...

Então o homem se deu conta de que a sala de espera estava vazia e perguntou:

— Ué, já chamaram?

Fonte:
VERÍSSIMO, Luís Fernando. Novas comédias da vida privada. 
Porto Alegre: L&PM, 1996.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Adega de Versos 15: Daniel Maurício

 


Milton S. Souza (Corações floridos)

A Primavera começou, para nós, no dia 23 de setembro. Antes disso, porém, ela já nos manda mensagens coloridas e perfumadas através das flores que nascem exatamente para anunciar que está chegando a mais bonita estação do ano. Flores que mais parecem obras de arte, com suas pétalas macias, seus perfumes inigualáveis e suas cores inimitáveis. Flores que nascem cultivadas, nos jardins, canteiros ou vasos, ou que simplesmente aparecem do nada, no meio da campina ou nos mais improváveis lugares. Flores que invadem todos os nossos sentidos, deixando nos corações e nas almas aquelas mágicas sementes de ternura e de sensibilidade.

Muita gente não se dá conta do quanto as flores falam. Elas conseguem falar coisas que nós, mesmo exercitando ao máximo a faculdade da oratória, não conseguimos exprimir. As flores falam de amor de um jeito que nem o mais apaixonado dos amantes consegue imitar. As flores falam de amizade, daquele jeito simples que só os verdadeiros amigos entendem. As flores falam de saudade, conseguindo dizer, em algumas horas duras, aquelas palavras que ficam presas na nossa garganta sem coragem para sair. As flores passam mensagens de felicidade, carinho e muita alegria. As flores falam a linguagem da ternura, que é entendida imediatamente por todos os corações.

As flores conseguem falar tudo isso. Mas, infelizmente, ainda não nos acostumamos a brindar com flores mais seguidamente aquelas pessoas que nós amamos ou que nos enfeitam com as suas amizades. Quando morre alguém, imediatamente nos lembramos de enviar flores para marcar presença. E muitas vezes não nos damos conta que aquela pessoa falecida conviveu conosco por tanto tempo e, enquanto era viva, jamais recebeu uma simples rosa de presente. E agora, depois que partiu para a eternidade, que já não pode sentir o perfume das flores, que já não pode tocar com os seus dedos a maciez das pétalas, enviamos para a sua última morada as flores mais lindas...

A poetisa Gabriela Mistral é autora de um pequeno poema que diz mais ou menos assim: “Me dê uma flor em vida, uma flor bem colorida para aliviar meus ais. Depois que eu virar saudade, eu não quero mais vaidade: quero prece, e nada mais”. E Gabriela tem toda a razão: por melhor que seja a nossa intenção, quem já partiu não precisa mais de flores. Porém estas pessoas que estão vivas, ao nosso lado, nos brindando com o seu amor ou com a sua amizade, nos fazendo favores e nos ajudando a viver com mais alegria, estas pessoas, sim, merecem receber flores. E poucas vezes nos damos conta disso...

Quem sabe agora nós aproveitamos a Primavera que está iniciando para brindar as pessoas que nos são caras com muitas flores. Um botão de rosa, um ramalhete de amor-perfeito ou um buquê de qualquer flor sempre faz acender um sorriso de gratidão na alma de quem recebe. E nem é preciso esperar a chegada de alguma data especial: uma flor é presente certo em qualquer ocasião, qualquer dia e qualquer hora. Quem dá flores de presente, sem notar, está conseguindo plantar um jardim dentro do seu próprio coração. E nada melhor do que um coração florido para nos transformar em pessoas melhores, mais doces e mais sensíveis. Pessoas que até conseguem entender a magia das flores e da Primavera...

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 1

SALSA-ARDENTE*

"Oh! esta é a voz do meu amado!"
(Ct. 2.6)


O amor que vibra em meu peito
Já não tem mais dimensão!
Tomou conta do meu ser,
No meu ser há explosão.

É núcleo de sol em chama,
Doce delícia sem dor;
Vulcão ativo de estrela
- É assim que sinto o amor.

É o fogo da salsa-ardente,
Que arde em brasa incolor;
Vulcão que abrasa e não queima
– Oh, que delícia é o amor!

As vezes, me faz chorar
E de saudade morrer;
Mas, quanta felicidade
Traz o amor em meu ser!

Ele é presente em você,
Foi ele o manjar de Zeus*;
E todo aquele que ama
Tem um pouquinho de Deus.

Com ele, o nada é tudo,
Sem ele, o tudo é nada;
Quem ama só quer amor
E, além do amor, mais nada.
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* Salsa-ardente: Vulcão.
* Zeus: Principal deus da mitologia grega.

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TEUS OLHOS
"Os teus olhos são como
os das pombas."(Ct.1.15)


Que doce expressão!
Olhar sem malícia,
Colírio dos olhos,
Amor e carícia.

Teus olhos são lindos,
Têm puro fulgor,
São cheios de vida,
Traduzem amor.

O amor dos teus olhos,
Tão meigo e tão puro,
É o sonho dos sonhos,
Meu porto seguro.

Se rola uma lágrima,
Eu sinto tua dor;
Recolho-a na alma
Por causa do amor.

Se tenho eu angústia,
Se sofro de tédio,
Procuro teus olhos,
Pra ter meu remédio.

Que doce expressão!
Olhar sem malícia,
Colírio dos olhos,
Amor e carícia.

Mas quanto sofreram
Teus olhos, querida,
E quantas injúrias
Já viram na vida.

Já foram bem tristes.
Sem vida e calor;
Agora estão vivos
– Milagre do amor.

Que cor têm teus olhos?
São claros, escuros?
– A cor é segredo,
Segredo, eu te juro!

Embora distante,
Em meio ao pavor,
Eu penso em teus olhos
E vivo de amor.

Que doce expressão!
Olhar sem malícia!
Colírio dos olhos,
Amor e carícia.
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O TELEFONE
"Vou levantar-me e percorrer
a cidade "(Ct. 3.2)


Naquela noite estava angustiado,
Queria ouvi-la no telefone;
Meu coração, tão inconformado,
Olhava atento o calado fone.

"Corre, ponteiro! Silêncio, passa!"
Silêncio aquele me perturbava;
Eu pressentia perder a graça,
Ao ver minh'alma que soluçava.

Era soluço com dor silente,
Queria tanto meu bem distante;
Aquela dor torturava a mente,
Enlouquecendo-me num só instante.

Estava assim a entregar-me à dor,
Pra mim dizia: "Que infeliz eu sou!
Está bem longe o meu doce amor!"
Foi quando, enfim, o fone tocou...

- "Alô, amor! Meu amor, sou eu!"
Minh'alma foi delirar em riso;
Com a esperança que se acendeu,
Você tornou-se meu paraíso.

Falou-me tanto - doce paixão!
Que foi difícil dizer o adeus:
- "Tchau, meu amor", foi dizendo, então,
"Um beijo, um beijo!.. Fique com Deus!"

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. 
Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) Criação de Personagens

Uma história sempre surge de uma ideia. Mas de onde vêm as boas ideias? Muitas vezes, a primeira ideia que temos é da personagem que queremos criar. Não é por acaso, nesse sentido, que tantos livros e filmes têm no título o nome do protagonista.

Quanto à composição, a personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como um ser vivo. Choramos a morte de uma personagem na ficção e muitas vezes somos indiferentes a tragédias informadas no noticiário. Vejamos, então, uma técnica de composição baseada na mescla de reprodução de pessoas reais e invenção do autor.

"Não se preocupe com a trama, mas com as personagens”
Anne Lamott


PERSONAGENS PLANOS X ESFÉRICOS

Personagens Planos

Personagens planas são aquelas que não mudam com as circunstâncias, são facilmente identificadas na narrativa.

Em geral, são coadjuvantes, mas há muitos protagonistas que se comportam de forma plana: super-heróis, vilões, princesas, bruxas.

A personagem plana é aquela que é sempre boa, é sempre má, é sempre apaixonada, é sempre sacana. Não há variação de caráter, ele não hesita.

Nos casos mais radicais, essas personagens são meros estereótipos que funcionam na narrativa como parte do cenário (o mordomo, o ladrão, a vizinha gostosa). No humor e nas histórias infantis esse tipo de personagem costuma fazer muito sucesso.

Personagens Esféricos

São as personagens modernas, capazes de surpreender de maneira convincente. É o herói que tem medo, raiva, rancor, é o vilão que mostra sua face humana, é a esposa romântica e apaixonada que olha para o vizinho ao lado.

Segundo Cândido, a marcha do romance moderno foi no rumo de uma complicação crescente da psicologia da personagem; deste ponto de vista, poderíamos dizer que a revolução sofrida pelo romance no século XVIII consistiu numa passagem do enredo complicado com personagem simples para o enredo simples (coerente, uno) com personagem complicada.

Questionário para criação de Personagens

Essa é uma sugestão de questionário para ajudá-lo na composição dos personagens.

Claro que você não precisa responder a todas as perguntas e nem mesmo fazer uma reflexão tão profunda de todos os seus personagens.

Muitos escritores de conto fazem essa composição apenas mentalmente, não passando suas ideias para o papel. Mas acredite, planejar com cuidado seu texto e fazer esse tipo de exercício irá ajudá-lo muito, especialmente para quem está iniciando na criação literária.

Nome Completo
Cidade em que nasceu e onde mora atualmente
Data de Nascimento / signo
Estado civil / orientação sexual / com ou sem filhos
Profissão / formação / Nível social
Hobbies
Maior sonho / Maior frustração / Maior medo
Pessoas com quem mais se relaciona
5 coisas que jamais faria / 5 coisas que ainda vai fazer
Papel que terá no conto
Conflito dele no conto (se terá algum)
Outras informações que você considera relevante

O NOME DOS PERSONAGENS

Batize o seu personagem

Eu já batizei personagens e filhos e posso dizer: batizar uma personagem é bem mais difícil. Ocorre que a personagem você batiza depois que ela existe como forma de representar suas características ou pelo menos ajudar nessa composição. Já um filho você batiza sem saber sua cor, sua personalidade, seus sonhos.

Na ficção, não veremos o nome de Clara numa personagem de pele escura, a não ser que esse seja o conflito ou parte do conflito da trama. Não teremos um Pedro dócil, já virou até clichê o nome de Pedro para personagens durões como uma pedra. Não veremos um apelido diminutivo para um bandido ou um personagem grande, a não ser com objetivo cômico. E não teremos um sobrenome de origem alemã numa personagem ou trama que não tenha nenhuma relação com a colonização alemã.

Dar nome aos personagens, portanto, requer cuidado e planejamento. Você deve considerar, em ordem:

1. A personalidade da personagem;

2. A sonoridade do nome;

3. Se o nome não é semelhante a outros nomes da trama;

4. A possibilidade que o nome dá de apelidos ou contrações, a fim de evitar sua repetição excessiva.

PERSONAGENS SEM NOME

É muito comum, principalmente em contos, o autor não dar nome a seus personagens. A vantagem é que esse personagem pode ser qualquer um, aumentando a chance de nos identificarmos com ele. Só que a grande desvantagem é o texto ficar confuso, em especial se há mais de um personagem. Aí seremos obrigados a usar muitos "ele / ela" e isso dificultará nosso texto mais do que ajudará.

O MAIOR ERRO NA CRIAÇÃO DE PERSONAGENS

Maniqueísmo

Há um termo muito utilizado em resenhas literárias e, portanto, em oficinas literárias: o maniqueísmo. Originalmente, o termo remonta a uma filosofia religiosa sincrética e dualística que divide o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo (Santo Agostinho, por exemplo, a princípio fora influenciado pelas ideias maniqueístas, mas terminará por combatê-las).

Em suma, hoje dizemos que uma obra maniqueísta é aquela que divide as personagens em bons e maus, sendo os bons sempre muito bonzinhos e os maus, sempre muito maus. As personagens, assim, são sempre planas, nunca complexas.

Os exemplos mais tradicionais encontramos nos blockbusters hollywoodianos e nas novelas da Globo, que chegam a ter o núcleo dos bons e o dos maus.

A não verossimilhança do maniqueísmo em textos


Ocorre que, sem entrar em discussões sociológicas ou psicológicas, na vida real nós não somos apenas bons ou apenas maus, até porque sendo assim não sobreviveríamos nesse mundo por muito tempo. Em geral, as pessoas têm medos, receios, preconceitos, ansiedades, e transmitem isso em pequenos detalhes, lutando para fazer o bem, mas naturalmente comportando-se de forma duvidosa vez que outra. Não estou falando que as pessoas seriam capazes de matar, mas tampouco seriam humilhadas e maltratadas sem sequer levantar a voz ou transformar o choro em raiva, como acontece em tantas cenas de novela.

Dessa forma, um texto feito de forma maniqueísta não é verossímil, pelo menos desde meados do século XVIII.

- Cândido
"A marcha do romance moderno foi no rumo de uma complicação crescente da psicologia da personagem; deste ponto de vista, poderíamos dizer que a revolução sofrida pelo romance no século XVIII consistiu numa passagem do enredo complicado com personagem simples para o enredo simples (coerente, uno) com personagem complicada".


O QUE EVITAR

Sendo assim, a não ser que de forma planejada e proposital, evite enredos maniqueístas e protagonistas planos.

As exceções clássicas são a comédia e as obras para o público infantil, mas vale refletir sobre por que as crianças hoje se identificam tanto com o Shrek e tão pouco com o príncipe, os jovens apreciam tanto com o sombrio Batman e tão pouco o belo Super Homem.
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Fonte:
Marcelo Spalding. Criação de Personagens. 
E-book disponível em Escrita Criativa

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Varal de Trovas 494

 

Júlia Lopes de Almeida (O Dr. Bermudes)

A Raimundo Corrêa


Hão de crer? Encontrei esta manhã o Dr. Bermudes, aquele velho boêmio incorrigível, com o seu legendário casacão ruço, as botas cambadas, o colarinho sujo, e o seu ar de fome, olhando pasmado para uma vitrine de bonecos!

Quem não sabe da crônica do Dr. Bermudes? Conhece-a o Rio de Janeiro em peso, desde os lentes da academia, de quem ele fora condiscípulo, até aos caixeiros dos botequins que o levam para o relento das calçadas, a horas mortas da noite, quando as estrelas brilham no céu sobre os telhados mudos da casaria adormecida.

O Bermudes está velho, tem perto de cinquenta anos, e a ventania da desgraça pôs-lhe na pele tons de cobre sujo, e manchas de neve naquelas barbas, que mais parecem ervas hirsutas de uma brenha. Credo!

Quem dirá que aquilo já foi moço, galante, garboso, rico, correndo às aventuras arriscadas, sempre bem vestido e bem falante, enamorando as mulheres com a doçura dos seus olhos, e o espírito dos homens com a faísca das suas palavras ardentes e bombásticas?

A sua passagem deixou rastro na academia; citam-se ainda frases suas e feitos de arreganho em que entrou sempre uma alevantada ideia de justiça. Trazia capa e espada na alma, já que os tempos burgueses não lhas permitiam no corpo. O Bermudes era um D. Quixote, mas novo, bonito, com uma voz que arrastava a gente e cada gesto, cada ideia, de quem tudo domina e nada teme.

Eu conheci-o ainda nos bons tempos da D. Jacinta, a tia velha, que lhe dava dinheiro e o mantinha naquelas doidices da mocidade, com o brilho que a sua imaginação requeria.

E ele aproveitava. Só fumava do bom, comia como um príncipe, e das suas mãos finas as esmolas caíam, como chuvas de verão, no regaço dos pobres. Sujeita, como tudo, às leis da natureza, a D. Jacinta foi muito quietinha para o cemitério, numa formosa tarde de inverno, dessas de nuvens de ouro e de roseiras em flor.

Pela escadaria de pedra do jardim, quantas abas negras de sobrecasacas flutuaram, a caminho das reverências ao Dr. Bermudes, o belo Bermudes, único herdeiro daquela velha milionária? E ele lá estava, na capela ardente, pálido, com a face compungida e as lágrimas luzindo-lhe nas pupilas. Era só então: “Sr. Dr. Bermudes!” – “Sr. Dr. Bermudes!”

Muito respeito, muita piedade e grandes condolências... Lá de um cantinho, o tabelião Taveira, com a papada de porco untando de suor o colarinho e o peitilho da camisa, sorria por dentro, no mistério do seu ofício, daqueles dizeres de tantíssimas bocas. Ele lera ao Bermudes, horas antes, o testamento da tia. A idiota não deixara nem um vintém ao sobrinho; ia toda a fortuna para a sua irmandade de S. Francisco. E o Bermudes nem estremecera. Era como se fosse tudo muito natural. Acabada a leitura, ele ergueu-se e dirigiu-se para o catafalco. O tabelião e as testemunhas pularam, julgando que no rostinho mirrado do cadáver caísse vingativa e irrespeitosamente a mão do Bermudes. Não; ele fora sacudir as moscas, que faziam por entrar na boca de onde só orações tinham saído havia longos anos.

E ninguém mais falou em tal. A velha, que o acostumara aos regalos de uma vida de luxo e dissipação, deixou-o sozinho na miséria. E só o seu confessor sabia as razões disso...

Bermudes ficou sem ter onde dormir, nem onde comer, girando por essas ruas, alegre com uns, condoído de outros, sem rancores, aceitando o jantar do um amigo, o leito de outro, coisas de empréstimo, que foram rareando pouco a pouco, até que se acabaram de todo...

Ele deixou assim de ser o homem de sala para ser o tipo da rua. Afez-se às más companhias e ao mau vinho. E quando bebia sonhava que a tia Jacinta voltara da viagem e que tinha outra vez o seu grande leito de dossel com sanefas* de púrpura, e o seu chocolate quente com pão de ló, trazido pelo criado, o mulato Candinho, antes do banho, nas suas manhãs preguiçosas. Quando o Bermudes acordava da bebedeira, via que o colchão não era o seu antigo, de paina de seda, desfiada pelas crioulas da casa, mas sim o lajedo da rua imunda. A decepção abria-lhe vontade de beber outra vez, e ele bebia para sonhar com os regalos fornecidos pela defunta velhota.

Ainda há senhoras por aí que bem se lembram de ter valsado com ele, o que era um prazer delicado. De uma sei eu que, quando o vê, volta o rosto e sente estragado todo o prazer do seu passeio. Embora a filha lhe pergunte: – Mamãe, por que ficou triste? – Ela não lhe responde e vai andando... Vai andando com a ideia presa à lembrança de outros tempos, quando o Bermudes, moço, rico, estimado, ia vê-la todas as tardes, chamando-a – minha noiva, mesmo nas bochechas do papai e da mamãe... E daquela voz do Bermudes nunca ela se esquecera, nem depois, quando outro homem lhe deu o mesmo título, na mesma casa, ao lado das mesmas pessoas! Ela também já tem os cabelos brancos, mas, porque é rica, como cheiram bem os seus vestidos de seda e os seus manteletes à moda! O marido nunca lhe soube dizer que a amava, como o Bermudes, que lhe plantara na alma um canteirinho de flores odorantes; mas que luxo lhe dava, santo Deus!

O Bermudes é que a não conhece; esqueceu-a, perdoando-lhe assim generosamente... e por aí anda com o seu casacão roto, e os seus passos trôpegos, em que entra já o tremor do alcoolismo...

Um dos seus divertimentos, ora vejam! é ir postar-se em frente às vitrines de bonecos, com uma atenção que nada abala. Sorri para as pastorinhas de avental e chapéu de palha, para os clowns (palhaços), para os velhos do Natal, para os bebês das caixas armadas a rendas e cetins, para os velhos sapateiros batedores de sola e para as carrocinhas tiradas por um burrinho gordo.

A gente da loja já o quis enxotar, dizendo que ele afugentava a freguesia. Entretanto, Bermudes sorri com as crianças que passam, porque, como as crianças, ele sempre amou a ficção. E há de amá-la, até que um dia... Vão ver que a tarde em que o levarem para a sua última cama não há de ser tão bonita como aquela em que levaram a velha tia Jacinta!
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* Sanefas =Tira de tecido que se coloca na parte superior da cortina ou reposteiro, nas vergas das janelas etc.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Carolina Ramos (Poemas Escolhidos) 11

TANTOS ANOS DEPOIS...

Vinte e cinco anos de feliz união...

Naquele dia em que nos conhecemos,
teria sido bom... tão bom seria!,
se os ternos corações, que nós dois temos,
passassem a pulsar em sintonia!

Quantas dores de amor nós dois sofremos!
Quanta angústia nossa alma evitaria
se as mãos unidas, como agora temos,
ontem se unissem pela poesia.

Mas ninguém foge à sua própria sina!
O tempo que nos sobra, hoje, é só nosso...
e os segundos que voam, quem domina?!

Busquemos, juntos, a felicidade!
Se podes ser feliz e eu também posso,
que o amor nos una pela eternidade!
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RUSGA

Nada dói tanto quanto a despedida
a separar, de um golpe, almas que choram
ao sentir que no adeus se esvai a vida
e tudo o mais que em vida mais adoram!

Assino a carta... e, uma vez mais, relida,
as emoções nas lágrimas se escoram,
retardando a sentença não cumprida,
com temor de arriscar a paz que imploram.

Nosso acervo de amor tem grande saldo!
E esta rusga, tão frágil, se desmente,
ante a ternura que nos dá respaldo!

Se afogo o adeus, num pranto de revolta,
é que esse adeus, dorido e reticente,
nas entrelinhas... leva o apelo: – Volta!
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INTERLÚDIO

Quando a manhã se aloure e o sol amorne as folhas,
o orvalho guarde ainda o arco-íris e recolhas,
filtrada em ouro, a luz que a própria vista embaça,
talvez tudo se iguale em tons pasteis cambiantes,
talvez sejam iguais os pálidos instantes,
se a saudade te fere e a solidão te abraça!

Mas, se a vida desperta… e, na explosão das cores,
o sol acorda e esplende em múltiplos fulgores,
hás de fugir da inércia e do seu beijo frio,
se afastares de ti o abismo escuro e fundo
e se, vencendo a dor, num renascer fecundo,
teu coração se negue a continuar coração vazio!
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ARTE PLENA

Com músicas, versos, telas
e inspiração desmedida,
artistas fazem mais belas
as belas coisas da vida!


A olhar o mundo, com visão serena
de quem ama o que fez e, apaixonado,
reconhece a presença da arte plena
e do talento nunca superado,

notou, o Criador, o quão pequena
era a alma do ser recém criado!
E temeu-lhe o futuro que condena
um sonho ao nada, quando mal sonhado!

E, então, a luz brilhou na noite escura!
E reacendeu-se a flama das conquistas!
- Num mágico lampejo de ternura,

dando-lhes alma e coração de sobra,
Deus criou, tão sensíveis, os Artistas,
humanizando, assim, a própria Obra!
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NÃO CREIAS

Tem cautela... não creias na Poesia!
Poeta sonha… às vezes se arrebata,
burla a si mesmo, abraça a fantasia
e, da palavra, esquece a força exata!...

Volúvel, num constante devaneio,
o Poeta é incapaz de amar alguém!
E, se ama esquece, no incontido anseio
de amar Vida, seu supremo bem!

Sua Poesia, de ilusões repleta,
ilude quando ri, ou quando chora!
Não creias na Poesia… no Poeta...
E, muito menos, no que eu disse agora!

Se fora como eu disse, menos dura
seria a vida de um Poeta! Vida
sem resquícios de mágoa ou de amargura,
e a saudade, até doce... não dorida!

Pode o Poeta rir... mesmo chorando!
E enganar... ao compor falsa alegria,
mas, nunca esconde o amor! E, menos, quando
o entrega inteiro aos braços da Poesia!

O Poeta, quando ama de verdade,
tem seu Amor tal força impressentida,
que assume dimensão de Eternidade
indo além... muito além da própria Vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

Luís da Câmara Cascudo (Romãozinho)


Folclore do Centro-Oeste

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Filho de negro trabalhador, Romãozinho nasceu vadio e malcriado. Tinha todos os dentes, fisionomia fechada, hábitos errantes, nenhuma bondade no coração. Divertimento era maltratar animais e destruir plantas.

Menino absolutamente perverso.

Um meio-dia, a mãe mandou-o levar o almoço ao pai, que trabalhava num roçado, distante de casa.

Romãozinho foi, de má vontade.

No caminho, parou, abriu a cesta, comeu a galinha inteira, juntou os ossos, recolocou-os na toalhinha, e foi entregar ao pai.

Quando o velho deparou com ossos em vez de comida, perguntou que brincadeira sem graça era aquela.

Romãozinho pretendeu vingar-se da mãe, que ficara fiando algodão no alpendre da casinha:

- É o que me deram... Minha mãe comeu a galinha com um homem que aparece lá em casa quando o senhor não está por perto. Pegaram os ossos e disseram que trouxesse. Eu trouxe. É isso aí...

O negro meteu a enxada na terra, largou o serviço e veio correndo. Encontrou a mulher fiando, curvada, absorvida na tarefa. Dando crédito ao que lhe dissera o filho, puxou a faca e matou-a.

Morrendo, a velha amaldiçoou o filho, que estava rindo:

- Não morrerás nunca. Não conhecerás o céu, nem o inferno, nem o descanso enquanto o mundo for mundo...

Faz muito tempo que este caso sucedeu em Goiás.

O moleque ainda está vivo e do mesmo tamanho; anda por todas as estradas, fazendo o que não presta; quebra telhas a pedradas, espalha animais, assombra gente, tira galinha do choco, desnorteia quem viaja, espalhando um medo sem forma e sem nome; é pequeno, preto, risão, sem ter fé nem juízo.

Homens sérios têm visto Romãozinho.

Furtou uma moça na chapada de Veadeiros; conversou com o coletor de Cavalcanti; virou fogo azul, indo-e-vindo na estrada, perto de Porto
Nacional.

Não morrerá nunca enquanto uma pessoa humana existir no mundo. E, como levantou falso testemunho contra sua própria mãe, nem mesmo no inferno haverá lugar para ele.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. 
Projeto Livro para Todos.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Adega de Versos 14: Nonato Costa

 


Stanislaw Ponte Preta (Zezinho e o Coronel)

O Coronel Iolando sempre foi a fera do bairro. Quando a patota do Zezinho era tudo criança, jogar futebol na rua era uma temeridade, porque o Coronel, mal começava a bola a rolar no asfalto, saía lá de dentro de sabre na mão e furava a coitadinha. Teve um dia que Zezinho vinha atacando pela esquerda e ia fazer o gol, quando o Coronel da Polícia Militar, naquele tempo ainda capitão, saiu e cercou o atacante, de braços abertos. Parecia um beque lateral direito, tentando impedir o avanço adversário. Por amor ao futebol, Zezinho não resistiu, driblou o garboso militar e entrou no gol com bola e tudo.

Ah! rapaziada... foi fogo. O então Capitão Iolando ficou que parecia uma onça com sinusite. Ali mesmo, jurou que nunca mais vagabundo nenhum jogaria bola outra vez em frente de sua casa. E, com a sua autoridade ferida pelo drible moleque do Zezinho, botou um policial de plantão em cada esquina, durante meses e meses. No bairro havia assalto toda noite, mas o Coronel preferia botar dois guardas chateando os garotos a deslocá-los da esquina para perseguir ladrão.

Isto eu só estou contando para que vocês sintam o drama e morem na ferocidade do Coronel Iolando.

Prosseguindo: ninguém na redondeza conseguia entender como é que aquele Frankenstein de farda podia ter uma filha como a Irene, tão lindinha, tão meiga, tão redondinha. E entre os que não entendiam estava o mesmo Zezinho, cuja patota, noutros tempos, batia bola na rua.

Muito amante da pesquisa, Zezinho foi devagarinho pro lado da Irene. Primeiro um cumprimento, na porta do cinema, depois um papinho rápido ao cruzar com ela na porta da sorveteria e foi-se chegando, se chegando e pimba... desembarcou os comandos. Quando a Irene percebeu, estava babada por Zezinho. Se ele quisesse ela seria até o chiclete dele.

Claro, o namoro foi sempre à revelia do Coronel Iolando, que não admitia nem a possibilidade de a filha olhar pro lado, quanto mais para o Zezinho, aquele vagabundo, cachorro, comunista.

Sem paqueração não há repressão. O pai não sabia de nada e a filha foi folgando, até que — chegou um dia, ou melhor, chegou uma noite — a Irene tinha saído para ir à casa da Margaridinha, de araque, naturalmente, e na volta, depois de ficar quase duas horas agarrada com Zezinho debaixo de uma jaqueira, na segunda transversal à direita, permitiu que o rapaz a acompanhasse até o portão.

Coincidência desgraçada: o Coronel Iolando estava-se preparando para sair e ir comandar um batalhão no combate à passeata de estudantes. Chegou à janela justamente na hora em que Irene e aquele safado chegavam ao portão. Tirou o trabuco do coldre e desceu a escada de quatro em quatro degraus, botando fumacinha pelas ventas arreganhadas. Parecia um búfalo no inverno.

Não deixou que o inimigo abrisse a boca. Berrou para Irene:

- Entre, sua sem-vergonha — e a mocinha escafedeu-se.

Virou-se para o pobre do Zezinho, mais murcho que boca de velha, ali encolhidinho, e agarrou-o pelo cangote, suspendendo-o quase a um palmo do chão, e o rapaz ia até dizer "Coronel, o senhor tirou o chão de baixo de mim", pra ver se com a piadinha melhorava o ambiente, mas não teve tempo:

— Seu cretino — berrou Iolando — está vendo este revólver?

(Zezinho estava)

— Pois eu lhe enfio o cano no olho e descarrego a arma dentro da sua cabeça, seu cafajeste. Está entendendo?

(Zezinho estava)

— E vou lhe dizer uma coisa: está proibido de continuar morando neste bairro. Amanhã eu irei pessoalmente à sua casa para verificar se o senhor se mudou, está ouvindo?

(Zezinho estava)

— Se o senhor não tiver, pelo menos, a cinquenta quilômetros longe desta área, eu passarei a enviar uma escolta diariamente à sua casa, para lhe dar uma surra. Agora suma-se, seu inseto.

O Coronel soltou Zezinho, que, sentindo-se em terra firme, tratou de se mandar o mais depressa possível. O Coronel, por sua vez, deu meia-volta, entrou em casa, vestiu o dólmã e avisou à filha que quando voltasse ia ter.

O Coronel Iolando foi cercar os estudantes na passeata, houve aquela coisa toda que os senhores leram nos jornais e, quando retornou ao lar, encontrou a esposa muito apreensiva:

— Não precisa ficar com esse olhar de coelho acuado, sua molenga — avisou Iolando: — Eu só vou dar uns tapas na sem-vergonha da nossa filha.

— Eu não estou apreensiva por isso não, Ioiô (ela chamava o Coronel de Ioiô). Eu estou com pena é de você.

— De mim??? — o Coronel estranhou.

— É que a Irene e o Zezinho saíram agora mesmo para casar na igreja do Bispo de Maura. Deixaram um abraço pra você.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996