Por aqueles agros, fosse de verão, fosse de inverno, tivessem as árvores a sua verde opulência ou forrasse-as a neve; cantassem de ramo a ramo calhandras e pintassilgos ou apenas enregelados pardais piassem, lá ia, ao romper d'alva, caminho do monte, com a velha sainha de saragoça e sócios nos pequeninos pés, a pastorinha Eudália.
Órfã, fora recolhida por má gente que, sem pena da sua idade frágil, mandava-a ao monte, com o gado, dando-lhe uma migalha de pão, e ai! dela se murmurava queixa.
“Faz frio!...”
“Eh! lorpa (pateta), bradavam-lhe, quem sabe se te havemos de engordar à beira do lume, como uma princesa? Não estão lá fora as árvores, que são também criaturas de Deus? Ou levas o gado ao monte ou saias duma vez desta casa, que aqui ninguém te viu nascer”.
E a coitada partia.
No tempo das flores era até um gozo aquele andar matinal por veigas virentes, no som das águas levadias que pareciam brincar nos seixos. Ai! dela, porém, quando o vento entrava a esfuziar gelado, levantando em remoinho as folhas mortas. Ainda assim cantava a pobrezinha, e, com as faces coradas, parecia haver agasalhado no corpo a primavera, saindo-lhe a voz dos passarinhos nos cantos que desferia, abrolhando-lhe as rosas vermelhas no rosto lindo, crescendo-lhe o trigo maduro nos cabelos de ouro, correndo as águas ligeiras em pranto dos seus olhos claros.
Falando às ovelhas magras lá ia, por atalhos fragueiros, tiritando, a descobrir restos de ervas que servissem de pasto ao seu rebanho. Entre as ovelhas, por ser linda e mansa, andava uma vaquinha branca, que era o desvelo da pastora. Mirrasse todo o pascigo (pastagem) ficando o terreno desnudo, como arrasado por fogo, sempre para a vaquinha havia um molho de feno.
Mal começava o outono melancólico, quando toda a gente da aldeia ia ao monte apanhar acendalhas (gravetos) e ramos para o lume, Eudália, descendo pelas veredas ásperas, à hora do crepúsculo, trazia feixes de feno e, como lhe perguntassem se fazia logo com tal palhada, respondia sorrindo:
— Tenha eu o catre bem fofo e caía a neve que cair, sopre o vento que soprar, dormirei quentinha.
No rigor do inverno, se alguém entrasse no palheiro em que dormia a pastora, acharia a vaquinha ruminando sobre o feno e a pequenita aconchegada e ela e, até o fim das neves, o leito de Eudália alimentava o animal que, com o calor do seu corpo branco, aquecia a sua amiga. Assim as duas atravessavam o inverno — a vaquinha farta, Eudália agasalhada.
A primavera entrara com o sol e as flores e toda a alegria festival dos passarinhos. Os sinos soavam na pureza do ar azul e toda a gente aldeã, com os seus trajos melhores, acudia à festa enchendo o adro onde se haviam instalado, em tendas, bufanheiros com sortimentos que deslumbravam — saias de pano fino, corpetes de alamares, arrecadas e cordões de ouro, rendas e sapatinhos tão êxitos que parecia incrível que fossem feitos para ser calçados.
“Talvez sejam para amêndoas“, dizia a pastorinha.
Quanta sedução! E os bufarinheiros (mascates) apregoavam os preços e cada arca que abriam deixava o povo verdadeiramente maravilhado.
Eudália atravessara a feira com o seu rebanho e, ainda que os olhos a levassem para, as tendas ricas, lá foi tristonhamente a caminho do monte. Uma manhã, remendando, com paciência, a sainha de saragoça e lembrando-se do que vira no adro, a pastorinha suspirou:
— Ai de mim! São tão felizes os que lá andam em baixo! Ainda que não comprem, sempre é um consolo olhar aquelas lindas coisas que os bufarinheiros trazem nos seus ceirões (cestos) e malas. Pobre de mim! nem posso parar onde cantam para que não riam da minha esfarrapada miséria os moços e as moças que pavoneiam tantas galas.
Escondendo o rosto com as mãos, rompeu a mísera em sentido pranto.
— Não te aflijas, disse-lhe uma voz ali perto.
Levantando sobressaltadamente a cabeça, à procura da pessoa que falara em tal ermo, onde não aparecia vivalma, viu Eudália a vaquinha que deixara de pastar e, imóvel, fitava-a com os olhos cheios de bondade. Bateu-lhe o coração e, pálida de medo, ia fugir quando a vaquinha docemente tomou:
— Não te assustes. Amiga melhor não tens do que eu, que te falo por graça de Deus. Muito tens sofrido, sendo digna de melhor sorte, porque és boa e os teus pensamentos são puros. És nova e, ainda que formosa como nenhuma, queres enfeitar-te. É justo. Não chores: aqui estou eu para valer-te. Toma o teu tarro (vaso de ordenha de leite), ordenha-me e verás o leite, saído de corpo virgem, mudar-se em luzentes moedas de prata. Leva-as e gasta-as como entenderes, e, sempre que tiveres necessidade de dinheiro, faze o que te disse e logo serás servida com abundância. Lembra-te, porém, do inverno e do feno que me sustenta nesse tempo de esterilidade. Dentro da maior ventura cumpre ter sempre presentes na memória os dias adversos.
A pastorinha não se decidia a mover-se e foi necessário que a vaquinha repetisse a ordem e até a impusesse para que ela tomasse o tarro e, acocorando-se, começasse a mungi-la.
Que leite claro e como rebrilhava à luz! O tarro pesava tanto que ela o depôs no chão e o leite sempre a jorrar. Quando a espuma transbordou a vaquinha disse:
– Despeja-o agora, toma as moedas, vai à feira e compra o que quiseres. Faze-te bela e sê feliz. Não te esqueças, porém, de mim. Aqui fico á tua espera. Poderás ser rica como a mais rica se não te descuidares do feno que me deve nutrir no inverno e, quanto mais me fortaleceres, tanto maior será a soma que de mim poderás tirar.
Tímida, a princípio, Eudália, levantou o tarro, que pesava; por fim despejou-o e centenas de moedas rolaram tilintando. Um tesouro! Deus do céu! Um tesouro. Encheu um saco e, rindo, cantando desceu o monte a correr. Foi direita à feira e, de tenda em tenda, comprou de tudo, gastando até à última moeda.
E que linda ficou com uma saia bordada, corpete de alamares, sapatinhos de veludo, arrecadas (brincos) e cordão de ouro!
Os da aldeia pasmaram quando a viram atirar moedas às mancheias ao balcão dos bufarinheiros e a gente que a havia agasalhado, a princípio com arrogância, com brandura depois, interrogou-a sobre a origem daquela fortuna, mas como Eudália guardasse o seu segredo força lhe foi pagar as ovelhas e a vaquinha branca, sendo despedida, por impura, da companhia dos que se diziam seus únicos protetores.
Riu-se a pastora e, sem ouvir as vozes que lhe lançavam de ingrata e perdida, meteu-se airosamente nas danças e não houve moça mais requisitada do que ela, que até os orgulhosos filhos dos rendeiros foram tirá-la para as quadrilhas.
Quando, noite alta, regressou à montanha, a vaquinha, que ruminava deitada sobre feno fresco, perguntou-lhe:
— Então, como te correu o dia?
— Feliz! Feliz! Como te agradeço, minha vaquinha branca, toda a alegria que experimentei. Diverti-me como nunca e estou bela como as princesas dos contos. Vi-me a um grande espelho, mais claro do que as fontes, e achei os meus olhos encantadores. Como são azuis! E esta saia? e este corpete? e estes sapatinhos? e estas joias? E, atirando os braços ao pescoço da vaquinha branca, pôs-se a beijá-la, contento.
Todas as manhãs, cedinho, lá ia com o tarro à teta da vaquinha branca e as moedas que tirava mal lhe chegavam para os desperdícios. Não perdia festas: viam-na em toda a parte. Corriam versões diversas sobre a fortuna de Eudália. Uns diziam que era pactuada com o demônio, outros que se perdera desonestamente; ela folgava alheia a tudo. Tinha a mina que lhe não faltava com as moedas, que lhe importava o mais?
E o estio ardeu esplêndido, entrou o outono e começaram a cair as folhas amarelas. Quando Eudália descia para as festas encontrava gente nos matos recolhendo, à pressa, galhos e ramos secos para a provisão do inverno.
Veio a neve, murcharam os campos. Uma manhã de grande frio, como Eudália passara a noite pensando em uma capa que vira e em certa propriedade que resolvera adquirir, farta, com vinha e trigo, pascigo e águas, onde a sua fortuna medraria em milhões, saltou do leito de folhas, corada e formosa, e saiu à procura da vaquinha branca.
Chamou-a, debalde! Os caminhos estavam vidrados de neve refletindo sinistramente o esqueleto das árvores, não corria arroio, não cantava pássaro — voz, só a triste do vento uivando pelos algares. E a vaquinha branca?
A pastora buscou-a em todo o bosque sem folhas e, depois de longo e fatigante caminhar, deu com a perdida que agonizava nas profundezas de um abismo pedregoso.
Precipitou-se chorando e, ao chegar junto da que a fizera venturosa, tomando-lhe a cabeça nos braços, chamou-a sentidamente. Abriu a vaquinha os olhos vasquejantes e, reconhecendo a pastora, disse-lhe:
— Imprevidente, esqueceste o meu feno. Apesar das minhas constantes recomendações, não te lembraste do inverno. Ele aí está, rigoroso e em miséria e eu morro à míngua e comigo. Foi teu descuido, vai-se a tua fortuna. Se houvesses sido prudente, tecia, hoje agasalho e fartura, serias rendeira, dona de terras e de searas e eu viveria longos anos enchendo o teu tarro de moedas. Os prazeres desvairaram-te — tudo esqueceste nos bailes o nos folguedos das feiras e agora, pobre e sem amigos, ficas no monte solitária — sem pão, sem lar, com a lembrança apenas dos prazeres que gozaste. Foste imprudente, Eudália.
Disse e expirou. Pobre pastora!
Uma tarde, cansada de chorar e faminta, descia o monte para esmolar um pão, quando a neve a envolveu sepultando-a em frio.
Fonte: Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924. Disponível em domínio público.