segunda-feira, 13 de março de 2023

Professor Garcia (Reflexões em trovas) 21


A chuva em seu acalanto,
não causa ofensa ao sertão!
Mata a sede e acaba o pranto
dos olhos tristes do chão!
= = = = = = = = = 

Ainda espero o teu regresso,
se é que ainda esperas por mim;
pedir que voltes, não peço,
mas te espero até o fim!
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À luz da velha candeia,
uma sombra faz trapaça;
é a solidão que passeia,
enquanto a noite não passa!
= = = = = = = = = 

A noite, as sombras passando,
e uma delas, na verdade,
é a da saudade embalando
a sombra de outra saudade!
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Ao lembrar dos tempos idos,
na vida, quanta lembrança!...
Contando os sonhos perdidos,
vi meus sonhos de criança!
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A vida é uma aquarela
pintada de muitas cores;
na moldura, a cor mais bela,
é a cor da estação das flores!
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A vida, com seus desvãos,
dá-me alguns sorrisos francos,
com os netos, passando as mãos
nestes meus cabelos brancos!
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A voz que me rouba a calma
nas horas de solidão,
é a voz de alguém, sem ter alma,
num corpo sem coração!
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Busco a esmo, mundo afora,
rastros de um velho andarilho,
que se fez raio de aurora
no coração de seu filho!
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Cercada de lenda e encanto,
teu poço nunca secou...
Meu Caicó canta o canto
que o Seridó lhe ensinou!
= = = = = = = = = 

Creia amigo! Amigo, creia,
que nunca estará sozinho;
quem crê na fé que semeia
forra de luz seu caminho!
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Da infância, nunca me esqueço;
pois, guardo com fortes laços,
traços do mesmo endereço
que viu meus primeiros passos!
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Esses teus lábios, menina,
lembram-me os lábios da flor,
na cor rubra mais divina
da embriaguez de um terno amor!
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Eu sinto, pai, nos meus ais,
nossa união, em fortes elos,
nas impressões digitais
impressas nos teus chinelos!!!
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Grita poeta, e o medo vence-o,
que a tua voz, que é teu grito...
Rompe os grilhões do silêncio
e abre as portas do infinito!
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Mesmo envolto em densas brumas,
se o mar, zangado se alteia,
deixa com beijos de espumas
rugas, de espumas na areia!
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Meu ninho, meu velho ninho,
onde a ternura se espalha,
vive no mesmo cantinho
e é lá, que o amor se agasalha!
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Minha musa inspiradora,
a tua beleza é tanta,
que se fores pecadora,
são teus pecados de santa!
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Não quero o bem que se alcança
com fama e falsos lauréis;
mas manter viva a esperança
ó Pai, que tenho aos teus pés!
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Na solidão da clausura
reza um monge solitário,
buscando a paz, na ternura
das contas do seu rosário!
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O amor, envenena e acalma;
mas, se o amor, por amor clama,
nem parece que tem alma
no corpo do amor, que se ama!
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Olhando a nuvem no céu,
eu deduzo por exemplo,
que a nuvem vagando ao léu,
protege o teto do templo!
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O Sol, cai numa armadilha
da noite, sábia senhora,
para que a luz andarilha
durma até o romper da aurora!
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Pela fé, tudo se alcança
e, a velhice me enternece,
que o poeta, é sempre criança
e criança, nunca envelhece!
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Se a ganância não tem cofre,
eu não entendo o mister,
daquele que tanto sofre,
por ter bem mais do que quer!
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Se a primavera passou,
o outono, um pouco desfez...
Vou tentar com o que restou,
ser primavera outra vez!
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Sem saber o que se alcança,
nem na vida, o que me espera...
Vou semeando esperança
nas cinzas da primavera!
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Sem ter certeza de nada,
sem saber o que me espera...
Vou semeando na estrada
sementes de primavera!
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Se o teu olhar, não me acalma,
nem prendo mais tua voz...
Sinto que há mãos em minha alma
puxando os laços dos nós!
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Se tu, não foste o melhor,
teus sonhos não foram vãos!...
Pois, sinto, pai, teu suor,
no suor de minhas mãos!
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Toda tarde, um velho sino,
nas notas de um si bemol,
desperta a dor do destino
da agonia do arrebol!
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Viver de amor, vivem poucos,
mas iludido, eu me assumo;
é que esses meus sonhos loucos,
são meus sonhos de consumo!

Fonte:
Enviado pelo trovador.
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

Machado de Assis (Três consequências)

D. Mariana Vaz está no derradeiro mês do primeiro ano de viúva. São 15 de dezembro de 1880, e o marido faleceu no dia 2 de janeiro, de madrugada, depois de uma bela festa do ano-novo, em que tudo dançou na fazenda, até os escravos. Não me peçam grandes notícias do finado Vaz ou, se insistem por elas, ponham os olhos na viúva. A tristeza do primeiro dia é a de hoje. O luto é o mesmo. Nunca mais a alegria sorriu sequer na casa que vira a felicidade e a desgraça de D. Mariana.

Vinte e cinco anos, realmente, e vinte e cinco anos bonitos, não deviam andar de preto, mas cor-de-rosa ou azul, verde ou granada. Preto é que não. E, todavia, é a cor dos vestidos da jovem Mariana, uma cor tão pouco ajustada aos olhos dela, não porque estes também não sejam pretos, mas por serem moralmente azuis. Não sei se me fiz entender. Olhos lindos, rasgados, eloquentes; mas, por agora quietos e mudos. Não menos eloquente, e não menos calado é o rosto da pessoa.

 Está a findar o ano da viuvez. Poucos dias faltam. Mais de um cavalheiro pretende a mão dela. Recentemente, chegou formado o filho de um fazendeiro importante da localidade; e é crença geral que ele restituirá ao mundo a bela viúva. O juiz municipal, que reúne à mocidade a viuvez, propõe-se a uma troca de consolações. Há um médico e um tenente-coronel indicados como possíveis candidatos. Tudo trabalho vão! D. Mariana deixa-os andar, e continua fiel à memória do morto. Nenhum deles possui a força capaz de o fazer esquecer; — não, esquecer seria impossível; ponhamos substituir.

Mas, como ia dizendo, estava-se no derradeiro mês do primeiro ano. Era tempo de aliviar o luto. D. Mariana cuidou seriamente em mandar arranjar alguns vestidos escuros, apropriados à situação. Tinha uma amiga na corte, e determinou-se a escrever-lhe, remetendo-lhe as medidas. Foi aqui que interveio a tia dela, protetora do juiz municipal:

— Mariana, você por que não manda vir vestidos claros?

— Claros? Mas, titia, não vê que uma viúva...

— Viúva, sim; mas você não vai ficar viúva toda a vida.

— Como não?

A tia foi ao cabo:

 — Mariana, você há de casar um dia; por que não escolhe já um bom marido? Sei de um, que é o melhor de todos, um homem honesto, sério, o Dr. Costa...

 Mariana interrompeu-a; pediu-lhe que, pelo amor de Deus, não lhe tocasse em tal assunto. Moralmente, estava casada. O casamento dela subsistia. Nunca seria infiel ao “seu Fernando”. A tia levantou os ombros; depois lembrou-lhe que fora casada duas vezes.

— Oh! titia! São modos de ver.

A tia voltou à carga, nesse dia à noite, e no outro. O juiz municipal recebeu uma carta dela, dizendo que aparecesse para ver se tentava alguma coisa. Ele foi. Era, na verdade, um rapaz sério, muito simpático, e distinto. Mariana, vendo o plano concertado entre os dois, resolveu vir em pessoa à corte. A tia tentou dissuadi-la, mas perdeu tempo e latim. Mariana, além de fiel à memória do marido, era obstinada; não podia suportar a ideia de lhe imporem coisa nenhuma. A tia, não podendo dissuadi-la, acompanhou-a.

Na corte tinha algumas amigas e parentas. Elas acolheram a jovem viúva com muitas atenções, deram-lhe agasalho, carinhos, conselhos. Uma prima levou-a a uma das melhores modistas. D. Mariana disse-lhe o que queria: sortir-se de vestidos escuros, apropriados ao estado de viúva. Escolheu vinte, sendo dois inteiramente pretos, doze escuros e simples para uso de casa, e seis mais enfeitados. Escolheu também chapéus noutra casa. Mandou fazer os chapéus, e esperou as encomendas para seguir com elas.

Enquanto esperava, como a temperatura ainda permitia ficar na corte, Mariana andou de um lado para outro, vendo uma infinidade de coisas que não via desde os dezessete anos. Achou a corte animadíssima. A prima quis levá-la ao teatro, e só o conseguiu depois de muita teima; Mariana gostou muito.

Ia frequentes vezes à Rua do Ouvidor, já porque lhe era necessário provar os vestidos, já porque queria despedir-se por alguns anos de tanta coisa bonita. São as suas palavras. Na Rua do Ouvidor, onde a sua beleza era notada, correu logo que era uma viúva recente e rica. Cerca de vinte corações palpitaram logo, com a veemência própria do caso. Mas, que poderiam eles alcançar, eles da rua, se os da própria roda da prima não alcançavam nada? Com efeito, dois amigos do marido desta, rapazes da moda, fizeram a sua roda à viúva, sem maior proveito. Na opinião da prima, se fosse um só talvez domasse a fera; mas eram dois, e fizeram-na fugir.

 Mariana chegou a ir a Petrópolis. Gostou muito; era a primeira vez que lá ia, e desceu cortada de saudades. A corte consolou-a; Botafogo, Laranjeiras, Rua do Ouvidor, movimento de bondes, gás, damas e rapazes, cruzando-se, carros de toda a sorte, tudo isto lhe parecia cheio de vida e movimento.

 Mas os vestidos fizeram-se, e os chapéus enfeitaram-se. O calor começou a apertar muito; era necessário seguir para a fazenda. Mariana pegou dos chapéus e dos vestidos, meteu-se com a tia na estrada de ferro e seguiu. Parou um dia na vila, onde o juiz municipal a cumprimentou, e caminhou para casa.

 Em casa, depois de descansada, e antes de dormir teve saudades da corte. Dormiu tarde e mal. A vida agitada da corte perpassava no espírito da moça como um espetáculo mágico. Ela via as damas que desciam ou subiam a Rua do Ouvidor, as lojas, os rapazes, os bondes, os carros; via as lindas chácaras dos arredores, onde a natureza se casava à civilização, lembrava-se da sala de jantar da prima, ao rés-do-chão, dando para o jardim, com dois rapazes à mesa, — os tais dois que a requisitaram à toa. E ficava triste, custava-lhe fechar os olhos.

Dois dias depois, apareceu na fazenda o juiz municipal, a visitá-la. D. Mariana recebeu-o com muito carinho. Tinha no corpo o primeiro dos vestidos de luto aliviado. Era escuro, muito escuro, com fitas pretas e tristes; mas ficava-lhe tão bem! Desenhava-lhe o corpo com tanta graça, que aumentava a graça dos olhos e da boca.

Entretanto, o juiz municipal não lhe disse nada, nem com a boca nem com os olhos. Conversaram da corte, dos esplendores da vida, dos teatros, etc.; depois, por iniciativa dele, falaram do café e dos escravos. Mariana notou que ele não tinha as finezas dos dois rapazes da casa da prima, nem mesmo o tom elegante dos outros da Rua do Ouvidor; mas achou-lhe em troca, muita distinção e gravidade. 

Dois dias depois, o juiz despediu-se; ela instou para que ele ficasse. Tinha-lhe notado no colete alguma coisa análoga aos coletes da Rua do Ouvidor. Ele ficou mais dois dias; e tornaram a falar, não só do café, como de outros assuntos menos pesados.

Afinal, seguiu o juiz municipal, não sem prometer que voltaria três dias depois, aniversário natalício da tia de Mariana. Nunca ali se festejara tal dia; mas a fazendeira não achou outro meio de examinar bem se as gravatas do juiz municipal eram semelhantes às da Rua do Ouvidor. Pareceu-lhe que sim; e durante os três dias de ausência não pensou em outra coisa. O jovem magistrado, ou de propósito, ou casualmente, fez-se esperar; chegou tarde; Mariana, ansiosa, não pôde conter a alegria, quando ele transpôs a porteira.

“Bom! disse consigo a tia; está caída.”

E caída ficou. Casaram-se três meses depois. A tia, experiente e filósofa, acreditou e fez crer que, se Mariana não tem vindo em pessoa comprar os vestidos, ainda agora estaria viúva; a Rua do Ouvidor e os teatros restituíram-lhe a ideia matrimonial. Parece que era assim mesmo porque o jovem casal pouco tempo depois vendeu a fazenda e veio para cá. Outra consequência da vinda à corte: — a tia ficou com os vestidos. Que diabo fazia Mariana com tanto vestido escuro? Deu-os à boa velha. Terceira e última consequência: um pequerrucho.

Tudo por ter vindo ao atrito da felicidade alheia.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Publicado originalmente em A Estação, em 31 de julho de 1883.

domingo, 12 de março de 2023

Varal de Trovas n. 578


 

Célio Simões (O presente que não recebi)

Era início de novembro de 2017. Muita gente em Belém se preparava para viajar aproveitando o feriado de finados, que por recair numa quinta-feira, deixava “imprensada” a sexta, fazendo a delícia de quem demanda os balneários esticando até o domingo, quando todos voltam para novo período de espera, até outro favorecimento do calendário.

Dominando o desejo de curtir esses dias na ensolarada Salinas decidi ficar, pois tinha que resolver uma pendência sobre passagens aéreas em uma agência de viagem. E lá estava eu no dia 2 fazendo isso, quando o aparelho celular tocou.

Do outro lado era Ivaneide, a secretária de uma das associações profissionais que faço parte, dizendo que havia em sua sala um cidadão procurando por mim. Em princípio estranhei, pois as pessoas interessadas em meus serviços como advogado costumam ir ao escritório, depois de combinar dia e hora para serem atendidas.

Coisa incomum mesmo. Fui informado que o sujeito insistia em saber meu endereço residencial, afirmando que já estivera no meu local de trabalho e não havia me encontrado. Intrigado, pedi que ela passasse o telefone para ele. Eu queria averiguar de quem se tratava. Um tom de voz rouco e profundo, permeado de um resfolegar de alguém muito cansado, sem maiores rodeios me saudou:

- Como vai o senhor? Lembra de mim? É o seu amigo Joel!

- Perdoe, mas não me lembro...

- É que já faz muito tempo. Eu era o vigia da rua, quando o senhor morava no Jardim Independência, no bairro de Nazaré.

E a partir daí começou a descrever com detalhes, o número da minha antiga casa, a marca do meu carro, o nome dos meus vizinhos, o alagamento que houve por lá durante uma monumental chuva de inverno, dando-me a plena certeza que realmente tinha laborado por lá, tão minucioso era seu discurso sobre aquela época, afirmando que de mim recebera muita ajuda para suprir suas necessidades pessoais e familiares. Eu simplesmente nada recordava, nem de sua fisionomia, nem dos favores que supostamente lhe fiz.

Prosseguindo na conversa, disse que não mais residia em Belém e sim no interior do Estado, para onde se mudara definitivamente há dois anos. E que de lá me trouxera um presente, pois sabendo da minha predileção pelos peixes dos nossos rios amazônicos, estava de posse de uma caixa térmica (isopor) com pescado especialmente preparado para me entregar.

Quem me conhece mais de perto sabe da minha inclinação culinária por peixes. Meus olhos devem ter brilhado. Mesmo desconfiado, ditei-lhe ao telefone o meu atual endereço, que ele foi anotando com a ajuda da Ivaneide, pois sua baixa escolaridade não lhe permitia fazê-lo sozinho. Feito o registro, esclareceu:

- Voltei pra Belém para acompanhar minha filha que mora aqui. O senhor lembra da Ana Maria? Era aquela garotinha que ia lá no meu serviço levar o lanche, quando eu fazia as “viradas” de fim de semana. Agora é uma mulher feita, mas sofre de um grave problema de saúde. Ela vai fazer uma cirurgia muito difícil e está precisando de ajuda. O senhor poderia ajudá-la?

Achando a conversa ainda mais inusitada, registrei de memória o nome do hospital onde a moça estava internada e o número do apartamento, prontificando-me a visitá-la assim que eu pudesse. Antes de se despedir, disse-me com um ar de indisfarçado júbilo:

- O senhor não sabe, mas agora eu sou espírita!

- Pôxa, que bom! – Foi o que eu achei de melhor para responder.

- E como espírita, vivo em contato com os seres de luz. Quero lhe dizer que o senhor está perto de receber uma graça muito especial!...

- Amigo, muito obrigado, respondi. Deus lhe pague e lhe proteja...

Depois desta última frase dita por mim, o telefone passou a emitir fortes estalidos até que foi desligado, não me possibilitando mais falar com ele ou com a Ivaneide. Instintivamente atribuí o fato ao péssimo serviço de telefonia fixa ou móvel que dispomos. Por excesso de cautela, liguei para a portaria do prédio onde moro e seu Mundoca, veterano porteiro, atendeu. Disse-lhe que um amigo ia entregar um isopor com peixe e por se tratar de perecível, que avisasse imediatamente nossa empregada, que se incumbiria de apanhá-lo. Recomendei porém, que não permitisse a subida de ninguém ao apartamento pelo motivo óbvio: Infelizmente Belém, antes tranquila, tornou-se uma cidade perigosa e violenta, exigindo todos os cuidados no quesito segurança.

Nesse dia, regressei no fim da tarde e ao indagar na portaria, informaram-me que ninguém deixara ali nenhum isopor com peixe. No outro dia a mesma coisa. Quer ver que seu Joel esqueceu o assunto ou não encontrou meu local de moradia, pensei. Daí me veio à mente o compromisso que com ele assumi de fazer uma visita à filha doente, de quem eu esquecera depois de tantos anos.  

Moleque, ainda, ocupei a vaga deixada por um tio, que fixou residência no Rio de Janeiro, na Sociedade São Vicente de Paulo na minha cidade, dedicada a obras de caridade. Mais tarde, ginasiano, fiz parte da Sociedade Estudantil de Assistência Social (SEAS) que arrecadava donativos para famílias pobres; e até hoje eu e minha esposa, prestamos alguma ajuda aos carentes, na medida das nossas possibilidades. Assim, movido pelo dever de solidariedade, parti para o hospital.

Lá chegando, informei à recepcionista a finalidade da minha presença. Ela, após o protocolo de identificação, indicou-me o apartamento, que fui procurando com cuidado para não incomodar os pacientes, alguns deles atendidos nos próprios corredores. Ao postar-me em frente ao número que eu havia memorizado, bati levemente e uma voz frágil, como se estivesse a quilômetros, lá dos sumidouros do aposento ordenou:

- Pode entrar!

O que aconteceu lá dentro me deixaria perplexo! Soubesse disso eu nem teria entrado. Sou cético para certas situações, no entanto há coisas para as quais é difícil encontrar explicação. Empurrei devagar a porta, ao tempo em que um cheiro forte e adocicado de éter invadiu meus pulmões, quase me fazendo retroceder.

No cômodo, de dimensões reduzidas, não havia ninguém além dela: uma moça franzina, cabelos pretos em desalinho, sob um lençol que lhe chegava ao busto, tendo uma agulha de soro fisiológico espetada no braço esquerdo. Sua palidez intensa e o aspecto enfermiço eram reveladores de seu precário estado de saúde. Fiquei intrigado pois quem devia de estar ali, tomando conta da filha doente não estava, justamente o pai - seu Joel. Com muito tato, iniciei a conversa:

- ...Ana Maria?

- Sim? Quem é o senhor?

- Você era pequena e não se lembra de mim. Sou amigo do seu pai. Pelo telefone, ele me disse que você estava doente, informou o local de sua internação, a cirurgia que você vai fazer e da ajuda que está precisando. Pena que ainda não recebi o isopor com peixe que ele trouxe de presente pra mim...

- Isopor com peixe?

- Sim, ainda estou esperando. Ele sabe que eu gosto muito de peixe.

Notei que a lividez de sua pele se acentuou até transformar-se numa máscara mortuária esculpida em sua tez, porém achei que era da própria doença. Como ela quedou-se muda, voltei a falar tentando humanizar as reações da jovem:

- O que posso fazer por você? Como faço para ajudá-la?

- Eu não estou precisando de nada – respondeu com expressão fechada.  

- De nada? Mas foi seu pai que me pediu para vir aqui verificar o que você está necessitando, pois vocês se mudaram para o interior e...

- Quero lhe dizer que nós nunca nos mudamos para o interior - cortou ela interrompendo-me com certa aspereza. E mal disfarçando o incômodo causado pela minha presença, prosseguiu:

- Sempre vivemos em Belém, no bairro do Parque Verde. E quanto ao papai, acho impossível ele ter-lhe trazido qualquer presente.

- Mas foi o que ele me disse quando conversamos...

Desabando numa crise de pranto, com expressão de dor estampada no rosto lívido vincado pela unha do sofrimento, Ana Maria fitou-me com olhos girovagos balbuciando com dificuldade:

- Só pode ser engano. Papai morreu de infarto no Dia de Finados. Anteontem fez dois anos. Ele está enterrado aqui em Belém, no Cemitério São Jorge. O senhor não pode ter conversado com ele...
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 Do livro de Célio Simões, “RECADOS DA MEMÓRIA”, 2.ª edição, Editora Cultural Brasil, 2018, pg. 22/27. O autor é advogado, professor, escritor, palestrante e poeta, membro titular da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Benedita Azevedo (Triversos Escolhidos) 1


a chuva está forte
e o relâmpago risca o céu
cadela se esconde
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ainda manhãzinha
olhares fixos na rede
esperam sardinhas
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além da montanha
já se vai a tarde outonal
enfeite do jantar
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bacalhoada
chega à hora do jantar
o marido faminto
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caminhadas de inverno
orelhas sob o vento
parecem queimar
= = = = = = = = =

casa de veraneio
da janela para a rua
cheiro de peixe frito
= = = = = = = = =

cercado dos peixes —
tudo tão abandonado
com o mar de inverno
= = = = = = = = =

clarão da manhã
as pedras à beira mar
guardam lótus brancas
= = = = = = = = =

começo de férias
invade a quadra da escola
o mar agitado
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culto das imagens
o turista esqueceu-se
do seu veranear
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desvãos de praia
cheias de pobreza as casas
sob a chuvarada
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Dia da mentira
o avô engana os netos
e volta à infância
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dia prolongado
também o trabalho aumenta
na horta da casa
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Domingo de Ramos
a procissão acompanha
o padre e a cruz
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em plena calçada
pescador conserta a rede
tempo de bagre
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família reunida
na mesa do restaurante
filé de dourado
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férias de verão
peixe frito no barraco
dá água na boca
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fim de carnaval
restos de fantasia
no meio da rua
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gritos ritmados
pescadores puxam a rede
cheia de peixe-espada
= = = = = = = = =

joga a meninada
debaixo de um aguaceiro
tombos e risadas
= = = = = = = = =

lembra um lenço branco —
o leve pouso da garça
entre os pescadores
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manhã de verão
sabor de peixe com arroz
à beira da praia
= = = = = = = = =

maré outonal
as ondas quebram na areia
bem devagarinho
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marulhar das ondas
folguedos de carnaval
à beira da praia
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noite do folclore
a lua parece dançar
sobre as ondas
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noite tropical
últimos raios de sol
clareiam a praia
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padaria cheia —
o pão doce da vitrine
atrai uma abelha
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paisagem distante
a neblina de Petrópolis
desde o quintal
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revoada na praia
aves tornam a partir
na tarde de outono
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roçado de milho
só restam talos em pé –
gafanhoto peregrino
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súbito aparece
a lua sobre o Atlântico
valeu a espera
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vento da manhã
os barcos pra lá e pra cá
cheios de sardinhas
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velho sorridente
distribui panfletos –
chuva de inverno

Fonte:
Enviado pela autora.
Benedita Azevedo. Praia do Anil. Curitiba: Araucária Cultural, 2006.

Michelle Golden (Como Escrever Histórias Tristes) Deixando a história ainda mais triste, final


1. Não seja melodramático.


Esta é uma das ciladas de histórias tristes. Não faça seus leitores se sentirem forçados a simpatizar com os personagens. Evite fazer descrições muito trágicas ou diálogos emotivos demais, ou pode acabar perdendo a mão.

Às vezes, é difícil notar situações melodramáticas, principalmente quando se está muito próximo da história. No primeiro esboço, talvez você fique um pouco afobado para registrar tudo o que tem em mente — então não tenha medo de substituir tudo depois. Ainda assim, quando fizer uma revisão, seja bem rígido e específico.

Corte as partes das descrições ou dos diálogos que não sejam indispensáveis. Geralmente, quando se trata de uma história triste, menos é mais. Caso descreva a morte do cachorro da Maria, por exemplo, só o faça em uma ou duas frases, para que o público sinta o momento por conta própria e não seja forçado a adotar determinada perspectiva.

Pense também na perspectiva geral do público. No mundo de hoje, histórias tristes são comuns demais, e as pessoas acabam não se importando com as tragédias que são genéricas. Na vida real, por exemplo, é muito comum ouvir falar de mortes e doenças nos telejornais. Evite ser melodramático fazendo uma introspecção sobre as emoções de personagens específicos: sim, perder um animal de estimação é triste, mas por que a Maria está infeliz especificamente? Que tipo de tristeza ela sente?

2. Ponha a qualidade da história acima de qualquer coisa.

As pessoas não gostam de obras que são trágicas sem motivo aparente. Todos curtem ler histórias de qualidade, com humor, bons diálogos e personagens humanos e propensos a mudar. Coloque esses traços em primeiro lugar e só depois pensar nos eventos que os cercam.

Mergulhe na cabeça dos personagens. Crie histórias e passados que não tenham a ver com os eventos trágicos que eles estão vivendo. Dê a eles traços críveis de personalidade, hobbies e interesses etc., para que eles não sejam definidos somente pelos traumas.

Torne a tragédia algo orgânico na história. Não "mate" a mãe da protagonista de repente, por mais que tenha mostrado sinais de doença antes, ou vai parecer uma estratégia barata para criar compaixão por Maria. Se quiser matar alguém, dê alguns sinais de antemão. Mostre-a, por exemplo, nervosa porque tem uma consulta médica.

3. Acrescente uma pitada de humor.

Histórias trágicas demais podem incomodar os leitores e, por isso, muitas tramas tristes também têm partes mais leves. Por exemplo: o romance A culpa é das estrelas, de John Green, inclui bastante humor em meio ao drama, enquanto o filme Flores de aço é conhecido por conseguir misturar risos e lágrimas. Inspire-se nesses exemplos.

4. Lembre o leitor dos bons momentos nas horas mais tristes.


Conforme revisa a história, você pode ficar tentado a deixá-la mais triste. Passe um pente fino pelo texto e tente encontrar maneiras de deixá-lo mais emotivo. Para isso, você pode, dentre outras coisas, relembrar épocas mais felizes do passado.

O que torna momentos tristes tão incômodos é a maneira com que eles contratam com épocas mais contentes, o que pode tocar o coração de qualquer um.

Quando for descrever uma cena triste, fale um pouco sobre um momento mais feliz da história. Por exemplo: cite uma cena anterior, na qual o cachorro da Maria fez um barulho engraçado, que parecia "Olá", e provocou risadas na garota e sua mãe. Depois, quando o animal estiver à beira da morte, ele pode tornar a fazer esse barulho, mas dessa vez com um toque de tristeza.

5. Faça os leitores se apaixonarem pelos personagens.


Reexamine as qualidades deles. As pessoas vão ficar mais tocadas se os personagens tiverem um impacto positivo nos outros. Para isso, quando alguém for morrer na história, por exemplo, escreva algumas frases elogiando o impacto que esse indivíduo gerou. No exemplo, diga algo como "Bob abanou a cauda ao ver Maria, sem deixar de ser o companheiro leal de sempre".

6. Trace paralelos entre tragédias.


Essa é uma ótima maneira de deixar a história mais triste e aumentar o impacto emocional nos leitores.

No exemplo, dá para criar um paralelo bem claro entre a morte do cachorro e a morte do pai da Maria. Ela pode ficar triste porque não conseguiu evitar o inevitável — mais uma vez. Assim, os leitores vão ficar tocados pela personagem e pelo que ela viveu.
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Michelle Golden, Ph.D., professora de inglês em Athens, Georgia. Conquistou seu Mestrado em Educação para Professores nas Artes da Linguagem em 2008 e recebeu seu título de Doutora em Inglês pela Georgia State University em 2015.

Fonte:
Wikihow.  
https://pt.wikihow.com/Escrever-Hist%C3%B3rias-Tristes

Aparecido Raimundo de Souza (Pedinte)

O SUJEITO ENTRA no coletivo lotado usando a porta de saída. Traz nas mãos uma caixinha de isopor suja, com algumas moedinhas dentro. Antes de começar a falar, ou melhor, a pedir, chacoalha o recipiente que faz um barulho peculiar de pratinhas se chocando uma com as outras. Dá, então, início ao seu rosário de queixumes. Berra:         

“Boa noite, meus caros irmãos. Como podem ver, estou aqui pedindo a ajuda de vocês para comprar alimentos para minha família. Tenho mulher, três filhos menores, a minha do meio, sofre de bronquite asmática crônica e eu não tenho recursos nem condições de chegar na farmácia e comprar os medicamentos que o médico receitou”.

Faz uma pausa breve. E segue, aos gritos:

“Minha esposa era empregada doméstica, lavava, passava, e cozinhava para um ricaço que morava numa mansão lá para as bandas de Água de Cima. Como moramos longe e não dava para ela ir e voltar todos os dias, ela dormia no emprego. Ontem, coitada, ela foi mandada embora porque o patrão dela, um sujeito safado, pilantra, vinha, há tempos, fazendo “propostas indecente”, dando cantadas e mais cantadas”.

Nesse momento, começa a chorar:

“Queria abusar dela, de qualquer jeito e para isso, vivia pedindo para minha esposa ser boazinha e se deitar com ele. Em troca, meus irmãos, ele disse que daria dinheiro, roupas e joias. Como minha esposa é crente, e temente à Deus, ela veio enrolando o desgraçado. Veio engabelando dia após dia, semana após semana. Sexta-feira agora, o infeliz chegou mais cedo e resolveu passar a “carroça adiante dos burros.

“Aproveitando que a sua mulher ainda não havia chegado da escola, onde leciona inglês, o calhorda partiu para cima de minha esposa, rasgou as vestes dela, e arrastou a indefesa para um dos banheiros. Minha esposa começou a gritar, e, graças a Deus, o endemoniado largou dela. Minha querida esposa se ajoelhou e orou.

“No final da oração, meus irmãos, ela disse estas palavras: ‘Vade retro, Satanás’ e, graças ao bom Deus, misericordioso, um milagre aconteceu. O tinhoso passou a mão nas chaves de seu carro e foi pra rua”.  

Faz uma nova pausa e enxugou as lágrimas:

“Quando a patroa chegou, minha esposa relatou o ocorrido, mas, a mulher, disse que ela estava mentindo, acertou os ‘dias trabalhado’ e mandou ela embora. Por isto, meus amados irmãos, ao invés de eu estar roubando, ou assaltando, fumando maconha ou pedra de craque, eu estou aqui pedindo aos irmãos, se Deus tocar nos “seus coração” e puder me ajudar com dez, vinte, cinquenta centavos eu ficarei agradecido.  Você que é pai, você que é mãe, sabe como é difícil quando “os filho” da gente pede um pão pra comer e a dispensa está vazia, sem nada.

“Me ajudem, irmãos. Quero deixar um versículo para que meditem e através dele Deus abençoe a vocês e toque seu coração. Provérbios, capítulo 27, versículo 7, diz assim: ‘quem está com o estômago cheio rejeita até o mel; mas, para quem está com fome, até a comida amarga é doce’.

“Obrigado a todos, boa noite, a quem ajudou. Que Deus abençoe a quem colaborou e a quem não pode dar nada também, mas me ouviu e, mesmo não tendo nada com isso, me prestigiou emprestando “seus ouvido” aos “meus clamor””.

Agradeceu ao motorista e, pela mesma porta que adentrou no coletivo, saiu. Acompanhei sua figura e percebi que, às carreiras, ingressou na lotação superlotada que vinha logo atrás.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sábado, 11 de março de 2023

Fabiane Braga Lima (Perdoar é necessário)

Encarei João Henrique profundamente nos olhos, eu estava nervosa ao extremo. Como de costume ele se escondeu em si. Vou dar-lhe uns bons tapas na cara, pensei. Ele se envolver com uma senhora de setenta anos? Não! Jamais ela poderia manter um caso com um adolescente. Logo o meu filho querido, que o criei como um príncipe.

— Deixe pra lá essa história, meu filho! — falei para ele, me referindo ao caso com Odete. E assim João Henrique, se afastou da mulher idosa que ele se envolveu. Mas me iludi, pois passaram uns dias e lá estava ele de caso com a libidinosa Odete. Eu soube por vias tortas, eu pressenti uma nuvem negra se formando no horizonte.

— Onde estava João Henrique? — perguntei desesperada, fazia um bom tempo que ele sairá de casa e eu não soube nada dele. Mesmo sabendo onde estava e o que estava fazendo.

— Acho que vai gostar, mamãezinha querida, e tenho uma surpresa para a senhora. — respondeu-me com um sorriso macabro, gelei o meu coração àquela hora.

— Parece que você arrumou uma namoradinha. — falei para o meu filho, mais uma vez me referindo do caso dele com Odete.

— Sim, mamãe arrumei uma namoradinha, que me ama e a amo muito! — achei estranho o tom de voz de João Henrique. Ele me deu as costas e foi para o quarto.

Ridículo, um garoto de dezessete anos, namorando uma senhora de setenta anos, isto tem um nome que é pedofilia. Agora, sim, encontrei a palavra certa, pedofilia.

Preocupada, com o meu filho, fui conversar com João Henrique. Urrei e bati na porta do quarto dele, esmurrei na verdade, até eu me lembrar que tinha a chave do quarto, no meu bolso. Ao abrir a porta me deparei com uma cena inusitada, os encontrei nus, João Henrique e Odete. Gelei e engoli em seco.

Depois só me lembro do meu vizinho, o Bastos, o policial militar me segurando, provavelmente, ele preocupado com os barulhos que vinham da minha casa, veio ver o que estava acontecendo. E só me lembro dos risos incontidos de João Henrique e de Bastos. Afinal, qual o motivo das risadas de ambos? Ainda no quarto do meu filho, com aquela cena obscena.

— Mamãe, não está bem, precisa urgentemente de um psiquiatra! — escutei o meu filho falar, parecia que ele estava a quilômetros de distâncias de mim.

Fiquei enfurecida, peguei o meu filho pelo cabelo, jogando-o contra a parede. Gritei o que Odete estava fazendo na minha casa.

— Calma, Margarete! A senhora não está bem, a dona Odete faleceu há cinco anos. — disse Bastos ainda me segurando pelos ombros.

— Mentira! — gritei a plenos pulmões.

— A senhora se lembra que vocês viviam discutiram por nada! E ela lhe pediu perdão, mas a senhora nunca a perdoou. — disse o policial Bastos em tom de conciliação.

De repente, me lembrei do trágico acidente de trânsito que vitimou Odete e o marido dela. Eu me lembrei da cena de Odete, tranquila, podando as rosas vermelhas no jardim bem cuidado do quintal da casa dela. Lembrei da cena de nós duas brigando, em vias de fato e os vizinhos vindos nos separar. Lembrei-me, também, do pedido de desculpas, de dona Odete e do perdão que eu a neguei.

O motivo de vê-la, em todos os lugares, foi porque a mágoa e o ódio permaneceram no meu âmago mais que profundo. E acredito que ela sempre estará presente, se não houver o meu perdão! Construí o meu próprio sepulcro árduo de um passado que não passou. Eu preciso buscar ajuda, ou dona Odete, ainda estará viva em minha memória. Perdoar é necessário!

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LI


 
“OSCILA O INCENSÓRIO ANTIGO“
 
Oscila o incensório antigo
Em fendas e ouro ornamental.
Sem atenção, absorto sigo
Os passos lentos do ritual.

Mas são os braços invisíveis
E são os cantos que não são
E os incensórios de outros níveis
Que vê e ouve o coração.

Ah, sempre que o ritual acerta
Seus passos e seus ritmos bem,
O ritual que não há desperta
E a alma é o que é, não o que tem.

Oscila o incensório visto,
Ouvidos cantos ‘stão no ar,
Mas o ritual a que eu assisto
É um ritual de relembrar.

No grande Templo antenatal,
Antes de vida e alma e Deus...
E o xadrez do chão ritual
É o que é hoje a terra e os céus…
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“O SOL QUE DOURA AS NEVES AFASTADAS”

O sol que doura as neves afastadas
No inútil cume de altos montes quedos
Faz no vale luzir rios e estradas
E torna as verdes árvores brinquedos...

Tudo é pequeno, salvo o cume frio,
De onde quem pensa que do alto não vê
Vê tudo mínimo, num desvario
De quem da altura olhe quanto é.
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O sol queima o que toca.
O verde à luz desenverdece.
Seca-me a sensação da boca.
Nas minhas papilas esquece.
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“O SOM DO RELÓGIO”
 
O som do relógio
Tem a alma por fora,
Só ele é a noite
E a noite se ignora.

Não sei que distância
Vai de som a som
Pegando, no tique,
Do taque do tom.

Mas ouço de noite
A sua presença
Sem ter onde açoite
Meu ser sem ser.

Parece dizer
Sempre a mesma coisa
Como o que se senta
E se não repousa.
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“OUÇO SEM VER, E ASSIM, ENTRE O ARVOREDO”

Ouço sem ver, e assim, entre o arvoredo,
Vejo ninfas e faunos entremear
As árvores que fazem sombra ou medo
E os ramos que sussurram de eu olhar.

Mas que foi que passou? Ninguém o sabe.
Desperto, e ouço bater o coração -
Aquele coração em que não cabe
O que fica da perda da ilusão.

Eu quem sou, que não sou meu coração?
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“OUTROS TERÃO”

Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.

A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.

"Que importa?"
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.

"Quem tem de ser?"
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.

Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.
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“O VENTO SOPRA LÁ FORA”

O vento sopra lá fora.
Faz-me mais sozinho, e agora
Porque não choro, ele chora.

É um som abstrato e fundo.
Vem do fim vago do mundo.
Seu sentido é ser profundo.

Diz-me que nada há em tudo.
Que a virtude não é escudo
E que o melhor é ser mudo.
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UNS VERSOS QUAISQUER

Vive um momento com saudade dele
Já ao vivê-lo...
Barcas vazias, sempre nos impele
Como a um solto cabelo
Um vento para longe, e não sabemos,
Ao viver, que sentimos ou queremos...

Demo-nos pois a consciência disto
Como de um lago
Posto em paisagens de torpor mortiço
Sob um céu ermo e vago,
E que nossa consciência de nós seja
Uma coisa que nada já deseja...

Assim idênticos à hora toda
Em seu pleno sabor,
Nossa vida será nossa anteboda:
Não nós, mas uma cor,
Um perfume, um meneio de arvoredo,
E a morte não virá nem tarde ou cedo...

Porque o que importa é que já nada importe...
Nada nos vale
Que se debruce sobre nós a Sorte,
Ou, tênue e longe, cale
Seus gestos... Tudo é o mesmo... Eis o momento...
Sejamo-lo... Pra quê o pensamento?...

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).
Poesias em Domínio Público

Samuel da Costa (Clarisse Cristal em noites de tempestades e frio)

Em noites de tempestade e frio
Vagueio solitária e languidamente
Pelo mítico vergal em dor
Choro e sofro
Todas as dores do mundo
Pelo amor que se foi
Por tudo que não veio
E por tudo que nunca virá

Agora, com a cidadania das nuvens totalmente revogada, em definitivo, era premente viver e viver ao máximo do possível e para além do inimaginável. E Clarisse Cristal tinha em mente o livro, “A cinza das horas”. Era pela “A cinza das horas”, que tudo tinha começado afinal de contas, pois ali seria o seu derradeiro recomeçar. A bibliotecária foi em busca do livro raro como se fosse o seu próprio Santo Graal, ou melhor, o livro seria o seu A leste do Éden?

Mas antes ela, Clarisse Cristal, queria e precisava sentir o ar fresco da luz do dia, era preciso ganhar as ruas, ela precisava sentir a leveza da claridade da luz do dia. Naquela hora extrema, a moça pouco se importou, com as muitas dúvidas e as várias e infindáveis incertezas que os novos desafios impostos diante dela naquele momento.

Ela foi até o cabideiro antigo, de imbuia cor de ébano, ao lado da porta, pegou um sobretudo preto godê inverno masculino, que estava ali, esquecido há muitas eras glaciais. Vestiu a peça que ela nem sabia de quem era, de fato e de direito, a peça estava tanto tempo ali estática, que ninguém sabia de quem era ou como foi parar ali.

Então a bibliotecária começou a saga, foi no encalço de Anna Victória, com faro apurado de uma loba faminta. Clarisse Cristal tinha o corpo em chamas e estava também em alerta total. A então obscura funcionária de uma pequena livraria e editora independente, era responsável pelo setor de avaliações e reparos de livros antigos e raros.

A bibliotecária lânguida andou até a escada, que dava acesso ao primeiro piso do prédio que abrigava a livraria e editora. Parada na beira do abismo negro, da álgida fossa abissal, ela estava estática, na segurança da continuidade mais que tranquila, da rotina imutável, em oposição atribulada vida real cotidiana, das pessoas comuns. Ali na parte superior da livraria, o seu Éden particular, a sua hierática torre de marfim. Lugar ermo onde Clarisse Cristal, desfrutava da companhia solitária, de gente inacessível, gente velha e gente morta, ela cerda de raridades caras, há muito esquecidas. A jovem bibliotecária ali estava cercada por todos os lados, ilhada de grimórios, de itens exclusivos de poucos e para poucos indivíduos privilegiados e privilegiadas. Em suma, ali estava em total segurança, longe das instabilidades do mundo liquefeito e fugaz de avalanches tecnológicas da era digital.

Clarisse Cristal, por fim, tomou fôlego e desceu as escadas de forma intempestiva e sem olhar para o que ficou para trás. A avaliadora e restauradora de livros raros geralmente evitava usar as escadas, que agora encarava com força e com coragem. Ela, a complexa bibliotecária reclusa, preferencialmente usava o elevador privativo, do prédio em anexo, onde ficava o calmo escritório da livraria e editora. Clarisse Cristal, só usava a entrada frontal da livraria, quando a loja estava para encerrar ou começar o expediente. E sempre em momentos raros, que os demais colegas de trabalho, ou poucos clientes ocasionais, a viam circular pela pequena livraria e editora independente. Só nesses raros momentos, assim por dizer, davam pela existência da jovem bibliotecária especialista, em obras antigas e raras.

Os barulhos das botas batendo com força nos degraus chamaram a atenção de todos e todas, que estavam no primeiro piso da livraria. O espanto maior foi quando Clarisse Cristal percorreu a corredor principal da livraria.

— Aonde será que vai, a nossa lacrimosa princesinha gótica? E com tanta pressa assim? A nossa querida Rapunzel, enclausurada na torre ebúrnea! — disse entre dentes Anna Victória, que estava parada debruçada no frio balcão, de mármore Carrara, no setor de embrulhos para presentes ao ver Clarisse passar.

Clarisse parou e viu o livro “A cinza das horas”, postado no meio da gélida bancada de mármore, enquanto a funcionária do setor de embrulhos tomava sem pressa um cafezinho, a embrulhadora estava atrás de Anna Victória. Clarisse notou que Anna Victória se comportava de forma afetada, como se fosse uma sofisticada e deslocada europeia, em trânsito, perdida nos suarentos trópicos, exilada em um mundo em desenvolvimento, por algum acidente do desígnio destino.

Clarisse Cristal ficou parada olhando para frente, a poucos metros da porta de entrada, esperando e esperando o que nem ela sabia, o que ao certo estava esperando. Se ela olhasse para trás, poderia ver todo o estafe (grupo de funcionários) da pequena livraria parado, sem nada entender a repentina quebra da rotina da jovem bibliotecária. Da simpática senhora negra que servia café, vestida elegantemente, passando pelo bem alinhado operador da fotocopiadora, o pequeno agrupamento de uniformizados vendedores e vendedoras e indo terminar no sofisticado subgerente da livraria, com seu paletó impecável feito sob medida. Não haviam fregueses na livraria naquele início de semana, naquele início de manhã sonolenta e outonal.

Estavam todos estáticos, esperando o desenrolar daquela cena inusitada. Clarisse Cristal então olhou para trás e se voltou lentamente para Anna Victória. A jovem bibliotecária, não estava interessada em mais ninguém, nada importava para Clarisse Cristal àquela hora extrema. A bibliotecária andou em direção da outra de forma bem lenta, levou a mão ao ar indo parar próximo ao rosto de Anna Victória. Com o dedo em riste, a jovem bibliotecária Clarisse Cristal, delicadamente afastou os longos cabelos trigais da orelha esquerda e levou os seus lábios carnudos até o ouvido, da atônita promotora sênior de vendas. Anna Victória, a vendedora sênior, era toda arrepios, naquela derradeira hora extrema, naquele momento confuso.

— Eu, minha querida, definitivamente, não tenho vocação nenhuma para as danças das aranhas! — Soprou de forma álgida e sensual, para dentro da mente da frágil Anna Victória, que corou. Clarisse voltou para sua marcha, seguiu andando de forma teatral, como se estivesse encenando, uma opereta bufa chinfrim, encenada em uma tasca qualquer.

A bibliotecária foi até a saída da livraria e foi tragada pela luz do dia, sob os olhares atônitos de todos e todas. Clarisse gostaria àquela hora que estivesse recoberta pelo manto escuro, da mais negra noite fria de inverno, banhada pela lua em sangue. Mas, o prazer do inesperado, de sentir a claridade da luz do dia, começava a atrair a antiga cidadã das nuvens. Um novo mundo se descortinava, bem diante dela, naquele exato momento, agora tudo era possível, para a jovem e corajosa Clarisse Cristal. A antiga cidadã das nuvens, a chorosa e tímida princesa gótica enclausurada na segurança da ebúrnea torre de marfim, já não existia mais. Era mesmo hora de mudar de vida, passou da hora na verdade, de experimentar novos sabores, novas sensações, respirar novos ares, sentir novos olhares e em outros lugares. A Bibliotecária sentia que tinha passado da hora, de experimentar novos cenários, com as suas mais que infinitas possibilidades.

Foi assim que Clarisse Cristal passou a pensar e agir, naquele que seria o seu ponto de virada na vida, no íntimo e na mente da jovem bibliotecária.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Michelle Golden (Como Escrever Histórias Tristes) Começando a História


1. Pense numa boa frase para começar a história.

Ela é essencial para qualquer conto e deve captar a atenção do leitor instantaneamente, deixando-o curioso e mais disposto a investir seu tempo no enredo.

Comece com uma frase que mostre a força do enredo e dê uma noção do que a história vai tratar. Se quiser tratar temas tristes, por exemplo, já deixe isso implícito no início.

Se estiver sem ideias, leia algumas das introduções das suas histórias favoritas ou faça uma pesquisa no Google, usando temos como "Introduções mais famosas de histórias e contos". Leia vários exemplos e reflita como eles funcionam: por que são eficazes? Por que despertam o interesse do leitor?

Pense, mais uma vez, no exemplo deste artigo: na narrativa, cedo ou tarde, Maria vai ter que aceitar a morte do seu cachorro. Digamos que o seu pai tenha morrido de câncer e que ela não saiba lidar com a perda e o luto. Pensando assim, escreva uma introdução que dê uma sensação de perda iminente, mas sem deixar de lado as tristezas do passado. Assim: "Maria não queria começar a chorar na aula, mas não conseguia parar de pensar que estava perdendo tudo à sua volta".

2. Crie laços afetivos estreitos na história.

Os leitores ficam mais tocados por esse tipo de relação — o que faz sentido, já que todo mundo é próximo de alguém na vida real. Quando uma história se trata da relação entre personagens, o leitor sente uma maior conexão com o texto.

Mostre quão próximos são os personagens: eles podem terminar as frases um do outro e ter uma relação de apoio mútuo em qualquer situação. Ainda seguindo o exemplo deste artigo, imagine três personagens principais: Maria, sua mãe, e o cachorro. Você pode escrever cenas nas quais Maria cuide do bichinho e mostre o quanto o ama, além de descrever a relação complicada (mas amorosa) que ela tem com a mãe.

Depois, pode mostrar um flashback breve do velório do pai da personagem, com ela ajudando a mãe a enfrentar o luto.

3. Progrida a história até chegar ao principal acontecimento triste.


Vá criando o clima para o grande evento — se for brusco demais, o leitor não vai sentir qualquer apelo emocional, já que não vai ter se "aproximado" dos personagens o bastante.

Cada cena deve ajudar na progressão da história como um todo. Quando tiver dúvidas, consulte o esboço: qual o seu clímax? Como pode levar os personagens a ele?

No exemplo do artigo, pode ser que o cachorro tenha uma crise epiléptica e precise de atendimento veterinário urgente. Nessa situação, Maria descobre que o câncer se espalhou para o cérebro. Não se concentre nas ações, e sim na história emocional. A protagonista acaba discutindo com a mãe; nesse momento, você pode mostrar a senhora ajudando a filha a se preparar para a pior das hipóteses, com a jovem evitando a verdade.

Conforme escreve as cenas, pense no cerne da história: qual o motivo da existência dos seus personagens? Cada cena deve aproximar o leitor da resposta a essa pergunta. Maria, por exemplo, pode ter que aceitar que a morte faz parte da vida. Nesse caso, tente mostrar sinais de perda e deterioração em todos os momentos.

4. Escreva o clímax depois de escrever a armação da história.

O clímax é o ponto alto da narrativa, e deve ser intenso sem parecer forçado ou
melodramático.

Lembre-se das esperanças e dos sonhos dos personagens para entender o que está em jogo. Nesse momento, por que os protagonistas estão lutando? O que acontece se eles fracassarem?

As melhores histórias envolvem momentos de descoberta, o que deveria ser universal: a personagem vai descobrir algo a respeito de si mesma ou a situação em que se encontra pode levar a um tema ou mensagem que se aplique a tudo e todos.

No exemplo do artigo, o clímax pode acontecer quando Maria e sua mãe brigarem sobre a decisão de sacrificar ou não o cachorro. À primeira vista, o que está em jogo é a vida do animal; após uma análise mais profunda, é o senso de propósito da garota. Ajudar o bichinho dá a ela uma sensação de controle sobre a inevitabilidade da morte — o que vai acabar fazendo-a entender que morrer é natural. Talvez a mãe possa dizer algo sobre essa questão durante a discussão.

Essas diferentes "camadas" podem ser excelentes para histórias tristes: além de deixarem momentos infelizes mais intensos, os leitores acabam se aproximando emocionalmente dos personagens. Assim, vai aprender algo enquanto mergulha na narrativa.

5. Escolha um final adequado para a história.

Depois do clímax, é hora de encerrar a narrativa, dando certa resolução ao enredo. O leitor precisa se sentir satisfeito com essa conclusão, mesmo que ela seja infeliz. Não deixe nenhuma pergunta em aberto e nem crie novos problemas.

Desenvolva o enredo até chegar ao final. O personagem deve aceitar o seu destino. Além disso, todas as cenas do clímax devem levar a uma resolução, diminuindo a tensão — nunca aumentando.

No exemplo, Maria  pode chorar e dizer à mãe que está pronta para aceitar a morte do cão.

Histórias tristes não precisam ter finais tristes. Porém, se você der uma guinada repentina nos eventos que acometem os personagens, pode dar uma sensação de inverossimilhança à narrativa. Caso queira mesmo escolher um final feliz, desenvolva-o aos poucos.

No exemplo, não diga  que o cachorro sobreviveu à doença; isso não é nada realista. Em vez disso, você pode, por exemplo, avançar a história em alguns meses e mostrar que, embora sinta falta do bicho, Maria está superando a perda e até adotou um cachorrinho novo.

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Continua… Deixando a história mais triste
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Michelle Golden, Ph.D., professora de inglês em Athens, Georgia. Conquistou seu Mestrado em Educação para Professores nas Artes da Linguagem em 2008 e recebeu seu título de Doutora em Inglês pela Georgia State University em 2015.

Fonte:
Wikihow.  
https://pt.wikihow.com/Escrever-Hist%C3%B3rias-Tristes

sexta-feira, 10 de março de 2023

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 36

 

Francisco José Pessoa (Tamanho não é documento… nem sempre)

Zé Pequeno era tratado assim mesmo, carinhosamente, pelos amigos do bairro em que morava. Dentro dos seus 1 metro e vinte, rara vez fazia-se tristonho. Um sorriso ingênuo era ponto final das inúmeras saudações que respondia no seu caminhar diário como cobrador de uma loja de confecções,

Honesto e afável no tratamento com clientes devedores, quase sempre retornava ao local de trabalho com os carnes em dia.

Numa de suas abordagens para fins laborais, bate à porta de uma cliente cujo nome não sabia pronunciar. Senhora Anneken, uma holandesa com respeitável "pé direito" - 1 metro e oitenta era pouco - após saber o porquê daquela visita, fez sala ao dócil cobrador. Justificativas dadas, carnê quitado, Zé Pequeno despede-se com um tímido cumprimento e um sorridente obrigado.

A mesma cena se repete no mês seguinte. A estrangeira, divorciada, mãe de cinco filhos, morava sozinha e sentia necessidade de conversar com alguém. Pergunta vai, resposta vem, faz com que o nosso Zé se solte mais. Foi convidado para retornar àquela casa sempre que quisesse tomar um chazinho com biscoitos.

Entusiasmado com aquele pedaço grande de mulher, Zé Pequeno não só se viciou do chá, mas também do biscoito. Embora sem estatura para tal, assumiu as funções de vigilante noturno da residência da gringa. Daí, para fazê-la companhia no leito, foi um nadinha. Tornou-se um cão de guarda da metade inferior da cama da Sra. Anneken, Trabalhava segundo sua estatura.

Depois de um ano, o modus operandi do vigilante era o mesmo. Tal fato faz lembrar a alegoria de certo filósofo. Nessa nossa república, só o rosto do Zé alcançava a entrada da caverna. Para ele, a realidade do prazer. Para Anne, sombras, nada mais. Desfaz-se o namoro.

O Bairro dos Prazeres é sacudido com a chegada de um circo mambembe. Miúda, anã graciosa, faz par artístico com o atirador de facas. O ingresso das segundas-feiras a preço popular atrai Zé Pequeno, que é atraído por aquela estrela circense de quem não tira os olhos. Encerrado o espetáculo, o cobrador, também estrela na arte de abordagem, procura Miúda que se trocava em sua tenda. Não podia bater na porta como fazia em suas cobranças. Chama-a pelo nome. Um "quem é" de espanto atravessa a lona um tanto surrada e faz eco com o nome do cobrador. Abre-se o véu.

- Sim, pois não!

- Boa noite... como já disse, chamo-me Zé... chamam-me Zé Pequeno!

Não sei se com chá e biscoitos, o certo, é que Zé Pequeno achou na medida o que queria. Até a cama de dormir. Acertou na mosca. Passou a sentir o gosto de outros lábios... o de Miúda. Deu adeus aos carnês, seguiu com a trupe, e foi pai de cinco filhos. Em cada caverna, um mistério!

Fonte:
Enviado pelo autor.
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.

Luiz Otávio (Um coração em ternura…) 10


BOA FÉ

Creio em ti e sem favor…
Sabes bem que é mesmo assim!
E em mim tu crês, meu amor,
bem mais do que creio em mim!...
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COMISERAÇÃO

Poupou-me, Deus não querendo
que eu filhos viesse a ter,
pois não quis me ver sofrendo,
vendo os meus filhos sofrer...
= = = = = = = = =

DESINTERESSADO

Glórias, riqueza, esplendor,
nunca te dei... e nem tive...
Porém, mais dura um amor
quando com pouco ele vive…
= = = = = = = = =

DEVOÇÃO

Com tanta pureza, tanta
bondade em teu coração,
não és rainha, mas santa,
no altar da minha Paixão...
= = = = = = = = =

"DIA SANTO''

Se teu amor é perfeito,
outro não vás procurar...
O "dia-santo" foi feito
para a gente o bem guardar...
= = = = = = = = =

DIAS FELIZES

Dias felizes assim,
jamais, amor, eu passei…
Valem tanto para mim
que nunca os esquecerei….
= = = = = = = = =

DÚVIDA

O que meu filho herdará?
(Esta dúvida me atrai...)
— Da mãe a franca alegria,
ou a tristeza do pai?!
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É A VIDA...

Se foi sua alma ferida,
não culpe à Vida, rapaz...
— Não é má ou boa a Vida...
É só Vida... e nada mais...
= = = = = = = = =

INCOMPREENSÍVEL

Porque Deus dá filho a alguém
que o recebe como um mal,
e o nega, às vezes, a quem
alimenta este ideal?!…
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INIGUALÁVEL

Se trazes em ti, querida,
um amor igual ao meu,
ninguém jamais nesta vida,
amor assim conheceu...
= = = = = = = = =

INTROSPECÇÃO...

Sucessos n'Arte… na Clínica...
(…E a Calma que já morreu?!…)
— Não venceste a Vida, não...
A vida é que... te venceu...
= = = = = = = = =

MEDO

Minha vida é tão serena,
eu sou tão feliz enfim,
que tenho medo que um dia
não seja feliz assim...
= = = = = = = = =

MEU LAR FELIZ

Você viu casas maiores,
ricos lares conheceu…
Nunca viu porém, um Lar
tão feliz como este meu...
= = = = = = = = =

MEU SILENCIOSO LAR

Neste Lar há tanta Paz,
e uma quietude sem par,
que em seu beiral ao Crepúsculo,
vêm as pombas descansar...
= = = = = = = = =

OS BOTÕES DE ROSA

— Quem só deseja encontrar
no futuro lar; bonança,
entre rosas há de achar
um chorinho de criança...
= = = = = = = = =

PUREZA

Esta manhã azulada
sem uma nuvem sequer,
faz lembrar a bem amada -
teu coração de mulher…
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RAÍZES

No teu peito, deixa o Bem
criar bem fundas raízes…
Pois quanto mais longas forem,
mais horas terás felizes...
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RECEIO

Tenho medo que esta Vida,
de lutas e desenganos,
modifique esta alma simples,
que eu carrego há tantos anos!
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SOLIDARIEDADE

(Vendo vários coqueiros unidos)

Nasceram juntos... e unidos,
olham a vida que passa,
na Ventura embevecidos,
ou enfrentando a Desgraça…
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UMA SÓ...

Deves ter uma só alma,
em qualquer ocasião...
Sê sincero embora sofras!
Traz bem puro o coração!
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ÚNICO...

Se há Lares com formosura
e coisas de mais valor,
não há Lar com mais Ventura,
nem casal com mais amor…

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Franz Kafka (Diante da Lei)

Diante da Lei há um guarda. Um camponês apresenta-se diante deste guarda, e solicita que lhe permita entrar na Lei. Mas o guarda responde que por enquanto não pode deixa-lo entrar. O homem reflete, e pergunta se mais tarde o deixarão entrar.

 – É possível! – disse o porteiro - Mas não agora.

A porta que dá para a Lei está aberta, como de costume; quando o guarda se põe de lado, o homem inclina-se para espiar. O guarda vê isso, ri-se e lhe diz:

– Se tão grande é teu desejo, experimenta entrar apesar de minha proibição. Mas lembra-te de que sou poderoso. E sou somente o último dos guardas. Entre salão e salão também existem guardas, cada qual mais poderoso que o outro. Já o terceiro guarda é tão terrível que não posso suportar seu aspecto.

O camponês não havia previsto estas dificuldades; a Lei deveria ser sempre acessível para todos, pensa ele, mas ao observar o guarda, com seu abrigo de peles, seu nariz grande e como de águia, sua barba longa de tártaro, rala e negra, resolve que mais lhe convém esperar.

O guarda dá-lhe um banquinho, e permite-lhe sentar-se a um lado da porta. Ali espera dias e anos. Tenta infinitas vezes entrar, e cansa ao guarda com suas súplicas. Com frequência o guarda mantém com ele breves palestras, faz-lhe perguntas sobre seu país, e sobre muitas outras coisas; mas são perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores, e para terminar, sempre lhe repete que ainda não pode deixá-lo entrar.

O homem, que se abasteceu de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por mais valioso que seja, para subornar o guarda. Este aceita tudo, com efeito, mas lhe diz:

– Aceito-o para que não julgues que tenhas omitido algum esforço.

Durante esses longos anos, o homem observa quase continuamente o guarda: esquece-se dos outros, e parece-lhe que este é o único obstáculo que o separa da Lei. Maldiz sua má sorte, durante os primeiros anos temerariamente e em voz alta; mais tarde, à medida que envelhece, apenas murmura para si. Retorna à infância, e como em sua longa contemplação do guarda, chegou a conhecer até as pulgas de seu abrigo de pele, também suplica as pulgas que o ajudem e convençam o guarda. Finalmente sua vista enfraquece-se, e já não sabe se realmente há menos luz, ou se apenas o enganam seus olhos. Mas em meio da obscuridade distingue um resplendor, que surge inextinguível da porta da Lei.

Já lhe resta pouco tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências desses longos anos se confundem em sua mente em uma só pergunta, que até agora não formou. Faz sinais ao guarda para que se aproxime, já que o rigor da morte endurece seu corpo. O guarda vê-se obrigado a abaixar-se muito para falar com ele, porque a disparidade de estaturas entre ambos aumentou bastante com o tempo, para detrimento do camponês.

– Que queres saber agora? – pergunta o guarda - És insaciável.

– Todos se esforçam por chegar à Lei, – diz o homem - como é possível então que durante tantos anos ninguém mais do que eu pretendesse entrar?

O guarda compreende que o homem está para morrer, e para seus desfalecentes sentidos percebam suas palavras, diz-lhe junto ao ouvido com voz trovejante:

– Ninguém podia pretender isso, porque esta entrada era somente para ti. Agora vou fechá-la.

Fonte:
Franz Kafka. Na colônia penal. Publicada originalmente em 1919.
Disponível em Domínio Público.

Michelle Golden (Como Escrever Histórias Tristes) 1. Fazendo um Esboço da História


Você curte histórias tristes, que partem o coração? Então, pode começar a escrever por conta própria. O processo pode ser complicado, já que é muito fácil pender para o lado melodramático. Além disso, não é legal escrever nada só por querer soar trágico; concentre-se em desenvolver uma história interessante e com personagens fortes para se conectar mais com os leitores. Comece fazendo um esboço no qual pense em possíveis temas, e depois estruture o texto seguindo os elementos básicos da literatura. Depois de tudo, coloque a mão na massa.

Fazendo um esboço da história

1. Escreva em fluxo de consciência sobre o sentimento da tristeza.


Antes de começar a história em si, você vai precisar de inspiração. Pense em coisas tristes e reserve alguns minutos para anotar tudo em um papel, falando também sobre situações infelizes.

As pessoas ficam tristes quando passam por certas mudanças na vida, como o fim de amizades e outros relacionamentos, a perda de entes queridos etc. Além disso, eventos pequenos também causam o mesmo efeito, como perder um animal de estimação, ter que mudar de cidade e afins. Pense no que lhe traz infelicidade. Que pensamentos e emoções você associa a sentimentos negativos?

Enquanto escreve, pense nas suas experiências pessoais com a tristeza. Por exemplo: quando foi que ficou mais triste na sua vida? Por quê? Talvez consiga ser a inspiração para a própria história.

2. Busque inspiração.

A melhor maneira de se tornar um bom escritor é ler mais. Para aprender a criar belas histórias, você vai ter que ler materiais com temas e enredos tristes.

Peça indicações de contos e histórias tristes aos seus amigos e professores e faça uma leitura ativa dos materiais, prestando atenção à construção dos enredos e dos personagens: como as histórias começam? Como terminam? Por que você sente uma conexão emocional com elas?

Preste atenção às partes que funcionam nessas histórias. Nesses textos, há pouco espaço e tempo para captar a atenção do leitor. Conforme lê as obras de referência, preste atenção à introdução: como o autor prende a sua atenção? Onde a história começa? Muitos enredos começam depois que determinados eventos ou ações importantes já aconteceram, e acabam falando sobre eles por meio de flashbacks ou até insinuações nos diálogos dos personagens.

3. Aprenda a começar a história.

Antes de escrever, você deve se familiarizar com a estrutura básica do texto. Histórias são compostas por três grandes arcos, que aglomeram outras partes inferiores: a armação, a confrontação (que inclui o clímax) e a resolução.

A armação é o início da história. É nela que o autor explica quem é o protagonista e o que ele está fazendo quando o enredo começa. Nessa parte, há uma exposição breve de detalhes, cuja intenção é captar a atenção dos leitores.

Na confrontação, o protagonista enfrenta conflitos que fazem a história progredir. Esses conflitos são essenciais para o enredo e, em uma história triste, devem envolver alguma tragédia.

Por exemplo: a personagem principal está cuidando do seu cachorro, que está doente. Ela pode levá-lo ao veterinário e descobrir que a situação é pior do que esperava e, assim, passar a enfrentar os desafios à sua frente.

4. Faça o esboço geral da história depois de entender a sua estrutura básica.

Escreva como o enredo vai começar, qual vai ser o dilema do personagem principal e o clímax, e como a situação vai se resolver.

Esse esboço pode ser breve e não precisa de frases completas. Você só tem que ter uma boa noção dos eventos básicos que vão acontecer. Por fim, separe-o nos três elementos citados acima — a menos que siga outra estrutura.

Você pode separar as estruturas do esboço com números e letras. Títulos mais importantes, como "armação", podem ser trocados por números romanos; os aspectos mais específicos que se encaixam nessa parte, por sua vez, podem ser organizados por letras ou números normais.

Por exemplo: "I. Armação, a. Apresentar Maria".

Voltemos ao exemplo deste artigo para esclarecer a questão do esboço.

Você pode começar com algo assim: "Armação, a. Apresentar Maria, chorando na sala de aula, b. Triste porque está pensando no câncer de seu pai, c. Volta para casa sozinha (sua mãe está trabalhando) para cuidar do cachorro, que está doente".
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Continua… Começando a História
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Michelle Golden, Ph.D., professora de inglês em Athens, Georgia. Conquistou seu Mestrado em Educação para Professores nas Artes da Linguagem em 2008 e recebeu seu título de Doutora em Inglês pela Georgia State University em 2015.

Fonte:
Wikihow.  
https://pt.wikihow.com/Escrever-Hist%C3%B3rias-Tristes