segunda-feira, 27 de junho de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 9

 

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLV

VELHICE ADOLESCENTE

 
MOTE:
Fim da estrada... e de repente
um colóquio de meiguice,
faz do amor adolescente
a ternura da velhice!
Almerinda Liporage
Rio de Janeiro/RJ


GLOSA:
Fim da estrada... e de repente
certo jovem se aproxima,
é um alguém tão diferente
que minha alma, então, fascina.
 
As palavras vão surgindo...
Um colóquio de meiguice,
cheio de um carinho lindo,
tem ares de garotice!
 
O amor me deixa contente...
apesar da meia idade...
faz do amor adolescente
 a minha realidade!
 
Esse amor, já no meu fim,
mais parece peraltice,
mas faz vibrar dentro em mim,
a ternura da velhice!
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QUE IMPORTA?
 
MOTE:
Que importa a nós dois o mundo
que importa o lugar que vamos...
Nosso amor é tão profundo
que só de nós precisamos!

Amália Max
Ponta Grossa/PR, 1929 – 2014

 GLOSA:
Que importa a nós dois o mundo

se temos o nosso, aparte?
se nos amamos a fundo?
se nós vivemos com arte?
 
Não interessa o caminho...
que importa o lugar que vamos...
se vivemos com carinho,
se nós dois, só, nos bastamos?
 
Fazemos nosso segundo,
durar uma eternidade...
nosso amor é tão profundo
feito de sinceridade!
 
Seguimos juntos... mãos dadas...
temos tudo o que sonhamos:
almas tão enamoradas,
que só de nós precisamos!
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SUPREMA POESIA
 
MOTE:
Nada existe de mais belo,
que ver (suprema poesia)
o sol pintar de amarelo
as portas cinzas do dia!

Antonio Juraci Siqueira
Belém/PA

GLOSA:

Nada existe de mais belo,
nada com maior beleza,
nada mais rico e singelo,
do que o sol, na natureza!
 
Nada melhor neste mundo,
que ver (suprema poesia)
o sol caindo, profundo
nos mares da fantasia!
 
Não existe paralelo
para essa tela imortal:
O sol pintar de amarelo
esse horizonte sensual!
 
Nesse amarelo dourado
em linda monocromia,
colore, de amor, tomado
as portas cinzas do dia!
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EU SABIA SONHAR...
 
MOTE:
O adeus... O beijo gostoso...
A esperança de voltar...
– Meu Deus, que tempo gostoso,
em que eu sabia sonhar!

Carolina Ramos
Santos/SP

GLOSA:

O adeus... O beijo gostoso...
nós dois... o hoje... o amanhã...
o nosso sonho ardoroso,
a cada nova manhã!
 
Depois do adeus, a esperança,
a esperança de voltar...
Como é doce essa lembrança!
Como é doce recordar!
 
Nosso colóquio amoroso,
era tão lindo e tão puro...
– Meu Deus, que tempo gostoso,
que ao lembrar me transfiguro!
 
Era um tempo de alegria,
um tempo só para amar...
Um tempo de fantasia
em que eu sabia sonhar!
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MOÇO... VELHO... ESPELHO...
 
MOTE:
O espelho não me enganou,
sem disfarce, esse sou eu:
Um moço que não sonhou,
um velho, que não viveu!

Zaé Júnior
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

GLOSA:

O espelho não me enganou,
me mostrou, sem falsidade,
exatamente o que eu sou:
a minha realidade!
 
Fiquei surpreso, indeciso...
Sem disfarce, esse sou eu:
de coragem eu preciso
pra ver o reflexo meu!
 
Vejo alguém que nunca amou,
que não soube ser feliz...
Um moço que não sonhou,
que nunca fez o que quis!
 
O tempo passou voando,
e a juventude morreu...
Meu espelho vai mostrando,
um velho, que não viveu!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas VII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Maio 2003.

João Ubaldo Ribeiro (O dia em que nós pegamos Papai Noel)


Na nossa turma em Aracaju - uns 15 moleques de 9 a 10 anos de idade, no tempo em que menino era muito mais besta do que hoje - quem sabia de tudo era Neném, cujo verdadeiro nome até hoje desconheço. Neném era chamado a esclarecer todas as dúvidas, inclusive em relação a mulheres, assunto proibidíssimo, que suscitava grandes controvérsias. Ninguém sabia nada a respeito de mulheres e muitos nem sabiam direito o que era uma mulher. As mulheres usavam saias, falavam  fino, tinham direito a chorar e os homens mudavam de assunto ou tom de voz quando uma delas se aproximava - e pouco mais do que isso  constava do nosso cabedal de informações, razão por que Neném assumiu  grande importância no grupo.  

Neném sabia tudo de mulher, contou cada coisa de arrepiar os cabelos. Houve quem não acreditasse naquela sem-vergonhice toda: como  é que era mesmo, seria possível uma desgraceira dessas? Quer dizer que aquela conversa de que achou a gente dentro da melancia, não sei o quê,  aquela conversa... Pois isso e muito mais! - garantia Neném, e aí tome novidade arrepiante em cima de novidade arrepiante. Um menino da turma, o Jackson (em Sergipe há muitos Jacksons, por causa de Jackson de Figueiredo, é a mesma coisa que Ruy na Bahia), ficou tão abalado  com as revelações que foi ser padre.  

Mas, antes de Jackson se assustar mais e entrar para o seminário, chegou o primeiro Natal em que o prestígio de Neném já estava amplamente consolidado e a questão das mulheres - tão criadora de tensões, incertezas e pecados por pensamentos, palavras e obras - foi substituída  por debates em relação a Papai Noel. A ala mais sofisticada lançava amplas  dúvidas quanto à existência de Papai Noel e o ceticismo já se alastrava galopantemente, quando Neném, que tinha andado gripado e ficara uns dias preso em casa para ser supliciado com chás inacreditáveis, como faziam com todos nós, apareceu e, para surpresa geral, manifestou-se pela  existência de Papai Noel. Ele mesmo já estivera pessoalmente com Papai  Noel. Não falara nada porque, se alguém fala assim com Papai Noel na hora do presente, ele toma um susto e não bota o presente no sapato. Apenas abrira um olho cautelosamente, vira Papai Noel, com um sacão maior que um estudebêiquer, tirando os presentes lá de dentro, foi até no ano em que ele ganhara a bicicleta, lembrava-se como se fosse hoje. Então Papai Noel existia, era fato provado.  

Alguns se convenceram imediatamente, mas outros resistiram. Aquele negócio de Papai Noel era tão lorota quanto a história da melancia. Neném se aborreceu, não gostava de ter sua autoridade de fonte fidedigna contestada, propôs um desafio. Quem era macho de esperar  Papai Noel na véspera de Natal? Tinha que ser macho, porque era de noite, era escuro e era mais de meia-noite, Papai Noel só chega altas horas. Alguém era macho ali?  

Ponderou-se que macho ali havia, machidão é o que não falta  em Sergipe, não se fizesse ele de besta de achar que alguém ali não era macho do dedão do pé à raiz do cabelo. Mas era uma questão delicada, como era que se ia fazer para enganar os pais e conseguir escapulir de  casa à noite? E quem tivesse sono? Havia alguns que tomavam um copo de leite às oito horas e caíam no sono 15 minutos depois, era natureza mesmo, que é que se ia fazer? Era muito fácil falar, mas resolver mesmo  era difícil.  

Neném não quis saber. Disse que macho que é macho vai lá e enfrenta esses problemas todos, senão não é macho. Macho era ele, que  só não ia sozinho para o quintal de Zizinho apreciar a chegada de Papai Noel porque, sem companhia, não ia ter graça e infelizmente não havia ali um só macho para ir com ele. Por que ninguém aproveitava que a Feirinha de Natal funciona até tarde e os meninos têm mais liberdade  de circular à noite?  

Claro, a Feirinha de Natal! Todo Natal havia a Feirinha, montada  numa praça, com roda-gigante, carrossel, barracas de jogos e tudo de bom que a gente podia imaginar, iluminada por gambiarras coloridas e enfeitada por todos os cantos. Sim, não era impossível que um bom  macho conseguisse aproveitar a oportunidade gerada pela Feirinha e escapulir para ver Papai Noel no quintal de Zizinho. Só que não podia ser mais perto, por que tinha de ser no quintal de Zizinho? Elementar, na explicação meio entediada de Neném: Zizinho tinha mais de dez  irmãos, era a primeira casa em que Papai Noel passaria, para descarregar logo metade do saco e se aliviar do peso. Além disso, o quintal era grande, cheio de árvores, dava perfeitamente para todo mundo se esconder, cada qual num canto para manter sob vigilância todas as entradas do casarão, menos a frente, é claro, porque Papai Noel nunca entra pela  frente, qualquer um sabe disso.  

Eu fui um dos machos, naturalmente. E, já pelas dez horas, o burburinho da Feirinha chegando de longe com a aragem de uma noite  quieta, estávamos nos dispondo estrategicamente pelo quintal, sob as  instruções de Neném. Alguns ficaram com medo de cobra (macho pode ter medo de cobra, não é contra as normas), outros se queixaram do frio,  outros de sono, mas acabamos assentados em nossas posições.

Acredito que cochilei, porque não me lembro do começo do rebuliço. Alguém tinha visto um vulto esgueirar-se pela janela do quarto  da empregada, que ficava separado da casa, do outro lado do quintal. Era Papai Noel indo dar o presente de Laleca, a empregada, uma cabocla  muito bonita e, segundo Neném, "da pontinha da orelha esquerda". No  duro que era Papai Noel, já havia até descrições do chapéu, da barba, do riso, tudo mesmo. Como os soldados dos filmes de guerra que passavam no cinema do pai de Neném, fomos quase rastejando para debaixo da janela de Laleca. Estava fechada agora, Papai Noel certamente não queria  testemunhas.

Mas como demorava esse Papai Noel! Claro que, nessas horas, o tempo não anda, escorre como uma lesma. Mas, mesmo assim, a demora  estava demais.

- Estou ouvindo uns barulhinhos. - cochichou Neném.

- Eu também.

- Eu também. E foi risada, ainda agora, foi risada?  

- Psiu!  – Silêncio entre nós, novos barulhinhos lá dentro.  

- Quem é macho aí de perguntar se é Papai Noel que está aí? - perguntou Neném.

Eu fui macho outra vez. Estava louco para apurar aquela história  toda, queria saber se Papai Noel tinha trazido o que eu pedira e aí gritei  junto às persianas:

- É Papai Noel que está aí?

Barulhos frenéticos lá dentro, vozes, confusão.  

- É Papai Noel?  

A barulheira aumentou e, antes que eu pudesse repetir a pergunta outra vez, a janela se abriu com estrépito e de dentro pulou um homem esbaforido, segurando uma camisa branca na mão direita, que imediatamente desabalou num carreirão e sumiu no escuro. Lá dentro,  ajeitando o cabelo, Laleca fez uma cara sem graça e perguntou o que a gente estava fazendo ali.

- Era Papai Noel que estava com você?  

- Era, era! - respondeu ela.  

Mas ninguém ficou muito convencido, até porque o homem que pulara tão depressa janela afora lembrava muito o pai de Zizinho,  que por sinal, no dia seguinte, deu cinco mil réis a ele, disse que ficasse caladinho sobre o episódio e explicou ainda que Papai Noel não existia, Papai Noel eram os pais, como ele, pai de Zizinho, que todo Natal ia de quarto em quarto distribuindo presentes. De maneira que até hoje a coisa não está bem esclarecida e nós ficamos sem saber se bem era uma história de Papai Noel ou se bem era uma história de mulher daquelas  de arrepiar os cabelos.

Fonte:
João Ubaldo Ribeiro. Contos e crônicas para ler na escola. RJ: Objetiva, 2010.

domingo, 26 de junho de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 12: Força e fé

 

Renato Benvindo Frata (Nanocontos) 1

CONSTATAÇÃO


Ao artista Deus deu mãos de ferramenta, e o Amor acrescentou vontade e leveza nos toques.
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GRAVIDEZ

No choro da descoberta, o desespero escorreu em lágrimas formato bebê.
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INTRIGA

Borboleta magérrima olhou a lagarta, mediu sua balofice e desdenhou: – fitness, amiga!
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INSÔNIA

No lençol amassado, pelos, cabelos e marcas da noite. Também olheiras por testemunha.
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MANHÃ

Curioso, o sol penetrou pela fresta e a iluminou ainda nua: transpirava restos de amor.
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MESTRA

A vida que nasceu com relho* na mão não alisa; e ai daquele que não aprende.
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NA ESTAÇÃO

O aviso de partida sangrou o ar e tirou, do coração constrito, lágrimas da despedida.
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OBSERVAÇÃO

A vida lhe deixou espinhos, mas o amor ofertou sementes de flores.
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ONTEM E HOJE

Namorados de ontem não se desgrudavam; nem os de hoje, só que agora do celular...
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PERSISTÊNCIA

Impoluta, a rocha nem ligou para a água que batia e quando menos esperava, se lascou...
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SINTONIA

Enquanto riscava a viola, a fumaça da chaminé desenhava ao vento as curvas da clave de sol.
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TERNURA

Os olhos da alma, ao apreciá-la na foto, nem percebiam o amassado do papel.
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UPA!

Entre a freada e a mancha na rua, só a bola continuou brincando.
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VALOR

Soberbo, o sol cuspiu suor no gari que humilde, limpou-se diante    da podriqueira**.
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VAZIO

Cão e lua curtem, cada qual no seu quadrado, a solidão. O que pensam?
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* relho = açoite feito de couro torcido.
** podriqueira = podridão.

Fonte:
Renato Benvindo Frata. 308 Nanocontos. Paranavaí/PR: Autografia, 2017.
Livro enviado pelo autor.

Fabiano Wanderley (Versos Di Versos) 2

A DESPEDIDA


É triste, como dói a despedida,
maltrata nos ferindo incontinente,
nos faz sofrer assim, tão inclemente,
as mágoas todas ânsias da partida.

Sentindo grande angústia, incontida,
que faz o coração bater mais forte,
sem ter um certo alguém que nos conforte,
que estirpe a nossa dor ali vivida.

E triste, sim, o adeus, as ilusões,
que fazem sufocar os corações,
deixando por um tempo os dois distantes.

Porém, em meio a toda insegurança,
com eles, permanece uma esperança,
de um dia se entregarem, como amantes...
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LUA

Tu chegas. prateando a minha vida,
me ornando, com tua luz, com teu clarão,
mas sempre sorrateira, escondida,
enchendo de prazer meu coração.

Clareias, vez por outra, os arvoredos,
onde, eu, mirando a ti, me encontro agora,
conheces, quase todos meus segredos,
és linda, és mulher, lua senhora.

Vaidosa, companheira das noitadas,
mentora das canções, pelas calçadas,
e que, as interpretei, com frenesi.

Mas, quando as cantava, a uma janela,
sequer me dirigia pra ela,
volvia o meu olhar só para ti.
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MAL DE AMOR

À noite, no silêncio do meu quarto,
procuro, em vão, achar recordações
e, logo, as alegrias eu descarto
pois, sinto, dentro em mim, desilusões.

Tão fortes são as minhas emoções,
que esqueço tudo que o coração diz
e, indiferente, às minhas aflições,
eu tenho a sensação que sou feliz.

Mas, eis que se apresenta a realidade,
mostrando que o meu caso é uma saudade,
que faz com que eu amargue tanta dor.

E que, por esse estranho sofrimento,
angústias, essa dor, esse tormento,
há cura! Se voltar meu grande amor.
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O CANTO DOS BEM-TE-VIS

Se achegam, todo dia, ao meu jardim,
revoando e entoando, cantos seus,
enchendo de harmonia, os áudios meus,
em grande sinfonia, para mim.

Foi Deus, quem os criou e os fez, assim,
solenes, majestosos, na amplidão,
seu trino, é um solfejo, uma canção,
que alegra o coração, o meu ser, enfim.

Em seus voos, de liberdade e pujança,
transladam, no seu mundo pequenino,
aos sons, de sonorosos pot-pourris.

Com eles, eu me sinto, uma criança,
pois, recorda o meu tempo de menino,
o canto perenal dos bem-te-vis!
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ZUMBI

Mirando este horizonte à minha frente,
o velho mar, revolto, ao vento alado,
os verdes coqueirais com seu bailado,
eu sinto este universo tão presente.

Escuto, no aconchego, no poente,
o canto prazeroso das graúnas,
que vão ao Punaú, com suas dunas,
em busca de um aninho e água corrente.

É lindo! A natureza se acentua,
fazendo um aparato para a lua,
mostrando o belo que se expõe aqui.

E a lua se acercando, com encanto,
aguça, mais ainda, este recanto,
emoldurando a praia de Zumbi!*
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* Localizada no município do Rio do Fogo, um dos lugares mais lindos do estado potiguar, a Praia do Zumbi herda seu nome de um sítio, uma pequena propriedade rural, que existia na região no século XVIII.

Isto porque Zumbi é uma palavra de origem africana que pode ser traduzida como fantasma e a propriedade em questão estava abandonada, com aspecto escuro dava impressão de ser mal assombrada e acabou sendo chamada assim pelos locais. (site Natal/RN)


Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Miriam Leitão (Imprevistos de bastidores)

Queria ser cronista. Só disso eu tinha certeza nos primeiros dias de jornalismo, iniciados, sem aviso prévio, aos 18 anos, em Vitória. Procurava emprego que me ajudasse a pagar as contas e consegui em uma redação. Foi assim que virei jornalista. Cheguei ao Espírito Santo depois de ler todo livro de Rubem Braga que encontrara, já sabendo que o estado tinha tradição no gênero. Tinha lido crônicas de Machado a Drummond. Era um sonho secreto, atrevido, que não contava para ninguém. Acabei sendo tudo: repórter, editora, colunista, comentarista. Crônica só em alguns raros momentos, quando a faina diária abre um breve intervalo, uma ligeira fresta no noticiário pesado. Ficou, então, esse desejo incompleto que realizo aos sábados neste espaço.

Ouvi dizer que todo cronista tem um momento em que não sabe o que escrever e tem de deixar a mente bem solta para ver se pega alguma inspiração, uma certa associação de ideias, uma lembrança que pouse como um passarinho.

Foi assim que me lembrei da mosca. Ela entrou no estúdio e o programa era ao vivo. Eu avisei, no intervalo, que uma voadora passara rasante sobre mim. Ninguém deu ouvidos. Todos falavam ao mesmo tempo. A televisão é um milagre que se renova a cada dia. Aquela confusão e, de repente, todos no ar, organizados, como se tivessem ensaiado.

Pergunta feita, comecei meu comentário. Aí a mosca voltou. Ela envidou os maiores esforços para chamar a atenção. Deu volta na minha cabeça e parou como uma equilibrista no ar, entre meu rosto e a câmera. Depois veio direto na minha direção, ameaçadora. Então sumiu. Antes do respiro de alívio, retornou num golpe traiçoeiro, por trás, contornou a nuca, zuniu no ouvido e passou rente ao meu rosto. O comentário era sobre uma notícia séria. Não dava para brincar com o inusitado da presença de uma espectadora alada. E dançante. Que mosca, aquela! Ela dava piruetas no ar e voltava a fincar sua atenção em mim. Gostava de economia, aparentemente. O estúdio inteiro petrificado. E eu fazendo exercícios mentais para ignorar a intrusa e continuar concentrada na difícil notícia que devia analisar. Comentário longo, mosca insistente, e eu tendo de dedicar um superávit de atenção ao tema. Consegui chegar ao ponto-final. Respirei. Ao fim do programa dei caça implacável à mosca. Tão misteriosamente quanto apareceu, ela sumiu.

Houve também o problema do salto. Oito é o máximo que consigo. Meu sapato cinza tem salto oito. Eu caminhava, resoluta, para o estúdio quando senti uma certa maciez estranha e desequilibrante sob os pés. Olhei e o salto do pé direito tinha virado. Parei, tentei consertar e ele saiu na minha mão. Estava na porta do estúdio, quase na hora de entrar no cenário. Precisaria caminhar até os apresentadores explicando a volátil conjuntura econômica, mas, naqueles instantes prévios da entrada em cena, eu adernava sobre um sapato com salto e outro sem. Entrei no estúdio e disse, nos bastidores, ao Caju, do áudio:

— Socorro!

Entreguei a ele o sapato e o salto separados e a minha aflição. Caju saiu rapidamente do estúdio e eu só ouvi um barulho assim: Tuuuummmm! Em seguida, ele voltou triunfante com salto e sapato reconciliados. Acabava de calçar e já ouvia a ordem para entrar em cena. Andei sem saber o grau de resiliência do meu sapato cinza de salto oito. Mas ele aguentou, heroico, até o fim do comentário.

Foi falar do sapato e me lembrar da bota. Um dos cameramen é alto e forte. É ele que maneja o mais pesado dos equipamentos, uma câmera que corre em trilhos e dá a imagem em movimento. Simpático, o colega. Delicado nos gestos e nas palavras, apesar daquele tamanhão todo. Ele usa botas pesadas, como se precisasse da grossura da sola para se sustentar no chão. Naquele dia me avisaram para entrar. Fiz o primeiro movimento para contornar as câmaras por trás e ir para o centro do cenário. Meu colega grandão, de costas para mim, puxou seu superequipamento e deu marcha a ré levantando seu enorme pé calçado com as grossas botas. Movimentei meu pé 36, em uma delicada sandália que pouco protegia, no exato instante em que ele descia sua bota 44 impiedosamente sobre o dorso do meu pé. Dor indescritível. Eu gritaria se possível fosse, porém ouvi a ordem insistente do diretor no meu ouvido:

— Entra, Míriam.

Meu pé não queria ir, o grito parado no ar, e eu tive de desfilar diante das câmeras explicando a situação econômica. O pé latejava. Um filete de sangue escorreu, mas ninguém viu, porque não estava em quadro, só meu delicado colega olhava, desolado. E eu explicava o choque externo que atingira a economia brasileira, em voz pausada, sentindo o pé aos gritos. A marca desse encontro desigual perdurou por dois meses em um hematoma. Até hoje não fico mais atrás desse meu colega, e ele sempre se certifica de onde estou antes de recuar.

O telespectador, em casa, nada soube da mosca, do salto quebrado nem da mais esmagadora pisada que sofri na vida.

Sou comentarista. Dizem que ser cronista é um risco, porque há um momento em que nada vem à mente. Há imprevistos maiores nesta vida.

Fonte:
Miriam Leitão. Refúgio no sábado. RJ: Intrínseca, 2018.

sábado, 25 de junho de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 8

 

Filemon Martins (Carteirada)

Quando jovem e até meus 32 anos de idade, gostava de usar barba e vasta cabeleira à moda maracanã, coisa de época. Não tinha ainda cabelos brancos. Vivíamos sob os reflexos da ditadura militar no Brasil e tudo imprimia medo e desconfiança, embora não se desse motivos para isso.

Estou me referindo aos idos de 1980/81, quando o Terminal Rodoviário da Luz ficava na Praça Júlio Prestes, na região da Luz, centro de São Paulo. De lá saíam e chegavam os ônibus procedentes de todo o Brasil, incluindo do Norte e Nordeste.

Naquela época muitos parentes e amigos viajavam ou chegavam da Bahia, passando por aquele Terminal Rodoviário. E eu que já trabalhava no grupo Folhas, costumava ir até lá observar se algum conhecido estava viajando ou desembarcando do interior da Bahia. Ficava um pouco afastado olhando e andando de um lado para outro sempre atento aos passageiros que por ali
transitavam.

De repente, dois brutamontes, um de cada lado se encostaram em mim, perguntando: -"Qual é a tua, meu"?

Depois do susto, muito calmo olhei para o da direita, depois olhei para o da esquerda e disse: - “Acho que trabalhamos para o mesmo patrão.”

- "Como assim"? - perguntaram.

- “Com licença, vou pegar meu crachá!” – e apresentei um bonito crachá da Folha de S. Paulo.

Perguntei: – “É ou não é o mesmo patrão de vocês, Carlos Caldeira Filho?”

Eu sabia de antemão que a administração do Terminal Rodoviário estava sob a responsabilidade do grupo Folhas, cujos proprietários eram Carlos Caldeira Filho e Octávio Frias de Oliveira.

Pediram-me desculpas e antes de saírem, confessaram: – “É que você estava numa atitude suspeita, como se estivesse procurando alguma coisa".

Depois desta carteirada me deixaram em paz. Que alívio!

De fato, eu procurava algum conhecido, parente que, porventura, estaria chegando a São Paulo com notícias da terrinha. Nada mais que isto. Mas, naqueles tempos andar, olhar, pensar e agir era muito perigoso.

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Otávio (Jardim de Trovas) II

Adeus gauchinha linda,
"Chinoca" destes bons pagos...
Trago uma saudade infinda
da terra e dos teus afagos!
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À força, sem sentimento,
não se faz a trova, não!...
— No entanto, sai num momento,
quando vem do coração...
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Ao beijares uma flor
com tal ternura, antevejo
como é bom o teu amor,
como é gostoso o teu beijo. (*)
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* = Na época, eram outras regras nas trovas, ejo rimava com eijo, atualmente pelas normas da UBT este tipo de rima não é aceita. Veja bem, só para trovas, em poesias esta rima é aceita, pela aproximação do som.
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Aquele amor passageiro,
aquela afeição tão pura,
e esta saudade tamanha (*)
de tão pequena ventura!...
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* = Na época, era obrigatório a rima do 2. com 4. verso somente, não existindo a obrigatoriedade de rimar o 1. com 3., contudo pela União Brasileira de Trovadores, fundada no Rio de Janeiro, em 21 de agosto de 1966 e instalada oficialmente em 1° de janeiro de 1967, para a participação em concursos desta entidade existe a obrigatoriedade de rimar o 1. com 3. e o 2. com o 4. versos.
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Às vezes, quero partir...
correr mundo... viajar...
Mas, quando me afasto muito,
que vontade de voltar!...
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Beija-te o sol, o luar,
cheios de amor e desejo...
Vive o vento a te beijar!
Só eu é que não te beijo…
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Com tristeza a gente conta:
No mundo, que tanto ilude,
há virtude — quase afronta,
pecado, quase virtude!...
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Droga de efeito impreciso,
veio o doutor receitar...
— A calma de que preciso,
só quem tirou pode dar...
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Epopeias... Caravelas...
D. Diniz... Camões... Cabral...
Guitarras... Cachopas* belas...
Saudade e amor... Portugal!...
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* = Cachopas: meninas, raparigas.
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Há trovas de tal beleza,
prendem tanto os versos seus:,
que a inspiração, com certeza,
deve ter vindo de Deus.
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Levaste tanto de mim,
deixaste tanto de ti,
que chego a pensar, enfim,
que estou lá... e estás aqui…
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Meu. doce Lar é pequeno,
cheio de paz e candura...
— Pequeno... mas nele cabe
uma porção de Ventura!...
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Meus dezoito anos de idade!
Da alma esta mágoa não sai:
perdi meu melhor amigo!
A morte levou meu pai!
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Muita gente, como escrava,
vive em busca da Ventura,
e abandona onde morava,
o que tanto, em vão, procura!
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No dia em que tu nasceste,
já nasceste para mim,
tal como a ti destinado
foi que a esse mundo eu vim...
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No mundo incerto e inconstante,
uma coisa é verdadeira;
— Dura o bem um só instante
e a dor — uma vida inteira!...
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Ó Mar verde, imenso Mar,
sendo tão grande e profundo,
não poderias guardar
todas as dores do Mundo?
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Para muitos, a Bondade
é como se fosse um dom...
— Eu cá, sofri de verdade!
E o sofrer tornou-me bom...
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Portugal — jardim de encanto
que mil saudades semeias...
Nunca te vi... e, no entanto,
tu corres nas minhas veias!...
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Quanta amargura incontida
para o espírito mais forte,
se não visse uma outra vida
que só inicia na morte!?...
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Quantos momentos felizes
trocaria, com prazer,
para que este mau momento
nunca viesse a viver!...
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Saudade — um eco perdido -
de uma cantiga da infância...
Perfume de flor, nascido
lá nas brumas da Distância...
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Se eu tiver a graça, um dia,
de contigo me casar,
tu verás quanta alegria
e ventura em nosso lar!
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Se soubesses o desejo
que trago dentro de mim,
tu não falavas em beijo,
nem ficavas rindo assim!...
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Ventura — rosa escondida
no alto jardim da esperança…
Perfuma de longe a vida,
mas não se vê... nem se alcança...
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Viver... morrer... pouco importa!
— Quanta gente, por aí,
que há muito uma alma, morta
carrega dentro de si...

Fonte:
Luiz Otávio. Cantigas dos sonhos perdidos. Coleção Trovas e Trovadores, organizada por Aparício Fernandes e Zalkind Piatigorky. RJ: Livraria Freitas Bastos, 1964.

Jaqueline Machado (Treva branca)

A pandemia que levaria os seres humanos a uma cegueira coletiva, foi prevista, vista e revista pelos velhos sábios da antiguidade, registrada em livros sagrados e incorporada à mente de José Saramago.  Esse gênio da língua portuguesa, por meio da sua obra “Ensaio sobre a cegueira”, trouxe à tona, em tempos modernos, o que já havia sido dito e iniciado em um tempo do passado.

“Ensaio sobre a cegueira” se inicia em uma cidade, onde um motorista, parado em um sinal de trânsito é, de repente, acometido de uma cegueira repentina. Foi como se uma névoa clara, uma espécie de treva branca, tomasse conta de seus olhos.  

Saramago não nos diz onde isto está acontecendo, pois assim como o autor não nomeia seus personagens, também não nos localiza geograficamente e não nos dá uma referência de tempo.

 A história segue falando sobre a cegueira e mostrando que o motorista foi o primeiro a ser pego, por aquela que seria a mais terrível das epidemias jamais enfrentadas por aqueles que viviam na cidade.

Assustado, o homem se pôs a gritar, e várias pessoas, por sua vez, se aproximaram para ver o que estava acontecendo.

 A epidemia estava apenas começando.

O primeiro cego foi levado para casa por um desconhecido, um ladrão de carros que se aproveitou da cegueira de quem ele ajudava para roubar seu veiculo.

A mulher do primeiro cego liga para um médico oftalmologista e marca uma consulta.  O médico que o examina, considera o caso um tanto quanto estranho, pois os olhos do paciente se mostraram perfeitos, nenhuma lesão, nada que pudesse provocar esta cegueira repentina.

A pandemia se dissemina e, aos poucos, todos os habitantes, os bons e os maus, passam a ficar repentinamente cegos, inclusive o oftalmologista. A única, aparentemente imune à   pandemia, era a esposa do médico que entendia tudo de visão.

A primeira providência do governo é isolar essas pessoas numa espécie de quarentena, dentro de um sanatório abandonado. Lá, essas pessoas voltam ao seu estado primitivo. De forma assustadora, elas vão perdendo a sua condição de ser humano e se tornando animais, pois precisam competir por tudo: espaço, comida, banheiro...

O livro relata cenas de pura barbárie, tais como, sexo a toda hora com diversos parceiros, e pessoas excretando pelos cantos dos corredores do sanatório. Do lado de fora, mais e mais cidadãos deixam de enxergar, líderes do governo também cegam, e logo as ruas ficam lotadas de pessoas que, sem ver, perdem o rumo de suas casas e de seus trabalhos.

Saramago retrata em texto, um ensaio distópico, que a cada dia aproxima–se mais da realidade do nosso mundo atual. Poucos reconhecem a verdade original, cada um cria a sua verdade e ai daqueles que contestarem: viram inimigos. A fé está seguindo regimes líquidos, depressão, homicídio, suicídio, racismo, pornografia, e pobreza material e intelectual estão em alta. E, acredito eu que, uma bomba nuclear não acabou por dizimar a humanidade por intervenção da misericórdia divina de Deus.

Citação do livro: “Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse, Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver sem olhos mas então deixará de ser humanidade.

Mas não nos assustemos, todo caos traz a renovação. A nova era chegou. E muitos dos obreiros da luz já estão prontos a prestar esclarecimentos e por fim a essa pandemia medonha: a pandemia da ignorância. Pois é ela, a ignorância que está a orquestrar o grande ensaio sobre a cegueira em nossa sociedade mundial.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Isabel Furini (Poema) 29: Beleza Oculta

 

Eduardo Affonso (Colocando os pingos nos jotas)

Colocar os pingos nos is é deixar as coisas bem claras. Isso todo mundo sabe.

O que eu desconhecia é que até o século 16 o i não tinha pingo. E quando na palavra havia dois is em seguida, o is sem pingo ficavam parecendo um u. Então, para saber quando eram dois is e quando era um u, colocavam-se pingos nos is.

Claro que aí deixavam de saber se eram dois is ou um ü (um com trema), mas não se pode resolver todos os problemas de uma vez só.

Meu pai achava pouco colocar pingos nos is, e os colocava também nos y. Não era um trema, mas dois pingos, um em cada galhada do y. Para quê? Jamais saberemos.

A vida inteira ele assinou o Sidney com um pingo no i e dois no y. E mais três pontinhos no final, por ser maçom. Seis pontos ao todo, um por letra. Eu, Sidney que sou (pelo menos no RG), também usei durante algum tempo, nos primeiros anos de escola. Até achar que aquilo era meio anacrônico, assim como os contos de réis que insistíamos em falar em casa, quando há muito a moeda já era o cruzeiro.

Lá em casa pingavam-se não só os is (literal e figuradamente) e o ipsilones, mas também o jota.

O jota tem essa peculiaridade: não tem pingo quando escrito à mão, mas o pingo jamais deixa de estar, sem qualquer justificativa, quando é digitado. E, a exemplo do i, somente na minúscula.

Se colocar os pingos nos is é não deixar margem de dúvida, a expressão “colocar os pingos nos jotas” também devia existir. E significar algo como ter aquele jeitão jurássico de pessoa entojada, enjoada, nojenta.

Quem coloca pingo em jota é capaz de tudo.

De escrever óptico, para distinguir de ótico (que tem a ver com o ouvido, não com a visão).

De corrigir quando alguém diz pilastra em vez de coluna. Como todo mundo que estudou Arquitetura por cinco anos está cansado de saber, a coluna é destacada da parede, e a pilastra é grudada.

Quem pinga jota não perdoa alguém dizer que teve sua carteira roubada, e, em vez de se solidarizar, aproveita a desgraça alheia para explicar a diferença entre furto e roubo.

Não perde a chance de dizer que que sorvete é uma coisa, sorbet é outra. Que corona é o vírus, e covid, a doença.

Quem pinga jota sabe quando usar infarto e quanto usar enfarte. Dirá que “fulano sentiu-se enfarte (cheio, farto) depois de traçar uma feijoada e teve um infarto (lesão nas artérias) do miocárdio”.

“Colocar os pingos nos jotas” implicaria corrigir quem diz “implica em” (isso implica aquilo, não naquilo). Puxar a orelha de quem nunca sabe se assistiu o filme ou ao filme e, na dúvida, prefere dizer que viu. Quem se enrola nos “vêm” e “veem”, dos verbos vir e ver. Nos porque, por que, porquê e por quê (por que será que existe essa frescura? Porque talvez, se procurarmos o porquê, descobriremos que não há por quê).

Os que pingam jota devem ser do tipo que ainda sofre com o óbito do trema. Talvez por terem amado, em algum lugar do passado, uma Thaïs que lia Madame de Staël e usava Anaïs Anaïs.

Além dos que põem os pingos nos jotas e nos ipsilones, há também os que cortam o Z. Mas aí já é caso de polícia.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXII

A inteligência e poder
levam alguém a vibrar,
ela tornar rico o ser,
ele, à dor pode levar.
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Antigamente, a seresta,
com rigor alguém fazia,
hoje, nem farra, nem festa,
só resta a melancolia...
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A vida perde o sentido
a quem se acha onipotente,
lamenta o tempo perdido
ou vivido erroneamente.
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Buscar nova alternativa
que transforme o lar mundano,
depende da iniciativa
de cada elemento humano.
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Chega até perder a graça
ver o ninho destroçado,
o que nos resta não passa
de alguns restos do passado.
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Com sangue, suor e pranto,
sonhos foram prefaciados,
alguns repletos de encanto
e outros sequer alcançados.
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Deixa a vida renascer
em cada nova manhã,
renovada, a alma vais ter,
à luz do eterno amanhã.
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Desde o instante da chegada,
ao momento da partida,
o homem segue em caminhada
na estrada chamada Vida.
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É deveras salutar,
viver de forma integral
e após cada despertar
surja a vida, nunca igual.
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Jogue o lixo na lixeira,
mantenha limpo esse chão.
nunca faça da sujeira
fulcro de condenação.
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Melhor um não consciente,
que um sim longe da verdade,
sem resposta convincente
mais parece falsidade.
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Muitas pétalas caídas
sequer as valorizamos,
foram berços de outras vidas
além da que vivenciamos.
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Muito obrigado, Senhor,
pela luz de mais um dia,
e se possível sem dor
chegue ao fim com alegria.
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Nada que pareça assombro
fique à razão camuflado,
nem à sombra de um escombro
eternamente velado.
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Nem tudo que alguém promete
na íntegra será cumprido,
pior, se sequer compete
cumprir com o prometido.
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No céu tem muitas estrelas,
na casa, algumas janelas,
que permitem melhor vê-las
em noites claras e belas.
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Nunca ache à vida normal
querer crescer sem mudar,
tudo o que parece igual
se transforme ao despertar.
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Olho, à noite e vejo estrelas,
cintilantes ao luar,
tão brilhantes posso vê-las
sem trocarem de lugar.
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Pode Deus, com dedo em riste,
dizer-te, segue ao final,
lutando à vida, persiste,
na batalha contra o mal.
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Por maior que seja a dor
na vida de outros doentes,
nunca será superior
aquela que agora sentes.
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Pra aferir um sentimento
de afeto ou de grande dor,
seja a verdade o instrumento
em poder do aferidor.
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Pra defenderes a vida,
não precisas de armamentos,
e além de vê-la florida,
vive-a bem os seus momentos!
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Quando a chuva não desaba,
a plantação se estiola,
quase sempre o fruto acaba
nas cinzas que a terra assola.
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Se à vida tens sofrimentos
tão vorazes, sem piedade,
não te abales, são momentos,
que passam com brevidade.
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Se, muito não tenho feito,
sinto orgulho do que fiz,
pouco sei, nem sou perfeito,
mesmo assim estou feliz.
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Se, olhando pelas janelas,
não vês no jardim as flores,
abre a porta e sorve delas
seu perfume anexo às cores.
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Se um alerta assustador
irromper na noite escura,
talvez seja um predador
tentando a semeadura.
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Sonhas em ser proprietário
de uma estrela no infinito?
Porquê? Se nem locatário
podes ser de um meteorito!
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Toda a leitura culmina
numa ascensão cultural,
mesmo não sendo obra prima
reconforta ao natural.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Sílvio Romero (A onça, o veado e o macaco)

(Conto do Sergipe de origem indígena)


Uma vez, amiga onça convidou amigo veado para ir comer leite (*) em casa de um compadre, e amigo veado aceitou. No caminho tinham de passar um riacho, e a onça enganou o veado, dizendo que ele era muito raso, e não tivesse medo. O veado meteu o peito e quase morreu afogado. A onça passou por um lugar mais raso e não teve nada.

Seguiram. Adiante encontraram umas bananeiras, e a onça disse ao veado: “Amigo veado, vamos comer bananas; você suba, coma as verdes, que são as melhores, e me atire as maduras.”

Assim fez amigo veado, e não pôde comer nenhuma, e a onça encheu a pança. Seguiram; adiante encontraram uns trabalhadores capinando uma roça.

A onça disse ao veado: “Amigo veado, quem passa por aqueles trabalhadores deve dizer: ‘Diabo leve a quem trabalha.”

Assim foi; quando o veado passou pelos homens gritou: “Diabo leve a quem trabalha!” Os trabalhadores largaram-lhe os cachorros, e quase o pegaram.

A onça, quando passou, disse: “Deus ajude a quem trabalha.”

Os homens gostaram daquilo, e a deixaram passar.

Adiante encontraram uma cobrinha de coral, e a onça disse: “Amigo veado, olhe que linda pulseira para você levar à sua filha!”

O veado foi apanhar a cobra, e levou uma dentada; pôs-se a queixar-se da onça, e ela lhe respondeu: “Quem manda você ser tolo?”

Afinal chegaram à casa do compadre da onça; já era tarde e foram dormir. O veado armou sua redinha num canto e ferrou no sono. Alta noite, a onça se levantou devagarzinho de pontinha de pé, abriu a porta, foi ao curral das ovelhas, sangrou uma das mais gordas, aparou o sangue numa cuia, comeu a carne, voltou para casa, largou a cuia de sangue em cima do veado para o sujar, e foi-se deitar.

Quando foi de manhã o dono da casa se levantou, foi ao curral e achou uma ovelha de menos. Foi ver se tinha sido a onça, e ela lhe respondeu: “Eu não, meu compadre, só se foi amigo veado, veja bem que eu estou limpa.”

O homem foi à rede do veado e achou-o todo sujo de sangue.

“Ah! Foi você, seu ladrão!”

Meteu-lhe o cacete até o matar. A onça comeu bastante leite e foi-se embora.

Passados tempos, ela tomou um capote emprestado ao macaco e o convidou para ir comer leite em casa do mesmo compadre. O macaco aceitou e partiram. Chegando adiante, encontraram o riacho, e a onça disse: “Amigo macaco, o riacho é raso, e você passe adiante e por ali.”

O macaco respondeu: “Ah! Você pensa que eu sou como o veado que você enganou? Passe adiante se quiser, senão eu volto...”

A onça, que viu isto, passou adiante. Quando chegaram nas bananeiras, ela disse:

“Amigo macaco, vamos comer bananas; você coma as verdes, que são as melhores, e me atire as maduras.”

— “Vamos”, disse o macaco, e foi logo se trepando. Comeu as maduras e atirou as verdes para a onça.

Ela ficou desesperada, e dizia: “Amigo macaco, amigo macaco!... Eu te boto a unha!...”

— “Eu vou-me embora se você pega com histórias.”

Assim respondia o macaco e foram seguindo. Quando passaram pelos trabalhadores a onça disse: “Amigo macaco, quem passa por aqueles homens deve dizer: — Diabo leve a quem trabalha; porque ali eles estão obrigados.”

O macaco, quando passou, disse: “Deus ajude a quem trabalha.”

Os trabalhadores ficaram satisfeitos, e o deixaram passar. A onça passou também.

Adiante avistou uma cobrinha de coral, e disse ao macaco: “Olhe, amigo, que lindo colar para sua filha! Apanhe e leve.”

— “Pegue você!”, e não quis o macaco pegar.

Afinal chegaram à casa do compadre da onça e foram-se deitar porque já era tarde. O macaco, de sabido, armou sua rede bem alto, deitou-se e fingiu que estava dormindo. A onça, bem tarde, saiu de pontinha de pé, foi ao chiqueiro das ovelhas, sangrou a mais bonita, comeu a carne, e foi com a cuia de sangue para derramar no macaco.

Ele, que estava vendo tudo, deu-lhe com o pé, e o sangue caiu todo em riba da onça. Quando foi de para manhã, o dono da casa foi ao curral, e achou uma ovelha de menos, e disse: “Sempre que a malvada desta comadre dorme aqui, falta-me uma criação!”

Largou-se para casa, e já encontrou o macaco de pé e apontando para a onça, que fingia que estava dormindo. O homem a viu toda suja de sangue, e disse: “Ah, é você, sua diaba!”

Deu-lhe um tiro e a matou. O macaco comeu muito leite, e foi-se embora muito satisfeito.
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* leite: comer coalhada, provavelmente.


Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Versejando 115

 

Contos e Lendas do Mundo (Birmânia) A promessa

Era uma vez a bela filha de um Homem rico, que estudava na universidade.

Ela era uma aluna muito aplicada e um dia, quando estava sentada próximo à janela da sua sala de aula escrevendo com um estilo(*) numa folha de palmeira, uma fórmula importante que o douto professor estava ditando para a classe, o estilo escorregou das suas mãos cansadas e caiu pela janela, indo parar no chão.

Ela achou que seria desrespeitoso pedir ao professor que fizesse uma pausa, mas se ela se levantasse para ir pegar o estilo, perderia a fórmula. Enquanto estava nesse dilema, um colega seu passou perto da janela, e a moça lhe pediu, num sussurro, que pegasse o estilo para ela.

Ora, o rapaz que passava era um filho de rei e uma pessoa muito má. Fazendo troça, ele respondeu: "Prometa-me que você vai me dar sua primeira flor na primeira noite".

A jovem, absorta na fórmula do professor, compreendeu apenas a palavra flor e aquiesceu com um gesto de cabeça.

Ele logo esqueceu a brincadeira que fizera; a jovem, porém, refletindo sobre o episódio, compreendeu o significado pleno das palavras do príncipe, mas não pensou mais nelas e esperou que tivessem sido ditas de brincadeira.

Ao fim dos respectivos cursos na universidade, o príncipe voltou para o seu reino e logo depois subiu ao trono do pai, e a jovem voltou para sua casa, num reino vizinho, casando logo em seguida com o filho de um homem rico. Na noite do casamento, ela se lembrou do incidente do estilo e, atormentada pela sua consciência, contou ao marido à promessa que tinha feito, expressando, porém, a certeza de que o jovem estava apenas brincando.

"Minha querida", o marido disse. "Quem tem de dizer se estava brincando ou não é o jovem. Uma promessa nunca deve ser quebrada." A jovem, depois de fazer uma reverência diante do marido, partiu imediatamente numa viagem ao reino vizinho, para cumprir a promessa que fizera ao rei, caso ele quisesse cobrar o prometido.

Quando andava sozinha na escuridão, um ladrão a agarrou e disse:

"Que mulher é essa que sai andando pela noite, enfeitada de ouro e joias? Me entregue suas joias e seu vestido de seda".

"Oh, ladrão", a jovem respondeu, "leve minhas joias, mas deixe-me o vestido de seda, pois não posso entrar no palácio do rei nua e cheia de vergonha."

"Não", o ladrão disse. "Seu vestido de seda é tão valioso quanto suas joias. Dê-me o vestido também."

Então a jovem explicou ao ladrão o motivo por que estava viajando sozinha na escuridão.

"Estou impressionado com o seu senso de honra", o ladrão disse. "E, se você me prometer voltar aqui depois de dar a primeira flor ao rei, eu a deixo ir embora."

A jovem fez a promessa, e pôde então continuar viagem.

Ela foi andando até passar sob uma figueira-brava.

"Que mulher é essa, tão jovem e delicada, que vaga sozinha à noite?", o ogro da árvore disse. "Vou comer você, pois todas as pessoas que passam sob a minha árvore depois que escurece me pertencem."

"Oh, ogro", a jovem suplicou. "Por favor, poupe-me, porque se você me comer agora não poderei cumprir a promessa que fiz ao príncipe."

Depois que ela explicou o propósito de sua viagem noturna, o Ogro disse:

"Estou impressionado com seu senso de honra, e, se você me prometer voltar aqui depois de se encontrar com o rei, eu a deixo partir".

A jovem fez a promessa e pôde continuar viagem.

Finalmente, sem nenhum outro incidente, ela chegou à cidade, e logo estava batendo nos portões do palácio do rei.

"Que tipo de mulher é você?", os guardas do palácio perguntaram. "O que pretende vindo ao palácio e pedindo para entrar em plena meia-noite?"

"É uma questão de honra.", a jovem respondeu. "Por favor, digam ao meu senhor, o rei, que sua colega de universidade veio cumprir a promessa."

O rei, que ouvira o tumulto, olhou pela janela do seu quarto e viu a jovem iluminada pela luz das tochas dos guardas, em toda plenitude da sua beleza. Ele a reconheceu e a desejou, mas quando ouviu a sua história, admirou-a por sua fidelidade à promessa e pela coragem de enfrentar todos os perigos e dificuldades para cumprir a palavra.

"Minha amiga", ele disse. "Você é uma mulher maravilhosa, pois coloca a sua honra acima até mesmo do seu recato de donzela. A promessa que lhe pedi não passou de uma brincadeira, e a esqueci. Por isso, volte para o seu marido."

A jovem voltou ao ogro da figueira-brava e disse: "Oh, ogro, coma meu corpo, mas, depois de tê-lo comido, pegue meu vestido de seda e minhas joias e os leve ao ladrão que está me esperando a alguns metros daqui".

O ogro disse: "Amiga, você é uma mulher maravilhosa, porque coloca sua honra acima até da própria vida. Você está livre para partir, pois eu a dispenso da sua promessa".

A jovem voltou então ao ladrão e disse: "Oh, ladrão, tome as minhas joias e o meu vestido de seda. Embora eu tenha que voltar para o meu marido nua e envergonhada, os criados haverão de me deixar entrar, pois vão me reconhecer".

O ladrão respondeu: "Amiga, você é uma mulher maravilhosa, porque coloca a sua promessa acima de joias e de belas roupas. Você está livre para ir embora, pois eu a dispenso da sua promessa".

E assim a jovem voltou para o seu marido, que a recebeu com todo afeto e consideração, e eles viveram felizes para sempre.
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(*) Estilo: Ponteiro ou pequena haste de madeira, metal, osso, pedra etc. com que os antigos escreviam em tábuas recobertas por uma camada de cera

Fonte:
Angela Carter. 103 contos de fadas. Publicado originalmente (Angela Carter's book of fairy tales) em 2005.

Caldeirão Poético XLVIII


ALDA PEREIRA PINTO
Rio de Janeiro/RJ, 1919 – ????

Sonatina XII

É bom que eu viva ao léu, pois me acostumo
à solidão que assusta a quem não crê,
pois se de algum receio eu sou mercê,
passeio, canto e ando, rio e fumo.

Num certo dia que virá, presumo,
não tendo amigos nem sequer você,
talvez que eu me lamente, só porque
a sorte não nos pôs no mesmo rumo.

E, se ao chegar a hora em que se apaga
a luz da vida, uma saudade vaga
quiser velar na minha soledade,

ouvidos não darei ao seu alento,
porque saudade é sempre sofrimento
por mais que seja alegre uma saudade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ALFREDO DE ASSIS
Riachão/MA, 1881 – 1977, Rio de Janeiro/RJ

Pranto e riso


No pranto da criança não diviso
mágoa nenhuma: é todo luz e encanto.
Tem, nuns restos de céu, de paraíso,
toda a doçura matinal de um canto.

Mas de um velho, num rápido sorriso,
mágoas profundas eu percebo, entanto.
No pranto da criança, há quase um riso;
no sorriso do velho, há quase um pranto.

Um velho ri: — É um por-de-sol que chora;
chora a criança: — É como se uma aurora
um chuveiro de pétalas abrisse.

E tem muito mais luz, mais esperança,
a lágrima nos olhos da criança
que o sorriso nos lábios da velhice.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ALICE DE PAULA MORAES
Ilhabela/SP, 1908 – ????

Horas iguais


Outono... As andorinhas friorentas
em bandos já desertam dos beirais...
São mais tristes as tardes macilentas
e as rosas já desmaiam nos rosais...

O meu outono! As horas passam lentas,
cheias de nostalgias, sempre iguais!
Ó coração, por que é que te atormentas?
Estanca o pranto, não soluces mais!

Depois verás, mais triste e mais cansado,
quando as nuvens, em forma de novelos,
rolarem pelo céu, em fins de agosto,

verás sim, coração desconsolado,
que estão muito mais brancos meus cabelos
e as rugas são mais fundas no meu rosto!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ALINE BRITTO SOARES
Rio de Janeiro/RJ

Cântico do Nordeste


Já não ouvem as palmas dos coqueiros
doces palavras vindas de além-mar;
não lhes sussurram cânticos brejeiros
trêfegos ventos vindos de ultramar.

Onde andarão os vendavais arteiros
que suas folhas vinham estalar,
pelas noites sem fim, dias inteiros,
nuvens de areia levantando ao ar?

Já outras nuvens que, rolando ao léu,
bailavam, céleres, no azul do céu,
não sombreiam os belos coqueirais.

O árido solo de cuidados urge.
Torna-se agreste a cada sol que surge.
Secam-se os rios nos mananciais!

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Benedita Azevedo (Voo de liberdade)

Lúcia desde muito jovem tinha uma autonomia que às vezes lhe rendia bons castigos. Após ingressar na escola pública, despertou para a vida em todos os sentidos. Conheceu um mundo diferente daquele em que vivia até então. Participava de todas as atividades que lhe permitiam. A diretora sempre incentivava seus alunos, não só para as atividades escolares, mas também para as religiosas. Sempre que havia festas na igreja, não se sabia se era atendendo ao pedido do pároco, ela liberava os alunos maiores, de algumas aulas, para pedir, como chamavam à época, “uma joia” a São Benedito, Nossa Senhora das Dores, Santa Cruz ou ao Espírito Santo.

Certa vez, um grupo de dez alunos queria conhecer o local onde nascera Gomes de Sousa, o grande matemático maranhense. Aproveitando a saída para pedir “joia” para Nossa Senhora das Dores, iria até onde fora a casa paterna do conterrâneo ilustre. Saiu logo após a aula de português. Os alunos andaram dois ou três quilômetros por entre árvores e quintais de casas modestas. Lúcia esperava encontrar coisa melhor do que a casa onde morava com seus pais, à beira do Rio Itapecuru. Não tinha nada a ver com suas expectativas, era parecida com a sua.

Mais uma vez projetou-se à altura de Gomes de Sousa e Humberto de Campos. Se os dois tinham sido pessoas tão simples quanto ela, nada a impediria de vencer os obstáculos e um dia chegar pelo menos próximo ao que eles foram. Mas não falava isso para ninguém. Perdia-se em divagações e muitas vezes perguntavam se estava no mundo da lua. Ficava aborrecida, tinha medo de que alguém penetrasse em seus pensamentos e estragasse tudo.

Depois que entraram e olharam a casa de taipa, com poucos cômodos, coberta de palhas de palmeiras e um quintal cheio de fruteiras, voltaram. Paravam em todas as casas. Não poderiam perder aquela caminhada tão longa e voltar de mãos vazias. Batiam palmas nas portas e com a cara mais deslavada, repetiam o mantra: “Uma joia para Nossa Senhora das Dores”.

Recebiam as coisas mais inusitadas: arroz em cacho, espigas de milho verde, galinhas, farinha de mandioca, ovos, etc. Uma senhora queria oferecer alguma coisa à Santa, mas só tinha vinagreira, um arbusto de folhas azedas, que os maranhenses usam para fazer o arroz de cuxá, prato típico daquela região, servido com peixe frito. Os alunos aceitaram um maço enorme da verdura. Voltaram carregados de “joias”.

A diretora disse que poderiam deixar na casa da tabeliã da cidade. Ela mandaria entregar na igreja. Naquela noite, aconteceria um leilão, no coreto localizado entre a igreja e a casa paroquial, onde se concentravam as “joias” compostas de tudo que se poderia imaginar. Dependendo do prestígio do Santo e do alcance dos milagres às promessas dos fiéis. De um boi ao maço de vinagreira, cuja renda o padre usaria nas obras da igreja.

Lúcia levou um susto quando viu a hora. Passava de meio dia. Certamente, seria repreendida quando chegasse na casa. Mesmo sabendo disso, resolveu esperar o lanche que a simpática senhora negra de sorriso largo, vestindo xadrez com avental branco, devido ao adiantado da hora, prontificou-se a fazer, para os alunos, antes de voltarem para casa.

A casa de Lúcia ficava a quatro quilômetros da escola e mais alguns metros até a casa da tabeliã. Ela estava preocupada com a mãe que não fora avisada que se atrasaria naquele dia. Mas, estava faminta. Esperaria. De qualquer maneira o castigo seria certo. Todos sentaram à enorme mesa da sala de jantar. A simpática senhora fez suco de maracujá, fritou alguns ovos que estavam um pouco amassados, colocou dentro dos pães e distribuiu aos alunos. Lúcia comeu apressada, enquanto os outros comiam, calmamente. Agradeceu, despediu-se dos colegas e partiu.

Ao atravessar a ponte sobre o Rio Itapecuru, correu até a casa. Era quase catorze horas. A mãe muito preocupada saíra à sua procura e entrara na casa da irmã para contar que a filha ainda não chegara da escola, até aquela hora. O sobrinho entrou e disse que vira a prima passar correndo em direção à casa da tia.

A mãe voltou aliviada por sabê-la em casa, mas não poderia deixar de corrigi-la para que não voltasse a acontecer tal situação.

“Onde já se viu uma menina de treze anos até àquela hora fora de casa, seja lá por que razões fossem! Duas horas atrasada!” – resmungava nervosa.

Ao chegar, procurou-a pela casa e não encontrou. Perguntou à filha mais velha se viu a irmã. Ela disse que Lúcia entrara no quarto, trocara o sapato e fora para a cozinha.

- Ela falou alguma coisa, onde estava?

- Não. Eu disse a ela que ia apanhar.

A mãe ficou apreensiva e repreendeu a filha por adiantar tal informação. Procuraram Lúcia por todos os lugares e não encontraram. A mãe voltou à casa de sua irmã. Perguntou pela vizinhança e nada da menina.

O sol já declinava no horizonte. O pai chegou e tomou conhecimento da situação. Reclamou da mania da mulher de não ouvir primeiro o porquê da menina se ter atrasado, antes de ameaçar castigá-la. A mãe defendeu-se dizendo que nem vira a filha. A irmã começou a chorar e gritar o nome de Lúcia ao redor da casa. Os parentes e vizinhos foram chegando. Alguém comentou que a mocinha poderia ter fugido com medo. Outros que poderia estar no rio. Não adiantava, já haviam procurado em todos os lugares..

A mãe apanhou uma vela na gaveta da mesa e acendeu aos pés da imagem de São Longuinho e da estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, pendurada na parede da sala. Fez promessa para Lúcia aparecer e prometeu ao pai que não castigaria a filha quando chegasse.

Já escurecia. O pai dirigiu-se ao enorme quintal e gritava o nome da filha. Pedia que voltasse para casa que ele não deixaria a mãe molestá-la. Já emocionado dizia:

- Filhinha, vem para casa! Já está ficando escuro! Daqui a pouco pode aparecer algum bicho. Vem que o pai te protege!

Naquele momento, ouviram alguém chorando na direção do rio. O pai correu e todos o acompanharam. Não havia ninguém. Fizeram silêncio e ouviram outra vez o choro. A mãe gritou:

- É ela. É o choro dela!

O pai desorientado correu até o pé de mangueira, olhou para cima e viu o corpo franzino da menina, curvado sobre um galho, abraçado ao tronco, chorando.

Ele subiu tal qual um gato, em dois pulos alcançou a filha e a trouxe no colo. Andou até o quarto e colocou-a na cama. A mãe e a irmã se aproximaram e abraçaram-na. Os vizinhos discretamente foram para suas casas.

A mãe lembrou-se de que a filha ainda não almoçara, mandou que a irmã cuidasse do jantar e levou-a para tomar banho no rio. Só então ela pôde contar da visita à casa de Gomes de Sousa e das “joias” para Nossa Senhora das Dores.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Adega de Versos 84: Francisco N. Macedo

 

Lima Barreto (A questão dos telefones)

Andam sempre os jornais com uma birra, uma briga por causa do serviço telefônico desta cidade.

Implicam sempre com a Light, mas creio que essa poderosa companhia é simplesmente pseudônimo de uma outra que tem um nome alemão.

Das muitas inutilidades de que, para mim, está cheia esta vida, o telefone é uma delas. Passam-se anos e anos que não ponho um fone ao ouvido; e, de resto, quando me atrevo a servir-me de um desses aparelhos, desisto logo. Entre as razões está a que não compreendo absolutamente a numeração das moças do telefone. Se digo seis qualquer coisa, a telefonista imediatamente me corrige: meia dúzia qualquer coisa. Não quero expor a minha sabedoria em elementos de aritmética; mas meia dúzia é uma coisa, pois nunca vi dizer meia dúzia vinte e sete e sim seiscentos e vinte e sete.

Esta é uma das minhas quizílias com o telefone. Uma outra é a tal história: “está em ligação”; e há mais. De forma que muito me surpreende esse interesse dos jornais por esse negócio de telefones.

Observei, porém, que as moças gostam muito de falar no aparelho.

Não se entra numa casa de negócio de qualquer ordem que não se encontre uma dama a falar ao fone:

– Minha senhora, faz favor?

– ?

– Sete meia dúzia três, Vila.

– ?

– Sim, minha senhora.

Durante cinco minutos a dama troca com a invisível Alice frases ternas e dá risadinhas.

Perguntei a um negociante da minha amizade:

– Que querem essas moças tanto com o telefone?

– Não sei. Há dias que é um nunca acabar... Formam uma fileira que nem em bilheteria de teatro em dia de espetáculo... Na semana passada, quase perdi um negócio urgente e do meu interesse, porque tive de esperar que mais de vinte “freguesas” dessas, dessem o seu recadinho ao aparelho... Levaram, todas, cerca de meia hora ou mais.

– Então é por isso que os jornais tanto nos atazanam com essa questão do telefone, de Light? Servem as senhoras...

– Qual o quê! – fez o negociante.

– Então, por que é?

– A questão é o preço do aluguel dos aparelhos e essas meninas são freguesas de graça, que, às vezes até, nada compram na casa.

Fica, para mim, ainda insolúvel essa questão de telefone.

Fonte:
Lima Barreto. Vida Urbana. Brasiliense, 1956.  Publicada originalmente em 1921 na revista Caretas.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLII

GRANDE SOL A ENTRETER


Grande sol a entreter
Meu meditar sem ser
Neste quieto recinto...
Quanto não pude ter
Forma a alma com que sinto...

Se vivo é que perdi...
Se amo é que não amei...
E o grande bom sol ri...
E a sombra está aqui
Onde eu sempre estarei...
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HÁ LUZ NO TOJO E NO BREJO
 
HÁ luz no tojo e no brejo
Luz no ar e no chão...
Há luz em tudo que vejo,
Não no meu coração...

E quanto mais luz lá fora
Quanto mais quente é o dia
Mais por contrário chora
Minha íntima noite fria.
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HÁ MÚSICA. TENHO SONO
 
Há música.  Tenho sono.
Tenho sono com sonhar.
'Stou num longínquo abandono
Sem me sentir nem pensar.

A música é pobre mas
Não será mais pobre a vida?
Que importa que eu durma? Faz
Sono sentir a descida.
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HÁ QUANTO TEMPO NÃO CANTO
 
Há quanto tempo não canto
Na muda voz de sentir.
E tenho sofrido tanto
Que chorar fora sorrir.

Há quanto tempo não sinto
De maneira a o descrever,
Nem em ritmos vivos minto
O que não quero dizer...

Há quanto tempo me fecho
À chave dentro de mim.
E é porque já não me queixo
Que as queixas não têm fim.

Há quanto tempo assim duro
Sem vontade de falar!
Já estou amigo do escuro
Não quero o sal nem o ar.

Foi-me tão pesada e crescida
A tristeza que ficou
Que ficou toda a vida
Para cantar não sonhou.
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HÁ UMA MÚSICA DO POVO
 
Há uma música do povo,
Nem sei dizer se é um fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado...

Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser...
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver...

E ouço-a embalado e sozinho...
É isso mesmo que eu quis ...
Perdi a fé e o caminho...
Quem não fui é que é feliz.

Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção ...
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração ...

Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido...
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!
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HÁ UM FRIO E UM VÁCUO NO AR
 
Há um frio e um vácuo no ar.
‘Stá sobre tudo a pairar,
Cinzento-preto, o luar.

Luar triste de antemanhã
De outro dia e sua vã
‘Sperança e inútil afã.

É como a morte de alguém
Que era tudo que a alma tem
E que não era ninguém.
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HÁ UM GRANDE SOM NO ARVOREDO
 
Há um grande som no arvoredo.
Parece um mar que  há lá em cima.
É o vento, e o vento faz um medo...
Não sei se um coração me estima...

Sozinho sob os astros certos
Meu coração não sai da vida...
Ó vastos céus, iguais e abertos,
Que é esta alma indefinida?
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HÁ UM MURMÚRIO NA FLORESTA
 
Há um murmúrio na floresta,
Há uma nuvem e não já.
Há uma nuvem e nada resta
Do murmúrio que ainda está
No ar a parecer que há.

É que a saudade faz viver,
E faz ouvir, e ainda ver,
Tudo o que  foi e acabará
Antes que tenha  o que esquecer
Como a floresta esquece já.