quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Os aplausos da desgraça)


UM MOSQUITINHO TEIMOSO, mal saído dos desabrochos das fraldas, se vira para sua mãe e manda a pergunta:

— Mamãe, me deixa ir ao cemitério com tio Pernilongo?

— Com uma condição filho.

— Qual mãe?

— Que volte cedo.

— Assim será.

Montado nessa “prometência”* o sujeitinho parte todo alegre. Ama ver os coveiros abrindo um monte de sepulturas e depois descendo os caixões às covas. Percebe que seu tio perturba incessantemente as pessoas que assistem àquelas cerimônias estranhas fazendo voos de reconhecimento, ora pousando no nariz de uma, ora na orelha de outro. As criaturas se abanam nervosas, usando as mãos, jornais e lenços.

No final da semana seguinte importuna, de novo, a mãe que trabalha catando restos de comidas num amontoado de lixo próximo no qual se escondem:

— Mamãe!

— Fala meu filho.

— Me libera para eu ir ao cinema?

— Com quem?

— Com a tia Pulguinha.

— Que filme irão ver?

— “A Mosca” com um tal de David Cronenberg e Greena Davis.

— Uau! Estou gostando da sua curiosidade à flor da pele. Percebo que meu filhote está afiado com a sua geração. Parabéns. Pode ir. Mas já sabe. Acabou o espetáculo, caminho de casa.

— Está bem, mamãe. Acabando a seção, voltarei correndo.

Mais uma vez, o mosquitinho sai a passear, desta feita, com a pulguinha grudada em seus costados, de carona. Como dissera à mãe, voltou tão logo o filme “epilogou”. Durante a exibição, ficou deveras boquiaberto ao ver como a pulguinha pulava de uma cadeira à outra, enraivecendo a galera que assistia a película. Em questão de minutos, todo mundo se coçava, como se alguém tivesse jogado pó de  mico nas poltronas. Outro final de semana não demorou a aportar. E o mosquitinho, animado e alegre, foi ter com a genitora o papo de sempre. Havia virado rotina:

— Mamãe.

— Fale, meu lindo.

— Tia Muriçoca me convidou para ir à praia. Como eu não conheço o mar...

— Se me prometer que ficará longe das ondas.

Com esse “sim”, o mosquitinho, feliz da vida, nem cabia em si de contentamento:

— Com certeza, mãe.  Voarei bem longe das tais ondas...

— Lembre, filhote, que você não sabe nadar.

— Tô ligado, mãe. Tô ligado!

— Só na areia?

— Só na areia.

— Não caia na besteira de querer surfar como a desmiolada da sua tia. Muriçoca não tem um pingo de juízo naquela cabeça de vento.

— Eu sei, mamãe...

— Estamos combinados. Pode ir. Guardarei seu almoço.

— Ta legal, mãe.

— Farei pra você aquele prato que mais gosta. Não esqueça.

O pequeno inseto parte contente para a nova aventura. Quase não acredita no encantamento a se ver diante do mar. Se queda extasiado e promete a si mesmo que aquela ocorrência divinal não ficará só na lembrança da primeira vez. Voltaria em outras ocasiões para continuar o seu deleite frenteado à imensidão de tanta água que se perdia lá longe de encontro ao céu. Não deixou de reparar, evidentemente, na tia Muriçoca, que tirava literalmente a paz e o sossego dos banhistas. Toda vez que se movia, pousava em seus  lanches e refeições “piqueniqueados” por toda a superfície da areia escaldante. No domingo seguinte, o mosquitinho, como de costume, não deixa por menos. Buzina sonoro, no ouvido da primeiríssima:

— Mamãe. eu posso ir ao shopping?

— Depende, meu pequerrucho. Quem irá com você?

— Meus amigos aqui dos pneus.

— Tenho medo!

— Do quê, mamãe?

— É muito perigoso. Shopping nos finais de semana... meu Deus, só de pensar na aglomeração das pessoas...

— Mamãe, vou me comportar...

— Quem garante?

— Dou a minha palavra.

— Tudo bem, meu filho, pode ir. Por tudo quanto é sagrado. Não se meta em encrencas. Seus amiguinhos aqui dos pneus não são flores que possam ser cheiradas.

— Mamãe. Fala sério.  Sei me cuidar...

— Espero que sim, meu príncipe. Espero que sim...

Como sempre o díptero gurí leva à termo seu intento. No shopping, ou mais precisamente na praça de alimentação, aprende com os coleguinhas como pousar nas guloseimas e quitutes, a relaxar as asas nos copos de refrigerantes e bebidas, além de soltar a baba peculiar dos varejeiros de sua estirpe. Tem consciência que essa mucosidade, entre outros estragos, contamina os alimentos que o povaréu ingere. Impreterivelmente outro final de semana se faz às portas. O mosquitinho larga seus desenhos preferidos na televisão preto e branco, toma o lanche e corre a encher o saco da mãe que passa as roupas de papai mosquito:

— Mamãe posso ir ao restaurante?

A jovem arregala uns olhos que por pouco  não lhe cabem nas órbitas:

— O que você vai fazer no restaurante?

— As “manas mutucas” vão me ensinar a picar as pessoas.

— Bom, muito bom. Aliás, excelente. Quero que você, meu filho, aprenda com precisão esse ofício.

— Eu sei, mamãe. As “manas” me falaram...

A mãe lhe faz um carinho demorado no rosto:

— Disso depende a nossa sobrevivência.

— O que é sobrevivência?

— Continuarmos vivos.

— Legal, aliás, trilegal. Vou aprender e prometo picar o maior número de pessoas. Vivaaaaaa...

— Só não pique, “sem querer querendo”, a sua velha mãe.

— Credo!  Por que eu faria tal besteira?

De fato, o mosquitinho se aprofunda em como picar as pessoas e a passar doenças para os seres humanos. Regressa saltitante  para o lar e a mãe, ao ver a alegria, se contagia com o filhote amado.  O domingo seguinte entra pelos  furos das caixas de papelão do quarto de mosquitinho e inunda a sua felicidade de adolescente. Lê, emocionado,  a mensagem dos amiguinhos no whatsApp. Isso mesmo, no whatsApp. Salta correndo:

— Mamãe, mamãe, acabei de ser convidado para logo mais a noite ir ao teatro.

— Não, filho. Tudo menos teatro. Teatro é perigoso.

— Ah, mãe, deixa eu ir. É só hoje.

— Não, não, não e não. É superperigoso. Você nem imagina.  Seu pai quase foi pro beleléu.

— Mamãe, é só hoje.

— Meu Deus, quem vai com você?

— Todas as filhotas das suas amigas larvas e, claro, as minhas coleguinhas da escola que residem aqui no nosso depósito de entulhos.

— OK, meu filho. Vá. Mas cuidado com as palmas. Fique longe delas. São mais perigosas que as ondas do mar e  as loucuras da sua tia. Enfim...

O mosquitinho nesse momento está na primeira fileira, junto com os demais.  Adorou a peça, os atores, as roupas, as falas. No final do primeiro ato, entretanto, as luzes se apagam.

O público em grande manifesto vocal, apesar da escuridão, se coloca em pé e ovaciona. E não só isso:  berra, se esgoela, e brada. O mosquitinho sorri matreiro e acha tudo aquilo muito interessante, embora não aprove os modos esquisitos das pessoas em alvoroço descomedido. De repente a luz se faz e, dois minutos depois, tudo mergulha, num breu, desta feita mais prolongado. A plateia inteira volta a explodir em vivas, urras e aclamações. A balbúrdia inesperada e a todo vapor, segue alarmada. Entretanto, num descuido do mosquitinho, a fatalidade e o inesperado mostram as suas faces ocultas. O que a sua mãe mais temia. No espocar dos gestos efusivos, o infeliz mosquitinho termina esmagado, entremeiado aos apupos e às palmas das mãos grossas de um cidadão que grita, estridentemente: “bravo, bravo, bravoooooo!...”.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
Nota:
* Prometência – Variante de promitência. O mesmo que promessas feitas.


Fonte:
Texto e nota enviados pelo autor.

Jaqueline Machado (O Sentido do Natal)


O termo Natal tem origem na palavra do latim “natalis” que, por sua vez, é derivada do verbo nascer (nāscor). Sim. Poucos pensam ou sabem, mas o Natal representa o nascimento de Jesus e, também, o nosso próprio renascimento. Renascimento de todos que desejam dissipar magoas, vícios e tristezas para vivenciar uma nova jornada, cheia de luz e de esperança.

O Natal teve origem em festas pagãs da antiguidade, onde muitos romanos celebravam a chegada do solstício de inverno e cultuavam o Deus Sol, que no sincretismo das culturas religiosas atuais, simboliza Jesus Cristo para os seguidores do cristianismo e o Orixá Oxalá, na fé umbandista.

A escolha da data foi determinada pelo Papa Julius I (337-352) e, mais tarde, foi declarada feriado nacional pelo Imperador Justiniano, em 529. O natal, também é sinônimo de muitos simbolismos. O principal deles é o presépio que foi montado pela primeira vez por São Francisco de Assis, no século XIII, na Itália, com a intenção de recriar a cena do nascimento de Jesus para explicar ao povo como e onde teria nascido. Já o simbolismo do pinheiro enfeitado, foi idealizado por Martinho Lutero, o principal personagem da Reforma Protestante, que montou a primeira árvore iluminada de luzes em sua casa.

A figura do natal é inspirada no bispo são Nicolau que costumava deixar moedas próximas às chaminés das famílias mais pobres. São Nicolau se tornou popular e deu lugar ao aspecto que hoje conhecemos do Papai Noel, que em vez de moedas, deixa presentes às crianças que se comportam bem ao longo do ano. E a Santa Ceia teria surgido na Europa, onde as pessoas costumavam deixar a porta das suas casas abertas para receber viajantes.

Ela simboliza a união e a confraternização das famílias. Assim, na véspera de Natal, os familiares se reúnem à mesa para a tradicional ceia. Amo o Natal e seus simbolismos. Essa data também me faz lembrar a mensagem trazida pelo livro de Charles Dickens, o famosíssimo “Um Conto de Natal”, que conta a história do senhor Ebenezer Scrooge, um homem de negócios, egoísta, avarento que não se relacionava bem com ninguém, e não gostava das festividades natalinas.

Até que certa noite, ele recebe a visita do fantasma de seu falecido sócio, Jacob Marley, que avisa ao antigo amigo que outras três assombrações aparecerão para ele: o Espírito dos Natais Passados, o Espírito do Natal Presente e o Espírito dos Natais Futuros. Segundo Marley, o ex-sócio, esses três fantasmas são a única esperança para Scrooge escapar do terrível destino que está reservado para ele.

Os espíritos chegam sucessivamente e levam o velho ranzinza a uma viagem pelo tempo e pelo espaço, com a intenção de fazer com que Scrooge mude sua opinião sobre o Natal depois de ver exemplos de amor e a família de um de seus funcionários comemorando a data com muita simplicidade e união entre si. Depois disso, ele passa a valorizar o que realmente vale a pena na vida. A partir desses eventos, o velho torna-se bom e passa a praticar ações solidárias entre todos que dele se aproximam. Pois o sentido do natal é justamente esse, renovar-se, espalhar amor e alegria.

Salve essa doce magia.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 44

 

George Abrão (Amigos anônimos)


Numa rua próxima à que eu moro, aqui em Maringá, existe uma casa de família japonesa da qual fazia parte uma senhora bastante idosa, muito simpática, que ficava sempre no jardim da residência. Como eu sempre faço o mesmo trajeto para ir ao mercado ou a feira, a cada vez que voltava com alguma compra e passava frente à sua casa, eu a cumprimentava e ela, muito alegre, me perguntava:

- Foi fazer compras para esposa?

À minha resposta afirmativa, ela dizia:

- Que bonito “ere”, esposa gosta muito, não?

E emendava:

- É “aremão”?

E eu:

- Não, minha senhora, sou descendente de árabes!

- Árabe? - Ela dizia - Não parece! Achei que era “aremão”!

E isso acontecia sempre que ela me via, sendo o diálogo também mais ou menos igual. Passado algum tempo eu já estranhava quando não a via, pois a simpatia da senhora nipônica era contagiante. Só que nunca perguntei o seu nome, nem ela perguntou o meu, tornamo-nos amigos anônimos.

De repente, parei de vê-la e achei que estivesse viajando. Só que, depois de muitos dias, comentei com a minha esposa sobre a ausência da minha amiga e ela resolveu conversar com uma nossa vizinha, também japonesa, e perguntar sobre a velha senhora.

Aí tivemos a triste notícia que ela havia falecido já há algum tempo, exatamente na época que parei de vê-la.

Agora, a cada vez que passo diante da residência da família, lembro-me com saudade da minha amiga, e peço a Deus que lhe tenha dado o bom lugar que ela merecia.

Fonte:
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.
Ebook enviado pelo autor.

Lóla Prata (Luzes)


A discussão atingia o auge. Palavras fortes de ira enchiam o ambiente da casa. Ela se refugiara no quarto. Não queria confusão e nem se meter na briga do pai com a mãe. Realmente, não a interessava deslindar os liames entre amor e ódio. Preocupava-se mais em ser responsável na definição de seu próprio futuro. Era noiva do Betão, rapaz bem cotado entre a moçada da cidadezinha e, quando escutava os impropérios do casal a se injuriar mutuamente, se assustava com a proximidade de seu casório... estaria escolhendo certo?

A briga estava indo longe demais. Até alguns vizinhos vinham de quando em quando à janela, atraídos por barulhos de quebra de pratos e gritos. Lúcia ouviu estalar de tapas e um baque surdo no chão. Saiu do quarto e viu a mãe segurando o rosto afogueado, ridiculamente estatelada no chão. Não a acudiu. Saiu correndo. Correu até a catedral, onde se acomodou na frente, perto do sacrário. Lá, rezou, ressentida com todo o ocorrido e com a dúvida sobre seu destino. Betão já dera mostras de impaciência e de falta de diálogo e atenção, já no noivado...; que dirá no casamento? Seria como seu pai, irritado? Lúcia conhecia seu próprio temperamento e sabia que se acovardaria perante um homem irascível. Implorou que Deus lhe indicasse o marido adequado às suas necessidades afetivas. Contrita, ouviu o organista ao primeiro acorde da marcha nupcial, ensaiando a canção. Seu jovem coração vibrou e seu olhar voltou-se. Ao invés do pianista, viu alguém entrando, contra a luz. A figura escura era a de um homem baixo, magro, miúdo, mas impressionou-a o brilho do sol em volta dele. Arrepiou-se toda. Sentou, quieta. O estranho aproximou-se, fez a genuflexão e acomodou-se perto do altar. A música encantadora inspirou-a e ela entendeu que aquele era o escolhido por Deus, para ela.

Na saída, se encontraram, sorriram... e se elegeram.

Faz mais de 20 anos que partilham a vida, como marido e mulher, no respeito a Deus e à missão de testemunhar o amor conjugal que deu certo.

Fonte:
Maria de Lourdes Prata Garcia (Lóla Prata). Provai e vede como o Senhor é bom! Bragança Paulista: ABR, 2009. Ebook enviado pela autora.

Caldeirão Poético LVII


 
Miguel Russowsky
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC

“O DIA ESTAVA LINDO DE MORRER!”


Morri. Mas não morri, foi ameaça.
Eu me fingi de morto, por esporte.
embora eu já não seja assim tão forte
é cedo para expor minha carcaça.

Pois bem, morri. Talvez alguém se importe
do cadáver e alguma coisa faça.
A vida sem surpresas não tem graça.
Que tal ser imortal após a morte?

Digamos que morri. Vejam a conta:
Caixão e velas, mais a missa pronta
e do enterro, convites aos montões.

Depois de consternar este cenário,
eu ressuscito e aponto o calendário:
– É primeiro de abril, seus bobalhões!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes/PR

“RODA VIVA”


Na roda viva que é a vida,
em menos de um século
todos seremos substituídos:
─ eu, tu, ele, nós vós e eles...
Uma nova gente
com outras caras,
disfarces, ideologias...
novas tecnologias,
assombros
e o passado nebuloso
retrógrado:
─ olhem como era isso,
vejam como era aquilo...
─ Surpresa!
Viagens intergalácticas?
Miscelânea de gente,
caos ou maravilha?
─ As duas coisas,
parecidas com as de agora,
ao revermos os tempos de outrora...
E como sempre serão
enquanto na terra
pulsar essa coisa estúpida
e apaixonante:
─ chamada VIDA!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Jorge Fregadolli
Maringá/PR

“PANDEMIA DO MEDO”


Como é triste ser refém
do tal vírus invisível!
É a dor que o mundo tem
de pandemia terrível.

Ela chegou de mansinho,
e não disse porque veio.
E mata devagarinho,
trouxe medo de permeio.

O mundo pede clemência,
à pandemia infernal;
a vida está em falência,
povo exilado social...

Comércio fechou as portas,
os hotéis, shoppings também.
Prejuízo alguém comporta...
novos tempos nos convém?

Um dilúvio veio à terra,
para ensinar vida nova.
Mas sem Deus a vida emperra,
com Deus tudo se renova.

Aviso à humanidade,
e o respeito a vigorar.
O amor nos una a irmandade,
que é preciso a Deus rezar!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Solange Colombara
São Paulo/SP

“MEMÓRIAS DA SAUDADE”


Nas pálpebras pesadas
o vento pousou...
Em folhagens abafadas
sentiu o peso, sussurrou
herege, o pranto secou.
Lápides esquecidas
no amarelado passado
sentem o abafo, ressequidas.
Ouço um apelo cansado...
Um elo pagão, embaçado.
É só um velho balanço
levado pela brisa fria.
Em um breve relanço
aquela que outrora sofria
veste no espelho sua alforria.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Jaqueline Machado
Cachoeira do Sul/RS

“GOSTO”


Gosto de gente profunda,
mas que nem por isso deixa de ser simples.
Gosto de gente apaixonada,
que se emociona fácil
e sabe nos tocar a alma.
Gosto de gente original.
Esse negócio de viver de um jeito “padrãozinho”,
é viver de mentira.
Gosto de gente inteligente,
envolvente,
Engraçada
sem deixar de ser séria.
Gosto de gente natural
cujo astral
é feito de loucura e poesia...
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Vivaldo Terres
Itajaí/SC

“MEDO DE MORRER”


O ser humano agora
Está colhendo o que plantou
Semeou somente o ódio
E esqueceu o amor

Seu orgulho
E prepotência
Se fez ele absoluto
Se esqueceu de ser humilde
Por achar-se muito culto

E agora com esta pandemia
Não sabe mais o que fazer
Tira a máscara
E bota a máscara
Pois tem medo de morrer
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Clarisse da Costa
Biguaçu/SC

“A LUZ DA LUA”


Eu ainda olho para a lua
Com a mesma admiração
Querendo aquele brilho.
A sua luz tem o poder
De quebrar a escuridão
Que muitas vezes me deixou cega
Sem eu olhar para mim.
Eu via o equinócio da primavera
Com muitas incertezas,
O meu caminhar era inseguro.
Talvez eu não tivesse a certeza
De quem eu era,
Para onde eu devia caminhar.
Essa fase de incertezas
E caminhos imprecisos
Fazem parte da vida de cada um.
Não nascemos fortes,
Vamos crescendo e nos encontrando
Na estrada da vida.
Aí descobrimos que às vezes
Somos frágeis como papel,
Mas com o tempo
Deixamos que a vida nos ensine
A lidar com as nossas fragilidades.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Clarisse Cristal
Balneário Camboriú/SC

“ARTE-VIVA NO PALCO DA VIDA”  

(Para a atriz Sabrina Vianna)
 
‘’Intenso!!! Qualquer dia desses
Eu vou fazer outra página mais suave’’
Fabiane Braga Lima


Eu não existo por inteiro
Pois ao final da tarde
Quando agonizar o arrebol
Vou por os meus fadigados
Pés descalços
Nas areias mornas da praia
Não como uma veranista acidental
E sim como uma náufraga desterrada
Perdida e desesperada
A quem fez injúrias aos reis e rainhas
No velho mundo

Eu não quero existir por inteiro
Ao final na tarde
Vou ficar diante do Atlântico
E imaginar que estou no teatro mágico
Com os olhos semicerrados
Pelas luzes da ribalta   
Ouvindo o colossal zunido dos aplausos
Que vem da plateia   
Talvez Henrik Ibsen,
Talvez o pato selvagem
Quem sabe

Já desisti de existir por inteiro  
Ao final da tarde
Vou fazer o que nunca fiz
Pelo menos na vida adulta
Vou caminhar lentamente
 Pela orla do oceano outonal   
Como uma anti-artista qualquer
Que se mistura a plebe
Ao final da tarde
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Samuel C. Da Costa
Itajaí/SC

“ENTRE AS BRANCAS NUVENS”


Entre as brancas nuvens
Eu dou os meus passos seguros
Rumo a ti
Minha negra ninfa dos bosques

O meu lânguido caminhar
No entre as diáfanas nuvens branca
Nestes dias em desassossegos
Onde devemos ousar ser tudo
E devemos ser
Nós mesmos

O que tu estás pensando agora?
Sidérea negra fada...
Nunca viste o estéreo amor antes?
Pois eu mesmo nunca vi!
E nunca senti...

O meu caminhar trôpego
Pelo hiper-texto
Pela realidade fluída
O meu livre flanar
Entre gente estranha
E apoplética

Diga-me sacrossanta afra musa!
Diga-me de uma vez...
Negra ninfa...
Tu lembras de mim?
Quando tu fechas os teus olhos?
Tu lembras de mim?
Todas às vezes...
Quando o derradeiro sono te alcança!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Adélia Maria Woellner
Curitiba/PR

“FUSÃO”


Cores flutuam sem destino...
Formas criadas pela inspiração,
oferecem refúgio.
União de formas e cores,
origem de imagens
que surpreendem
e encantam...
Nasce novo espaço,
repleto de magia.
Sentimentos e emoções
atraem a alma da poesia.
Intersecção do visual com o emotivo.
O quadro se completa...
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

“PAISAGENS DO MEU SERTÃO”


Uma velha rezadeira
um “véi” fazendo cigarro,
um pote velho de barro
e aquela boa parteira;
um chá com erva cidreira
pra qualquer inflamação,
o relâmpago e o trovão
e a tarde toda chovendo;
isso é mesmo que está vendo
paisagens do meu sertão.

Fontes:
Poemas enviados pelos poetas.

Sinclair Pozza Casemiro (Crônica de natal)

As luzes coloriam as casas de amarelo, vermelho, azul, verde, lilás, em forma de bolas e incandescentes cordões, brilhos que se espalhavam também pelas ruas e refletiam até o céu imenso, lá bem alto, pontilhado de estrelinhas. Não só. Os corações também brilhavam iluminando os seus corpinhos, pequeninos. E de gentes grandes e muito grandes também. Eram risos, gritos, cantos, uma algazarra que começava no lusco-fusco sem pressa de acabar. Até as mães se desleixavam um pouco e o tempo, as rezas, as brincadeiras se espichavam. As gentes miúdas se perdiam e se achavam, voltava tudo outra vez no lugar.

Ali, em cada casa, a comida vestia-se de novidade nos sabores e formas entre doces encantados pelas figuras de estrelinhas, luas, cordeirinhos, vaquinhas, burrinhos e de Papai Noel, de trenós e de renas. A correria ali também era maior que a de sempre. Entre irmãos, os primos e vizinhos se trombavam, ora correndo, ora caindo e logo se levantando para não se perder tempo. Cada docinho, bala, cada bolacha ou pedaço de bolo se oferecia alegre, participando do enlevo natalino. Os adultos se misturavam na rotina de preparar, cozinhar, assar, embelezar, sempre aqui e ali empurrando um, empurrando outro, nem tempo de zanga havia. Tia e a mãe confabulavam, primos atazanavam as primas, que cantavam e contavam estórias a não se acabar. Os homens no violão, sanfona ou afazeres, também trocavam assuntos o tempo todo. Sempre uma cantoria no vento que levava e trazia também os mais diferentes e saborosos cheiros e causos. O rádio se desligava? Para que dormissem, já muito tarde, e se alguém se lembrasse disso! Um barulho a mais, a menos, nada incomodava os momentos da alegre e temperada festança de véspera.

Véspera que durava semanas. À noite, a novena era sagrada, como eram sagradas as imagens de Nossa Senhora, São José, do Menino Jesus, dos reis magos, dos pastores, dos animaizinhos no curral que abrigava a história linda daquele nascimento. E dos anjos, estrelas, brilho e mistério enfeitando as noites de dezembro. O presépio era magia e promessa.

Papai Noel se misturava nesse tempo e nesse espaço, havia um encontro inusitado que no começo os pequenos não entendiam...mas nem precisavam entender. Naquela mistura de luz, gente chegando, gente indo, roupas novas, fogos e presépio, o que contava era ser feliz.

A Igreja, onde chegava a novena que saía de cada uma daquelas casas, ganhava outro sentido, o sentido da infância, da alegria, da beleza resplandecente, cheia de festa. Das tantas brincadeiras de meninas e meninos, dos namoricos e fuxicos de moças e moços. Ninguém distinguia ninguém de ninguém... a paz dava o tom da amizade e dos corações. Livres pelo laço da fraternidade cristã.

Cantos de igreja, do alto-falante e do coral, cantos de rádio, do alto-falante do cinema, de Papai Noel, de propagandas... cantarolados todos, repetidos, tim-tim por tim-tim, mesmo que nem sempre compreendidos.

Não se podia esquecer da cartinha ao Papai Noel. E tinha aquelas que o correio levava para crianças que podiam ser esquecidas, que não se conhecia...mas Papai Noel, sim. Era infalível, o velhinho. E se alegrava pensar que outros amigos se faziam, assim, muitos chegavam a se conhecer de perto.

Ah...e a escolha do presente era outro capítulo dessa história. Tinha que se encaixar numa porção de coisas, mas vinha sempre um presente que era para cada criança, o presente mais lindo do mundo! Muitas balas, muita alegria, muita música!!! Fascínio.

A espera por Papai Noel se fazendo num agradável ritual. E, claro... não ser desobediente! Era um tempo de muito cuidado, não se podia resvalar numa palavra feia, numa briguinha boba, nem nada. Cautela. Qualquer deslize e...pronto! Papai Noel não apareceria!

E a sua chegada? Outro mistério! Nunca se conseguia vê-lo. Mas ele sempre deixava um recadinho, pelo menos...bastava. Ano que vem não se dorme, se aguenta firme.

Até que chega o ano que...os irmãos ficam estranhos, amigos confabulam...não é verdade? Como? Não existe? O que aconteceu? Chateação... desilusão... sentia-se, por outro lado, que se estava mais importante, já não se era mais criança bobinha. Deixar as histórias de Papai Noel para as criancinhas ingênuas. Já não se era mais, afinal, qualquer criança. Triste. Triste? Que era aquilo? Vergonha? Orgulho de ter crescido? Que mistura doida de sentimentos...

Vai-se ficando para trás mais uma história mal explicada, mal resolvida que o tempo cuida de ajeitar. Pelo menos Menino Jesus era de verdade, o presépio continuava, com os mesmos encantos, os cânticos do Coral, as músicas de rádio... a casa e a cidade enfeitadas e ainda a magia se via no ar pelo bom menino.

O tempo passou, passou. E veio o agora. E o agora é o tempo da verdade de tudo. Tempo que não para... verdade que se vai maturando... Passados já muitos anos, finalmente, alguma coisa se aprende. Finalmente. Idade da razão... Mais-que-razão. Transformam-se, nascem, morrem formas, meios, crenças... E... Viva!!!

Vai nascer o Salvador! Papai Noel vai chegar, trazer presentes, espalham-se luzes em cada casa, no quintal, entre família e amigos que se tem em todo lugar por onde se possa! Passeios pelas ruas, cidades, gente bonita, quanta luz! Enche-se de música, de presentes e de vida por onde mais se vá! Brincar, cantar, comportar-se bonitinho, é tempo de Natal! Muito brilho, muita fé, muita alegria...nasceu o Menino Jesus! Papai Noel chegou! Escondido...mas deixou recadinho...

Nada mudou! Nem ninguém.


Fonte:
Texto enviado pela autora

domingo, 4 de dezembro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 19

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 68

Lucubração parece uma palavra fora dos nossos dias e horas, tem um jeito taciturno, escuro, tristonho. Ao contrário. Só quem convive com estas palavras-criaturas sabe do sabor delas. E que vida têm!

A palavra lucubração ou elucubração nos vem do latim "elucubratio", trabalho constante e intermitente. Também trabalhar em horário noturno, com luz artificial. Lucubrar pode ser buscar, pensar, até filosofar, resolver com as ideias. Quantas vezes nos deitamos nas elucubrações sobre um texto, uma afirmação, um pensamento.

Quando (e)lucubramos podemos estar escarafunchando numa busca, pensando, resolvendo. E o resolver pode estar associado a movimento, como caminhar - saímos pelos caminhos vagando, divagando, enxergando - pensares soltos como um anzol à espera dum peixe-pensar. Elucubrar é (quase) tudo. Tenho estado sempre a.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Stanislaw Ponte Preta (O anjo)

O marido solto no verão por força do veraneio da família é um homem que muda por completo seus hábitos e atitudes ao sentir-se libertado dos compromissos domésticos. É um homem sem horário para comer, para dormir e até mesmo para trabalhar.

O marido em disponibilidade nos dias úteis, porque no domingo sobe para Petrópolis, Teresópolis, Friburgo ou lá onde tem a família, assume uma segunda personalidade, até então insuspeitada, e é um homem de estranhas atitudes, mutáveis segundo a influência de amigos e acontecimentos.

Tenho encontrado maridos a fazerem as coisas mais extravagantes possíveis, qual boi de curral, que - segundo dizem os entendidos em gado vacum quando solto no pasto lambe-se todo. E, dentre esses maridos, o mais estranho é o tímido. Tomo para exemplo o Rosamundo, cuja esposa, senhora de proporções digamos cinemascópicas, cerrado buço e intransigência doentia, sofre de pertinazes pruridibus cutâneus, doença que o vulgo houve por bem denominar brotoejas. Tal senhora, mal começam a subir os termômetros, sobe também, mas para a serra, a se coçar toda e a lamentar as férias forçadas que dará ao marido, criatura quase santa, homem que terá entrada franca no céu se, quando lá chegar, mostrar a fotografia da esposa a São Pedro.

Ele faz parte do grupo de maridos que, mesmo com ampla liberdade de ação, permanecem úmidos e sossegados num canto, pouco aproveitando a folga matrimonial. Pelo contrário até, noutro dia foi visto a comprar revistas de palavras cruzadas, numa banca de jornal. Surpreendido no ato da compra, explicou:

- É para resolver na cama, enquanto o Sono não vem.

Assim é o homem pacato. Mas, dizia eu, um marido solto é um enigma e este não é melhor do que os outros. Acredito mesmo que o tímido, quando insuflado pelos amigos, é capaz das mais extravagantes aventuras.

Foi assim com este. Era, segundo lhe diziam, uma festinha pré-carnavalesca, coisa íntima, só gente da corriola se me permitem o termo. O Rosamundo, de princípio, e disso SOU testemunha , não queria ir. "Vamos que a mulher telefonasse de madrugada, vamos que estivesse na festa uma conhecida dela", vamos uma porção de coisas, que o homem medroso cria uma série de dificuldades antes de se decidir.

Contornadas todas essas hipóteses dramáticas, amigos e conhecidos acabaram por convencê-lo a ir... e bebeu-se fartamente ao evento. Ele também tomou umas e outras, tanto que, quando soube que o negócio era na base da fantasia, gritou entusiasmado:

- Eu vou de anjo!

Arranjou uma camisola enorme (provavelmente da esposa, umas asas de papelão, uma auréola de arame e saiu para a rua, à procura de um táxi. E, como já se sentisse um outro homem, na ausência do táxi entrou mesmo num lotação, criando inclusive um caso na hora de saltar, porque cismou que anjo tem abatimento em qualquer condução.

A festa não era tão íntima assim, como disseram os amigos. Segundo suas próprias palavras, "era um pagode de grande rebolado", no qual ele se meteu todo, já sem nenhuma prudência, cumprimentando senhoras conhecidas, deixando-se fotografar abraçado a uma baiana decotadíssima que encontrara numa volta do cordão, enfim, esteve distraído.

Foi no dia seguinte de manhã que o medo voltou a baixar sobre sua consciência. Mesmo antes de abrir os olhos, pedia a Deus que ninguém lhe tivesse atirado confete, porque confete é uma coisa de morte que a gente pensa que limpou mas que, meses depois, ainda aparece no fundo do sapato, na dobra da ceroula, nos mais variados lugares.

Até a véspera de subir para o fim de semana, remoeu-se em dúvidas e suspeitas: sua mulher já saberia de tudo? Estaria esperando sua chegada para explodir? Essas e dezenas de outras perguntas se fez até o momento de rumar para Petrópolis. Antes comprara todas as revistas semanais, até o Monitor Mercantil ("nunca se sabe!"), com medo de que alguma delas tivesse publicado o seu retrato de anjo abraçado à baiana decotada, de quem conseguira o telefone mas a quem tivera a prudência de não telefonar.

Sossegou somente com a ideia de que, sendo a mulher como era, se soubesse de alguma coisa, não esperaria sua chegada para desabafar, teria descido com brotoeja e tudo. Foi mais aliviado, portanto, que chegou em casa, abriu a porta e deu com a gordíssima esposa a esperá-lo.

- Como vai, meu anjo? – disse ela.

Desmoronaram-se todas as suas esperanças. Após um tremido "pode deixar que eu explico", contou tudo que acontecera, sem perceber que aquele "meu anjo" com que ela o saudara era apenas uma carinhosa expressão de esposa saudosa.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Rosamundo e os outros. 1963.

Athos Fernandes (Caderno de Poemas) 6


BRASIL CABOCLO


Miséria, luto, tristeza,
eis o que existe no duro,
e do país o futuro
anda ao sabor da incerteza!

Sem ter um porto seguro,
corre ao céu da correnteza.
Gigante por natureza,
vagando às tontas no escuro!

Pobre nação que rebola
no bambolê coca-cola,
e tem prestígio de bamba...

Brasil, caboclo estouvado!
Mané Garrincha escolado
do futebol e do samba!
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CARNAVAL

Carnaval é bacanal
que faz, no tríduo* momesco,
o bem transformar-se em mal
e o que é sublime em grotesco!

Mas muita gente, afinal,
tem com Momo parentesco.
Cai nessa orgia infernal
e faz da “pinga” refresco!

Pondo à mostra o que era oculto,
canta, grita, faz tumulto,
e o mais, que é próprio da festa,

Disfarça na quarta-feira,
saindo à rua, lampeira,
com cruz de cinzas na testa!
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* Tríduo = festa de três dias.
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MAU NEGÓCIO

Eu seria feliz se fosse um burro,
que após um dia de labor constante,
é livre de espojar e dar seu zurro
no fofo chão de um prado verdejante!

Porém, malgrado meu, o último urro
já dei na fase de macaco errante,
quando gente eu quis ser, para dar “murro”
na conquista de um mundo agonizante!

Hoje, vendo a “burrada” cometida,
pretendo permutar o meu estado
por tudo que o asno passa nesta vida.

Mas vejo, neste tédio em que me esturro,
que embora fique a sela em meu costado,
é muito mal negócio para o burro!
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PARTIDA DE XADREZ

Peão, quatro de rei, é o movimento
no início da enxadrística batalha.
Cavalo, três de bispo, e a passo lento
prossegue o jogo e tudo se embaralha!

A investida das pretas, num momento,
tem a fúria indomável da metralha.
Mas as brancas conseguem, com talento,
transpor galhardamente esta muralha!

Bispos, cavalos, torres - tudo avança!
E quando o fim da luta se avizinha,
o grupo branco vê, ao prepara-lo...

Que o rei, acossado, sem tardança,
fugindo ao forte assédio da rainha,
sucumbe ao xeque-mate do cavalo!
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SONETO DE NATAL

No Natal sempre lembro a minha infância pobre.
Os meus bois de sabugo e os barcos de papel,
a cocada baiana a dois vinténs de cobre
e uma velha colmeia onde eu roubava mel!

Galhos frágeis mas sãos de tronco antigo e nobre,
eram meu pai Elpídio e minha mãe Isabel.
Por mais que sofra o humilde e em lutas se desdobre,
não pode dar ao filho um bom Papai Noel!

Por isso eu sou assim, desde a infância modesta,
infenso a este Natal de tão ruidosa festa,
e à tradição cristã sobre o Papai Noel...

Que ao rico tudo dá e tudo nega ao pobre,
até mesmo a cocada e os dois vinténs de cobre,
mais os bois de sabugo e os barcos de papel!

Fonte:
Athos Fernandes. Miscelânea Poética. 1979.

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 79, 80 e 81


DUAS SOMBRAS

Por que Meneses tinha duas sombras em vez de uma, como toda gente? Ele não sabia nem se importava com isto.

Há casos de pessoas que perderam a sombra e lutaram por trazê-la de volta, mas o fenômeno de duas sombras iguais era totalmente inédito. A cidade interessou-se a princípio; acabou se acostumando e mesmo tirando partido. Meneses era a única atração turística de um lugar pobre de paisagem e de prazeres.

— Já que me tornei polo turístico — disse ele — devo tirar proveito desta condição. A prefeitura tem de me pagar uma quantia mensal.

O prefeito coçou a cabeça. Pagar a um indivíduo por ter sombra dupla? Não estava certo. Por outro lado, viajantes começaram a chegar de estados vizinhos e até do exterior. Dinheiro chovendo.

Meneses trancou-se em casa e, atrás da porta, negociou, com a autoridade, participação na renda. Ou isto, ou se mudava para longe. Esta foi a origem da Taxa das Duas Sombras, que vigorou até a morte de Meneses, rico e afamado. Só que, nos últimos tempos, uma das sombras diminuíra de tamanho, e um vereador da oposição propôs que lhe fosse cassada a sinecura. Mas uma sombra e meia era nova atração, e a proposta foi rejeitada.
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ENTRE FLORES

As flores estavam inquietas porque o arquiteto-paisagista havia projetado uma flor diferente de todas as existentes. O projeto fora encaminhado à comissão de notáveis, que deu parecer sugerindo a adoção da nova flor como a primeira do país e seu símbolo oficial. “Com uma flor diferente de nós todas e erigida em marca nacional — murmuravam a um só tempo os crisântemos, as dálias, os cravos e muitas outras espécies, inclusive a flor de fedegoso, que pelo nome não era muito apreciada — institui-se discriminação no reino vegetal. Além do que, flor sintética não é flor que se cheire.”

A rosa não quis opinar, porque ainda conserva ilusões de rainha. Uma delegação de flores procurou o arquiteto-paisagista, que se recusou a recebê-la, mandando dizer que estava muito ocupado. Seguiu-se a greve floral durante 45 dias, em que ninguém mandava flores ou tinha condições de colhê-las, pois todas passaram a ter espinhos, e algumas, cheiro de enxofre.

Mesmo assim, a flor de proveta foi institucionalizada, e muitas variedades, como a cinerária, o lírio amarelo e o jacinto, que antes formavam no coro das reclamantes, levaram-lhe cumprimentos no dia de sua glorificação. Os espinhos e o mau odor desapareceram, e até a rosa lhe mandou telegrama de parabéns e votos de eterno florescimento.
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GARBO E MARLENE

Greta Garbo me escreveu na semana passada, perguntando se a esqueci. Isto porque todos os anos lhe mando um cartão de Natal, que ela agradece com outro, e assim temos mantido acesa a minúscula mas duradoura chama da nossa perene amizade.

Dezembro último, a Garbo não recebeu a minha mensagem. Esperou-a até maio, supondo que se houvesse extraviado, e que o correio, finalmente, a fizesse chegar às suas mãos. A verdade é que não faltei a essa grata obrigação, mas, não sei por que, em vez de botar no envelope o nome e endereço da minha amiga, escrevi os de Marlene Dietrich, que jamais conheci na vida, a não ser em filme, e cujo endereço figurava numa revista sobre a mesa.

Marlene devolveu-me o cartão (em que figurava o nome de Garbo) sem qualquer comentário. E eu, encabuladíssimo, não tive ânimo de encaminhá-lo à verdadeira destinatária, transcorridos meses.

Venho meditando sobre a troca, sem chegar a conclusão alguma. Terei pretendido, subconscientemente, ofender Marlene, revelando-lhe minha preferência pela Garbo? Seria de mau gosto. Estaria, no fundo da minha admiração, substituindo uma por outra? Não posso acreditar.

Dar-se-á que procurei fundir as duas estrelas num corpo único, juntando naturezas tão diversas? Van Jafa, que já morreu, poderia ajudar-me a destrinchar o enigma.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 1981.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Ademar Macedo (Vírus da Trova) – 1

 

Leon Eliachar (A corrente)

Lindolfo apanhou o envelope debaixo da porta. Olhou de um lado e de outro, não reconheceu a letra nem encontrou o nome do remetente. Abriu e viu um pedaço de papel batido à máquina, devia ser uma segunda via, pois estava batido com carbono. Pensou que fosse o lançamento de algum produto de algum industrial pão-duro que, pra não gastar dinheiro em propaganda de jornal, usa a tática de anunciar debaixo da porta, “diretamente ao consumidor”. Dizia: “Envie treze cópias desta mensagem a treze pessoas de suas relações, em dias pares, e treze em dias ímpares, a qualquer pessoa que você não conheça”.

— Só faltava essa — falou consigo mesmo. Sorriu com raiva de ter perdido tempo, ia rasgar, quando leu: “Não rasgue esta 'corrente'. Outras pessoas já o fizeram e se deram mal”. Logo abaixo, uma lista de pessoas conhecidas que morreram, a maioria das quais figuras históricas, que Lindolfo nunca poderia averiguar se de fato haviam ou não “quebrado” a corrente. Desta vez deu um sorriso irônico, chamou a mulher:

— Olha aí, Lurdes, você que é supersticiosa, copia esse troço vinte e seis vezes.

— O quê?

Lurdes leu com todo o cuidado:

— Você não vai copiar?

— Tá brincando.

— Isso dá uma ziquizira que vou te contar. Uma amiga minha rasgou e perdeu uma perna debaixo do trem.

— Coincidência.

— Sei lá. Essas coisas a gente nunca pode saber.

Lindolfo ficou meio cismado. Foi pro escritório, pediu à secretária:

— Tira vinte e seis cópias e deixa em cima da minha mesa.

A secretária botou o papel na máquina, levantou-se:

— Seu Lindolfo, isto é uma corrente.

— Eu sei, e daí?

Ela fez ar de entendida.

— É que o senhor tem de copiar de próprio punho.

Lindolfo trancou-se no gabinete, avisou pelo telespeak:

— Não estou pra ninguém, ouviu?

Tirou o paletó, ligou o ar-condicionado, começou a tirar cópia. Lá pras cinco da tarde, estava tudo prontinho. Só faltava sobrescritar os envelopes. Pegou o caderninho de telefones, nenhum tinha endereço, teve vontade de telefonar pra saber; na certa haveriam de perguntar “pra que é” e ele ficaria encabulado de explicar que era pra enviar uma “correntinha” sem compromisso. Procurou no catálogo, um por um, os nomes do caderninho, achou graça: a maioria dos seus amigos tinha telefone e não tinha endereço. Pediu auxílio pra telefonista, ela mandou que ele procurasse no catálogo. Foi duro arranjar onze, faltavam dois. Decidiu mandar um pra secretária mesmo, que era ali pertinho, só não sabia o sobrenome dela e ficou com vergonha de perguntar. Ligou pro Departamento de Pessoal, antes de desligar ouviu um risinho de quem vai fazer a maior fofoca, na certa pensando que ele estivesse interessado na secretária. Ficou faltando um, chamou o contínuo:

— Traga aqui um amigo seu e me apresente.

— Como?

— Isso mesmo que eu disse. Traga aqui um amigo seu e me apresente.

Meia hora depois o contínuo trouxe o ascensorista.

— Não posso demorar, doutor, que o elevador está parado no terceiro.

Conversaram, tomaram cafezinho, contaram anedotas. Agora, sim, o ascensorista era “um homem de suas relações”. Perguntou o seu nome e endereço, ficou de lhe fazer uma visita qualquer dia desses. Completou o último envelope, agora só faltavam treze para treze pessoas desconhecidas. Leu de novo o papelzinho em cima da mesa: “corrente da felicidade”. Pensou:

— Vá ser feliz assim no raio que o parta. Rasgou tudo, jogou pela janela. Alguém cuspiu lá de cima, bem na sua testa. Sentiu um arrependimento íntimo de ter rasgado, bateu a janela com toda força, bem em cima do dedo mindinho.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. Publicado em 1965.

Lucília Alzira Trindade Decarli (Inquietude) 2


A FORÇA DO AMOR SOFRIDO


Difícil de compreender
a força do amor sofrido,
mas bem fácil de entender
depois de tê-la sentido…


A inquebrantável força de um amor
resiste ao tempo, à dor e à despedida;
ignora a culpa, esquece do amargor,
veemente, segue incólume na vida.

Atenta ao coração do sofredor,
leva a esperança e a calma comedida;
despreza a solidão e, sem pudor,
oferta-lhe a presença destemida.

Contudo, quando o amor, senil, cansar-se,
a força ativa, sem jamais quedar-se,
não deixará que prostre, entregue à sorte.

Honradamente irá retroagir,
o amor fará no sonho submergir...
Trará a ilusão, que pode adiar a morte!
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AMOR INFINDO

Nas asas da eternidade
descanso este amor infindo;
se hoje é pleno de saudade,
um dia o verei sorrindo!

Nas suas mãos coloco o meu sentir
— um sonho louco dentro deste ocaso —
e ao desnudá-lo a mim vou permitir
pedir desculpas pelo extenso atraso.

Mas de remorsos quero me eximir,
— sei que este amor não foi um mero caso —
pois nunca é tarde para consentir
que o sonho voe, visto não ter prazo...

Ressurge, assim, das cinzas... De repente,
quebra o silêncio, expõe-se o amor ardente,
depois de longa estrada percorrida.

Disponha dele como bem quiser,
saiba, porém, não é coisa qualquer,
mas, sim, amor que segue além da vida!...
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CANTO NOVO

Ao rejeitar canto triste,
percebi que entre a alegria
do acorde feliz existe
a mescla da nostalgia...


Para os meus versos quis um novo canto,
onde a alegria, audaz, predominasse,
sem permitir, presente, nenhum pranto:
— só melodia, e a mais feliz se entoasse!

Sondei o amor... Embora, ali, buscasse
todo o calor de um reforçado manto,
— que do sofrer dolente os resguardasse —
vi a nostalgia entrando no acalanto.

E rejeitando, então, melancolia,
vesti nos versos rica fantasia,
mas concluí que os deturpei, demais:

—  que o amor nem sempre traz felicidade,
combina mesmo, e muito, com saudade,
por isso, dela o poeta fala mais...
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PÉS ANDARILHOS

O trem sua meta alcança,
girando as rodas nos trilhos…
Meu caminhar que, hoje, avança,
conta com pés andarilhos!


Não sei dizer, quanto em quilometragem,
nem quantas as estradas percorridas...
Posso afirmar: depois de longa viagem
meus pés estão dispostos a outras idas.

Sendo andarilhos, levam na bagagem
minhas vitórias — poucas — conseguidas;
também derrotas, e essa desvantagem
é que impulsiona para mais corridas!

"Tanta importância dada aos pés, no entanto,
parece injusta e traz calado espanto
a um corpo, quase todo" — alguém diria.

Lembro que, ao corpo, dão sustentação
e exalto, aqui, o poder: locomoção...
Porque sem pés, andar não poderia!...
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PORTAS…

No mundo, as portas abertas
nem sempre irão ajudar…
As fechadas são mais certas
para a luta impulsionar!


Contemplo a porta... Há séculos subsiste.
São tantas portas num planeta imenso...
Algumas portam lenho que resiste,
outras desgastam-se ante o tempo extenso.

A porta aberta é franca e sempre assiste,
seu livre acesso faz seu uso intenso,
porém fechada, eu creio que consiste
na restrição que torna o mundo tenso.

Portas talhadas para entrar, sair,
dar liberdade ao homem de ir e vir,
por certo são aquelas mais prezadas.

Portais sagrados, por detrás espantos...
Ali se prega: "a porta aberta aos santos
será fechada às almas condenadas!…"*
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* “Eu sou a Porta, se alguém entrar por mim será salvo, – …e quem não crer, será condenado" (Jesus, João 10,9 e Marcos, 16, 16 b)
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Fonte:
Lucília Alzira Trindade Decarli. Inquietude. Bandeirantes/PR: Sthampa, 2008.
Livro entregue pela poetisa.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro da Graça

Do alto da colina avista-se quase toda a cidade. A GRAÇA, com o seu miradouro e os seus elétricos, é um pouso de turistas; esconde casais de namorados e dá refúgio às tradições alfacinhas.

O local onde se situa o bairro da Graça é uma das primitivas colinas da Lisboa cristã. Como era uma importante zona estratégica, D. Afonso Henriques escolheu-a para montar o seu quartel general, em 1147. Conhecido pelo nome árabe de “Almofala”, era um subúrbio da poderosa “Aschbouna”, a Lisboa Mourisca. Nesta zona, onde se encontrava o Almocáver, cemitério mouro, fundaram-se dois conventos de grandes proporções, o dos Cônegos Regrantes, em São Vicente e, um pouco mais acima, o dos Agostinhos. Ambos ficaram sob a invocação de Nossa Senhora da Graça.

A influência dos Frades Agostinhos da Graça foi determinante na edificação urbana desta colina de Lisboa que, embora só tenha adquirido classificação administrativa numa época relativamente recente, a verdade é que se trata de um bairro e de um sítio bem demarcado, há, pelo menos, três séculos. Da Graça que cresceu no século XV até ao terremoto de 1755, apenas sobreviveu o Convento dos Agostinhos, situado no Largo da Graça.

Entre 1891 e 1911, do bairro de Santo António formaram-se outros dois, o da Estela D’Ouro e o Ermida. Assim, as ruínas dos velhos palácios deram lugar às vilas habitadas por uma população operária, numa zona cujas raízes mergulham na própria fundação da nacionalidade.

Dos primórdios da monarquia lusitana, o Bairro da Graça, guarda apenas os vestígios assinalados na capela da Nossa Senhora do Monte, erguida após a tomada de Lisboa. Este bairro voltou a fazer história na Implantação da República, uma época em que acolhe diversos nomes ilustres que se distinguiram na luta pela democracia.

O Clube Desportivo da Graça nasceu a 12 de março de 1935. Esteve desde sempre, ligado à cultura, beneficência e ao desporto. Na área do desporto, funciona com escolas de atletismo, futebol de cinco e tênis de mesa. Na área da cultura, a coletividade dedica-se quase exclusivamente à organização das Marchas Populares.


MARCHA DA GRAÇA
(Venham dançar com a Graça)

Letra de Ester Correia
Música de J. M. David


A Graça tem
O Senhor dos Passos a passar,
Erguendo os braços para a Graça abençoar
E, o Santo António apaixonado
Que num suspiro contente lhe canta um fado.

A Graça tem
nos arraiais muita alegria
Os seus balões são de eterna fantasia,
E um cavalinho sempre a tocar
Ela é festa de Lisboa, a cantar.
Há um cheirinho a manjericos;
Cravos sorrindo aos namoricos;
O povo acorda, o povo só dança,
No arraial ninguém se cansa.

As sardinheiras estão às janelas
A ver a Graça saltar fogueiras
E os santos populares, pelas vielas,
Atrás das moças bonitas, namoradeiras.

A Graça tem
O Senhor dos Passos a passar,
Erguendo os braços para a Graça abençoar
E, o Santo António apaixonado
Que num suspiro contente lhe canta um fado.

Está aqui a nossa Graça
Que é de Lisboa a sua graça,
Só ela abraça, só ela nos beija
com a ternura de quem deseja.
Só ela tem aquele olhar,
Num coração sempre a dançar,
A Graça salta de alcachofra na mão,
E acorda o sol ao sabor de uma canção”.


Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 32

 

Aluízio Ferreira de Abreu (À sombra do Bandarro)


“Aquilo” só podia ser febre de leite. A menina nascera como abóbora benza-a Deus! — na fortidão da lua, e tudo correra normalmente, às mil maravilhas, com grande valentia da Candoca, que nem parecia de primeira embarcada.

Nhá Porciana conhecia, de fato, “daquelas coisas”. Dera o seu lidar por terminado, com o pinchamento d’água suja da gamela de raiz de figueira, e estava pronto.

Ela mesma recebera a Candoca, há várias floradas das guaricicas*, quando as árvores pareciam ajuntar na arca verde das copas todo o ouro do sol, e a Fortaleza da Barra, “sarvava com tiros de pórva sêca”, no alumiamento de mais um aniversário da República de Deodoro.

Também, de quase toda aquela gente, beirando os “trinta”, crescida e permanecente ali, desde o costão do Bandarro, raro o que não chegara pelas suas mãos encaroçadas pelo artritismo, mas experimentadas. Não havia, pois, motivos para aquela aflição, para o rumor baldado que o Gumercindo Vicente viera fazer atendo-lhe à porta hora alta, — até assustar a galo, velho e esporado, no poleiro de mangue bravo, que deitou a cantar, agourentando, “como se estivessem roubando moça no Superagui...”

Uma febrinha que mal chegava a amornar vexou-o com a obsessão da dianha* da puerperal. Era verdade que Aninha da Galheta se finara, não fazia tempo, levada numa recaída; mas a entendida fora outra, que não ela, “costumada no desempenho”. E mostrou o acerto, com o empachamento dos peitos da Candoca, abrasados e vermelhantes, com o queimor da “esipra*”.

— Uma coisinha à toa, facir de aresorvê...

Nhá Porciana pediu um punhado de sal, torrado no calor da “mãe do fogo”, e um pente feito de chifre. O sal quente, ela o derramou sobre o embolamento dos seios, “penteando-os”, em seguida, de alto a baixo, das raízes até a extremidade dos bicos. Simpatia infalível, ensinada pela mãe Rita, herdeira universal da velha Xandoca, que a animara nos afazeres dos partos. Tudo acompanhado de palavras rezadas baixinho, quase sem movimentação de lábios, para não serem apreendidas.

Coincidência ou não, “por isso ou por aquilo”, momentos depois o leite descia sem estorvo à sucção faminta da recém-nascida, a temperatura voltava a 36º e o enrijamento desaparecia, com o reconhecimento de Gumercindo Vicente e da Candoca, enfim, recuperados na sua confiança no futuro.

Nhá Porciana debochou, bondosa:

— Óia, Gumercindo, se Mané da Ribeira fosse ansim, e se aborrisse por um tiquinho nada, ele já tava que só pêxo cambira! Esse unzinho de onte, foi o doze com que Deus o favoreceu...

O “unzinho” que nascera na véspera passou a chamar-se Antonio, conhecido pela abreviatura de Toninho, acrescida do apelido paterno, no diminutivo. Gumercindo Vicente, por sua vez, deu à filha o nome esquisito de “Eduvirges”, em memória, não sabida da Candoca, de um rabicho polaco, em Ponta Grossa, quando galgara o planalto, reclamado pelo serviço militar.

É que nas praias, por entre tanta simpleza das coisas e dos corações, a flor da malícia também encontra ambiente, vicejando por vezes...

O Morro do Bandarro azumbrado* nas imediações da Barra do Superagui serve de referência à navegação, na direitura da Boia do Cigano. Nas suas fraldas borbulha uma vertentezinha sem nome, chorona, que vai escorrendo para a praia, como um fiapo úmido de luar, rastejando no crepúsculo do mato.

Bem aí, nesse longe, estava fincada a casa de Gumercindo Vicente, parelhando com a de Maneco da Ribeira, as duas mirando abstratamente a largueza do oceano. Toninho e Duvíge foram medrando nesse apartado da terra, desconhecendo o que fosse o mundo além daquelas lonjuras do mar, analfabetos por ausência de mestre, verminados e amarelentos à míngua de medicina, entretanto alegres do seu viver naquele largueirão de ermo.

Entretinham-se vendo passar os vapores, sem diferenciá-los e por vezes os seus olhos embeveciam-se no luzimento dos aviões varando pelo céu, roncando como um besourão de prata. Nem sequer perquiriam do rumo daqueles barcos caturrando entre as ondas, ou das máquinas brunidas que furavam o azulão, mergulhando nas nuvens. Que lhes poderia interessar o destino dos outros, a eles que viviam separados de toda a gente, na agrestia daquela ilha surrada pelos vendavais?

Duvíge cresceu com a afoiteza da bananeira brotada na lombada do Bandarro, para a primeira cacheada. Toninho, ao contrário, não passava de um caboclinho minguado — peri de beirada d’água — atrasado pelo amarelão.

Disparidade impiedosa, cúmplice natural da aproximação dela com o Mingote da Ribeira, irmão mais taludo de Toninho, já tirando para homem, com escassos pelos assombreando o beiço, sobre a dentuça carcomida. No íntimo de Toninho, porém, essa desigualdade manifestava-se de modo adversante.

A sua benquerença por Duvíge avolumava-se com impetuosidade de onda e o ciúme escacava* o seu peito, mordente como a espinhada de pira-mamangava, que um dia lhe picara os dedos, na cambulhada* dos camarões da tarrafa, doendo como esporada de arraia-chita.

A boca amargava-lhe com o travor da artemisa-da-praia, quando ela passava ao lado de Mingote, ele empertigado no seu domingueiro de listão, subindo pelo caminho ramposo do Bandarro até o seu alto, extasiados no seu querer, as imagens refletindo-se na poça da pedra, bem na assomada, como um quadro em moldura de pedra, falando de coisas que lhe azinhavravam* a alma, turvando-a como água revolvida de lama.

Seus olhos fuzilavam como brasas, e a razão encadeava-se-lhe. Azoado sentia o badalejar dos dentes, como em acesso de maleita, e punha-se a correr eito a fora, os maus pensamentos afeleando-lhe* o coração, que nem a bafagem do vento abrandava.

Só noitinha voltava ao ranchão, estropiado do andejamento, para a dormida agitada, de pesadelos, que era o seguimento vivo da sua grande agonia.

Mingote da Ribeira e Duvíge, tripulando a segura canoa dos seus sonhos, navegaram com as velas pandas de esperanças pelos mares serenos do seu bem-querer, indo poitar* os destinos sob o olhar imobilizado da Santa dos Prazeres, na igrejola da Ilha do Mel.

Foi o desflorir outonal das ilusões de Toninho.

Ali mesmo, ao pé do altarzinho caboclo, ruminou matar o irmão, afogando-o. Azucrim não cessava de trabalhar-lhe a mente esquizofrênica, atormentando-o de morte.

— Duvíge não podia ser de mais ninguém...

Mais tarde, Maneco da Ribeira pôs em reparos o ensoamento do filho, chamando-o para o assombramento da gameleira troncuda, onde uma andorinha calmamente trissava*, refazendo-se do volutear exaustivo.

Bem-avindo*, admoestou-o num ralho de paciente afeição, que ele recolheu com os olhos parados na areia, boiantes de tristura. Nem tentou abrir a boca precocemente amargurada, para um protesto ou uma desculpa. Deixou-se ficar, vencido, o olhar perdido no vazio das coisas, ensimesmado dentro da sua amargosa decepção.

Na casa, sob o teto rústico de juçara, corria o ajantarado das esponsais. Uma viola, ponteada, ia chorando algures...

Já a luzerna* do Farol das Conchas rastejava no mar escameado de prata, quando alguém topou, pelas bandas do Banco de Inácio Dias, com a canoa de canela preta alagada, indo com a vazante...

O fandango estalava na moradia, no festejo das bodas, sem que alguém notasse a ausência de Toninho, arredio que andava, tresmalhado de todos. E no rancho do porto de Maneco da Ribeira, quase no anco da praia, só os rolos de cacheta branquejavam no grande espaço vazio, tomado de uma pesada sombra...
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* Notas:
Afeleando = amargurando, angustiando.
Azinhavravam = oxidavam.
Azumbrado = dobrado, curvado.
Bem-avindo = conciliado, amigado.
Cambulhada = grande quantidade.
Dianha = diacho.
Escacava = despedaçava.
Esipra = erisipela.
Guaricica = pau-amarelo ou pau-de-vinho, é árvore típica da Floresta Atlântica de planícies e de ínicio de encosta, onde forma agrupamento denso na fase de capoeira alta. Madeira de cor bege-clara é de peso médio e durabilidade moderada. Usada principalmente em caixotaria, tábuas, obras internas, remos e canoas. Produz boa lâmina e lenha de boa qualidade. É de árvore sempre-verde, muito usada para fins ornamentais, por sua vistosa floração.
Luzerna = facho de luz.
Poitar = ancorar.
Trissar = canto da andorinha.


Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Solange Colombara (Tertúlia Trovadoresca) I


Algumas fotografias
fizeram-me soluçar…
Despertaram utopias
das férias à beira-mar.
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Ao partires deste mundo,
encontrei na fé, coragem
e um sentimento profundo,
quando foste pra viagem.
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As águas em calmaria
brotando em tua nascente,
são rios em romaria
em um queixume doente.
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As inúmeras metades
que habitam meu coração,
às vezes gritam saudades,
noutras, choram de emoção.
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Através do olhar do filho,
viu no espelho refletindo
vida, em um único brilho,
o ontem no hoje coexistindo.
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Celebrando um sentimento,
eu vejo um poema escrito
pelo tempo frágil, lento,
horas mortas… infinito…
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Contemplo imensa magia
nesta tranquila paisagem
e agradeço pelo dia,
aproveitando a viagem.
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Das lágrimas de um poeta
renasce uma inspiração,
um poema se completa…
Leva alento ao coração.
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Deixo minha inspiração
despir a criatividade
poetizada em emoção...
Encontro a serenidade.
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Divulga a boa leitura
levando entretenimento,
um viva à literatura!
Livro é luz, conhecimento!
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Em instantes de harmonia,
venho minha paz colher
na melhor hora do dia…
minha hora de agradecer.
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Inaugurando nova era
com flores e poesia,
vem chegando a Primavera
plena em cores e alegria!
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Livros abrem as janelas
da nossa imaginação…
Criam imagens tão belas
nos pulsares da emoção!
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Mãe, o teu riso gostoso,
eterno, presente em mim,
é o legado mais saudoso...
Uma saudade sem fim.
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Meu gatinho Trololó
gosta de fazer folia,
nos novelos da vovó
e nos móveis da titia!
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Na noite, em serenidade,
admirando a Lua Cheia,
converso com a saudade…
Este luar me norteia.
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Ninguém tem sua razão
e tampouco entendimento
se a palavra for em vão…
Se faltar bom sentimento.
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Nos trilhos da solidão,
um apito de saudade
ecoa em cada estação,
súplicas de liberdade.
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O desafio do dia
foi com intensa emoção!
Transformar em poesia,
o meu medo de injeção.
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O Pererê do Ziraldo
ou Sonetos de Camões,
livro sempre traz bom saldo
carregado em emoções.
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O sol hoje apareceu
e veio dizer: -Bom dia!
Um poema alvoreceu
em raios de poesia.
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Por horas, sempre brindando
ao tempo, a cada momento
vivido, vou caminhando,
celebrando um sentimento.
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Procurando sustentáculo,
mediante um desafio,
supero qualquer obstáculo
com humildade e com brio.
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Quando eu olho para trás,
os meus passos de coragem
dão-me forças, para, em paz,
continuar a viagem.
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Seu sorriso acaricia,
abraça o meu coração,
é chamego que vicia…
Dentro dele perco o chão.
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Todos os dias, feliz,
olho o céu, agradecida,
por tudo que me bendiz!
Troféu que ganhei da vida.
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Uma doce ingenuidade
no rosto de uma criança,
demonstra serenidade,
nos traz alento e esperança.
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Uma luz aconchegante
faz na noite moradia
e nesta paz radiante,
avulta-se a estrela-guia!

Fontes:
– Trovas enviadas pela trovadora.
– https://jardimdetrovas.wordpress.com/

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro do Castelo


As velhas muralhas foram palco de lutas entre mouros e cruzados. Mais tarde, do interior da cidadela, avistaram-se as naus que partiram à descoberta de novos povos e mundos. Agora, o desafio é recuperar este patrimônio histórico e dar melhor condições de vida aos habitantes do bairro.

A história de Lisboa começa no alto da colina do Castelo. O local onde se encontra hoje o bairro foi um dos primeiros a ser urbanizado. Situado num ponto militar estratégico, foi, desde sempre, cobiçado por inúmeros povos. Em 1147, depois da reconquista cristã, D. Afonso Henriques transformou Santa Cruz do Castelo na primeira freguesia da Lisboa portuguesa. Ao construir, nas torres sul, a casa forte do tesouro e o arquivo da coroa, D. Dinis centralizou o poder neste espaço. Mais tarde, D. Afonso III instalou aí a sede da corte, transformando Lisboa na capital do Reino.

No século XIV, após o fim da guerra com Castela, D. João l resolveu incentivar o culto a São Jorge. O mártir guerreiro consagrou-se então defensor do castelo. Com o início da expansão marítima, viveram-se ali anos de grande fulgor. O Castelo foi, nessa altura, palco de inúmeras manifestações culturais e religiosas.

Destaque para 1502, ano que em o Castelo assistiu ao nascimento do teatro português. Por essa altura, foi também construída a Ermida do Espírito Santo, local de culto dos navegadores do Oriente. Com a transferência da corte para o Palácio da Ribeira, o castelo de São Jorge entrou num longo período de declínio. O terremoto de 1755 agravou ainda mais a situação, ao provocar diversos estragos no berço da cidade. Depois de algumas reconstruções, o intendente Pina Manique levou para lá a primeira sede da Real Casa Pia de Lisboa. Nessa altura, o Castelo também funcionava como prisão.

Em 1940, as atenções voltaram a estar viradas para o local. Nesta altura, pelas comemorações do centenário da formação de Portugal, teve lugar uma profunda reconstrução. O objetivo era devolver ao Castelo de São Jorge o seu aspecto inicial.

Atualmente, o município de Lisboa está a tentar renovar o bairro através do Projeto Integrado de Valorização do Castelo de São Jorge. A organização das Marchas Populares tem estado a cargo do Grupo Desportivo do Castelo que, desta forma, procura defender os usos e costumes de uma freguesia com uma forte tradição bairrista. A cultura e o desporto sempre estiveram na lista de prioridades da coletividade. As vitórias alcançadas com o futebol levaram, mais tarde, ao aparecimento do tênis de mesa e do basquetebol. Presentemente só pratica o futebol de cinco.

MARCHA DO CASTELO
(Vem p’rá roda que é Santo António)

Letra de Helder Carlos
Música de Armindo Campos


O meu castelo, iluminado
Dá gosto vê-lo
É relíquia do passado
Mas de verdade, doa a quem doa
Tem mocidade
E foi berço de Lisboa.

Santo guerreiro,
foste um valente
És padroeiro
Do Castelo e sua gente
Bom alfacinha,
vem conhecê-lo
Sobe a escadinha
E entra no teu Castelo.
(Refrão)

Vem pra roda, rapariga
Dá-me o braço
E vem saltar à fogueira
Tem cuidado rapazinho
Hoje há festa
Vou dançar a noite inteira.

Mangericos, à janela
Vem pra rua
Que é dia de pandemónio
Sardinheiras encarnadas
Vem pra marcha
Que é noite de Santo António.

Recolhimento minha rua
Sem um lamento
Se recolhe à noite a lua
Espírito Santo,
saudades minhas
Te beijei tanto
Lá no Largo das Cozinhas.

Rua das Flores,
rosas aos molhos
São como as cores
E a beleza dos teus olhos
Beco do forno abrasador
E em Santa Cruz
Casarei com meu amor.
(Refrão)

 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm