sábado, 18 de novembro de 2023

Coelho Neto (A vaquinha branca)

Por aqueles agros, fosse de verão, fosse de inverno, tivessem as árvores a sua verde opulência 
ou forrasse-as a neve; cantassem de ramo a ramo calhandras e pintassilgos ou apenas enregelados pardais piassem, lá ia, ao romper d'alva, caminho do monte, com a velha sainha de saragoça e sócios nos pequeninos pés, a pastorinha Eudália.

Órfã, fora recolhida por má gente que, sem pena da sua idade frágil, mandava-a ao monte, com o gado, dando-lhe uma migalha de pão, e ai! dela se murmurava queixa.

“Faz frio!...”

“Eh! lorpa (pateta), bradavam-lhe, quem sabe se te havemos de engordar à beira do lume, como uma princesa? Não estão lá fora as árvores, que são também criaturas de Deus? Ou levas o gado ao monte ou saias duma vez desta casa, que aqui ninguém te viu nascer”.

E a coitada partia.

No tempo das flores era até um gozo aquele andar matinal por veigas virentes, no som das águas levadias que pareciam brincar nos seixos. Ai! dela, porém, quando o vento entrava a esfuziar gelado, levantando em remoinho as folhas mortas. Ainda assim cantava a pobrezinha, e, com as faces coradas, parecia haver agasalhado no corpo a primavera, saindo-lhe a voz dos passarinhos nos cantos que desferia, abrolhando-lhe as rosas vermelhas no rosto lindo, crescendo-lhe o trigo maduro nos cabelos de ouro, correndo as águas ligeiras em pranto dos seus olhos claros.

Falando às ovelhas magras lá ia, por atalhos fragueiros, tiritando, a descobrir restos de ervas que servissem de pasto ao seu rebanho. Entre as ovelhas, por ser linda e mansa, andava uma vaquinha branca, que era o desvelo da pastora. Mirrasse todo o pascigo (pastagem) ficando o terreno desnudo, como arrasado por fogo, sempre para a vaquinha havia um molho de feno.

Mal começava o outono melancólico, quando toda a gente da aldeia ia ao monte apanhar acendalhas (gravetos) e ramos para o lume, Eudália, descendo pelas veredas ásperas, à hora do crepúsculo, trazia feixes de feno e, como lhe perguntassem se fazia logo com tal palhada, respondia sorrindo:

— Tenha eu o catre bem fofo e caía a neve que cair, sopre o vento que soprar, dormirei quentinha. 

No rigor do inverno, se alguém entrasse no palheiro em que dormia a pastora, acharia a vaquinha ruminando sobre o feno e a pequenita aconchegada e ela e, até o fim das neves, o leito de Eudália alimentava o animal que, com o calor do seu corpo branco, aquecia a sua amiga. Assim as duas atravessavam o inverno — a vaquinha farta, Eudália agasalhada.

A primavera entrara com o sol e as flores e toda a alegria festival dos passarinhos. Os sinos soavam na pureza do ar azul e toda a gente aldeã, com os seus trajos melhores, acudia à festa enchendo o adro onde se haviam instalado, em tendas, bufanheiros com sortimentos que deslumbravam — saias de pano fino, corpetes de alamares, arrecadas e cordões de ouro, rendas e sapatinhos tão êxitos que parecia incrível que fossem feitos para ser calçados.

“Talvez sejam para amêndoas“, dizia a pastorinha.

Quanta sedução! E os bufarinheiros (mascates) apregoavam os preços e cada arca que abriam deixava o povo verdadeiramente maravilhado.

Eudália atravessara a feira com o seu rebanho e, ainda que os olhos a levassem para, as tendas ricas, lá foi tristonhamente a caminho do monte. Uma manhã, remendando, com paciência, a sainha de saragoça e lembrando-se do que vira no adro, a pastorinha suspirou:

— Ai de mim! São tão felizes os que lá andam em baixo! Ainda que não comprem, sempre é um consolo olhar aquelas lindas coisas que os bufarinheiros trazem nos seus ceirões (cestos) e malas. Pobre de mim! nem posso parar onde cantam para que não riam da minha esfarrapada miséria os moços e as moças que pavoneiam tantas galas.

Escondendo o rosto com as mãos, rompeu a mísera em sentido pranto.

— Não te aflijas, disse-lhe uma voz ali perto. 

Levantando sobressaltadamente a cabeça, à procura da pessoa que falara em tal ermo, onde não aparecia vivalma, viu Eudália a vaquinha que deixara de pastar e, imóvel, fitava-a com os olhos cheios de bondade. Bateu-lhe o coração e, pálida de medo, ia fugir quando a vaquinha docemente tomou:

— Não te assustes. Amiga melhor não tens do que eu, que te falo por graça de Deus. Muito tens sofrido, sendo digna de melhor sorte, porque és boa e os teus pensamentos são puros. És nova e, ainda que formosa como nenhuma, queres enfeitar-te. É justo. Não chores: aqui estou eu para valer-te. Toma o teu tarro (vaso de ordenha de leite), ordenha-me e verás o leite, saído de corpo virgem, mudar-se em luzentes moedas de prata. Leva-as e gasta-as como entenderes, e, sempre que tiveres necessidade de dinheiro, faze o que te disse e logo serás servida com abundância. Lembra-te, porém, do inverno e do feno que me sustenta nesse tempo de esterilidade. Dentro da maior ventura cumpre ter sempre presentes na memória os dias adversos.

A pastorinha não se decidia a mover-se e foi necessário que a vaquinha repetisse a ordem e até a impusesse para que ela tomasse o tarro e, acocorando-se, começasse a mungi-la.

Que leite claro e como rebrilhava à luz! O tarro pesava tanto que ela o depôs no chão e o leite sempre a jorrar. Quando a espuma transbordou a vaquinha disse:

– Despeja-o agora, toma as moedas, vai à feira e compra o que quiseres. Faze-te bela e sê feliz. Não te esqueças, porém, de mim. Aqui fico á tua espera. Poderás ser rica como a mais rica se não te descuidares do feno que me deve nutrir no inverno e, quanto mais me fortaleceres, tanto maior será a soma que de mim poderás tirar.

Tímida, a princípio, Eudália, levantou o tarro, que pesava; por fim despejou-o e centenas de moedas rolaram tilintando. Um tesouro! Deus do céu! Um tesouro. Encheu um saco e, rindo, cantando desceu o monte a correr. Foi direita à feira e, de tenda em tenda, comprou de tudo, gastando até à última moeda.

E que linda ficou com uma saia bordada, corpete de alamares, sapatinhos de veludo, arrecadas (brincos) e cordão de ouro!

Os da aldeia pasmaram quando a viram atirar moedas às mancheias ao balcão dos bufarinheiros e a gente que a havia agasalhado, a princípio com arrogância, com brandura depois, interrogou-a sobre a origem daquela fortuna, mas como Eudália guardasse o seu segredo força lhe foi pagar as ovelhas e a vaquinha branca, sendo despedida, por impura, da companhia dos que se diziam seus únicos protetores.

Riu-se a pastora e, sem ouvir as vozes que lhe lançavam de ingrata e perdida, meteu-se airosamente nas danças e não houve moça mais requisitada do que ela, que até os orgulhosos filhos dos rendeiros foram tirá-la para as quadrilhas.

Quando, noite alta, regressou à montanha, a vaquinha, que ruminava deitada sobre feno fresco, perguntou-lhe:

— Então, como te correu o dia?

— Feliz! Feliz! Como te agradeço, minha vaquinha branca, toda a alegria que experimentei. Diverti-me como nunca e estou bela como as princesas dos contos. Vi-me a um grande espelho, mais claro do que as fontes, e achei os meus olhos encantadores. Como são azuis! E esta saia? e este corpete? e estes sapatinhos? e estas joias? E, atirando os braços ao pescoço da vaquinha branca, pôs-se a beijá-la, contento.

Todas as manhãs, cedinho, lá ia com o tarro à teta da vaquinha branca e as moedas que tirava mal lhe chegavam para os desperdícios. Não perdia festas: viam-na em toda a parte. Corriam versões diversas sobre a fortuna de Eudália. Uns diziam que era pactuada com o demônio, outros que se perdera desonestamente; ela folgava alheia a tudo. Tinha a mina que lhe não faltava com as moedas, que lhe importava o mais?

E o estio ardeu esplêndido, entrou o outono e começaram a cair as folhas amarelas. Quando Eudália descia para as festas encontrava gente nos matos recolhendo, à pressa, galhos e ramos secos para a provisão do inverno.

Veio a neve, murcharam os campos. Uma manhã de grande frio, como Eudália passara a noite pensando em uma capa que vira e em certa propriedade que resolvera adquirir, farta, com vinha e trigo, pascigo e águas, onde a sua fortuna medraria em milhões, saltou do leito de folhas, corada e formosa, e saiu à procura da vaquinha branca.

Chamou-a, debalde! Os caminhos estavam vidrados de neve refletindo sinistramente o esqueleto das árvores, não corria arroio, não cantava pássaro — voz, só a triste do vento uivando pelos algares. E a vaquinha branca?

A pastora buscou-a em todo o bosque sem folhas e, depois de longo e fatigante caminhar, deu com a perdida que agonizava nas profundezas de um abismo pedregoso.

Precipitou-se chorando e, ao chegar junto da que a fizera venturosa, tomando-lhe a cabeça nos braços, chamou-a sentidamente. Abriu a vaquinha os olhos vasquejantes e, reconhecendo a pastora, disse-lhe:

— Imprevidente, esqueceste o meu feno. Apesar das minhas constantes recomendações, não te lembraste do inverno. Ele aí está, rigoroso e em miséria e eu morro à míngua e comigo. Foi teu descuido, vai-se a tua fortuna. Se houvesses sido prudente, tecia, hoje agasalho e fartura, serias rendeira, dona de terras e de searas e eu viveria longos anos enchendo o teu tarro de moedas. Os prazeres desvairaram-te — tudo esqueceste nos bailes o nos folguedos das feiras e agora, pobre e sem amigos, ficas no monte solitária — sem pão, sem lar, com a lembrança apenas dos prazeres que gozaste. Foste imprudente, Eudália. 

Disse e expirou. Pobre pastora!

Uma tarde, cansada de chorar e faminta, descia o monte para esmolar um pão, quando a neve a envolveu sepultando-a em frio.

Fonte: Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924. Disponível em domínio público.

Machado de Assis (Pobre Cardeal!)

Martins Netto costumava dizer que era o homem mais alegre do século, e toda a gente confirmava essa opinião. Ninguém lhe vira nunca nenhuma sombra de melancolia. Já maduro, era ainda o melhor acepipe (aperitivo) dos jantares, um repositório de ditos picantes, anedotas joviais, repentes crespos e crus; mas, além disso, que é a despesa exterior da alegria, ele a tinha em si mesmo, no sangue e na vida. Pouco antes de morrer, em 1878, dizia ele a um amigo íntimo, que lhe invejava o temperamento:

— Sou alegre, muito alegre; mas se disser a você que a isto mesmo devo uma grande amargura...

Calou-se, deu duas voltas, e tornou ao amigo:

— Vou contar-lhe uma coisa secreta, como se me confessasse a um padre. Sabe que fui um dos julgadores do famoso processo de letras falsas João da Cruz, em 1851. Houve nessa sessão do júri muitas causas importantes, que eu julguei com a inflexibilidade do costume, e condenei muita gente, do que me não arrependo.

Na véspera de entrar o processo do João da Cruz, estive com um tal capitão José Leandro, que morava na Rua da Carioca; falamos do processo, das letras, de mil circunstâncias, que me esqueceram, e, finalmente, do próprio João da Cruz, que o capitão José Leandro dizia conhecer desde menino. O pai deste capitão foi um general português, que veio com o rei em 1808, e aqui casou pouco depois com uma senhora de Cantagalo. José Leandro era menino quando João da Cruz apareceu em casa dele, na Rua de Mata-cavalos; lembrava-se que ele os festejava e adulava muito; lembrava-se também que ali pelos fins de 1816 andava João da Cruz muito por baixo, beirando a miséria, roupa de ano, amarela de uso, mal remendada...

E então, para mostrar-me que o João da Cruz nascera com o gênio da fraude e da duplicidade, contou-me que um dia, em 1817, estando ele e a mãe em casa, apareceu ele ali angustiado, desvairado, bradando:

— Pobre cardeal! pobre cardeal! Ah! minha senhora D. Luísa, que grande desgraça! pobre cardeal!

D. Luísa levantou-se assustada, e perguntou-lhe o que era, se falava do general...

— Não, acudiu João da Cruz, não é nada com o digno marido de V. Excia.; falo do cardeal! pobre cardeal!

— Mas que cardeal?

João da Cruz tinha-se sentado, suspirando grosso, esfregando os olhos com um trapo de lenço. A dona da casa respeitou-lhe a dor, que parecia tão profunda e deixou-se estar de pé, esperando. Mas não tardou que ouvissem no saguão da casa um rumor de espada; era o general que entrava. Daí a pouco estava ele à porta da saleta, e dizia à mulher que acabara de morrer o núncio (espécie de embaixador apostólico), cardeal Caleppi; morrera de um ataque apoplético.

D. Luísa olhou espantada para ele e para João da Cruz. Foi só então que o general o viu, a alguma distância, de pé, cheio de respeito e melancolia.

— V. Excia. já sabe então da triste notícia? Morreu um santo homem, santo e magnífico, sem desfazer nas pessoas que me ouvem; ah! um varão digno do céu!

— Entrou aqui, disse D. Luísa, há poucos instantes, fora de si com a morte do cardeal... Eu nem me lembrava que cardeal podia ser. Se ele tivesse dito que morreu o núncio...

— É verdade que entrei fora de mim; a tal ponto, que pratiquei a grosseria de sentar-me diante de V. Excia., estando V. Excia. de pé; mas a dor desvaira. Acabavam de dar-me a notícia, ali ao pé da Lagoa da Sentinela, e fiquei como não podem imaginar; fiquei tonto, entrei aqui tonto.

O general sentou-se espantado; disse ao João da Cruz que se sentasse também, e perguntou-lhe desde quando conhecia o cardeal, e se era assim tão amigo dele. João da Cruz não respondeu logo verbalmente; fez primeiro um gesto de afirmação e saudade; depois levou o trapo aos olhos. D. Luísa, sentada ao lado do marido, olhava compassivamente para o pobre homem. Este, afinal, confessou que era amigo do grande prelado, por benefícios que recebera dele em Lisboa. Aqui não o procurou senão duas vezes: logo que chegou, em 1814, e quando uma vez Sua Eminência estivera doente. Se nunca falou disso ao honrado general, foi porque as humilhações por que passou e lhe trouxeram o conhecimento e o trato do cardeal (que Deus tinha!) foram amargas e dolorosas.

— Bem, mas agora...

— Agora direi tudo, se V. Excia. assim o ordena.

E depois de limpar os olhos vermelhos:

— Foi em Lisboa, ali por 1806; tendo chegado de Gênova e passando por alto uma gramática italiana, lembrou-me ensinar esta língua. Confesso que pouco ou quase nada sabia dela; mas ensinando ia aprendendo. Nisto fui denunciado como espião dos franceses, e metido na cadeia. Imagine V. Excia. com que dor recebi semelhante afronta; felizmente, provado o engano da denúncia, fui solto daí a poucos dias. Contente da justiça que me fizeram, fiquei admirado da prontidão, e cá fora é que soube que esta fora devida ao cardeal. Corri a agradecer-lhe o favor; mas Sua Eminência negou-o uma e duas vezes, até que confessou a verdade. Desde que soube que a denúncia era falsa correu logo ao ministro, para obter a minha soltura, e obteve-a. Mas qual foi a causa de inspirar a Vossa Eminência tão singular beneficio? perguntei eu. Confessou-me que só porque soubera que eu ensinava italiano; só por isso, e sem que me conhecesse, estimava-me.

— Ah! bem compreendo, disse o general.

— Foi o que me ligou a ele; fez-me depois alguns obséquios, e quando eu lhe confessei que pouco italiano sabia, e que me dei a ensiná-lo com o fim de propagar o amor de tão divino idioma, então ele propôs-me dar algumas lições. Sobrevieram os acontecimentos de 1808. A corte transportou-se ao Brasil, e o cardeal, no ato de embarcar, instou comigo para que viesse também; recusei, dizendo-lhe que ia alistar-me no exército que devia expulsar o pérfido invasor...

— Bravo! disse o general.

— Sua Eminência, não podendo arrancar-me daquele propósito, despediu-se de mim com muitas lágrimas, e deu-me em lembrança um exemplar de um poema em italiano, anotado por suas sagradas mãos, livro que me foi roubado, tempos depois, por um soldado de Napoleão, um miserável... Para que o queria ele? Naturalmente ia vendê-lo. Que preço podia dar esse herege a um objeto de tanta valia?

João da Cruz disse aqui coisas duras ao soldado e a Napoleão, chamando-os literalmente ladrões de estrada. Concluída a descompostura, levou o trapo aos olhos; o general procurou consolá-lo.

— A morte é caminho de nós todos, disse ele, e demais o núncio já estava com os seus setenta e tantos anos. Em todo o caso aplaudo os seus sentimentos, são naturais de um bom coração.

— Muito obrigado, acudiu João da Cruz; pode V. Excia. estar certo de que se me dissesse o contrário, eu duvidaria da minha dor. E tanto prezo o seu conselho, que desejava saber se pareceria afetação que eu deitasse luto por tão grande homem.

— Não me parece que seja...

— Não? Pois vou pô-lo; não direi a ninguém o motivo, como digo aqui, pois é só para a alma dele, que me agradecerá... Pobre cardeal... Vou ver...

Como o general se levantasse e fosse para dentro, João da Cruz ficou um pouco vacilante, ao que parece; então a mãe de José Leandro disse-lhe que ficasse para jantar.

— Agradeço... agradeço... Vou ver se arranjo... se posso...

Disse isso, entre pausas e suspiros, olhando para a roupa; mas D. Luísa pegou no filho pela mão e retirou-se da sala. João da Cruz saiu; chegando ao saguão parou e não vendo o porteiro que estava no pátio, ao fundo, e que depois contou o caso à família, fez um gesto de desespero, dizendo:

— Esta gente ainda está mais defunta que o cardeal.

José Leandro cuidou logo de ver as exéquias, e pediu ao pai que o levasse; o pai noticiou à mulher que El-Rei ordenara grandes honras ao finado; o cadáver, embalsamado, ficaria em casa três dias, celebrando-se diante dele missas e responsos. O enterro seria em Santo Antônio. Não se falava de outra coisa. Mas nessa noite aconteceu adoecer o general; sobre a madrugada foi sangrado; a moléstia agravou-se; era impossível levar o filho às exéquias. A mãe não havia de abandonar o marido. José Leandro, criado a mimos, teimava em querer ir, ainda que com um escravo; mas a mãe vendo que um escravo não poderia arranjar ao filho algum bom lugar na igreja, pediu a João da Cruz o obséquio de o levar a Santo Antônio.

— Obséquio? diga obrigação, minha senhora; mas V. Excia. sabe... que... que... eu... não poderei... sem... 

O general concordou que era constrangê-lo a assistir ao enterro de um amigo que lhe deixara tantas saudades... E voltando-se para o pequeno, prometeu levá-lo à procissão de S. Sebastião, que era muito bonita, e que ele nunca vira. José Leandro reprimiu as lágrimas; ficava uma coisa pela outra; mas João da Cruz fez logo uma descrição vivíssima das exéquias, disse que seriam tão pomposas ou mais que as da rainha D. Maria I, no ano anterior; falou em cinco bispos, muitos frades, tochas e coches reais, tropa... uma coisa única. O menino agarrou-se-lhe que o levasse. João da Cruz não se negava a isso, uma vez que era vontade de pessoa tão distinta; nem o cadáver de um amigo eminente era espetáculo de fazer recuar a uma alma rija. Ao contrário, esse último encontro dava fortaleza ao coração...

— Bem, se não há dúvida... disse o general.

Lá isso, pedia licença para dizer que sim, que havia sempre uma dúvida, uma triste dúvida, uma coisa que o vexava; não lhe perguntasse o que era, não o podia dizer sem lágrimas... Mas se o general insistisse em saber, ele fecharia a boca, falariam por ele aquelas miseráveis calças de cor. Tinham sido pretas algum dia, mas o tempo... e tudo o mais, tudo, até os rasgões dos sapatos. Era luto aquilo? era luto apropriado a um príncipe da Igreja? etc., etc. Não, não; o menino que esperasse a procissão, que fosse a ela com seu ilustre pai; deixasse as exéquias, por mais que fossem de estrondo...

— De estrondo? interrompeu o pequeno.

E chorando, chorando, pediu outra vez que o levasse. O pai na cama agitava-se, sem saber o que fizesse; era avaro, diziam, e custava-lhe abrir mão de algumas patacas. Teimou com o filho, o filho com ele, até que, desesperado:

— João da Cruz, disse o pai, entenda-se com esta senhora, a respeito do luto; leve uma recomendação minha ao alfaiate e ao sapateiro. Também precisa de chapéu? Há de haver algum servido cá em casa... Ela que lhe dê... Vão e deixem-me em paz!

Foi assim que ele arranjou a roupa nova, — embora de luto — luto que fosse, era nova. José Leandro lembrava-se ainda das exéquias, quando me contou este caso; tinha diante de si a figura pomposa de João da Cruz, vendo e ouvindo tudo com interesse de pessoa estranha. Ensinava-lhe o nome de tudo, cerimônias e alfaias, os dois bispos, que eram cinco ou seis, mas ele só se lembrava do de Angola, e do de Pernambuco, e os das ordens religiosas, e os de alguns cônegos. De quando em quando esticava o braço, e mirava-se. Com o andar das horas ficou até alegre. Cá fora, ladeira abaixo, vinha falando da “bonita festa” e recitando-lhe pedaços inteiros do sermão. No Largo da Carioca entraram na sege (carruagem) que os esperava; à porta de casa, é que João da Cruz pôs outra vez os óculos da melancolia, desceu trôpego e entrou.

Não imagina como achei esta anedota engraçada; José Leandro contava bem, é certo, mas toda essa história pareceu-me engraçadíssima. Ria-me a não poder mais, e repetia a exclamação que fez render a roupa ao outro. Pobre cardeal! Já entendeste que ele nunca trocou uma só palavra com o núncio, e se o viu algum dia, foi na igreja ou de coche; mas mentia com tanto aprumo, a invenção era tão graciosa e pronta, a peta tão bem concertada, aproveitados todos os incidentes, que era difícil não cair na esparrela. Mas, realmente, a coisa tinha graça; agora mesmo, após tantos anos, acho-lhe muito pico (ácido). Mas, vamos ao resto; eis aqui o que eu só confiaria a Deus ou a você.

No dia seguinte fui para o júri, com a anedota fresca de memória, até porque sonhara com ela, tanto que acordei rindo. Cheguei a tempo, e fui logo sorteado para o conselho de jurados. Quando vi o réu, não pude deixar de sorrir. Era aquilo mesmo, devia ter sido assim no dia do óbito do núncio; cabeça um pouco torta, olhos mortificados e baixos, tipo de astúcia. Não parecia velho, apesar dos anos longos e desvairados; devia contar uns sessenta e tantos, perto de setenta. Trazia raspado o lábio superior, e toda a mais barba, grisalha e fina, dava-lhe ao rosto muita gravidade. De quando em quando tomava rapé; reparei logo que a caixa de rapé era de ouro.

O interrogatório durou cerca de quarenta minutos. João da Cruz respondeu claro e firme, negou a autoria da falsificação, explicou algumas contradições que lhe assacaram. Confesso-lhe que ouvi as respostas dele com interesse e sem desprazer. De quando em quando a anedota do cardeal vinha dar uma nota graciosa à situação. Imaginava-o então em Mata-cavalos, no tal dia, em frente do general, referindo as petas de Lisboa, as desculpas, as lágrimas aparentes, até o desfecho. Lá, engenhoso era ele, e divertido. Não pude atender à leitura do processo; ouvi algumas páginas, depois disse a mim mesmo que os autos eram grossos, e a leitura fastiosa...

Não era isto; era a narração dos feitos do réu que começava a constranger-me. Para distrair-me entrei a mirar a beca do advogado, a cara dos meus colegas do conselho, a cabeleira do escrivão, as suíças do juiz, e finalmente o retrato do imperador, que pendia da parede. Aqui foi maior a distração, porque cuidei de recordar as festas da coroação, tanto as públicas como as particulares, entre estas um banquete a que fui, e no qual ouvi recitar duas odes bem bonitas. Quis recompô-las e não pude; trabalhei de memória, e fui arrancando ora um verso, ora outro, alguns truncados, e quando dei por mim, acabara a leitura.

Ouvi depois a acusação, que me deixou em alternativas de acordo e desacordo; veio, porém, a defesa e equilibrou-me o espírito. Minha alma sentia grelar (germinar) um grão de simpatia, ou outra coisa, que desafiava a causa do João da Cruz. Não podia olhar para ele sem sorrir; de uma vez, para não rir alto, sufoquei uma tosse com o lenço. A exposição do juiz durou pouco mais de quarto de hora. Os autos foram entregues ao conselho e nós saímos da sala.

Lá, na sala secreta, os debates foram longos e complicados, mas não tanto como na minha consciência; aqui é que era preciso decidir. A justiça dizia-me que condenasse, a simpatia pedia-me que absolvesse, e o diabo — não podia ser outra pessoa — o diabo clama do fundo do meu ser estas palavras: “Pobre Cardeal! Ah! minha senhora D. Luiza!” que grande desgraça! Pobre Cardeal! E a minha consciência ria, porque era amiga de rir. Já não negava o crime, mas punha na outra concha da balança a vergonha pública, e a prisão longa; depois, os velhos anos do pobre diabo...

Enfim, contados os votos, acharam-se divididos seis que sim, seis que não; ia decidir o voto de Minerva, e o réu foi absolvido. Saí contente de mim mesmo; se votasse contra, teria feito inclinar a balança, e era certa a condenação. Saí alegre; não contei nada do que se passara dentro de mim, senão a você agora; mas a anedota do cardeal lá foi correr mundo.

E foi ela que trouxe a absolvição de João da Cruz; foi essa empulhação (trapaça) de 1817, jovial e pífia, que deu ao réu de 1851 a minha simpatia e o meu voto, não por ser pífia, mas por ser jovial. Os anos, porém, foram passando, e agora ainda que sou o homem mais alegre do século, acho em mim este ponto negro de melancolia. Quem sabe? Pode ser que este erro me condene no outro mundo.

— Tudo são mistérios indecifráveis, respondeu o amigo íntimo do Martins Netto. Os fatos e os tempos ligam-se por fios invisíveis. Suponha que o João da Cruz não tem empulhado o general em 1817, não teria sido absolvido pelo seu voto em 1851, você não teria uma ponta de remorso, nem eu este conto.

— Pobre cardeal!

Fonte: Machado de Assis. Relíquias de Casa Velha, publicado em 1938. Publicado originalmente em A Gazeta de Notícias, 6 de julho de 1886. Disponível em Domínio Público

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Mensagem na garrafa – 37 -


António José Barradas Barroso
Parede/Portugal

A JANELA DO MEU QUARTO

Abro, no quarto, a janela,
de manhã, de madrugada,
tenho uma vista tão bela,
tão serena, tão singela,
que a alma fica enamorada.

O sol desponta, defronte,
em luzinha tão travessa,
que até o verde do monte
brilha mais, no horizonte
deste dia que começa.

E a brisa surge, teimosa,
num breve correr, risonho,
beija a erva, abraça a rosa,
sopra a folhinha, ansiosa,
vem carregada de sonho.

Já há pombos arrulhando,
são dois, à volta, no chão,
ele, a beleza mostrando,
ela, vaidosa, acenando
ora num sim, ora não.

Lancei, por todo o lugar,
umas quantas vitualhas
que os pardais, a saltitar,
buscam fazer um manjar
daquelas poucas migalhas.

E o gato, cheio de cobiça,
perante tanto alvoroço,
pensa, com certa preguiça,
que, nesta calma mortiça,
já tem, à frente, o almoço.

As folhas das oliveiras
no quintal, à minha frente,
viram-se ao sol, faceiras,
abrem-se de mil maneiras,
sorriem pra toda a gente.

Longos minutos me quedo
sem pensar na despedida
porque há uma flor sem medo
que desvenda o seu segredo,
despertando para a vida.

Ergue-se como um farol
na linda cor que irradia
e, por isso, a aquece o sol
quando escuta o rouxinol
lançar trinos de alegria.

Então, fica-me, dessa hora,
olhos erguidos aos céus,
a certeza de que, agora,
ao ver uma nova aurora,
eu digo obrigado a Deus.

Depois desta comunhão
é, com saudade, que parto,
rezo uma última oração
e fecho, com lentidão,
a janela do meu quarto.

Monsenhor Orivaldo Robles (Desculpe, sim?)

“Homo sum, humani nihil a me alienum puto” (Sou homem, nada do que é humano eu considero estranho a mim). A sentença é de Terêncio (185-159 a. C.), poeta e dramaturgo romano. Posto no fim da oração, como é praxe em latim, um curioso verbete nada tem a ver com o que algum apressadinho imaginou. É só a primeira pessoa singular do modo indicativo do verbo “putare”, sinônimo de pensar, achar, considerar. Terêncio afirmava que, sendo humano, ele não se via como melhor do que ninguém. Qualquer falta cometida por alguém ele também poderia cometer.

Aprendi essa verdade na infância. Estou convencido que não existe barbaridade praticada por outrem que eu não possa repetir. Não sou melhor que os outros. Nem tinha por quê. Estou sujeito ao erro como qualquer mortal. 

Alguém modificou um pouco o dito de Terêncio. É comum ouvirmos: “Sou humano; tenho o direito de errar”. Nada disso. Ninguém tem direito de errar. O erro não é um direito, mas uma trágica possibilidade da condição humana. Bom seria que nunca fizéssemos maldade nenhuma. Infelizmente, não é assim. Porque nossa natureza foi ferida pelo pecado, praticamos mais facilmente o mal do que o bem. Não corrija uma criança; deixe-a crescer sem limites para ver o que acontece.

Desde cedo temos que combater o mal que nos alicia. Se não for combatido, ele cresce e se refina. Se não fazemos esforço para vencê-lo, ele vai grudando-se em nós até se tornar conatural. Como arbusto que cresce sem escora nem poda, torna-se árvore adulta, sim, mas torta. Aí, meu amigo, pode esquecer. O tempo solidifica os vícios. Não à toa nosso povo inventou um provérbio engraçado: “O diabo é sábio não por ser diabo, mas por ser velho”.

A sabedoria cristã recomenda pelejar sem trégua contra nossa tendência ao pecado. Falar de pecado hoje é politicamente incorreto. Parece coisa de gente atrasada. Só que não adianta, nossa natureza está sempre sujeita à possibilidade de pecar. No início desta semana, o papa Francisco pregou: “Nós somos homens em tensão. Somos também homens contraditórios e incoerentes, pecadores, todos. Mas homens que querem caminhar sob o olhar de Jesus. Nós somos pequenos, somos pecadores, mas queremos militar sob a bandeira da cruz […]. Nós somos egoístas. Queremos, no entanto, viver uma vida agitada por grandes aspirações. Renovemos a nossa oblação ao eterno Senhor do universo para que, com a ajuda da sua Mãe gloriosa, possamos desejar e viver os sentimentos de Cristo, que se esvaziou a si mesmo”.

Sei bem do que Francisco está falando. Há décadas venho lutando contra o velho homem que, segundo o apóstolo Paulo (Ef 4,22), carregamos dentro de nós. E como ele resiste! Há anos eu devia tê-lo vencido. De muitos pecados o Senhor me livrou por pura bondade. Mas meu estopim curto – o sangue espanhol dos antepassados – esse continua a me pregar peças. Até nesta altura da vida.

Não tenho problema em reconhecer meus erros. Nem me constrange pedir desculpas. Porém é enfadonho repetir aquilo que, há muito, eu já devia ter superado. Ainda bem que Deus me cercou de pessoas compreensivas. Tantas vezes pedi desculpas (até perdão, e em público, como podem testemunhar os que me conhecem), que já podiam ter-se cansado.

Meus pedidos sempre foram sinceros e doloridos. Só quem o carrega é que sabe quanto dói este pobre barro de que somos feitos.

Caldeirão Poético LXXII


Colbert Rangel Coelho
Pitangui/MG, 1925 - 1975, Rio de Janeiro/RJ

O LUAR DE MINHA TERRA

Neste luar de minha terra vejo
matizes de saudade pelo espaço,
na evocação do meu primeiro beijo,
na timidez do meu primeiro abraço.

Este luar desperta meu desejo
e volto à juventude; e, passo a passo,
eis-me à beira do cais, no rumorejo
de um passado feliz que eu mesmo traço.

À tua espera, minha grande ausente,
pelo facho de luz que vem da serra,
vejo que surges como antigamente.

E, quando surges, neste mesmo cais,
revivem no luar de minha terra
noites distantes que não voltam mais.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Colombina 
(Adelaide Schloenbach Blumenschein)
São Paulo/SP, 1882 – 1963

ESSE AMOR...

Há um abismo entre nós. E apesar dessa falta
de ventura e de paz, nosso amor continua...
Cada dia é maior, é mais forte e mais alta
e imperiosa a paixão que em nosso sangue estua.

Longe de ti, meu ser emocionado exalta
em rimas de ouro e sol — cada carícia tua!
E em meu verso, integral, canta, fulge, ressalta
o infinito de amor que o teu nome insinua...

Não me podes amar como eu quisera. É certo.
Mas não existem leis, nem certidões, nem peias,
quando os teus olhos beijo e as tuas mãos aperto.

Tardas... Mas, quando vens, eu sinto que me queres,
que pela minha voz, pelo meu beijo anseias,
e sou a mais feliz de todas as mulheres!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Gentil Fernando de Castro
Cruzeiro/SP, 1899 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

NO ÚLTIMO ENCONTRO

Custa-me muito te dizer, mas digo,
porque é preciso, de qualquer maneira:
do que era, e sempre foi, do bem antigo,
já quase nada resta, sem que eu queira.

Fundas mágoas, eu sei, trazes contigo
e não hás de sofrer a vida inteira.
O amor deve ser bênção, não castigo,
e ainda mais luz, talvez, quando é cegueira.

De tudo que passou, fique a saudade:
na sua silenciosa eternidade
os sonhos dos que amaram, viverão.

Toda saudade é uma segunda vida...
E, mesmo o amor que deixa uma ferida,
deixa um resto de sol no coração.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Hecilda Clark
Porto Alegre/RS, 1897 –  1990,  Rio de Janeiro/RJ

CORAÇÃO

Não tenho culpa deste amor fremente
em seu ritmo ardoroso, acelerado...
Tudo em redor de mim, convulsionado,
e eu viva e amando o amor, tão loucamente!

Quando assomaste sonhadoramente,
o coração, que fora imunizado
contra todo o impossível; rebelado,
se apaixonou por ti, como um demente!

E nada o demoveu se, nem cansaço
sentiu, nesse correr vertiginoso
que nos conduz à morte a cada passo...

Vivo de amar-te, alucinadamente,
aos apelos do teu amor grandioso...
— Coração de Poeta é impenitente...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Rômulo Cavalcante Mota
Rio de Janeiro/RJ

SE NÃO FORES...

O instante da partida se avizinha...
Pensavas ir embora de surpresa;
sem dar adeus, ias talvez, sozinha,
deixando-me coberto de tristeza...

Já não és meu amor, já não és minha...
No entanto, o adeus faz parte da nobreza;
não podes esquecer que, em beijos, tinha
aos meus braços teu corpo de princesa...

No delírio nervoso dos lamentos
eu te ofereço, mesmo por momentos,
lírios divinos, bálsamos de amores.

Faço versos, sacio os teus desejos,
de nossas bocas nascerão mais beijos
e serei teu escravo... SE NÃO FORES...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Swami Vivekananda
Índia, 1863 – 1902 

A PARTIDA

Lembro-me bem de quando foste embora,
o mar sereno e o calmo sol de estio...  
Um bando de gaivotas, erradio,
dizia coisas pelo céu em fora...

Dolente ondulação de um vento frio
beijava os lábios da manhã sonora;
porém, ao ver-te à tolda do navio,
penso no adeus... e tudo me apavora!

Eu te abracei, o coração gemendo,
os lábios macerados; mãos tremendo
estrangulavam-me profundas mágoas...

Um silvo agudo!... Colhem-se as amarras...
Há lenços brancos em torções bizarras...
E lá se foi a nau cortando as águas...

Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Antonio de Trueba (O madeiro da forca)


I
A grande montanha de Colisa, que se ergue entre as Encartações de Biscaia, e a demarcação jurídica de Castela, era na idade média uma espécie de Tebaida, onde faziam vida penitente alguns anacoretas, aos quais se atribui a edificação do santuário que a coroa.

Sendo eu criança, e caminhando com minha piedosa mãe por uma montanha das Encartações, paramos a descansar, ao descobrir o vale onde habitávamos. 

Era por uma tarde aprazível de verão. O sol escondia-se por detrás dos montes, que recortavam o horizonte, e nas quebradas das serras ouviam-se os chocalhos do gado, que descia ao vale; embaixo, na planície, saíam as raparigas  das herdades, e pondo à cabeça as suas bilhas, dirigiam-se, cantado, à fonte do Castanhal, para que seus pais e irmãos achassem em casa água fresca, quando, ao soar o toque da oração, lançando ao ombro as enxadas, e rezando as Ave-Marias, se encaminhassem para o lugar.

Do cimo do outeiro coberto de fragrantes margaridas, brancas de neve, onde minha mãe e eu estávamos sentados, contemplando o nosso querido e formoso vale, em um de cujos extremos avistávamos, meia oculta por frondoso arvoredo, a nossa aldeia ainda mais querida e saudosa, descobria-se o santuário de Colisa.

Entramos a falar daquela ermida, e minha mãe, que tinha uma fé santa e cega nas tradições religiosas, que brotam e vivem à sombra dos santuários das montanhas, sem que possam os séculos alterar-lhes o viço e a frescura, prendeu-me a atenção, e comoveu-me deveras a alma contando-me o que, a meu turno, vou contar-vos.

Vivia nas solidões de Colisa um santo ancião, chamado Cosme, que passava uma terça parte da sua existência entregue à adoração e glorificação de Deus, e o restante guiando e socorrendo os viajantes, que atravessavam aquelas montanhas; e isto pela razão de que, naquele tempo, como as guerras de partidos ensanguentassem de contínuo os vales, fugiam deles os caminhantes, e transitavam pelos montes mais desertos, e afastados do comercio dos homens. 

Sempre que Cosme socorria algum viandante extraviado, ou extenuado de fome e cansaço, ao soar o toque de Trindades na igreja de Valmaseda, que se avistava lá em baixo, no pé da montanha, aparecia-lhe um anjo, que lhe sorria amorosamente, e que logo se remontava ao céu, deixando-o imerso em mística alegria.

Um dia, de manhã, estando os montes cobertos de mui densa névoa, saiu Cosme da miserável choça, onde vivia vida penitente, e pôs-se a divagar por aqueles bosques espessos e fragosos, a ver se encontrava alguns caminhantes, que neles se houvessem extraviado, e, de repente, deu de cara com uns poucos de homens, que levavam outro manietado.

— Porque vai preso esse infeliz? – lhes perguntou ele.

— Porque é um grande criminoso, a quem a justiça condenou à morte. – lhe responderam.

— Quem as faz paga-as. - disse o anacoreta, dando tréguas à sua compaixão.

Os executores da justiça de Valmaseda detiveram-se mais acima, numa encruzilhada, pegaram num grande madeiro seco, que, havia muitos anos, estava estendido ao lado do caminho, fixaram as extremidades desse madeiro seco nos primeiros galhos de duas árvores paralelas, lançaram um laço ao pescoço do criminoso, e suspenderam-no daquela forca improvisada, voltando a Valmaseda apenas se certificaram de que ele tinha expirado.

II
Nesse mesmo dia em que, por sentença do tribunal de Valmaseda, foi enforcado um grande criminoso, no caminho de Colisa, salvou Cosme da morte muitos viandantes, que, sem o seu auxílio, seriam devorados pelas feras, ou se teriam despenhado nos precipícios daqueles temerosos desvios, então mais temerosos do que nunca, por causa da espessura do nevoeiro.

Recolheu-se à sua morada, agradecendo a Deus o haver-lhe dado forças para socorrer os seus irmãos, e, apenas chegou, feriu-lhe o ouvido o toque da oração, que soou, lento e solene, na longínqua torre da igreja de Valmaseda. — O anjo porém não lhe apareceu naquela noite!

O santo ermitão encheu-se de terror, com a lembrança de que teria ofendido a Deus, visto que o anjo se furtava aos seus olhos; mas por mais que pesou as palavras, que proferira, as suas obras e pensamentos de todo o dia, não lhe foi possível atinar com o agastamento do Senhor.

Aquela noite passou-a toda em continua oração; chorou, macerou o corpo, pediu a Deus perdão e misericórdia para as suas faltas, e logo que raiou a aurora, como a montanha se conservasse coberta de espessa névoa, saiu em auxílio dos caminhantes.

De repente achou-se na encruzilhada, e ao ver diante de si a forca, da qual pendia ainda o cadáver do criminoso, justiçado no dia antecedente, recuou cheio de repugnância e movido de espanto; e levantando a vista acima do cadáver, que estava preso da corda, viu o anjo pousado no madeiro da forca. 

O anjo, longe de lhe sorrir então amorosamente, como de costume, olhava-o com semblante severo e carregado.

Cosme parou; e conquanto ignorasse qual fosse a sua culpa, lançou-se de joelhos, sobressaltado e cheio de terror, ergueu as mãos para o anjo, e implorou perdão e misericórdia.

— Cosme! – disse-lhe então o anjo, – incorreste no desagrado do Senhor e precisas fazer grande penitência para recuperar a sua proteção. Ontem, em vez de confortar e consolar o desgraçado, que está pendente desta forca, escarneceste-o, e olhaste com indiferença para a sua tribulação. Desprende o seu cadáver da forca, sepulta-o em sagrado, e lançando em seguida esse madeiro aos ombros, leva-o pelo mundo, e seja ele o único travesseiro, em que descanses a cabeça.

— E poderei eu ainda um dia obter o perdão da minha culpa? – exclamou Cosme lavado em pranto de arrependimento.

— Sim, – lhe tornou o anjo – quando desse madeiro brotar um ramo verde, é que o Senhor te perdoou.

Dito isto, subiu o anjo ao céu, cercado de músicas misteriosas e de brilhantes resplendores.

Cosme acercou-se animosamente do cadáver suspenso da forca, desprendeu-o e deu-lhe sepultura; pegando em seguida no madeiro, cujos extremos se apoiavam nos primeiros galhos de duas árvores fronteiras, foi com ele aos ombros pelo mundo, segundo as indicações, que o anjo lhe havia dado.

III
Andava Cosme pelo mundo com o madeiro da forca ao ombro, e toda a gente o escarnecia e fugia dele horrorizada. Uma noite, tendo perdido a esperança de encontrar asilo entre os homens, penetrou num bosque, esperando encontrá-lo no meio das feras, e vendo uma luzinha através da espessura, encaminhou-se para ela, e deu consigo à porta de uma cabana, onde uma velhinha dormitava, junto do lume.

— Santinha, – disse ele à velha, com voz suplicante - deixe-me, pelo amor de Deus, passar aqui esta noite.

— Não pode ser, – lhe tornou a velha - porque tenho dois filhos, que são bandidos, e que devem chegar dentro de uma hora; se aqui o encontrassem, com certeza o matavam.

Cosme confiava piamente na promessa, que o anjo lhe tinha feito de que o senhor lhe perdoaria, e como visse que o madeiro da forca não tinha sinais, que indicassem que estava para rebentar, de onde se depreendia que vinha ainda longe o momento da sua morte, insistiu em pedir à velha que lhe desse pousada, no que ela, por último, conveio, esperando conseguir dos filhos que o não assassinassem.

Estava Cosme exausto de forças e, retirando-se para um canto da choupana, pousou no chão o madeiro da forca, e deitou sobre ele a cabeça.

Condoída a velha de o ver descansar em travesseiro tão duro, ofereceu-lhe um feixe de cheirosa erva do monte, mas Cosme o recusou, dizendo: — ofendi o Senhor, dizendo a um criminoso a quem levavam à forca: “quem as faz, paga-as”, e para que o Senhor me perdoe, vou pelo mundo carregado com este madeiro, que deve ser o único descanso da minha cabeça, até que dele brote um ramo verde, que será o sinal de que o Senhor me perdoou.”

— Ai! – exclamou a velha, rompendo num choro inconsolável - se é tão difícil para quem se arrepende e unicamente pecou por palavras o alcançar o perdão do Senhor, quanto o não será para esses infelizes, que, como os meus filhos, pecam todos os dias por palavras e obras, e não têm no coração um vislumbre sequer do arrependimento.

O ancião adormeceu com a cabeça deitada no madeiro da forca. Uma hora depois, chegaram os bandidos, e ao verem-no, arrancaram dos punhais para o assassinar.

A mãe, porém, contou-lhes a história daquele ancião, e pediu-lhes de joelhos que, longe de o matarem, se arrependessem, como ele, das suas enormes culpas.

— Pois bem, perdoe-se-lhe a vida, – responderam os bandidos, fazendo entrar os punhais na bainha, e acrescentaram, soltando uma gargalhada de escárnio: — Quanto ao arrependimento, havemos de o ter quando brotar o tal ramo verde desse madeiro seco.

Principiaram os bandidos a cear. Quando acabaram, dirigiram a vista para o canto da cabana onde dormia o velho, e viram, com assombro, que do madeiro seco tinha brotado um ramo verde e mimoso! Romperam então em amargo pranto, rogando a Deus que lhes perdoasse as suas culpas.

Ao som de tais vozes acordou Cosme, e ao ver que do madeiro seco tinha brotado uma vergôntea verde e louçã, expirou de alegria; e o anjo baixou, sorrindo amorosamente, a tomar conta da sua alma, e a levá-la consigo para o céu.

Fonte:
Antonio de Trueba. Contos escolhidos. Publicados postumamente originalmente em 1927. Disponível em Domínio Público.

Graciliano Ramos (História de uma guariba*)

— Um domingo destes, contou Alexandre aos amigos, vesti o guarda-peito e o gibão, cobri-me com o chapéu de couro, acendi o cachimbo, pus o aió a tiracolo, peguei a espingarda, resolvido a desenferrujá-la, se aparecesse caça graúda. Saí pelo terreiro, dei umas voltas nos arredores, andei, virei, mexi, afinal entrei numa vereda, subi a ladeira dos preás e, sem encontrar bicho que merecesse uma carga de chumbo e um dedal de pólvora, cheguei à imburana, perto da cerca de ramos. Aí, como o calor apertasse, tirei o aió, o chapéu, o gibão e o guarda-peito, estirei-me no chão e passei uma hora de papo para cima, fumando e pensando nos aperreios deste mundo velho. Sentia-me bem triste, meus amigos, bem desanimado. Eu, homem de família, nascido na grandeza, criado na fartura, tendo o que precisava, do bom e do melhor, estava por baixo, muito por baixo: deitado em garranchos e folhas secas, a cabeça num travesseiro de couros dobrados. Fui-me amadornando, o cachimbo me caiu dos dentes, fiquei assim meio leso, nem adormecido nem acordado, vendo e ouvindo as coisas em redor e misturando tudo a casos antigos. De repente uns gritinhos finos me chamaram a atenção. Esfreguei os olhos, sentei-me, espalhei aquelas embrulhadas que se juntavam no meu interior. E enxerguei uma espécie de velho barbudo saltando, fazendo caretas, guinchando e assobiando, como se mangasse de mim. 

Atentando na visagem esquisita, reconheci uma guariba. Levei mais que depressa a lazarina ao rosto, mas não pude atirar: o animal sacudia-se danadamente, sem oferecer alvo. Depois saltou por cima de uma touceira de macambira e virou fumaça. Larguei-me atrás dele, andei meia hora examinando marcas de pés no chão, ramos quebrados, cabelos nas cascas dos paus. Na verdade eu estava com pouca sorte naquele dia: os sinais diminuíram, tomaram diversas direções, sumiram-se completamente. Aí os gritinhos e os assobios voltaram. Pareciam vir de todos os lados, e eu não conseguia adivinhar onde se escondia a peste do bicho. Disse comigo, arreliado:

— “Aqui há mandinga, na certa. Das coisas deste mundo nunca tive medo, com os poderes de Deus, mas em negócios de feitiçaria não entro. Fujo e entrego os pontos. Deve andar na vadiação pelo menos meia dúzia de guaribas.” 

Uns risinhos safados me responderam pela direita e pela esquerda, por diante e por detrás. Fiz o pelo-sinal, rezei o credo, agarrei-me à Virgem Maria e dispus-me a entrar em casa. Aquela história começava a azucrinar-me. Ora sim senhores. Acreditam vossemecês que não acertei o caminho? É exato, achei-me numa atrapalhação, areado pela primeira vez na vida, completamente desorientado. Incrível, meus amigos, a coisa mais espantosa que até hoje me aconteceu. Ali pertinho de casa, com o sol nas alturas, as árvores iluminadas, tudo muito claro, perdido no mato, eu, um sujeito costumado a varar capoeira no lombo de bicho brabo. Não podia haver disparate maior. Tenho vergonha de contar isto. Nunca me vi, antes ou depois, em situação igual. Se pudesse fumar, descansar, espairecer uns minutos, talvez conseguisse livrar-me do embaraço, arrumar as ideias que me fervilhavam no espírito.

Infelizmente o cachimbo tinha ficado debaixo da imburana. E, sem chapéu, aguentando a quentura do meio-dia num verão puxado, sentia o miolo derreter-se e a vista escurecer. Decidi acompanhar os rastos da guariba, na esperança de que eles me levassem a alguma estrada. Não levaram. Tomei outro rumo. Trabalho perdido: uma confusão dos pecados. E, à toa, joguei-me para a frente, embirando-me nos cipós, furando-me os espinhos, falando assim cá por dentro: — “Agora nem volto nem torço. Nesta marcha vou até o fim do mundo. Todo o caminho dá na venda.” 

Andei uma légua, pouco mais ou menos. Os assobios e os gritos desapareceram. Ri-me de mim mesmo, achando graça naquela trapalhada: — “Isto não tem pé nem cabeça. Sonhei, provavelmente, estive sonhando e variando. Peguei no sono, levantei-me sem acordar direito e corri de um lado para outro, vendo e ouvindo coisas que não existem.” 

Pensando assim, entrei num carreiro que me pareceu conhecido. Encontrei uma cerca de ramos e um formigueiro de formiga branca, subi uma ladeira, alcancei o alto de um monte, onde topei a imburana. Bem. Respirei aliviado: era ali que eu tinha adormecido pela manhã. Estava perto de casa, a umas quinhentas braças ou menos. Procurei os couros que havia largado no chão e não percebi nem sombra deles. 

— “Que diabo é isto?” perguntei cá comigo. 

E comecei a arear-me de novo, julguei que talvez a imburana não fosse o pé de pau visto poucas horas antes. No meio da desordem enxerguei na terra folhas secas e gravetos espalhados. Tinha-me deitado ali, de papo para o ar, sem dúvida. Mas onde estavam meus arreios? Era o que eu não podia saber. Tudo naquele dia me andava pelo avesso. Disse baixinho: — “Valha-me Nossa Senhora do Amparo.

Com certeza desci hoje da cama com o pé esquerdo e não fiz as minhas orações em regra! Foi por isso que o demônio se soltou e buliu comigo.” Deitei-me, resolvido a descansar um instante, porque o calor não era deste mundo e a cabeça me ardia desesperadamente. Fechei os olhos, tornei a abri-los, chateado: aquele desconchavo todo e por fim o desaparecimento dos picuás não me deixavam sossegar. 

Nessa altura, descobri lá em cima, quase escondida na folhagem da imburana, a guariba escanchada num galho, vestida no guarda-peito e no gibão, com o chapéu na cabeça. Trazia o aió a tiracolo. Meteu a mão nele, tirou o corrimboque, bateu a pedra de fogo, acendeu o cachimbo, e pôs-se a fumar regalada, balançando-se. Os senhores já viram bicho fumar? Era cada baforada que ninguém imagina. Pafo! pafo! pafo! Perdi os estribos com semelhante desaforo, gritei: — “Seiscentos diabos!” E levantei a espingarda: queria botar as coisas em pratos limpos, saber se aquela infeliz era vivente de fôlego ou alma penada. Aí se deu um caso extraordinário. A guariba conheceu as minhas intenções, pregou-me o olho e falou desse jeito: — “Seu Alexandre, vamos fazer um negócio? Vá criar seus filhos, que eu vou criar os meus.” 

Atirou-me lá de cima o cachimbo, o aió, o gibão, o guarda-peito e o chapéu. Fiquei assombrado, de queixo caído, nem tive coragem de atirar. Aceitei a proposta e deixei que a desgraçada fosse embora em paz.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* Guariba = Denominação comum a vários macacos da América do Sul e Central, com cinco espécies no Brasil. Corpulentos mas ágeis, caracterizam-se pela cabeça maciça e pelo queixo barbado dos machos. Em algumas espécies o macho é preto e a fêmea amarelo-escura; em outras o macho é ruivo e a fêmea, quase preta. Andam em bandos de 12 ou mais, saltando de galho em galho sob o comando do macho mais velho. Usam a cauda com grande habilidade.

Fonte: Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944. Disponível em Domínio Público. 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões) 17

 

Mensagem na Garrafa – 36 –


Antonio Roberto de Paula
Maringá/PR

DA MINHA JANELA

Da minha janela vejo a ponta da Catedral. Já passei por tantas janelas, mas tenho a sorte ou a graça de Deus de sempre vislumbrar parte deste Sputnik de concreto. Hoje, cá onde me encontro, só vejo a cruz. Este símbolo católico me persegue e a cada dia o defino de uma maneira. Já me rebelei com a ostentação e já me emocionei com a fé construtora desta comunidade.

Fiz da Catedral a representação maior do meu amor por Maringá. E, como contraponto, ao ver esta imponente armação de cimento, me culpo por não buscar novos caminhos.

Os anos passam e estes pensamentos antagônicos estão comigo. Tantas janelas, ângulos, olhares. Importantes e parcas vitórias, derrotas providenciais e uma luta diária igual a muitas outras de muitos outros. Um céu de paradoxos me invade.

Meus olhos já não enxergam tanto como antes, mas hoje me atenho mais a detalhes. Os horizontes ainda estão lá. A cidade cresceu e pela minha janela não posso descortinar tantas possibilidades. Mas elas ainda existem. Penso em aumentar meu campo de visão, mas esta paisagem encanta, conforta e acomoda. Dia, noite, sol, néon, roncos, silêncio, chuva, grama, asfalto, árvores, flores, carros, casas, muros, placas. Tudo confusamente ordenado. Uma natureza feliz com a invasão.

Da minha janela vejo a ponta da Catedral, os prédios, o verde. Vejo uma cidade que buzina, acelera, avança. Cidade clara e obscura. Planejamento, estética, beleza física. Cidade desorganizada de ideias e objetivos, o espírito coronelista ainda a rondá-la, resquícios da ”fazendola iluminada”, expressão utilizada nos anos 70 para chamá-la de provinciana. Maringá canção, artística, polo, vigorosa. Da minha janela vejo Maringá com mil olhos sem saber quais são verdadeiros.

Da minha janela vejo gente que nasce e morre, ri da vida e chora pela morte, comemora e sofre, conta vantagens e percalços. Gente que ama e odeia, que sonha e tem os pés no chão. Gente do bem e do mal. Gente nem tão boa e nem tão má assim. Gente que me completa e me esvazia, que me faz ser doce e amargo, sereno e turbulento.

Da minha janela vejo esta vida passar como deve ser, na essência, a paisagem de todas as janelas de todos os lugares. Concluo que aqui ou em qualquer outro “lá” não intensificaria ou reduziria minhas emoções. Posso ter outros campos de visão, mas o eu que me leva não vai me deixar porque os mil olhos vão estar sempre atentos. Seja onde for, o antagônico e o paradoxo vão estar comigo. Vai sempre existir a ponta de uma Catedral.