segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Mara Garin (Notícia de Jornal)

Dia destes, quente tarde de verão, saí caminhando pelo meu sítio, fotografando flores, bichos, plantas, céu, vertentes, pedras e ilusões. No limite Sul da propriedade encontrei minha vizinha lindeira, uma senhorinha envergada por muitos verões, mas de mãos firmes na enxada, que habilmente separa as ervas daninhas, de suas lindas e coloridas pimenteiras dedo de moça, ela bem disposta e sorridente questionou:

– Vizinha! Tu viu as notícias do jornal de sábado?

– Não!

– Dois moços brigaram de facões! Um caminhou até perto de casa e morreu, sentado no meio da rua, o outro caminhou até uma parada de ônibus e sentou, quase morto, esperando socorro, está bem mal no hospital, muito triste! O que tu pensa disso?

- Eu? Não penso nada, só oro pelos corações das mães! Não me interessam os motivos, não me interessam as mensagens que correm nos grupos de WhatsApp, não me interessam os que viram e não impediram, não me interessam as fotos sangrentas. Só me interessa orar pelos corações das mães!

A vizinha deu uma desculpa, falou da falta de chuva, mostrou uma nuvem cinza ao norte, que o vento soprava para longe da cidade, e, vagarosamente despediu-se e entrou em sua casa. Eu voltei pelo mesmo caminho refletindo, porque a desgraça é notícia e a arte não? Porque os textos com tristezas rapidamente são virais na Internet, enquanto a literatura mofa, em páginas de jornais, livros nas estantes ou arquivos nunca impressos? Porque a poesia e o amor não são virais?

Porque somos frutos de nossas escolhas! Enquanto eu escolho a beleza do meu mundo, a vizinha compra a tristeza espalhada no jornal, reproduzida na televisão, viralizada nas redes sociais.

Neste mesmo dia, na mesma rua, um menino de família humilde se formava professor, mas isso não vende jornal, só eu vi a beleza e o orgulho nos olhos daquela outra mãe.

Fonte:
Texto enviado por Jaqueline Machado.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LI


TE DESEJO O DOBRO!

MOTE:
Na tua festividade,
que Deus te dê algo assim,
como essa felicidade
que eu desejo para mim.
Adélia Victória Ferreira

Sete Barras/SP, 1929 – 2018, São Paulo/SP

GLOSA:
Na tua festividade,

desejo saúde e paz,
num manto só de bondade
que a nossa amizade traz!

Que teus sonhos, realizes...
que Deus te dê algo assim:
ver os teus, sempre felizes
numa ternura sem fim!

Eu te desejo, é verdade
que vivas com emoção,
como essa felicidade
que eu tenho no coração!

Mas, sendo assim, especial
em dobro, eu desejo, sim
toda a alegria ideal,
que eu desejo para mim.
= = = = = = = = =

NOITES…

MOTE:
Noites feitas de saudades,
de lembranças, de meiguice:
Tão curtas na mocidade,
e tão longas na velhice!
Alfredo de Castro

Pouso Alegre/MG, 1922 – 2011

GLOSA:
Noites feitas de saudades,

noites cheias de carinho,
revivo com ansiedade
as noites do meu caminho!

São noites de nossas vidas,
de lembranças, de meiguice:
com alegrias sentidas,
como se a noite sorrisse!

Mas as noites, na verdade,
diferem completamente,
tão curtas na mocidade,
e tão distantes da gente!

Não resta nem a lembrança
das noites de quixotice...
Hoje são sem esperança,
e tão longas na velhice!
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

QUANDO EM TEUS BRAÇOS…

MOTE:
Neste amor grande e bendito,
quando em teus braços me ponho,
o nosso amor é infinito,
e é sem limite o meu sonho...
Aloísio Alves da Costa

Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE

GLOSA:
Neste amor grande e bendito,

que sempre uniu a nós dois,
eu sinto, já estava escrito,
no ontem, nosso depois!...

Me sinto no paraíso,
quando em teus braços me ponho,
e uma canção de sorriso
vem me embalar, eu suponho!

Esse nosso amor bonito
é maior que o universo,
o nosso amor é infinito,
mas cabe dentro de um verso!

E esse verso surge, então,
apaixonado e risonho...
Eu sonho com emoção,
e é sem limite o meu sonho…
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

NADA É TÃO TRISTE…

MOTE:
Mais do que o próprio desdém,
nada nos deixa tão sós,
como saber que ninguém
sente saudades de nós...

Batista Nunes
Vassouras/RJ, 1883 - 1965, Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Mais do que o próprio desdém,

até mais que a traição,
mais que a tristeza, também,
é a dor da solidão!

Sem ter, sequer esperança
nada nos deixa tão sós,
que não guardar na lembrança
o timbre de alguma voz!

Nada é mais triste, porém,
nessa cruel nostalgia,
como saber que ninguém
nos recordará, um dia!

Essa angústia, tão sentida,
de todas, a mais atroz:
é ver que ninguém, na vida,
sente saudades de nós…
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

LÁGRIMAS...

MOTE:
Lágrimas... Triste verdade
de uma ausência permanente,
é o recesso da saudade
que fica dentro da gente.

Fernando Câncio Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

GLOSA:
Lágrimas... Triste verdade

são as vertentes da dor
onde vemos a maldade
escondendo até o amor!

Sentimos forte presença
de uma ausência permanente,
e nossa esperança e crença
fogem repentinamente!

Enfrento a realidade
no pranto que jorra triste,
é o recesso da saudade
de um algo que, ainda, existe!

É uma lembrança real,
é o passado, no presente,
é uma marca sem igual
que fica dentro da gente.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Junho de 2005.

Alcântara Machado (Guerra civil)


Em Caguaçu, os revolucionários. Em São Tiago, os legalistas. Entre os dois indiferente, o rio Jacaré. O delegado regional de Boniteza mandara recolher as barcas e as margens só podiam mesmo estreitar relações no infinito. De dia não acontecia nada. Os inimigos caçavam jararacas esperando ataques que não vinham. Por isso esperavam sossegados. Inutilmente os urubus no voo lindo deles se cansavam indo e vindo de bico esfomeado. Os guerreiros gozavam de perfeita saúde.

De noite tinha o silêncio. Qualquer barulho assustava. Os soldados de guarda se preparavam para morrer no seu posto de honra. Mas era estalo de árvores. Ou correria de bicho. A madrugada se levantava sem novidades. Por isso a luta entre irmãos decorria verdadeiramente fraternal.

Porém, uma manhã chegou em Boniteza a notícia de que do lado de Caguaçu qualquer coisa de muito grave se preparava. Tropas marchavam na direção do rio trazendo canhões, carros de combate, grande provisão de gases asfixiantes comprada na Argentina, aeroplanos, bombas de dinamite, granadas de mão e dinheiro, todos esses elementos de vitória. Um engenheiro russo construiria em dois tempos uma ponte sobre o Jacaré e o resto seria uma corrida fácil até a capital do país. Desta vez a coisa iria mesmo.

Boniteza se surpreendeu, mas não se acovardou. Com rapidez e entusiasmo começou a preparar tudo para a defesa. Ao longo do rio se abriu uma trincheira inexpugnável. Caminhões descarregaram tropas em todos os pontos. As metralhadoras foram ajustadas, os fuzis engraxados, os caixotes de munições abertos. Costureiras solícitas pregaram botões nas fardas das praças mais relaxadas. Nas barbearias os vidros de loção estrangeira se esvaziaram na cabeça dos sargentos. Era de guerra o ar que se respirava.

A noite encontrou os combatentes a postos. Na trincheira eles velavam apoiados nos fuzis. Sentinelas foram destacadas para vigiar a margem inimiga. Entre elas o sorteado Leônidas Cacundeiro.
– – – – -

Era infeliz porque sofria de dor de dentes crônica, piscava sem parar e gaguejava. Foi para o seu posto de observação, deitou-se de barriga num cobertor velho. Só o busto meio erguido, ficou olhando na frente dele de fuzil na mão. Tinha ordens severas: vulto que aparecesse era mandar tiro nele. Sem discutir.

Leônidas Cacundeiro deu de pensar. Pensava uma coisa, o ventinho frio jogava o pensamento fora, pensava outra. Tudo quieto. Ainda bem que havia luar. Do alto da ribanceira ele examinava as águas do Jacaré. Ou então erguia o olhar e descobria nas nuvens a cabeleira de um maestro, um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas.

Agora o frio era o frio da madrugada. O Doutor Adelino costumava dizer: Quando vocês sentirem frio pensem no Polo Norte e sentirão logo calor. Pensou no Polo Norte. Lembranças vagas de uma fita vista há muito tempo. Gelo e gelo e mais gelo. No meio do gelo um naviozinho encalhado. Homens barbudos, jogando fumaça pela boca, encapotados e enluvados, com cachorros felpudos. Duas barracas à esquerda. E aquela branquidão. Forçou bem o olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas. Um urso em pé com uma bandeirinha na pata direita, outra bandeirinha na pata esquerda. Nenhuma arma.

Deu um berro: - Alto!

Ficou em posição de tiro. O soldado não podia mesmo dar um passo à frente senão caía no rio. Começou a mexer com os braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra, levantava as duas.
– – – – – -

Leônidas pensou: - Que negócio será aquele?

Foi chamar o sargento. O sargento veio, olhou muito, disse: - Que negócio será aquele? Vá chamar o tenente!

Leônidas foi chamar o tenente, veio correndo com ele. O tenente limpou os óculos com o lenço de seda, verificou se o revólver estava armado, olhou muito, falou coçando a nuca: - Que negócio será aquele? Vá chamar o major!

Leônidas partiu em busca do major. No acampamento não estava. Foi até Boniteza. Encontrou um cabo. O cabo mandou Leônidas bater na casa da viúva Dona Birigui ao lado do Correio. O major apareceu na janela com má vontade.

Resmungou: - Já vou.

Leônidas comboiou o major até o rio, o major teve uma conferência com o tenente, subiu num pé de pitanga, falou lá de cima: - Que negócio será aquele? Vá chamar o comandante!

O anspeçada* primeiro não queria acordar o comandante. Eram ordens. Leônidas insistiu firme e o comandante teve de pular da cama. Leônidas fazendo continência explicou o caso. O coronel disse:

- Às seis estou lá.
– – – – – -

Eram cinco, Leônidas voltou com o recado. O major, o tenente, o sargento estavam nervosos. De vez em quando um deles chegava mais perto da margem e o soldado do outro lado recomeçava a ginástica: bandeirinha na frente, bandeirinha atrás, bandeirinha apontando o céu, bandeirinha apontando o chão. Ia repetindo com uma paciência desgraçada.

Então já havia passarinhos cantando, barulho de vida em Boniteza, só a cara amarrotada dos insones não resplendia na luz da manhãzinha. Toques de corneta chegavam de longe despedaçados. Na banda de lá do Jacaré o homem da bandeirinha habitava sozinho a paisagem com uma vontade louca de tomar café bem quente e bem forte. Era a hora da raiva e todos se espreguiçavam com o sol que chegava.

O Coronel Jurupari ouviu calado a narração do estranho caso. Fez em seguida duas ou três perguntas hábeis com o intuito de esclarecê-lo tanto quanto possível. Chamou de lado o major e o tenente, os três discutiram muito, emitiram suas opiniões sobre assuntos de estratégia e balística que pareciam oportunos naquela emergência, fumaram vários cigarros. Afinal o coronel entre o major e o tenente avançou até a margem de binóculo em punho. Assim que ele assentou o binóculo, da outra banda do Jacaré recomeçou a dança das bandeirinhas. O coronel olhando.

A sua primeira observação foi: - É um cabo e não tem má cara. Depois de uns minutos veio a segunda: - Hoje é dor de cabeça na certa com este noroeste. A terceira alimentou ainda mais a já angustiosa incerteza dos presentes: - Mas que negócio será aquele? Daí a uns instantes repetiu: - Mas que diabo de negócio será mesmo aquele? Porém acrescentou numa ordem para o Leônidas: - Vá chamar o sinaleiro!

O sinaleiro veio chupando o nariz. Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel e um lápis do bolso traseiro da calça, ajoelhou-se com uma perna só, pôs o papel na coxa da outra, passou a ponta do lápis na língua, começou a tomar nota. Dava uma espiada, as bandeirinhas se mexiam, escrevia. O Coronel Jumpari, o major, o tenente, o sargento e o sorteado Leônidas Cacundeiro esperavam o resultado de armas na mão e ansiedade nos olhos.

O sinaleiro se levantou, ficou em posição de sentido e com voz pausada e firme leu a mensagem enviada pelos revolucionários de Caguaçu: Saúde e Fraternidade.

O coronel mandou responder agradecendo e retribuindo. Ex-corde**.
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*Anspeçada = graduação de praça entre marinheiro/soldado e cabo.
** Ex-corde = expressão greco-latina que quer significa do coração ou que algo saiu do intimo da pessoa.


Fonte:
Alcântara Machado. Novelas Paulistas. Disponível em Domínio Público.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Isabel Furini (Poema 38): Tecer

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook
 

George Abrão (Folguedos e sabores da infância: gosto de saudade)


A velha Rua do Comércio (hoje tem outro nome), na Cidade Alta, em Jaguariaíva, minha querida terra natal, foi o palco das nossas brincadeiras de crianças. A nossa querida e saudosa rua não era pavimentada, mas para nós o pó e as pequenas pedras não incomodavam, pois em seu leito corríamos céleres quando das nossas brincadeiras. E os carrinhos de rolimãs então, quando nos pequenos declives descíamos com força total disputando velocidade. As nossas roupas e calçados sofriam quando de algum acidente ou das frenagens nas nossas “máquinas super possantes”. Reclamações das vizinhas pelo barulho e palmadas em casa pelo prejuízo nas roupas. E as escoriações nos joelhos, cotovelos e dedos, que eram os que mais sofriam.

A “piazada” da rua, de pouca idade e muita inocência, gastava as suas energias brincando muito de mãe da rua, pula-carniça, pique, balança caixão, bandido e mocinho, isso quando estávamos brincando sem as meninas, pois quando elas queriam brincar juntas, tudo era mais calmo, aí tínhamos que brincar de passa-anel, de adivinha, de escolinha, de passa-passa e até de roda, e aí eram diversas: o barquinho virou; senhora dona Sanja; bom dia minha senhorinha e outras tantas. E se nos fizéssemos de rogados e negássemos brincar com elas, quase apanhávamos.

E depois disso tudo a fome batia e todos corriam para as suas casas mitigá-la. E aí vinha a melhor parte do dia, pois o cheiro de feijão com arroz, carne e salada invadia nossas narinas e após lavarmos as mãos (obrigados pelas mães), sentávamos e haja apetite!

E por falar em comida, existem sabores que se entranharam em nossa memória e que, só de lembrar, vêm aguçar o nosso paladar e nos trazer doces lembranças. A mim, os mais marcantes são: o doce de chila* (eu apelidei de doce de vidro) que minha avó fazia; os doces de minha mãe: cajuzinho de amendoim; pudim de queijo; pamonha doce recheada com goiabada; rocambole tronco de chocolate; amor aos pedaços; bolo de fubá assado na panela, sobre a chapa; arroz-doce; cocada com creme. E seus salgados: pastel; quibe; empada; almôndegas; canudinho com salada de maionese, isso sem contar com a galinha recheada e o leitão pururuca assados no forno a lenha no quintal e do saboroso bolinho de milho verde.

E o sabor das balas de ovos e das cocadinhas de mel que comprávamos na Casa Cruzeiro do Sul e dos sorvetes do Bar Maracanã.

Além das saborosas limonadas feitas por minha mãe, lembro-me com saudade do refrigerante Crush* (que na época era produzido no Brasil) e da gasosa vermelha da Cini*.

E, acima de tudo, tínhamos a liberdade de podermos sair sozinhos, pois naquela nossa querida rua, e até em toda a cidade, todos conheciam todos, como se houvesse lá só uma família.

Minha doce Jaguariaíva!
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* Notas:
Doce de chila = doce de abóbora chila.

Crush =No Brasil, a Crush foi fabricada nos sabores laranja e uva pelas indústrias Golé e a Pakera, então franqueadas pela multinacional Cadbury Schweppes até o cancelamento da licença e a interrupção da produção.

Gasosa Cini = é uma marca de refrigerante característico e tradicional da região sul do Brasil, em especial nos estados do Paraná, onde foi fundada em São José dos Pinhais e onde se localiza a fábrica Cini Bebidas.

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

Eliseu Lacerda (Por dez minutos o Carlito não morreu)


Um relato difícil de se acreditar. Maracanã cheio... festa... decisão de campeonato... um quadro lindo e, ao mesmo tempo, "arrepiante. Era muita gente. Público: mais de 164.000! Cerca de 90% vestidos de vermelho e preto. O Carlito parecia no céu: "pela primeira vez, o pai me traz ao Maracanã...” eu não acredito... acho que era o que se passava na sua cabeça.

Ano de 1992; o campeonato brasileiro chegava ao fim. Depois de uma goleada por 3 a O sobre o Botafogo, o Mais Querido estava "com a mão na taça"; eu já havia programado a compra das passagens na semana anterior; faltava apenas a primeira partida acontecer, e o primo Norbertinho me compraria os ingressos (acho que foi ele mesmo - ele e a Lúcia eram os meus "contatos" pra compra de ingressos, no Rio).

As filhas Mili e Andrea ficaram em Curitiba; assistiriam pela televisão, com um pedido meu pra gravarem o jogo. Foi o que fizeram.

 Não comentarei aqui, o que se passava na minha cabeça; são detalhes que devo dispensar. Carlito, apesar dos seus 15 anos, era pequeno. Eu vivia muito preocupado com isso; e o cuidado com ele, dentro do estádio, era fundamental para a sua segurança.

Assim que vislumbramos aquela maravilhosa galera, cantando "hinos de guerra", o Carlito correu em direção à grade de proteção, na arquibancada. Eu disse a ele que tomasse cuidado, porque os parafusos de sustentação estavam enferrujados. Mas, não me preocupei tanto com isso.

De 1988 a 1998, eu fui proprietário de uma banca de jornais, ao lado de casa. Uma das distribuidoras de revistas que me atendiam era a Ghignone. Quando o Flamengo se classificou para a final, que seria disputada em dois jogos, eu fui ao Fernando Ghignone, proprietário da distribuidora, e pedi que "bancasse" a confecção de uma faixa. Aceitou.

Bolei o seguinte texto para a faixa: "Curitiba te saúda, mengão campeão - Flaghignone". De fundo branco e letras em vermelho e preto, até que ficou bem vistosa... "com direito" a aparecer na televisão (do lado esquerdo da tela), nas seguidas chamadas do Maracanã, pela Globo (tá lá no vídeo), durante a partida preliminar entre veteranos do Mengo e pessoal da imprensa.

Conhecedor profundo do estádio, eu gostava de ficar na parte central, sentado no quinto lance de degraus (naquela época, não havia cadeiras ali); quem ficasse passando rente à grade, não tirava a minha visão do campo; ao mesmo tempo, não era tão longe que prejudicasse o reconhecimento dos jogadores. Além do mais, naquele nível ficavam as saídas da parte da arquibancada,

Estava tudo perfeito: pendurei a faixa na grade e fui "pro meu lugar"; o Carlito, maravilhado com tudo, não se desgrudava da grade (alambrado), bem sobre o lugar onde amarrei a faixa. E gritava sem parar: "... Mengo... Mengo... Mengo... Mengão e ô... Mengão... e ô!".

"Pai! Pai! Pai! Estão tirando a faixa... pai!". Corri, descendo os degraus. "Pô... larga a faixa... ela é minha...", gritei. "O senhor tem que tirar a faixa daqui", gritavam alguns membros da "Raça Rubro-negra". "Eu cheguei primeiro...", argumentei, "Não tem quem chegou primeiro... esse lugar é nosso...", respondiam, enquanto desamarravam a faixa. "Moço, põe a faixa aqui...!", gritou a Chefe da "Charanga", a uns cinco metros à minha direita; "... aqui tem espaço...". E fui pra lá, com a faixa.

Alguns torcedores me ajudaram a amarrar a faixa no novo lugar. O Carlito se deslocou e voltou a ficar com os braços apoiados na grade, sobre o ponto onde, então, coloquei a faixa. Voltei pro quinto lance de degraus, agora em frente ao novo local.

A preliminar estava tão emocionante, a minha alegria era tanta, em ver o meu "gatão", pela primeira vez no Maracanã, que não liguei para este pequeno incidente. Se alguém me dissesse o que iria acontecer, em seguida, eu jamais acreditaria. Passaram-se cerca de dez minutos, desde o deslocamento da faixa... só isso. Tempo curto demais para o que vinha depois!

"Carlito, sai! Carlito, corre pra cá... corre!", gritei desesperado.

Desci feito um louco, pra proteger o meu filho. Pavoroso, o que acontecia: à minha esquerda, exatamente no lugar onde, há dez minutos, estava a faixa, o mundo parecia desabar.

Com    aquele    "empurra-empurra",    torcedores tomando a sua “cervejinha”, farra de torcidas, o alambrado cedeu, rompendo-se num discreto estalo. Calculo "por baixo", que caíram uns 30 torcedores, contando aqueles que, curiosos, vinham ver o que acontecia "lá em baixo" e, também, caiam.

Em segundos, o barulho de sirenes de ambulâncias, corre-corre, gritos de desespero, corpos sobre o chão; em seguida, helicópteros pousavam próximo ao local, para ajudar na remoção dos feridos mais graves.

A preliminar foi interrompida imediatamente.

Pensei nas filhas, em Curitiba... elas estão assistindo, ao vivo, o acidente. Eu não tinha noção do número de mortos. "Preciso telefonar urgente pra lá...", falei com o Carlito. "Não saia daqui, de jeito nenhum... eu volto já", completei, e corri em direção aos "orelhões" mais próximos.

Mais desespero: não conseguia linha, pra falar com Curitiba. Tentei muitas vezes, até que me ocorreu telefonar pra Vila Velha e pedir a algum irmão que telefonasse pra Curitiba, avisando que estávamos bem... nada havia acontecido conosco.

Fiz bem: pela transmissão da televisão, dava pra ver, nitidamente, que a queda se verificou exatamente onde ficara a faixa, anteriormente. Mas, não podiam saber que tinha sido retirada minutos antes da tragédia; e estavam chorando, quando receberam o telefonema de Vila Velha.

O jogo Flamengo e Botafogo começou com uns cinco minutos de atraso. Houve empate por dois gols, e o Mengão foi campeão brasileiro.

Saldo do acidente: muitos feridos, alguns graves; três mortes, no local mais duas mortes no hospital, durante a semana. Antes do jogo, um torcedor rubro-negro foi morto a tiros, no estacionamento do estádio.

Graças a Deus, e "por dez minutos, o Carlito não morreu", no Maracanã.

Fonte:
Enviado por Luiz Hélio Friedrich
Ney Fernando Perracini de Azevedo (org). Safira Paranaense. Curitiba: ABRAEE/PR, 2015.

Jessé Nascimento (Sementes de Trovas)


A formiga na labuta
nos dá profunda lição;
não se curva ao peso e à  luta,
vive em perfeita união.
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Caminhos, jardins e praças,
flores, cores - que beleza!
Deus derrama suas graças
dando graça à natureza!
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Chora o coração sentindo
tristeza, nunca revolta;
os amigos vão partindo
numa viagem sem volta.
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Com meus sonhos mais singelos
embalados na esperança
venho erguendo meus castelos
desde os tempos de criança.
3° Lugar em Magé/RJ -1995
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Corres tanto, mocidade,
és pela vida levada.
Amanhã serás saudade,
serás velhice, mais nada...
1" Lugar Concurso Estudantil Rio de Janeiro -1995
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Dos outros não dependamos,
mas cada um erga a voz;
a paz que tanto almejamos
começa dentro de nós.
Menção Especial em Israel - 2015
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Leu “Campanha do Agasalho”,
quando por ali passou;
o espertalhão ou paspalho
em vez de deixar, pegou.
6. Lugar, em Cantagalo/RJ - 2017
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Lindo olhar, belo sorriso,
rosto de tal perfeição,
sugere o traço preciso
do Senhor da criação.
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Na dureza da porfia
para moldar minha história,
Deus me abençoa e me guia
para chegar à vitória.
Menção Especial, no Uruguai - 2020
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Na padaria, o cliente:
- O pão está bem "quentinho?"
Com sorriso, a atendente;
- Veja como está "fresquinho".
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Navegando nas poesias,
nas ondas da inspiração,
iço as velas de alegrias
deixo o rumo ao coração.
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No sonho e imaginação,
vou compondo cada verso;
partindo do coração,
viajo pelo universo.
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Num cenário colorido,
cheio de encanto e alegria,
a vida tem mais sentido:
a primavera extasia!
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O genro sempre é quem dança,
a minha sogra é um porre;
o nome dela é "Esperança"
que é a última que morre.
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Por mais que as regras morais
moldem o bom cidadão,
dia a dia os imorais
na vida melhor se dão.
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Pra acreditar foi um custo;
na primeira gravidez,
levou um tremendo susto;
foram cinco de uma vez!
3" Lugar, em São Gonçalo/RJ - 2017
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Quando a razão não alcança
por mais que pareça incrível,
ter fé é ter esperança,
ter fé é crer no impossível.
Menção Honrosa, em Maranguape/CE - 2019
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Quantas vezes nós choramos
por tantas coisas banais...
Mas, jamais nos esqueçamos;
há outros que sofrem mais.
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Que a humanidade resista
ao mal que, sagaz, avança
eu sou poeta otimista:
ainda existe esperança!
Vencedora em Itaocara/RJ - 2020
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Se a tua cruz é pesada
e vives só de lamento,
hás de encontrar pela estrada
outros com mais sofrimento.
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Semelhante a um quartel
tem sido assim minha casa;
minha mulher, coronel
e eu sempre patente rasa.
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Senhor Deus, misericórdia!
Neste conturbado mundo,
nos corações põe concórdia,
mais perdão e amor profundo.
Menção Especial, em Cantagalo/RJ - 2017
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Tenho ciúme e desgosto
quando, à  noite, leve brisa
afaga o teu meigo rosto
e os teus cabelos alisa.
Menção Especial em Niterói/RJ - 2012
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Teu cego e amargo ciúme
que me desgosta e alucina
tem sido o cortante gume
que ao amor leva a ruína.
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Teu olhar, quanta ternura!
Tuas mãos, quanto carinho!
Teu amor, oh, que ventura
pôs a vida em meu caminho.

Fonte:
Enviado por Jessé Nascimento.
Autores diversos da UBT-Angra dos Reis. Sementes poéticas. SP: Daya Ed., 2021.

Aparecido Raimundo de Souza (Almas aldeadas)


MARCELO REMAVA o tempo todo contra a maré. Se desmanchava no incerto do avesso e criava, ao seu redor, um universo terrificante e aziago (funesto). Vomitava, à torto e a direita, os seus imundos, como se fosse um bicho enjaulado numa gaiola imaginária. E era, de fato, um ser desprezível, metuendo (medonho) e caliginoso (extremamente tenebroso). Ao contrário dele, na sinuosidade de uma anomalia imaculada e invulnerável, uma donzela na flor da idade, mais nova que o sacripanta, cinco anos, sonhava sonhos encantados como os de uma princesa dos fabulosos contos de fada.

Marília, se constituía na joia rara. Se fundamentava num poço cálido de águas mansas, de venturas bamburriosas (*), repletas, por sua vez, de um fadário puro e sem máculas. Viera a graciosa, de uma família de tronco humilde, nascida de berço honesto, de pai e mãe sem máculas. Se tornara, por assim, uma moça linda e delicada, mimosa e prestativa, capaz de dar a própria vida, se preciso fosse, para ver seus semelhantes livres e distanciados das dificuldades e agruras impostas pela vida madrasta.

Resumindo o seu currículo: Marília trazia em sua alma radiosa, a ambição da sereia encantada. Onde chegava, todos se alegravam e se colocavam a seus pés. Perfeita em tudo, certinha em demasia, exceto em matéria de amor, e, logicamente, às coisas ligadas ao coração. Nesse quesito, se constituía numa jovem donzela completamente alienada. Se fizera amordaçada, presa, sem saída em face de ter aparecido em seu caminho aquele traste vindo dos quintos. Marcelo, sem dúvida alguma, a sombra negra oscilante. O malandro plantado num vagabundo parlapatão (fanfarrão), erradio e capadócio (trapaceiro) de si mesmo.

“Bon-vivant”, se transformara num empecilho para a sua família. Não trabalhava, não produzia, não tinha emprego certo. Se fazia ferrenho às calçadas do alheio tirânico e draconiano (exigente), ferrenho às noções do tempo ambíguo e da realidade em que vivia. A sua exatidão, aliás, girava em torno de amigos os mais estranhos. Rapazes (filhos de abastados pais com bolsos recheados) entre dezoito e vinte e três, que passavam os dias ao deus dará, procurando incautos para conseguirem vantagens ilícitas. Viviam de baques e golpes, roubos e furtos.

Se prestavam à assaltos e outras canalhices próprias de quem não aprendeu a honrar e a dar valor ao que é certo, distinguindo, com seriedade, o bom e o mau. De roldão, o esplendoroso do feio; o estragado do sadio; o ruim do péssimo. Enfim, todas essas variações sopesadas de uma forma plena, sem intenções segundarias dignas de algum valor moral. Marcelo se moldara à semelhança de ratos de porão. Verme espargido do bom senso. Mamão mofado, alma impura, estragada, vida desregrada em sintonia meridiana com os bafejos dos ventos tenebrosos que sopravam em seus caminhos.

Ventos que vinham de longe e carregavam presságios perversos. O infeliz, por azar da virginal, estava caidinho por ela. Queria a Marília, só via a Marilia, respirava seus cabelos. Cobiçava, a todo custo, fazer dela a sua esposa e mãe de seus filhos. Esposa e mãe de seus filhos? Não, isso não! Jamais! Longe passava tal ideia. Se arrimava o âmago de tal situação, num absurdo tenebroso em sua mente doentia. Marcelo acolhia algo assim mais prático e ligeiro, fugaz e transitório. Um método espúrio (falso) que não oferecesse nenhum tipo de retenção que lhe pudesse ser ou se moldar desfavorável.

Dito de forma mais explícita: o crápula almejava um trololó passageiro. Uma troca de carinhos sombrios e obscuros, tétricos e apavorantes. O prófugo (falso) queria se aproveitar da ingenuidade daquela pérola generosa, pacata criaturinha, inocente criança, e fazer dela uma “mulher-coisa” sem norte. Almejava transformar a vidinha daquela interiorana numa meretriz de boate periférica. Uma vadia sem nome, sem rumo, sem apoio, mercê da sorte. O desmiolado tencionava, ainda, afogar seus instintos bestiais e ganhar o mundo.

Os pais dela em trilhos opostos, se desdobravam em lágrimas. Avisavam, se debatiam e imploraram. Rezaram sermões compridos, davam conselhos os mais diversos. Contudo, a pomba rola contaminada pelo frescor da lombriga sem juízo, levada por palavras melosas, não escutava. Não dava ouvidos. Não atinava com o abismo imensurável logo à frente. Um abissal imensurável que a esperava, para leva-la para o fundo de um despenhadeiro sem volta. De fato, um dia o inevitável aconteceu. Marília engravidou de gêmeos. Marcelo, arisco ao saber da prenhez, deu asas aos pés. Botou sebo nas canelas.

No desalumiado abrolhoso (amargurado) de uma noite recém pousada, o excomungado picou a mula tomando rumo ignorado. Marília, a barriga farta, os pais em desespero, toda a família e demais consanguíneos em polvorosa nunca mais ouviram falar do hilota (pobre). Num domingo, quase a completar nove meses, Marilia achou que não deveria mais continuar dando trabalho aos autores de seus dias. Com essa ideia estapafúrdica sediada à quilômetros do acarinhar de um novo porvir, depois que todos se recolheram, tomou uma decisão deveras drástica.  Caminhou até a rodovia que cortava as cercanias do pequeno povoado.

Estrada longa essa via, assoberbada pelo tráfico intenso, não tinha um minuto de calmaria. De repente, o momento oportuno se fez real. Uma carreta ligeira na noite sem estrelas, pintou veloz. Marília esperou o momento certo. Quando o veículo se aproximou ganhando a curva fechada, ela, inopinadamente, voou de uma pequena elevação e aterrissou à frente. Pulou com tudo, numa corredeira agitada, não permitindo que o motorista tivesse o tempo necessário para acionar os freios. O impacto, com a força do seu gesto impensado, se afigurou tremendo. Se compôs aterrador, calamitoso, inflexível, angustiante, violento e fatal.  

Pedaços de seu corpo se espalharam num amplexo contumaz para a morte certeira, precoce e horrivelmente inóspita. Partes deles foram igualmente esmagados por outros veículos que vinham logo atrás e tantos demais que cruzavam em contrário. Gritos irrefreáveis vincaram a calmaria da noite sem lua, num imenso de céu sem estrelas.  Da cena do desastre, restou apenas, na manhã seguinte, um silêncio denso de santo sepulcro. À lembrança do fato, três cruzes de madeiras toscas restaram fincadas na via pública, mostrando, num desvanecido, o palco fatal da ocorrência que se fizera sombria e inimaginável.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

* Bamburriosas– Aqueles que fazem fortuna da noite para o dia.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sábado, 14 de janeiro de 2023

Isabel Furini (Teatro)


As joias brilhavam mais que outras vezes. Os olhos dos espectadores do teatro fugiam do palco para olhá-la. Ela estava lá, sentada, firme, ereta, no camarote principal, os olhos fixos nos bailarinos. Nada poderia distrair a sua atenção, voltada toda para a representação de "O lago dos cisnes" do compositor russo Tchaikovsky.

A joias brilhavam fazendo um contrate estranho com as rugas incrustadas como cicatrizes no rosto. Eram rugas na testa, no canto dos olhos, nas bochechas. Um sem fim de paisagens desenhado nesse rosto idoso. Cadê a beleza? Perguntava-se cada vez que se olhava no espelho do quarto luxuoso. Cadê? Perguntou esse mesmo dia enquanto se observava no espelho oval da sala. Seu corpo ainda estava firme, magro, seu olhar era arrogante, tão arrogante quanto a sua postura, mas as rugas... essas rugas... denotavam a octogenária aristocrática cujo corpo não havia cedido ao passo do tempo. Não curvava os ombros, não descia a cabeça, nem o olhar, suas costas não formavam corcunda ao sentar-se. Tinha a postura arrogante de seus ancestrais. A senhora condessa não se reclinava na cadeira como outras senhoras de sua idade. Ela tinha orgulho, apesar da doença seu aspecto era digno. Não seria a hemodiálise que tiraria o seu orgulho, que prejudicaria a sua postura. Mas, as rugas... sim, as rugas chamavam a atenção. Por isso colocara as joias mais preciosas que havia herdado de sua avó.

As joias brilhavam e algo dentro dela ia se apagando aos poucos. Morrendo aos poucos. Um cisne na penumbra do teatro. Mais um cisne quieto, imóvel. Só quando sua acompanhante murmurou no seu ouvido: “- O balé terminou, é hora de voltar para casa.” Tocando-a levemente, a cabeça da senhora condessa caiu de lado. E o corpo inclinou-se para frente reverenciando a morte.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 72


Pois comecei o ano com o pão de cada dia, a leitura de PRIMEIRAS ESTÓRIAS, do bom mineiro Guimarães Rosa. Vinte e um contos curtos publicados depois de Sagarana e Grande Sertão: Veredas.

Estórias escritas com a verve e a maturidade que nos dão o gosto e o prazer da leitura. Narrativas com o domínio da pena e das ideias. Personagens quase humanos do mundo do autor do sertão das Gerais. Vidas enrustidas, arredias, silenciosas, "finas, estranhas e inacabadas, sempre o destino da gente". Uma fortuna de imagens - capiaus, bambinos, fazendeiros, matutos - que fizeram do contador de estórias um conhecido mundo a fora, mais do que em sua pátria. E devemos endossar (e adoçar) as palavras do editor Alcino Leite:

"Os contos gravitam entre o lirismo e a tragédia, a comédia e o épico, o fantástico e a sátira,
conduzidos pela linguagem extraordinária de Guimarães Rosa".


PRIMEIRAS ESTÓRIAS. Como apontar a melhor? São todas deliciosas, puxadoras, puxam a gente. Quem não há de ler? Quem não há-de?

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 10 -


DOCE REALIDADE

"As vigas de nossa casa são de cedro;
suas traves, de cipreste”
(Ct. 1.16)


Lembram o azul do brilhante
Teus radiantes olhos vivos,
Contemplando a liberdade,
Que não mais te está distante.
Que dia feliz é este,
Oh, doce realidade!

Têm o frescor do jasmim
Os teus discretos cabelos;
Aroma e suavidade,
Que nunca se viu assim.
Que dia feliz é este,
Oh, doce realidade!

O mais ardoroso humor
Cora tua face tão alva,
Com suspiros de ansiedade
De um coração de amor.
Que dia feliz é este,
Oh, doce realidade!

Libertar-te-ão dos grilhões,
Meiga pomba dos meus sonhos,
Unirá a felicidade
Os nossos dois corações.
Que dia feliz é este,
Oh, doce realidade!

Que vá embora a tristeza!
Enxuga a lágrima, amor!
Abraçando a liberdade,
Serás feliz, com certeza...
Que dia!.. Quanta alegria!.
Oh, doce realidade!..
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O ROUXINOL
"Nosso leito é um leito verdejante."
(Ct. 1.16)


Fica comigo nesta noite, amor!
A voz do rouxinol quisera ter!
Desejo ser teu único cantor,
Pra te afagar até no amanhecer!

Quem dera, ouvisses belas melodias,
Que só um rouxinol sabe cantar!
Na rede de carinho cairias
Pra que o amor te fosse balançar!

Esquece, agora, as noites enfadonhas,
Que passaste chorando abandonada!
É hora de viver tudo o que sonhas,
Sentindo-te do mundo a mais amada.

Que bom, se ouvisses líricas poesias
Na voz suave de um trovador!
No leito de ternura estremecias,
Gozando dos embalos deste amor.

Não terias cruentos dissabores,
Que te amarguram tanto o coração;
Bem longe do demônio dos horrores,
Serias bem feliz, minha paixão!

Oh, noite escura! - Noite sem luar!
Verei a luz brilhar na escuridão;
Teus olhos vão meus olhos namorar,
E vou encher de amor teu coração.

Fica comigo nesta noite, ó flor!
A voz do rouxinol quisera ter!
Nesta noite terias muito amor!
- Que bom se não houvesse o amanhecer!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

TRISTESSE*
"Dizei ao meu amigo que estou
enferma de amor."(Cf. 5.8)

"A tristeza que me consome
não é por mim;
A dor que me devora
é só por ti".


Que dia sombrio escurece-me agora,
A minha tristeza já invade-me a vida;
Difícil momento! Sou alma que chora!
E sinto que em mim há profunda ferida.

Com muita tristeza, um lamento de dor.
É dia sangrento o que vivo - má hora!
Alguém desta vida sofreu tanto horror?
- Eu sei que minh'alma está triste e só chora.

A dor é maior quando é dor da vergonha,
Seria remédio deixar-se morrer;
Mas, como deixar esta vida risonha,
Se a felicidade só está no viver?

A vida vazia é destino ferido,
Viver sem razão é bem pior que o morrer;
A vida é feliz quando tem um sentido,
E quando há amor já compensa o viver.

Os olhos só enxergam o superficial,
A essência se esconde no íntimo ser;
Os olhos que veem no amor grande mal
Destroem a essência e não devem viver.

Compreende-se fácil a Filosofia,
Existe uma linha na própria razão;
Às vezes, difícil entender a Poesia
- Mistério é razão de um sutil coração.

É grande a tristeza que tenho, por ora,
Sabendo que o mundo propõe descaminho;
Amor - compreensão - a minh'alma te implora;
No teu coração quero ter meu cantinho.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
Tristesse: (Fr.) Tristeza.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

VOU-ME EMBORA
"Gosto de sentar-me à sua sombra."
(Ct. 2.3)


Foi assim tão de repente
Que falaste, sem demora,
Entre lágrima dolente*:
'"Tchau, amor, eu vou-me embora!"

Oh, não! Fica mais um pouco!
Jamais sejas meu açoite!
Apenas, por ti, sou louco!
Fica!.. Fica até à noite!

Não me dês a solidão!
Fica mais, não vás embora!
Este amor não é em vão!
Fica, pois, até a aurora!

Quem te fala é um grande amor,
Não o deixes na saudade!
És o meu maior valor!
Fica... até à eternidade!

E não fales mais assim!
Vê que muito te suplico:
Vive um pouquinho pra mim!
Dize-me somente; "Eu fico!"

Com tais rogos de aflição,
Que de sobra aqui se vê,
Disseste, dando-me a mão;
"Vou-me embora... com você!"
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
*Dolente: Magoada, cheia de dor, lastimosa.

Fonte:
Enviado pelo poeta.
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.

Irmãos Grimm (O camponês e o diabo)


Era uma vez um camponês perspicaz e astuto cujas artimanhas eram muito conhecidas. Porém, a melhor história é a de como uma vez encontrou o Diabo e o enganou. Um dia, o camponês tinha estado a trabalhar no seu campo, e assim que o crepúsculo se instalou, estava a preparar-se para o regresso a casa, quando viu uma pilha de carvão ardendo no centro do seu campo, e quando, cheio de espanto, ele se aproximou, um diabinho negro estava sentado no carvão em brasa.

— De fato, estás sentado em cima de um tesouro! — disse o camponês.

— Sim, é verdade! — respondeu o Diabo — Em cima de um tesouro que contém mais ouro e prata do que tu alguma vez viste em toda a tua vida!

— O tesouro está no meu campo e pertence-me. — disse o camponês.

— Ele é teu, — respondeu o Diabo — se tu te dispuseres a dar-me, por dois anos, metade de tudo quanto o teu campo produzir. Dinheiro, eu tenho de sobra, mas tenho desejo pelos frutos da terra.

O camponês concordou com o negócio.

— Contudo, para que nenhuma disputa surja sobre a divisão, — disse ele — tudo o que estiver acima do solo pertencer-te-á, e o que estiver abaixo da terra pertencer-me-á.

O Diabo ficou bastante satisfeito com isso, mas o esperto camponês tinha semeado nabos.

Ora, quando chegou o tempo da colheita, o Diabo apareceu e queria levar a sua safra; mas nada achou a não ser as folhas secas e amareladas, enquanto que o camponês, cheio de alegria, arrancava os seus nabos.

— Desta vez, ficaste tu com a melhor parte, — disse o Diabo — mas isso não acontecerá da próxima vez. O que crescer para cima do solo será teu, e o que estiver debaixo, meu.

— Eu aceito! — respondeu o camponês.

Mas quando chegou o tempo da sementeira, ele não tornou a semear nabos, mas trigo.

O grão ficou maduro, e o camponês foi para o campo e cortou as espigas e todo o caule, até ao solo. Quando o diabo chegou, não encontrou nada a não ser o restolho, e foi-se embora em fúria, descendo por uma fenda nas rochas.

— É assim que se engana o Diabo. — disse o camponês, e foi-se embora levando o tesouro.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Wikisource

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 20

 

Francisco Pessoa (Perdeu?… São Longuinho acha!)

A não ser uma chuva que convidava para prolongar o sono, nenhuma novidade marcava presença na fria manha em Belmonte, simpática cidade incrustada quase no dorso da Serra de Santana. Só campônios madrugadores, ombreando suas ferramentas já carcomidas, faziam viva à rua central, por onde passavam enfileirados e cabisbaixos a caminho do roçado.

Lá pelas sete horas, o mercado apinhava-se de consumidores. Moradores de povoados vizinhos disputavam no pé do balcão a vez do atendimento. O cheiro forte do caldo de mocotó ganhava a rua a atrair mais fregueses. A Praça do Mercado era um burburinho só.

O dia seguia igual aos outros na tranquila Belmonte, não fora a ausência do sol, notada mais pelos violeiros que se agrupavam nos fins de tarde para cantar seu mergulho por detrás do penedo, A hora do Angelus, nesse dia, algo inusitado chamava a atenção da cidade; a mudez do sino que parecia haver dormido no alto do campanário.

A súbitas, a Praça da Matriz é palco para quase a metade da população que, curiosa, indagava o porquê do nefasto acontecimento. Explicações das mais diversas confundiam-se por entre os belmontenses, que não davam descanso ao pescoço, mirando absortos para a torre da Matriz.

A ansiedade do povo se abranda quando o Zé das Flores, eterno sacristão da freguesia, improvisa um púlpito num dos bancos centrais da Praça, e sob forte emoção, dá conhecimento aos fiéis da transferência do Padre André para outra paróquia, fato este consumado por volta do meio-dia daquela data.

No bar do Sinfrônio, entre tragos e cusparadas em bate-papo ao pé do balcão, os fofoqueiros de plantão tinham tira-gosto garantido: a transferência do Padre André, sacerdote moço na idade e no ofício, que tomou chá de sumiço sem deixar rastro.

- Aquele padreco nunca me enganou! Eu mesmo nunca tomei a bênção a ele! – asseverava o Lira, barbeiro da cidade que tinha a língua mais afiada que sua navalha de cabo de madrepérola, pondo em dúvida a virginalidade do padre em questão.

- E por que tão de repente e às escondidas? Eu, hein! – exclamava o Zé de Elvira, ateu convicto que nem de padre gostava.

A transferência do padre tornou-se o prato do dia para toda a Belmonte. Os bancos da Praça da Matriz eram disputados por gente de todas as classes, ávida por novidades e com um interesse comum, em saber para onde se mudara o Padre André. Zé das Flores evitava conversar com os paroquianos, mantendo em segredo de confessionário o destino do pároco.

Do lado leste da Praça do Mercado, um velho fícus (*) assombreia um grupo de aposentados que faz frente aos ponteiros do relógio com seu jogo de damas. Ali, talvez pela necessidade de manter viva a estertorosa libido, a conversa toma um rumo diferente daquela que ainda rebuliça a cidade,

- Zé Lucas, são quatro e meia... não estás sentindo falta de nadinha?

- Transmissão de pensamento. Rochinha! É hora do pecado passar e faz bem cinco dias que ela não aparece.

Belinha, morena calipígia (**) exalando sexo pelos poros, todas as tardes, quando o sol esfriava, passava ao lado do grupo de vovôs arrastando as sandálias para chamar-lhes a atenção. A ida à padaria do Seu Roque fazia parte do cotidiano da sedutora caipira. Por respeito e por temerem um ataque cardíaco fulminante, eles discretamente interrompiam o jogo e acompanhavam com os olhos já um tanto embaçados, o saracoteio provocante de Belinha.

A ausência por aqueles dias da menina-colírio chamou a atenção principalmente de Zé I.ucas, que demonstrava sem reservas ser apaixonado por aquele pedaço de mau caminho, fantasia que lhe fazia companhia nas noites solitárias da sua viuvez. Ela, uma cabrocha... Ele, um cabra brocha!

O tempo, como sempre, ele, é o mais eficiente dos remédios para suprimir a dor da saudade. Um ano passa sem que se dê conta. Zé Lucas, que antes já houvera se perdido, areado, num dos passeios de trem que fazia sem gasto, pois portador do passe de idoso, mais uma vez salta meio sem rumo numa estação que, por um momento, não lhe parecia familiar.

Dirigindo-se a um pedinte que fazia ponto junto ao portão de saída da área de desembarque, nosso esquecidiço viajor enche de indagações o velho mendigo que empunhava o tosco chapéu de palha na sua direção.

Nenhuma moeda foi jogada no chapéu balançante. Nenhuma informação precisa saiu da boca do pedidor. Um tanto constrangido, Zé Lucas põe-se a vaguear, tentando forçar a mente surrada para melhor situar-se. Era feriado na cidade. O povo, recolhido dentro das suas casas, se preparava para a Missa que celebraria o dia de São Longuinho, tão admirado por toda aquela gente.

Zé Lucas, sentindo faltar-lhe forças nas pernas, aquieta-se num banco de praça. Absorvido em pensamentos que fluíam mais definidos de sua mente, nosso aventureiro, como que desperta, de salto, reconhecendo enfim o lugar onde se encontrava. Desanuviado, chega a rir de si próprio por ter perdido o rumo numa cidade que conhecia tão bem, já que distanciada somente três léguas da sua Belmonte. Dirige-se a uma lanchonete que já conhecia e se farta com caldo de cana e pastel de carne. Apimenta o pastel para ficar mais esperto. Confere o horário da missa com uma devota que já se dirigia para a igreja e atravessa a praça em busca de abrigo. Avista um vetusto fícus-benjamim e pede-lhe sombra. Acomoda-se num banco tosco e o pensamento se volta para seus parceiros de jogo de dama das tardes lúdicas de Belmonte.

O cenário se torna mais ainda familiar para ele, ao ver passar uma jovem senhora com um bebê entre os braços, caminhando em passos cadenciados e cautelosos, portando um xale que lhe cobria os ombros e agasalhava o filho nascido há pouco tempo. Acompanhou os passos da jovem mãe e, depois de assuntar por algum tempo, certificou tratar-se de Belinha, o colírio para os seus olhos, hoje com data vencida, pelas óbvias circunstâncias. Freado em suas intenções de expressar seu contentamento diretamente a Belinha pelo feliz reencontro, Zé Lucas fez uma oração a São Longuinho por aquele achado.

O sino da Igreja Matriz convocava o povo em geral, e os devotos do Santo, em especial, para o tão esperado Ofício Divino.

Zé Lucas adentra o Templo, procura assento e de soslaio observa Belinha afagando seu rebento, posicionada na primeira fila de bancos. Depois que toda a assembleia dos fiéis respeitosamente põe-se de pé, os acólitos dão início ao cortejo litúrgico seguidos pelo oficiante, Padre André. Perplexo, nosso viandante fita o celebrante e desvia o olhar de modo maquinal para a primeira fila de bancos. Somando as parcelas, o resultado se achava nos braços de Belinha...

De volta a Belmonte no trem que saiu às dezessete horas, Zé Lucas a observar a paisagem passar ligeiro, volta o pensamento a Pitombeiras com a certeza de que São Longuinho ganhara mais um devoto, pois ele achara a si mesmo quando se areou na cidade, além de Belinha e Padre André.

Coincidências à parte, Zé Lucas alimentou mais ainda as fantasias que lhe fazem companhia nas suas noites solitárias de viuvez.

- Sua bênção, São Longuinho!

E adormeceu na viagem de volta.
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** Calipigia = que tem belas nádegas.
* Fícus = figueira
Fonte:
Enviado pelo autor.
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.

Trovadores de Campinas/SP - 01


Respeito à diversidade
é um dever do dia-a-dia
acolhendo sem maldade,
o que a alma do outro alivia.
Adilson Roberto Gonçalves
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Tenho saudades de mim,
dos sonhos que não vivi,
dos mil começos sem fim...
Por que foi que eu desisti?
Aparecida Militão Kugelmeier
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Amigo, preste atenção,
Ferreira Gullar nos diz:
melhor do que ter razão
é viver e ser feliz.
Denivaldo Piaia
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Há muito eu já não jantava,
de almoçar eu fui deixando,
só um lanchinho eu me dava
e a vida foi des lanchando...
Flávio Levy
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O lápis rabisca e chora
o sumiço da caneta.
É solidão que devora
grafite, papel, prancheta.
Geraldo Trombin
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Rosas de rara beleza
desabrocham em carmim,
são obras da Natureza
desfolhadas no jardim..
Judith Bertazolli
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Finda o verão, é tão triste,
cai a noite fria e calma,
lembrando que tu partiste
deixando o outono em minh'alma.
Júlia Fernandes
= = = = = = = = =

Quando o assunto está na mesa
e o cenário é discussão,
preferível gentileza
do que ter sempre razão.
Kátia Sentinaro
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A constelação brilhante
do nosso perene amor,
nem mesmo por um instante
perdeu seu brilho e fulgor.
Lúcia Edwirges Narbot Ermetice
= = = = = = = = =

Olhando no espelho vi
a minha alma refletida...
Percebi que estava ali
e dei graças pela vida.
Maria Aparecida Ferreira lima
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As trovas que mais inspiram
nos trazem dificuldade:
será que as rimas conspiram
pra tirar a liberdade?
Maria Cristina de Oliveira
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Mulher madura é tal qual
o outono pra Natureza:
sabe renovar-se igual
folhas com sua leveza.
Maria Felim
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Setembro primaveril,
natureza coroada,
flores lindas do Brasil,
Pátria livre, tão amada...
Maria Ernestina Tamaso Malfatti
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Veja o jardim tão florido,
abre a flor a natureza,
o sol brilha colorido
cantando amor e beleza.
Marly Stracieri
= = = = = = = = =

Justiça cega e moral,
sua espada é o Direito.
Sempre de forma imparcial,
pela igualdade e respeito.
Norberto Carlos Weinlich
= = = = = = = = =

Linda, no vento a dançar,
a bandeira do Brasil,
no seu mastro a balançar,
sob o nosso céu de anil.
Paulo Villalva
= = = = = = = = =

O doce sabor da vida
devagar quero provar,
e sem pensar na partida
pois que nada vou levar.
Rosângela Cesco
= = = = = = = = =

É no palco desta vida,
ao mostrar a minha sina
que a lágrima comovida,
é a roldana da cortina.
Sarah Passarella
= = = = = = = = =

Quando sentimos confiança,
isto nos dá a sensação
agradável de que afiança
o amparo do coração!
Silvia Hilkner
= = = = = = = = =

Vencer, perder... É do jogo!
Lute, faça a sua história,
que ao soar o cessar fogo,
há de ser sua a vitória!
Sílvio Romero
= = = = = = = = =

Entre chuviscos, a noite,
vem chegando de mansinho,
insistindo que eu me amoite
no escuro do meu cantinho.
Teresa Azevedo
= = = = = = = = =

Este hoje que vivo agora
era o amanhã tão sonhado...
Porém, quando for embora,
será um ontem, já passado.
Vânia Figueiredo
= = = = = = = = =

Fontes:
UBT Campinas – Trovaviva – out. 2022 – n. 8
UBT Campinas – Trovaviva – abril 2022 – n. 4
UBT Campinas – Trovaviva – out 2021 – n. 1

Lima Barreto (Os Outros)


Não há prazer maior do que se ouvir pelas ruas, pelos bondes, pelos cafés, as conversas de dois conhecidos.

Tenho um camarada cuja curiosidade pelo pensamento dos estranhos é tal que não há papel caído na rua, contendo algumas linhas escritas, que ele não guarde, recomponha, a fim de dar pasto a esse seu vício mental. Tem no seu museu coisas maravilhosas. Muita vez os missivistas pensam em ter inutilizado uma cartinha amorosa, um bilhete de "facada" e vai um indiscreto como este meu amigo e descobre que em tal dia F "mordeu" X em 50$000 ou Z está apaixonado por H.

Na rua, porém, as coisas se passam mais ao vivo e as pontas de conversa merecem ser registradas, às vezes, por disparatadas, em outras, por profundamente sentenciosas, em outras ainda, por serem excessivamente divertidas.

Em um dia destes que fui levar um amigo até a estação de Maruí, pude ouvir este pedaço de conversa entre dois redondos coronéis roceiros:

- Como deixaste o rapaz?

- Bem.

- Estuda?

- Estuda, mas esses estudos agora estão muito puxados. Imagina tu que ele tem de estudar, decorar um livro enorme, cheio de números e, ainda por cima, em francês.

- Como se chama?

- Não sei. Tem um nome difícil. O autor é um tal Calle ou coisa que valha.

Tratava-se das Tábuas de Callet que tinham inspirado a piedade do pobre matuto pela vadiação do filho.

As conversas de trem são quase sempre interessantes. A mania dos suburbanos é discutir o merecimento deste subúrbio em face daquele. Um morador do Riachuelo não pode admitir que se o confunda com um do Encantado e muito menos com qualquer do Engenho de Dentro. Os habitantes de Todos os Santos julgam a sua estação excelente por ser pacata e sossegada, mas os do Méier acusam os de Todos os Santos de irem para o seu bairro tirar-lhe o sossego.

Uma senhora dizia à outra, no trem:

- Jacarepaguá é muito bom. Gosto muito.

- Mas tem um defeito.

- Qual é?

- Não tem iluminação à noite.

- Você diz bem que é só à noite, pois de dia tem o sol.

As duas riram-se e, como nenhuma delas tivesse pretensões intelectuais, não houve zanga alguma entre elas.

Os hábitos de sociedade, parece, ainda não estão cientificamente estabelecidos entre nós. Julgo que, se fossem analisar muitos deles à luz da metafísica, da teologia dogmática e da teoria dos raios catódicos, muitos deles seriam condenados.

Lembro-me mesmo de um caso elucidativo que um meu amigo me contou. Um outro amigo dele encontrou-o na rua e apresentou-o à mulher, ali mesmo. Havia o movimento habitual da via pública, capaz de distrair o mais atento. Para conversar qualquer coisa, o meu amigo narrou uma história de um acidente de bonde de que ia sendo vítima.

- Imaginem que quase morri.

Nisto a esposa do camarada do meu amigo voltou-se, pois estava olhando para um dos lados, e perguntou naturalmente:

- Não morreu?

Fonte:
Publicada originalmente em 11 de dezembro de 1915 na revista Caretas. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Vanice Zimmerman (Tela de Versos) 11

 

Antonio Brás Constante (Bufês – pesando na consciência)


Existe uma hora em nossos produtivos dias de serviço que serve para o descanso de nossas mentes, e isso acontece enquanto alimentamos nossos corpos (para alguns estes momentos são de no máximo quinze minutos). É a hora do almoço, onde nos deslocamos para verdadeiros oásis gastronômicos, localizados entre os turnos de trabalho da manhã e da tarde.

Nem tudo é moleza nestes locais, pois já na chegada devemos vasculhar com nossos olhos de águia o melhor lugar para sentarmos e decidir de forma rápida entre comida a quilo ou bufê livre.

Outro transtorno é a fila para chegar até o bufê, onde encontramos garotas magrinhas trancando o bom andamento daquela enorme tripa humana, decidindo se pegam mais uma folhinha de alface ou não. Talvez tenham medo de colocar duas folhas, pois acreditam que provavelmente não conseguirão segurar ou erguer o prato, com tamanho volume de verduras.

Essas pobres vítimas da silhueta esbelta em forma de palito, ficam olhando os pastéis de queijo e as travessas de lasanha, sem se atreverem a sequer tocar em qualquer dessas guloseimas. Babando pelos olhos lágrimas de sacrifício, tudo para poder manter a mostra seus corpinhos esqueléticos.

Já outros como eu, desafiam as leis da física, com pratos transbordando deliciosas iguarias, as quais denominamos como “manjares do estômago”. Começamos primeiramente comendo os alimentos com os olhos, saboreando suas cores, seu aspecto tenro e suculento. Depois repetimos a experimentação dos sentidos, aspirando o inebriante aroma das frituras e molhos que dançam em frente as nossas narinas, sendo absorvidos por nossas vias respiratórias. Para enfim devorar tudo com lascívia voraz, retornando ao bufê para uma nova rodada de devassidão alimentar.

No meio de nosso caminho encontramos a balança para pesar a comida, que é o pedágio que pagamos de acordo com a carga que levamos. Porém, esta maquininha não é a nossa maior inimiga. Nossa maior inimiga é a prima dela, a balança de farmácia, localizada a poucos metros de qualquer restaurante (lancheria, ou assemelhados), que fica lá exposta, fazendo-nos passar de cabeça baixa por ela, para que nossa consciência não nos obrigue a parar ali para enfrentarmos a realidade de nossa massa corporal.

Se acaso decidirmos nos punir subindo sobre os ombros daqueles utensílios que apontam nosso peso com cruel veracidade, finalmente nos depararemos com as consequências de nossos atos, o peso de nossos corpos causando peso em nossas consciências. Ao sairmos dali talvez até encontremos as esguias meninas das folhinhas de alface, nos lançando um sorriso de doce vingança, por termos nos esbanjado na comilança enquanto elas sofriam com suas miseráveis saladinhas verdes.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, disponível em  http://abrasc.blogspot.com/

Leandro Bertoldo Silva (Minha História)


Você já passou pela experiência de desejar algo ardentemente e, de repente, perceber que já a possuía há tempos e não se dava conta disso? Pois é, isso aconteceu comigo… Eu sou fruto de uma árvore!

Sempre admirei as pessoas cuja forma de vida se assemelha intimamente com aquilo que acreditam. Quantas pessoas você conhece que vivem uma vida que não querem? Eu sempre quis ser escritor sem saber ao menos o que isso, de fato, significava. E é exatamente aqui que a minha vida se funde com um pé de ameixa…

Eu tinha 7 anos quando a minha brincadeira preferida era subir em um pé de ameixa que ficava na casa da minha avó, e lá ficar horas viajando pelas páginas dos livros que levava comigo, usando os  galhos da árvore como estantes. Eu não tinha uma ideia muito clara do que aquilo representava, mas eu também queria inventar histórias. Foi assim que se deu o meu contato com a literatura.

Para mim livros é a minha razão de vida. Os primeiros que li foram os clássicos “Cinderela” e “O Caso da Borboleta Atíria”, da antiga coleção Vaga-Lume. Lia-os de cima do pé de ameixa sempre na companhia de outros livros que, com o passar dos anos, foram ficando mais “robustos”. A partir de José Lins do Rego fui descobrindo uma infinidade de outros escritores e escritoras, e entre as muitas coisas que me ensinaram, está o fato de eu querer profundamente estar entre eles, fazendo parte do mundo das histórias, dos poemas, dos romances, dos contos, das crônicas, pois aquilo tudo me encantava.

Embora o pé de ameixa já não exista mais, o que mais me deixa feliz é que anos depois, já formado, casado e pai, recriei o mesmo pé e dei a ele o nome de Árvore das Letras, que hoje é a minha editora sustentável, por onde confecciono e adivinhe! Publico livros…

Devo dizer que nada disso teria acontecido se não fossem muitas pessoas que entenderam o meu amor pelos livros e pelo pé de ameixa. Essa árvore me acolheu como um fruto, cuidou de mim e dos meus sonhos, afagou a minha imaginação e moldou a minha existência com livros de tal maneira que digo sem hesitação que eu sou essa árvore e essa árvore sou eu.

Essa é um pouco da minha história. Todos nós temos uma . Qual é a sua?

Fonte:
Árvore das Letras
https://arvoredasletras.com.br/2022/12/07/storytelling/

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 6

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


Um suspiro de repente,
um certo mudar de cor,
são infalíveis sinais
de quem sofre o mal de amor.
= = = = = = = = =

O amor, quando se encontra,
mete susto, mas dá gosto,
sobressalta o coração,
faz fugir a cor do rosto.
= = = = = = = = =

Quem quiser amar direito,
para não se desconfiar,
quando olhar, não deve rir,
quando rir, não deve olhar.
= = = = = = = = =

Amor é como pigarro,
não se pode disfarçar:
Se a cócega dá direito,
tem de tossir ou de olhar.
= = = = = = = = =

Feliz quem ama na terra
inda que seja uma flor.
Pra que existir neste mundo
quem é incapaz de amor?
= = = = = = = = =

Ainda eu não tinha dentes,
começava a engatinhar,
com a filha da vizinha
já me punha a namorar…
= = = = = = = = =

Os pais não podem privar
os filhos de querer bem;
Se as leis dos pais são sagradas,
as do amor mais força têm.
= = = = = = = = =

Querer bem não é pecado,
querer bem é devoção.
Santo não há só no céu,
há também no coração.
= = = = = = = = =
Fui no mato buscar lenha,
Santo Antônio me chamou.
Quando santo chama a gente,
que fará quem é pecador…
= = = = = = = = =

O amor de dois solteiros
é como a flor do feijão:
Quando olham um para o outro,
logo mudam de feição.
= = = = = = = = =

Até menino pequeno
se consegue desmamar:
Coração acostumado
não pode deixar de amar.
= = = = = = = = =

Amor não gosta de acaso,
amor gosta de esperar:
Comida sem apetite
farta ou faz enjoar.
= = = = = = = = =

Plantei o amor no meu peito
pensando que não pegasse,
tanto pegou, que nasceu,
tanto nasceu, que inda nasce.
= = = = = = = = =

Abra-me a porta, menina,
pra que eu entre devagar,
que amor que entra com fúria,
bem cedo se há de acabar.
= = = = = = = = =

Contra faca, bala e cobra
eu tenho o corpo fechado,
mas contra o amor me esqueci:
Aproveitou-se o malvado!
= = = = = = = = =

Se o amor não fosse cego
eu seria bem feliz,
porque tu, lendo em meu peito
verias o que ele diz.
= = = = = = = = =

O primeiro amor da gente
deve ter gosto dobrado,
chegam uns e vão-se outros…
Aquele é sempre lembrado.
= = = = = = = = =

Ai daqueles que perderam
seu primeiro e santo amor:
Pois nas próprias distrações
agravarão sua dor.
= = = = = = = = =

O amor que eu te queria,
de subir se derramou,
botaste água na fervura,
encolheu-se e resfriou.
= = = = = = = = =

Quem me dera livre ser
qual os peixinhos do mar,
que descuidados de amores
correm, brincam, sem cessar
= = = = = = = = =

Uma ausência me retira,
uma saudade maltrata,
uma pena me atormenta,
uma dor é que me mata…
= = = = = = = = =

Eu tomei amor ao longe
por ser a linha mais forte,
rebentou-se a linha ao meio
triste de quem não tem sorte!
= = = = = = = = =

Não tenho onde me esconder
do meu amor inimigo:
Perto, estou fora de mim,
longe, está dentro comigo!
= = = = = = = = =

Fui fraca, facilitei,
cuidei que amor n'era nada.
Amor é mal sem remédio,
hoje estou desenganada!
= = = = = = = = =

Eu sofri e fiz sofrer,
amei e me fiz amar,
se a partida fosse errada,
que gosto principiar!
= = = = = = = = =

Eu sofri por ter de amar
e sofri por ser amado,
mas tudo quanto sofri
eu dou por bem empregado.
= = = = = = = = =

Na galera dos amores,
todos se embarcam cantando,
porém no fim da viagem
todos se apartam chorando.

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.