sexta-feira, 20 de junho de 2008

Lygia Fagundes Telles (Suicídio na granja)

Alguns se justificam e se despedem através de cartas, telefonemas ou pequenos gestos — avisos que podem ser mascarados pedidos de socorro. Mas há outros que se vão no mais absoluto silêncio. Ele não deixou nem ao menos um bilhete?, fica perguntando a família, a amante, o amigo, o vizinho e principalmente o cachorro que interroga com um olhar ainda mais interrogativo do que o olhar humano, E ele?!

Suicídio por justa causa e sem causa alguma e aí estaria o que podemos chamar de vocação, a simples vontade de atender ao chamado que vem lá das profundezas e se instala e prevalece. Pois não existe a vocação para o piano, para o futebol, para o teatro. Ai!... para a política. Com a mesma força (evitei a palavra paixão) a vocação para a morte. Quando justificada pode virar uma conformação, Tinha os seus motivos! diz o próximo bem informado. Mas e aquele suicídio que (aparentemente) não tem nenhuma explicação? A morte obscura, que segue veredas indevassáveis na sua breve ou longa trajetória.

Pela primeira vez ouvi a palavra suicídio quando ainda morava naquela antiga chácara que tinha um pequeno pomar e um jardim só de roseiras. Ficava perto de um vilarejo cortado por um rio de águas pardacentas, o nome do vilarejo vai ficar no fundo desse rio. Onde também ficou o Coronel Mota, um fazendeiro velho (todos me pareciam velhos) que andava sempre de terno branco, engomado. Botinas pretas, chapéu de abas largas e aquela bengala grossa com a qual matava cobras. Fui correndo dar a notícia ao meu pai, O Coronel encheu o bolso com pedras e se pinchou com roupa e tudo no rio! Meu pai fez parar a cadeira de balanço, acendeu um charuto e ficou me olhando. Quem disse isso? Tomei o fôlego: Me contaram no recreio. Diz que ele desceu do cavalo, amarrou o cavalo na porteira e foi entrando no rio e enchendo o bolso com pedra, tinha lá um pescador que sabia nadar, nadou e não viu mais nem sinal dele.

Meu pai baixou a cabeça e soltou a baforada de fumaça no ladrilho: Que loucura. No ano passado ele já tinha tentado com uma espingarda que falhou, que loucura! Era um cristão e um cristão não se suicida, ele não podia fazer isso, acrescentou com impaciência. Entregou-me o anel vermelho-dourado do charuto. Não podia fazer isso!

Enfiei o anel no dedo, mas era tão largo que precisei fechar a mão para retê-lo. Mimoso veio correndo assustado. Tinha uma coisa escura na boca e espirrava, o focinho sujo de terra. Vai saindo, vai saindo!, ordenei fazendo com que voltasse pelo mesmo caminho, a conversa agora era séria. Mas pai, por que ele se matou, por quê?! fiquei perguntando. Meu pai olhou o charuto que tirou da boca. Soprou de leve a brasa: Muitos se matam por amor mesmo. Mas tem outros motivos, tantos motivos, uma doença sem remédio. Ou uma dívida. Ou uma tristeza sem fim, às vezes começa a tristeza lá dentro e a dor na gaiola do peito é maior ainda do que a dor na carne. Se a pessoa é delicada, não agüenta e acaba indo embora! Vai embora, ele repetiu e levantou-se de repente, a cara fechada, era o sinal: quando mudava de posição a gente já sabia que ele queria mudar de assunto. Deu uma larga passada na varanda e apoiou-se na grade de ferro como se quisesse examinar melhor a borboleta voejando em redor de uma rosa. Voltou-se rápido, olhando para os lados. E abriu os braços, o charuto preso entre os dedos: Se matam até sem motivo nenhum, um mistério, nenhum motivo! repetiu e foi saindo da varanda. Entrou na sala. Corri atrás. Quem se mata vai pro inferno, pai? Ele apagou o charuto no cinzeiro e voltou-se para me dar o pirulito que eu tinha esquecido em cima da mesa. O gesto me animou, avancei mais confiante: E bicho, bicho também se mata? Tirando o lenço do bolso ele limpou devagar as pontas dos dedos: Bicho, não, só gente.

Só gente? — eu perguntei a mim mesma muitos e muitos anos depois, quando passava as férias de dezembro numa fazenda. Atrás da casa-grande tinha uma granja e nessa granja encontrei dois amigos inseparáveis, um galo branco e um ganso também branco mas com suaves pinceladas cinzentas nas asas. Uma estranha amizade, pensei ao vê-los por ali, sempre juntos. Uma estranhíssima amizade. Mas não é a minha intenção abordar agora problemas de psicologia animal, queria contar apenas o que vi. E o que vi foi isso, dois amigos tão próximos, tão apaixonados, ah! como conversavam em seus longos passeios, como se entendiam na secreta linguagem de perguntas e respostas, o diálogo. Com os intervalos de reflexão. E alguma polêmica mas com humor, não surpreendi naquela tarde o galo rindo? Pois é, o galo. Esse perguntava com maior freqüência, a interrogação acesa nos rápidos movimentos que fazia com a cabeça para baixo, e para os lados, E então? O ganso respondia com certa cautela, parecia mais calmo, mais contido quando abaixava o bico meditativo, quase repetindo os movimentos da cabeça do outro mas numa aura de maior serenidade. Juntos, defendiam-se contra os ataques, não é preciso lembrar que na granja travavam-se as mesmas pequenas guerrilhas da cidade logo adiante, a competição. A intriga. A vaidade e a luta pelo poder, que luta! Essa ânsia voraz que atiçava os grupos, acesa a vontade de ocupar um espaço maior, de excluir o concorrente, época de eleições? E os dois amigos sempre juntos. Atentos. Eu os observava enquanto trocavam pequenos gestos (gestos?) de generosidade nos seus infindáveis passeios pelo terreiro, Hum! olha aqui esta minhoca, sirva-se à vontade, vamos, é sua! — dizia o galo a recuar assim de banda, a crista encrespada quase sangrando no auge da emoção. E o ganso mais tranqüilo (um fidalgo) afastando-se todo cerimonioso, pisando nas titicas como se pisasse em flores, Sirva-se você primeiro, agora é a sua vez! E se punham tão hesitantes que algum frango insolente, arvorado a juiz, acabava se metendo no meio e numa corrida desenfreada levava no bico o manjar. Mas nem o ganso com seus olhinhos redondamente superiores nem o galo flamante — nenhum dos dois parecia dar maior atenção ao furto. Alheios aos bens terreirais, desligados das mesquinharias de uma concorrência desleal, prosseguiam o passeio no mesmo ritmo, nem vagaroso nem apressado, mas digno, ora, minhocas!

Grandes amigos, hem?, comentei certa manhã com o granjeiro que concordou tirando o chapéu e rindo, Eles comem aqui na minha mão!

Foi quando achei que ambos mereciam um nome assim de acordo com suas nobres figuras, e ao ganso, com aquele andar de pensador, as brancas mãos de penas cruzadas nas costas, dei o nome de Platão. Ao galo, mais questionador e mais exaltado como todo discípulo, eu dei o nome de Aristóteles.

Até que um dia (também entre os bichos, um dia) houve o grande jantar na fazenda e do qual não participei. Ainda bem. Quando voltei vi apenas o galo Aristóteles a vagar sozinho e completamente desarvorado, os olhinhos suplicantes na interrogação, o bico entreaberto na ansiedade da busca, Onde, onde?!... Aproximei-me e ele me reconheceu. Cravou em mim um olhar desesperado, Mas onde ele está?! Fiz apenas um aceno ou cheguei a dizer-lhe que esperasse um pouco enquanto ia perguntar ao granjeiro: Mas e aquele ganso, o amigo do galo?!

Para que prosseguir, de que valem os detalhes? Chegou um cozinheiro lá de fora, veio ajudar na festa, começou a contar o granjeiro gaguejando de emoção. Eu tinha saído, fui aqui na casa da minha irmã, não demorei muito mas esse tal de cozinheiro ficou apavorado com medo de atrasar o jantar e nem me esperou, escolheu o que quis e na escolha, acabou levando o coitado, cruzes!... Agora esse daí ficou sozinho e procurando o outro feito tonto, só falta falar esse galo, não come nem bebe, só fica andando nessa agonia! Mesmo quando canta de manhãzinha me representa que está rouco de tanto chorar.

Foi o banquete de Platão, pensei meio nauseada com o miserável trocadilho. Deixei de ir à granja, era insuportável ver aquele galo definhando na busca obstinada, a crista murcha, o olhar esvaziado. E o bico, aquele bico tão tagarela agora pálido, cerrado. Mais alguns dias e foi encontrado morto ao lado do tanque onde o companheiro costumava se banhar. No livro do poeta Maiakóvski (matou-se com um tiro) há um verso que serve de epitáfio para o galo branco: Comigo viu-se doida a anatomia / sou todo um coração!

Fonte:
Invenção e Memória. RJ: Editora Rocco Ltda., 2000. Disponível em
http://www.releituras.com

Millôr Fernandes (O Rei dos Animais)

Saiu o leão a fazer sua pesquisa estatística, para verificar se ainda era o Rei das Selvas. Os tempos tinham mudado muito, as condições do progresso alterado a psicologia e os métodos de combate das feras, as relações de respeito entre os animais já não eram as mesmas, de modo que seria bom indagar. Não que restasse ao Leão qualquer dúvida quanto à sua realeza. Mas assegurar-se é uma das constantes do espírito humano, e, por extensão, do espírito animal. Ouvir da boca dos outros a consagração do nosso valor, saber o sabido, quando ele nos é favorável, eis um prazer dos deuses. Assim o Leão encontrou o Macaco e perguntou: "Hei, você aí, macaco - quem é o rei dos animais?" O Macaco, surpreendido pelo rugir indagatório, deu um salto de pavor e, quando respondeu, já estava no mais alto galho da mais alta árvore da floresta: "Claro que é você, Leão, claro que é você!".

Satisfeito, o Leão continuou pela floresta e perguntou ao papagaio: "Currupaco, papagaio. Quem é, segundo seu conceito, o Senhor da Floresta, não é o Leão?" E como aos papagaios não é dado o dom de improvisar, mas apenas o de repetir, lá repetiu o papagaio: "Currupaco... não é o Leão? Não é o Leão? Currupaco, não é o Leão?".

Cheio de si, prosseguiu o Leão pela floresta em busca de novas afirmações de sua personalidade. Encontrou a coruja e perguntou: "Coruja, não sou eu o maioral da mata?" "Sim, és tu", disse a coruja. Mas disse de sábia, não de crente. E lá se foi o Leão, mais firme no passo, mais alto de cabeça. Encontrou o tigre. "Tigre, - disse em voz de estentor -eu sou o rei da floresta. Certo?" O tigre rugiu, hesitou, tentou não responder, mas sentiu o barulho do olhar do Leão fixo em si, e disse, rugindo contrafeito: "Sim". E rugiu ainda mais mal humorado e já arrependido, quando o leão se afastou.

Três quilômetros adiante, numa grande clareira, o Leão encontrou o elefante. Perguntou: "Elefante, quem manda na floresta, quem é Rei, Imperador, Presidente da República, dono e senhor de árvores e de seres, dentro da mata?" O elefante pegou-o pela tromba, deu três voltas com ele pelo ar, atirou-o contra o tronco de uma árvore e desapareceu floresta adentro. O Leão caiu no chão, tonto e ensangüentado, levantou-se lambendo uma das patas, e murmurou: "Que diabo, só porque não sabia a resposta não era preciso ficar tão zangado".

M O R A L: CADA UM TIRA DOS ACONTECIMENTOS A CONCLUSÃO QUE BEM ENTENDE.

FERNANDES, Millôr. "Fábulas Fabulosas", editado por José Álvaro - Rio de Janeiro, 1964. Disponível em http://www.releituras.com

Teatro

As novas técnicas de espetáculo e o aparecimento do cinema e da televisão foram fundamentais para a renovação da linguagem cênica e dramatúrgica. O espetáculo libertou-se do palco e a dramaturgia transcendeu a ação linear. Assim, o teatro contemporâneo tornou-se uma aventura incerta, mas profundamente estimulante.

O teatro, expressão das mais antigas do espírito lúdico da humanidade, é uma arte cênica peculiar, pois embora tome quase sempre como ponto de partida um texto literário (comédia, drama e outros gêneros), exige uma segunda operação artística: a transformação da literatura em espetáculo cênico e sua confrontação direta com uma platéia. Assim, por maior que seja a interdependência entre o texto dramático e o espetáculo, o ator e a cena criam uma linguagem específica e uma arte essencialmente distinta da criação literária. Existem também representações mudas (a pantomima, o teatro de bonecos), ou improvisadas (a commedia dell'arte), que eventualmente prescindem de um texto literariamente construído.

Durante o espetáculo, o texto dramático se realiza mediante a metamorfose do ator em personagem. À força da palavra somam-se gestos, inflexões da voz, pausas e mesmo o silêncio, segundo o ritmo da ação que se desenrola diante do espectador e de acordo com as imposições, necessidades e recursos dos demais elementos cênicos: iluminação, cenários, sonoplastia etc. A história da dramaturgia é, portanto, inseparável da história do espetáculo.

O texto dramático, que por si só consiste em gênero literário dos mais importantes como testemunho de época, sobrevive a seu próprio tempo não só como palavra, mas como ambiente, vestimenta, objetos e costumes, permitindo a reconstrução, no palco, de situações pretéritas ou prestando-se a adaptações que recolocam no tempo questões de interesse universal.

Origens e história

Antiguidade clássica

A dramatização como forma artística surgiu num estágio relativamente avançado da evolução cultural. Os rituais religiosos em honra ao deus Dioniso deram origem ao teatro grego, que mais tarde, emancipado do culto, foi o primeiro a afirmar-se como arte. Os textos teatrais gregos sobreviveram em traduções romanas.

Em Atenas -- na época dos grandes trágicos Ésquilo, Sófocles e Eurípides; e de Aristófanes, cultor da comédia antiga, essencialmente política -- o teatro era instituição pública, organizada e custeada pelo estado. As representações inseriam-se no calendário, ligadas às grandes festas nacionais. Havia estreita interdependência entre dramaturgia e cenografia, assim como profundo acordo entre poeta e público. A arte, expressão de toda uma civilização, tinha função cívica.

Com o domínio romano, no final do século V a.C., a literatura grega entrou em declínio. O fim das atividades públicas nas cidades da época helenística fez com que a arte trágica perdesse a função. A tragédia e a comédia antigas não tiveram sucessores à altura. A chamada comédia nova, cultivada por Menandro, sofreu restrições oficiais e limitou seus enredos a questões familiares e amorosas, além de focalizar exclusivamente a vida da elite, numa época desmitologizada e despolitizada.

A comédia nova influenciou os romanos Plauto e Terêncio. As melhores tragédias da época romana -- entre as quais as de Sêneca, as únicas do período que sobreviveram completas e que exerceriam influência sobre a arte renascentista inglesa -- foram escritas para recitação em pequenos ambientes fechados.

Paralelamente, uma tradição nativa e popular da comédia persistia, como nas peças phlyax (farsas acrobáticas) e nas atelanas, populares em Roma no século III a.C., cujos arquétipos parecem antecipar os da commedia dell'arte, embora nenhum vínculo entre essas formas seja historicamente comprovado.

O sensacionalismo dos grandes espetáculos oficiais -- lutas mortais de gladiadores e animais selvagens, cristãos transformados em tochas humanas -- chegou a dispensar a existência de qualquer tipo de texto teatral e marginalizou tanto os escritores como o público que desejava outro tipo de entretenimento. Tomaram a cena a pantomima (gênero burlesco remanescente da tragédia) e, principalmente, o mimo, cuja estética do grotesco se coadunava com a dos grandes espetáculos.

O Império Romano entrou em decadência, cristianizou-se e dividiu-se em duas partes. O segmento ocidental, centralizado em Roma, foi invadido pelos povos germânicos e, no século V, o teatro foi proibido, embora as cerimônias religiosas cristãs continuassem utilizando elementos dramáticos. Os registros das manifestações teatrais surgidas em torno da igreja oriental bizantina, sediada em Constantinopla (posterior Istambul), perderam-se quase completamente, após a invasão dos turcos.

Teatro medieval

Embora os textos do teatro romano continuassem acessíveis, já que a Igreja Católica manteve o latim como língua oficial, o legado da cultura clássica foi deixado de lado por mais de 900 anos. O mimo, apesar das proibições, sobreviveu e garantiu a continuidade entre o mundo clássico e a Europa moderna: a cultura popular medieval, com seus artistas ambulantes, acrobatas, malabaristas e menestréis espalhados por toda a Europa, preservou habilidades remanescentes do mimo romano e somou-as às festas pagãs agrícolas e outras tradições folclóricas. Inaugurou-se a divisão entre teatro popular e literário.

O rompimento radical com a tradição teatral clássica fez com que a evolução do teatro ocidental recomeçasse do nada. O desenvolvimento do cantochão durante o século IX levou à criação de textos para serem cantados durante a missa e, assim, novamente as cerimônias religiosas propiciaram o surgimento do teatro. Por volta do ano 1000 surgiram os tropos -- pequenos diálogos cantados, acrescentados ao texto dos Evangelhos. Logo, toda a liturgia da Páscoa ganhou forma dramática e, no final do século XIII, eram assim representadas também as liturgias da Paixão e do Natal.

Esses dramas litúrgicos, circunscritos ao interior das igrejas, inspiraram pequenas peças religiosas, que passaram ao pátio e finalmente a outros locais da cidade. Com a intenção de tornar os eventos mais claros à assistência, foram adotadas, ao lado do latim, as línguas vernáculas, e partes do texto cantado passaram a ser faladas.

No início do século XIV, era freqüente que representantes leigos das corporações de ofícios, e não clérigos, comandassem as representações. Conhecidas na Espanha como autos sacramentais e na Inglaterra e na França como mistérios, essas peças tinham textos inteiramente vernáculos. O distanciamento da solenidade religiosa e a substituição do latim abriram espaço para o surgimento de pequenos interlúdios cômicos, em forma de farsas derivadas do folclore local, que eram incorporados à trama principal. Ciclos dessas peças eram levados em praça pública, em espetáculos que se estendiam por vários dias e contavam com a participação de inúmeros atores.

Durante o século XV, desenvolveram-se as moralidades, alegorias de temática social e religiosa, protagonizadas por entes abstratos como a humanidade, o bem, o mal, a morte e a castidade. As moralidades eram um dos três principais gêneros, ao lado dos milagres, que narravam a vida de um santo, e dos mistérios. Destinadas à educação moral, surgiram na classe média nascente das cidades. Pregavam sobretudo a abstinência dos sete pecados capitais, num contexto de rápidas e irreversíveis transformações sociais que ameaçavam os valores éticos da então decadente estrutura feudal.

La Celestina ou Comedia de Calisto y Melibea (1499), obra atribuída a Fernando de Rojas, exerceu grande influência na Europa de então. Com elementos humanistas e renascentistas, representa uma etapa decisiva na gênese da comédia clássica. O português Gil Vicente, figura máxima da literatura ibérica do século XVI, criou um teatro ainda marcado por elementos medievais que prenuncia a dramaturgia renascentista.

Renascimento

A perda de importância de Roma depois da invasão dos germânicos e a revalorização das artes e as ciências que haviam florescido no antigo império determinou a imitação dos modelos clássicos gregos e romanos pelos artistas italianos, ideal que dominou todo o mundo ocidental durante o Renascimento.

A admiração por uma civilização pagã incentivou em muitos aspectos a laicização da sociedade. O humanismo colocou o homem no centro do universo e a vida terrena foi valorizada em relação à vida eterna depois da morte. A própria igreja sofreu reformulações, adaptou-se às idéias humanistas e incentivou as ciências e as artes, mesmo quando entravam em confronto com a doutrina cristã, o que resultou em grande desenvolvimento da arte profana.

A invenção da imprensa de tipos móveis por Gutenberg é contemporânea à redescoberta dos textos gregos e romanos, o que facilitou sua difusão e ampliou sua influência. Inicialmente revivido, o teatro grego e romano -- sobretudo a comédia -- logo foi imitado pelos primeiros humanistas, entre os quais Ludovico Ariosto. A descoberta da perspectiva, que passou a ser largamente utilizada em pintura, fez florescer também a cenografia. Em Vicenza, Sebastiano Serlio inventou o palco italiano, cuja perspectiva criava a ilusão de grande profundidade e que permanece até a atualidade.

Itália

A imitação italiana da tragédia grega, sempre mediada pela obra de Sêneca, teve curta duração. Já a imitação das comédias de Plauto e Terêncio -- na chamada commedia erudita, encenada por atores diletantes e dirigida a um pequeno público da aristocracia -- produziu pelo menos uma obra-prima, Mandragola (1524; Mandrágora), de Maquiavel.

A síntese do gosto popular e da comédia plautina operou-se no teatro de Angelo Beolco, natural de Pádua e conhecido como Ruzzante, organizador de uma das primeiras companhias profissionais de atores, no início do século XVI.

Os "tipos" de Ruzzante são considerados os precursores das figuras da commedia dell'arte, forma original italiana com diálogos inteiramente improvisados, personagens regionais e as maschere (Arlequim, Polichinelo, Colombina etc.). O sucesso do gênero, que chegou a alto nível de virtuosismo, foi responsável pela proliferação de grupos profissionais de atores, de formação fixa. A commedia dell'arte, de origem popular, foi recebida nos palácios e tornou-se internacionalmente famosa, sobretudo na França, onde predominou no século XVII. Sua influência, presente na obra de Molière e Shakespeare, estendeu-se ao século seguinte -- Goldoni, na Itália, baseou-se nela para criar a comédia de costumes; e Marivaux, na França, também utilizou seus personagens -- e permaneceu até o teatro do século XX.

Espanha

O drama religioso teve continuidade na Espanha, não afetada pela Reforma protestante. Paralelamente, durante a segunda metade do século XVI (o Século de Ouro espanhol), estabeleceram-se na Espanha e na Inglaterra inúmeras companhias laicas de atores profissionais. As primeiras, como a de Lope de Rueda, eram grupos de ambulantes sem nenhum recurso material. Criaram um teatro que, influenciado pela commedia dell'arte e livre das regras do classicismo, tornou-se tradicional no país.

O estabelecimento de corrales (quintais), onde eram encenados espetáculos que atraíam um público composto por representantes de todas as classes sociais, significou um meio de vida mais seguro para os atores e uma maior possibilidade de controle por parte da igreja e das autoridades.

Os primeiros autores de textos teatrais eram também empresários dos espetáculos. Sua produção artística, rápida e comercial, admitia o recurso ao lugar-comum, o emprego repetitivo de cenas preconcebidas e o plágio. Mesmo assim, algumas obras diferenciaram-se pela qualidade. Os maiores dramaturgos do Século de Ouro foram Lope de Vega, a quem se atribui mais de 1.500 peças, e Calderón de la Barca. Ambos escreveram tragédias e comédias e foram os primeiros cultores da zarzuela, gênero de teatro musical tipicamente espanhol.

Tornou-se muito popular na época o entremez, peça curta e cômica intercalada entre os atos das grandes tragédias, que teve em Cervantes seu mais importante autor. A Tirso de Molina deve-se a criação de um dos grandes tipos do teatro moderno, o Don Juan, em El burlador de Sevilla y convidado de piedra (1630; O sedutor de Sevilha e o convidado de pedra). Contribuição importante é também a de Juan Ruiz de Alarcón, mexicano radicado na Espanha e criador da comédia de caracteres, precursora do teatro francês nesse gênero.

Inglaterra

O drama neoclássico italiano teve pouca influência na Inglaterra protestante, refratária a tudo o que viesse de Roma ou pertencesse à tradição latina e, sob permanente ameaça de invasão estrangeira, apegada a elementos nacionais. Relativamente livre do modelo clássico, o teatro inglês elisabetano adaptou o drama religioso medieval a temas profanos e, ao lado do espanhol, constituiu o fundamento do teatro moderno.

O espírito da Reforma dominou as artes cênicas e fez surgirem interlúdios cômicos que satirizavam as peças católicas tradicionais. Adaptadas de milagres e moralidades, essas encenações tornaram-se estopim de tumultos e desordens. Os autores teatrais foram submetidos a crescente censura, os atores mantidos sob observação e os locais de espetáculo passaram a depender de licença oficial para funcionar.

No final do século XVI, após a derrota da armada espanhola, a Inglaterra finalmente abriu-se a novas idéias em arte e educação. Mas já então o teatro inglês definira sua personalidade. Profissionalmente organizado, financiado pelos grandes comerciantes e apoiado pela corte, o teatro de Chistopher Marlowe, William Shakespeare, Ben Jonson e John Webster manteve sua ligação com a herança medieval e o teatro popular, autoconfiante o bastante para não se deixar levar pelos preceitos neoclássicos.

Os primeiros teatros ingleses, surgidos na segunda metade do século XVI, eram ao ar livre, como os corrales espanhóis. As companhias eram também contratadas para atuar nos palácios. As três primeiras tragédias inglesas -- entre as quais Gorboduc (1561-1562), escrita por Thomas Sackville e Thomas Norton sob a inconfundível influência de Sêneca -- surgiram entre 1560 e 1570. Iniciava-se a "era das blood tragedies" ("tragédias sangrentas"). Três gerações sucessivas de dramaturgos exploraram o gênero trágico: a primeira, com Thomas Kyd e Marlowe; a segunda, com George Chapman, Shakespeare, John Marston, Cyril Tourneur, Thomas Middleton e William Rowley; a última, com Philip Massinger, Webster e John Ford.

Shakespeare, considerado o maior dramaturgo da literatura universal, escreveu comédias e tragédias. O florescimento da grande dramaturgia de sua época coincidiu com a inauguração dos primeiros teatros cobertos, no estilo italiano. Em 1642, a censura puritana impôs o fechamento dos teatros. Reabertos em 1660, com a restauração da monarquia, encontraram a elite conquistada pelo teatro clássico francês. Mesmo assim, as obras de Shakespeare, John Dryden e Thomas Otway passaram ao repertório moderno.

França

No início do século XVI, o drama religioso foi oficialmente proscrito, numa tentativa de impedir seu uso a favor do avanço do protestantismo. Ressurgida tardiamente em relação às formas barrocas da comédia espanhola, da commedia dell'arte e do drama elisabetano, a dramaturgia francesa do século XVII orientou-se pelo ideal clássico do grupo de poetas La Pléiade, entre os quais Ronsard e Joachim du Bellay. Um conjunto rigoroso de regras passou a determinar a construção do texto, independentemente da ambientação histórica e geográfica da trama, numa forma dramática fixa, rígida e formal. As obras de Molière, Racine e Corneille, primeiro exemplo de teatro moderno, predominaram na Europa e demonstraram que tais regras podiam ser respeitadas sem prejuízo da criatividade. Molière, inspirado de início na commedia dell'arte e em Terêncio, criou a comédia de costumes e de caracteres, protagonizadas por personagens arquetípicos. Racine e Corneille escreveram tragédias de grande profundidade psicológica.

Alemanha e Áustria

Envolvidos em constantes guerras, cisões religiosas e sem nenhum centro urbano preponderante que se afirmasse como núcleo cultural, os países de língua alemã não desenvolveram uma arte dramática própria nesse período. Atraíram muitos atores ingleses que, afugentados pelas restrições ao teatro na Inglaterra, praticaram ali uma arte mambembe e popular, ao ar livre, nas feiras e praças e, em virtude das dificuldades com a língua, baseada na mímica. O teatro de bonecos italiano influenciou o teatro popular austríaco. No final do século XVII, as companhias de commedia dell'arte fizeram grande sucesso nas cortes austríacas e seu estilo foi imitado.

Numa época em que não havia ensino obrigatório, em que poucos sabiam ler e escrever e em que o conhecimento e as viagens eram acessíveis apenas a alguns privilegiados, os atores ambulantes foram os principais responsáveis pelo rompimento do isolamento cultural dos países de língua alemã em relação às culturas européias vizinhas e impulsionaram o surgimento de um teatro profissional na Alemanha e na Áustria.

Teatro jesuítico

Conscientes do poder de persuasão da dramatização, os jesuítas criaram a principal vertente do drama religioso entre os séculos XVI e XVIII. Utilizado como meio de ensinar maneiras aristocráticas aos noviços e, sobretudo, como instrumento de catequese nas colônias ibéricas recém-descobertas, o teatro jesuítico deu origem ao teatro brasileiro e a vários teatros nacionais da América Latina. Legítimos representantes da vanguarda do pensamento humanista europeu, os jesuítas excederam suas intenções didáticas iniciais e, a partir do século XVII, alguns deles e seus pupilos figuraram entre os mais importantes teóricos do teatro barroco.

Drama burguês e romantismo

As primeiras reações ao neoclassicismo surgiram na década de 1730 e vieram da classe média, até então relativamente alheia à produção cultural. Entre 1773 e 1784, desenvolveu-se o movimento alemão do pré-romantismo, ao qual se filiaram Herder, Jakob Lenz e os jovens Göethe e Schiller. O novo modelo era Shakespeare, cujas primeiras traduções para o alemão surgiram entre 1726 e 1766. Logo, porém, a produção teatral caiu na estagnação, e o romantismo, sobretudo na Alemanha, não foi capaz de produzir obras dramáticas comparáveis às do pré-romantismo.

Alemanha

Posteriormente conhecido como Sturm und Drang (Tempestade e tensão), expressão extraída do título de uma peça de Friedrich Klinger, o movimento pré-romântico surgido na Alemanha afirmava que a emoção e a sensibilidade do artista eram os únicos pré-requisitos da criação, independentemente de regras formais. O Fausto, de Göethe, cuja primeira parte foi publicada em 1808, é uma das maiores obras da literatura alemã e universal. Embora iniciada em 1770 e, portanto, com raízes nessa fase, dificilmente pode ser filiada a uma corrente literária.

França

A decadência do teatro clássico francês foi retardada pelo gênio de Voltaire e pelo talento e habilidade de Marivaux. Enfim, as tendências revolucionárias infiltraram-se também na produção literária, a exemplo da comédia satírico-política de Beaumarchais, e sufocaram o classicismo.

As peças do inglês George Lillo, na década de 1730, representaram um passo adiante na busca de certo realismo. O novo mundo da burguesia seria o ponto de partida de Diderot, que se tornou o teórico do "drama burguês", gênero comprometido com a descrição realista da vida social.

Entre 1820 e 1830, Stendhal, Alfred de Vigny e Victor Hugo lançaram suas obras e, juntamente com Manzoni na Itália, inauguraram o drama romântico. Com a estréia de Hernani, de Victor Hugo, em 1830, o teatro transformou-se em verdadeira batalha, travada entre a juventude romântica e os conservadores. O triunfo do drama romântico foi, entretanto, de curta duração e o repertório clássico voltou a dominar o teatro francês, embora obras como Antoine (1831), de Alexandre Dumas, e Lorenzaccio (1830), de Alfred de Musset, insistissem na mentalidade romântica.

Realismo e naturalismo

O movimento romântico do início do século XIX despertou o interesse por temas históricos e uma preocupação obsessiva com a autenticidade de cenários e figurinos. Até mesmo cavalos vivos subiram ao palco. A veracidade dos recursos cênicos passou a exigir atitudes mais naturais também por parte dos atores.

O realismo francês, introduzido no romance por Flaubert e Balzac, continuou no teatro de Alexandre Dumas filho, autor de La Dame aux camélias (1852; A dama das camélias). Na Rússia, a obra de Gogol representou a transição do romantismo ao realismo. Depois do fracasso das revoluções de 1848, o teatro do norueguês Henrik Ibsen -- de início romântico, depois realista e, por fim, simbolista -- dominou os palcos europeus.

As companhias de teatro, até o final do século XIX, estruturavam-se basicamente em torno de um ator principal, que centralizava também as decisões administrativas. Em 1866, George II, duque de Saxe-Meiningen, assumiu pessoalmente a direção de sua companhia oficial de teatro e alcançou um nível até então desconhecido de harmonia de conjunto entre os atores. Entre 1874 e 1890, a companhia viajou por toda a Europa com grande sucesso e difundiu a nova forma de trabalho, centralizada no diretor ou encenador. As inovações tecnológicas do período, que abriram novas possibilidades de complicados efeitos cênicos, contribuíram para a mudança. Todas as diferentes tendências do teatro moderno cristalizaram-se em torno de diretores.

O primeiro drama naturalista foi Thérèse Raquin (1873), de Émile Zola. O autor propunha uma arte dramática que fosse uma "análise científica da vida", representação literal dos fatos. A escola naturalista revolucionou a estética teatral e a ela pertenceram o sueco August Strindberg; o encenador André Antoine, do Théâtre Libre (1887-1896), em Paris; Otto Brahm, do Freie Bühne, em Berlim (1889); Jacob Grein e Bernard Shaw, do Independent Theatre Club (1891-1897), em Londres; e finalmente Konstantin Stanislavski, que montou as peças de Tchekhov no Teatro de Arte de Moscou (1898-1913). Alguns dos teatros independentes surgidos a favor do naturalismo mantiveram-se -- ou desdobraram-se -- mais tarde como núcleos de teatro experimental. Na Rússia, Tolstoi, Tchekhov e Gorki lideraram a evolução da dramaturgia, de forma independente do ibsenismo.

Teatro no século XX

Três fatores determinaram a evolução da arte teatral na primeira metade do século XX: o advento do comunismo, a crise da burguesia capitalista e a invenção do cinema e da televisão, que praticamente tomaram o lugar do teatro popular.

A caracterização psicológica dos personagens integrou conceitos da psicanálise, e o desenvolvimento tecnológico modificou todo o aparato técnico que cerca o espetáculo: luzes, cenários, som e efeitos especiais diversos. A filosofia contemporânea e os valores morais e sociais, revolucionados após as duas guerras, impregnaram o pensamento e a obra de autores e diretores. O questionamento dos valores burgueses e a recém-conquistada valorização social das massas populares, trouxe a preocupação de uma criação teatral não elitista. A negação do espaço cênico tradicional, a substituição de autor e diretor pela proposta de criação coletiva, e a busca de um novo relacionamento com o espectador foram também características marcantes da experimentação teatral do período.

Reações ao realismo

Embora o realismo do final do século XIX tenha tido continuidade, as inovações mais significativas no teatro no início do século XX foram resultado de uma violenta reação ao realismo, ao naturalismo e à concepção do mundo linear e burguesa por eles representada. A detalhada reconstituição da realidade na cena foi substituída pela simplicidade e pelo uso de símbolos.

O cenógrafo suíço Adolphe Appia compreendia os recursos cênicos como meios para colocar o ator no foco das atenções e propôs a iluminação como principal criadora de ambiência, num cenário vazio e abstrato. Suas idéias foram levadas à frente pelo diretor Gordon Craig, que expôs no livro The Art of the Theatre (1905; A arte do teatro) sua concepção do "teatro total", em que o diretor seria o único responsável pela harmonização dos vários elementos da produção teatral num todo unificado.

A vocação do teatro político de massas afirmou-se sobretudo na Alemanha, onde, a partir de 1905, Max Reinhardt procurou manter o realismo na expressão dos sentimentos, sem a monótona exatidão da reprodução da realidade. Ao invés disso, encenou peças fora das tradicionais casas de espetáculo, em circos e praças. Conseguiu assim estabelecer uma nova relação com o espectador e atingir um público popular.

O futurismo italiano, iniciado por Marinetti em 1909, prefigurou a maior parte das abordagens não-realistas do teatro posterior: dadaísmo, surrealismo, construtivismo, teatro do absurdo e mesmo os happenings da década de 1960. Velocidade, loucura, o homem como máquina foram alguns dos principais temas do movimento. Os atores misturavam-se aos espectadores, quebrando a barreira que os separava.

Expressionismo

O movimento expressionista, ponto de partida da cultura de massas, atingiu todas as artes, sobretudo a pintura, a literatura e o cinema. Sua proposta básica era alcançar o significado essencial por meio da distorção das aparências. Entre os principais expressionistas do teatro estão George Kaiser e, numa fase posterior, comprometida com o ativismo político, Ernst Toller. Na década de 1920, Erwin Piscator, um militante da organização revolucionária Liga Espartaquista, procurou atingir o inconsciente do espectador por meio de uma técnica de choque e despertar o espírito de luta no proletariado alemão, traumatizado pela primeira guerra mundial e prostrado pela miséria.

No mundo capitalista, a estética expressionista, vulgarizada pelo cinema da época e alijada de seus objetivos políticos, forneceu uma visão sintética a um público exposto a uma avalanche de informações que culminaram na crise do próprio teatro, evidenciada na metalinguagem de Pirandello; na arte irracional do surrealismo e do absurdo; e nas diversas experiências de expressão do individualismo e de criação coletiva baseada na explosão do instinto e do inconsciente.

Teatro de Artaud

As proposições únicas e anárquicas de Artaud, expressas no livro Le Théâtre et son double (1938; O teatro e seu duplo), denunciaram a decadência do humanismo e pretendiam subverter a lógica convencional. Os elementos básicos de sua concepção de teatro, que ele chamou "teatro da crueldade", foram o duplo, o transe e a própria crueldade.

Teatro marxista

Experimentações como o construtivismo de Vsevolod Meyerhold, inicialmente apoiadas pelo governo de Lenin, foram banidas por Stalin a partir de 1932, em nome do "realismo socialista", que compreendia as artes apenas como um meio de educar a população segundo os ideais da revolução comunista. Os cenários tornaram-se cada vez mais detalhados e toda tentativa de abstração ou simbolismo foi condenada, como expressão de formalismo burguês e vazio. O teatro russo entrou em total estagnação.

O teatro épico de Brecht -- autor alemão que se tornou marxista no final da década de 1920 e radicou-se em Berlim oriental no final da década de 1940 -- alterou de forma irreversível a história do espetáculo teatral.

Multiplicação de tendências

No decorrer do século, tornou-se praticamente impossível classificar todas as tendências da dramaturgia, que se recombinam continuamente em novas formulações. Propostas racionais e políticas muitas vezes empregam recursos típicos do que seria o teatro metafísico e irracional e vice-versa.

O realismo, modificado pelas correntes estéticas que o contestaram, sobreviveu com Ibsen e Bernard Shaw. As peças de tese, que apresentam e defendem um ponto de vista, cresceram em importância depois de 1945, com as obras de Albert Camus e, sobretudo, Sartre. O teatro realista desenvolveu-se principalmente nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Stanislavski, Artaud e Brecht foram os principais inspiradores do teatro contemporâneo. O método interpretativo de Stanislavski influenciou a atividade teatral no mundo inteiro, sobretudo na Rússia e Estados Unidos. O sucesso da obra de Brecht desencadeou um verdadeiro surto de teatro político nos Estados Unidos. Na América Latina, destacou-se a obra de García Lorca, reveladora dos costumes nacionais e da estrutura social patriarcal, e do mexicano Rodolfo Usigli.

A herança de Artaud perpetuou-se em diretores como Roger Blin, Maurice Béjart, Jorge Lavelli, Victor García e Peter Brook; em dramaturgos como Jean Genet e Jean Cocteau, que renovaram a literatura francesa; e em grupos como o americano Living Theater e o Teatro Laboratório do polonês Jerzy Grotowski. Eugène Ionesco, com La Cantatrice chauve (1950; A cantora careca), e Samuel Beckett, com En attendant Godot (1953; Esperando Godot), inauguraram o teatro do absurdo, que rompeu com o humanismo, os enredos psicológicos e destruiu o sentido lógico do texto.

Teatro no Brasil

Período colonial

O teatro brasileiro teve origem com os jesuítas, que utilizaram o espetáculo como instrumento de catequese. Atribui-se ao padre José de Anchieta a autoria dos textos conhecidos atualmente e encenados pelos jesuítas no século XVI. As peças, catequéticas e didáticas, eram freqüentemente bilíngües ou trilíngües, escritas em português, espanhol e tupi. Anchieta, influenciado pelos autos do português Gil Vicente, seguiu a tradição do teatro religioso medieval e escreveu peças de circunstância, porém adaptadas à nova realidade americana, com a inclusão de elementos da cultura indígena.

As primeiras manifestações teatrais desvinculadas da catequese surgiram no Brasil a partir da segunda metade do século XVIII. A construção de edifícios próprios -- as chamadas casas de ópera, onde passou a funcionar um teatro regular -- atesta o progresso das artes cênicas. Em Vila Rica (posterior Ouro Preto) foi construído provavelmente o mais antigo teatro da América do Sul. Do período colonial, poucas peças, todas de pouco valor dramático, chegaram a nossos dias. Destaca-se a qualidade da obra de Antônio José da Silva, conhecido como o Judeu, brasileiro educado em Portugal, que no entanto pertence mais propriamente à cultura da metrópole.

Comédia brasileira

A independência, proclamada em 1822, criou o ambiente em que eclodiram o romantismo e os sentimentos nacionalistas na arte brasileira. João Caetano, o primeiro grande ator brasileiro, exerceu importante papel na história do teatro nacional. Em 1833, após atuar ao lado de portugueses radicados no Brasil, formou a primeira companhia brasileira.

Em 1836, Gonçalves de Magalhães, em artigo na revista Niterói, editada em Paris por um grupo de brasileiros, chamava a atenção do público para o tema da nacionalidade. Em 1838, a companhia de João Caetano lançou Magalhães, com a peça Antônio José ou O poeta e a Inquisição, e Martins Pena, fundador da comédia de costumes brasileira, com O juiz de paz na roça. A obra de Martins Pena inclui vinte comédias e seis dramas e, embora interrompida pela morte precoce do autor aos 33 anos, representa um divisor de águas, com a introdução no teatro da linguagem popular e coloquial, da sátira social e dos retratos de situações quotidianas. Algumas de suas peças, como O noviço (1845), subsistem no repertório moderno.

Fase romântico-naturalista

A dramaturgia de Gonçalves Dias, embora inferior a sua produção poética, é a mais representativa da segunda metade do século XIX. As peças Patkull e Beatriz Cenci, ambas de 1843, fazem evidentes concessões ao gosto folhetinesco da época, embora já demonstrem grande talento. Em Leonor de Mendonça (1846), que impressiona pelo equilíbrio formal e a elegância e teatralidade do diálogo, o autor se liberta dos previsíveis clichês românticos.

A obra de Qorpo-Santo, pseudônimo do gaúcho José Joaquim de Campos Leão, foi escrita em sua maior parte em 1866, ano em que sofreu grave crise psíquica. Produziu um teatro totalmente estranho ao ambiente romântico, pelo vigor do nonsense. Considerada como uma antecipação do teatro do absurdo, a obra de Qorpo-Santo seria resgatada pelo escritor Guilhermino César na década de 1960.

Os grandes nomes da literatura nacional no século XIX não pareceram, em geral, inclinados ao teatro. Pequena importância alcançou a dramaturgia esporádica de romancistas de talento como Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar -- o qual declarou explicitamente que seguia modelos franceses por não existirem os nacionais. Pouco tiveram a acrescentar poetas consagrados como Álvares de Azevedo, Castro Alves e Casimiro de Abreu.

Teatro de costumes

França Júnior e Artur de Azevedo consolidaram a comédia de costumes iniciada por Martins Pena. As peças de França Júnior mostram domínio técnico e uma superação da ingenuidade romântica que aproximam sua obra do espectador contemporâneo. A sátira social se apura em Como se faz um deputado (1882), Caiu o ministério! (1884) e As doutoras (1889). A obra de Artur Azevedo representa uma reação contra os abusos do gênero ligeiro que, àquela altura, ameaçava extinguir o drama e a comédia. Seu estilo é simples, direto e de grande fluência. As burletas A capital federal (1897) e O mambembe (1904) são modelares no gênero.

Simbolismo e reação modernista

No começo do século XX, a produção dramática foi extremamente irregular. O teatro francês ditava as normas da dramaturgia. A primeira guerra mundial dificultou as comunicações com a Europa e, ainda mais, a presença das companhias estrangeiras no Brasil, o que abriu caminho para o teatro nacional. Em 1915 fundou-se no Rio de Janeiro o teatro Trianon. Destacaram-se então como dramaturgos sobretudo João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, cronista brilhante e autor de Eva (1915) e A bela madame Vargas; e também Gastão Tojeiro, Roberto Gomes e Paulo Gonçalves.

A imaturidade do modelo brasileiro de dramaturgia fez com que as décadas de 1920 e 1930 se caracterizassem como o período em que se manifestou a hegemonia dos atores, cujos nomes famosos eram suficientes para atrair o público, sem que houvesse unidade estética no espetáculo quanto a cenografia, figurino, iluminação e mesmo integração do elenco. Consagraram-se assim Itália Fausta, Leopoldo Fróis, Procópio Ferreira e Dulcina de Morais, entre outros.

Contra o teatro acadêmico e indeciso investiu o movimento modernista de 1922, com Eugênia e Álvaro Moreira, fundadores do efêmero porém notável Teatro de Brinquedo, cujos cenários eram como miniaturas; Joraci Camargo, cuja peça Deus lhe pague (1932) se confunde com a primeira tentativa de teatro social no país; e sobretudo Oswald de Andrade, com O rei da vela (1934) e A morta (1937).

Formação de grupos

O teatro de arte, e não apenas de entretenimento, conquistou definitivamente seu espaço a partir da década de 1930. Em 1938, após conhecer o teatro inglês, Pascoal Carlos Magno fundou no Rio de Janeiro o Teatro do Estudante do Brasil, onde foram encenadas peças de Shakespeare, Ibsen, Sófocles e Eurípides. Ali, instituiu a figura do diretor, extinguiu o ponto (encarregado de murmurar as falas para os atores em cena, em caso de esquecimento) e valorizou a equipe de cenógrafos e figurinistas. Em São Paulo surgiram grupos experimentais que revelaram talentos como os de Cacilda Becker e Paulo Autran. Em Recife surgiu, em 1941, o Teatro de Amadores de Pernambuco.

A renovação estética efetiva do palco brasileiro se deu com a fundação, em 1941, do grupo amador Os Comediantes. A partir de sua imposição, na década de 1940, pode-se afirmar que a tônica do espetáculo passou do intérprete ao diretor. O responsável por essa mudança foi o diretor e intérprete polonês Zbigniew Ziembinski, que chegou ao Rio de Janeiro em 1941, fugindo da guerra. De linguagem expressionista, era um mestre da iluminação e passou a coordenar todos os elementos do espetáculo, o que fez sobressair no resultado final o trabalho de equipe. Em 1943, teve impacto surpreendente sua montagem de Vestido de noiva, peça que impôs o nome de Nelson Rodrigues como o autor que renovaria o teatro nacional. A estréia da peça inaugurou a moderna dramaturgia brasileira, em que se destacaram também Jorge Andrade, com A moratória (1932); Ariano Suassuna, com Auto da compadecida (1955); e Dias Gomes, com O pagador de promessas (1954).

O Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), criado em São Paulo em 1948, herdou as diretrizes de Os Comediantes. Patrocinado por um empresário paulista, manteve um elenco fixo de mais de trinta atores e dominou a produção teatral na década seguinte. Restrito quase exclusivamente a peças consagradas na Europa e Estados Unidos, levou o público de classe média ao teatro. A segunda guerra mundial trouxe também ao Brasil diretores estrangeiros como Adolfo Celi, Luciano Salce, Flaminio Bollini Cerri e Ruggero Jacobbi. Seu trabalho influenciou a formação dos primeiros diretores brasileiros: Antunes Filho, José Renato, Flávio Rangel e outros.

Como reação a esse teatro estrangeiro, surgiu no final da década de 1950 o Teatro de Arena de São Paulo, dirigido inicialmente por José Renato e depois por Augusto Boal. Em 1958, o grupo obteve o primeiro grande êxito, com a montagem de Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, brasileiro de origem italiana. O Arena iniciou então um laboratório de dramaturgia que produziu textos, encenados um após outro, sempre com o propósito de examinar um aspecto da realidade do país. Após um período de hegemonia do diretor, firmou-se assim, no início da década de 1960, a preponderância do dramaturgo brasileiro.

O Arena encenou grandes sucessos de bilheteria e configurou-se como importante centro experimental e criador de uma linguagem autóctone de interpretação e cenografia. A primeira contribuição importante de Boal como dramaturgo foi Revolução na América do Sul (1960). O teatro épico à maneira de Brecht serviu de base à formulação de seu "sistema curinga", em que cada personagem é representado alternadamente por vários atores, que se revezam também na função de "curinga", figura que permanece fora da cena, explicando-a e comentando-a. O recurso foi utilizado pela primeira vez em Arena conta Zumbi (1965), texto escrito em parceria com Gianfrancesco Guarnieri e musicado por Edu Lobo. No Rio de Janeiro, Maria Clara Machado, autora e atriz dedicada basicamente ao teatro infantil, fundou em 1952 o grupo experimental O Tablado, que formou várias gerações de atores.

Surgido em São Paulo em 1961, o Grupo Oficina foi responsável por algumas das montagens mais importantes do teatro brasileiro contemporâneo, dirigidas por José Celso Martínez Correia. Destacou-se inicialmente a peça Os pequenos burgueses, de Gorki, encenada em 1964. Em 1967, a primeira montagem de O rei da vela, de Oswald de Andrade, texto publicado trinta anos antes, marcou o início de uma nova fase -- tropicalista e ligada ao momento político -- no trabalho do grupo e fez de José Celso uma das mais vigorosas e discutidas personalidades do teatro nacional. Seguiram-se, com texto e música de Chico Buarque de Holanda, Roda viva (1967) -- cujo elenco foi mais de uma vez agredido pela platéia e que terminou suspensa pela censura federal -- e montagens de textos de Brecht.

No início da década de 1970, após profunda crise que levou ao afastamento de vários integrantes do elenco original, o Oficina remontou alguns de seus sucessos anteriores, com os quais excursionou pelo país e cobriu prejuízos financeiros sem, no entanto, obter o mesmo impacto. O último espetáculo foi Gracias señor.

O grupo Opinião ateve-se à sátira política em forma de musical. O primeiro espetáculo, que deu nome ao grupo, foi idealizado por Augusto Boal, Oduvaldo Viana Filho, Armando Costa e Paulo Pontes. Reunia os cantores e compositores Zé Kéti e João do Vale e a cantora Nara Leão, que alternavam canções nordestinas, cubanas e sambas de morro com textos que denunciavam injustiças sociais.

Grupos independentes

A renovação do teatro brasileiro muito deve também aos grupos semiprofissionais, existentes em grande número por todo o país: somente no Rio de Janeiro, havia mais de trezentos no início da década de 1980. O grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone, surgido nessa época, montou O inspetor geral, de Gogol, e as criações coletivas A farra da Terra, Trate-me leão e Aquela coisa toda.

Final do século XX

A gaúcha Denise Stocklos consagrou-se no mundo inteiro com seu "teatro essencial", cujos espetáculos, baseados em elaborada técnica corporal, são resultado de um trabalho solitário de texto, direção e atuação. Antônio Nóbrega, ator e músico, alcançou grande qualidade na linha de teatro popular, com raízes no cordel e no circo.

A dramaturgia de Nelson Rodrigues foi redescoberta e ocupou os palcos e a televisão brasileiros em meados da década de 1990, após a reedição de suas obras completas e o lançamento de O anjo pornográfico (1994), biografia do dramaturgo escrita por Rui Castro. Experiências de linguagem continuaram a ser feitas por diretores como Gerald Thomas, Bia Lessa, Márcio Viana, Gabriel Vilela e Moacir Góis.

Teoria e crítica teatral

Fruto do trabalho de pensadores e filósofos que se dedicam a questões estéticas, de homens de teatro e também de críticos profissionais, a crítica teatral privilegiou tradicionalmente o aspecto literário da dramaturgia, em detrimento do espetáculo.

A poética de Aristóteles, escrita no século IV a.C., é o primeiro documento fundamental de teoria teatral. Estuda as leis que regem a estrutura da tragédia, da comédia e do drama satírico. Considera o teatro como imitação (mimese) de ações da vida real, com o objetivo de suscitar a compaixão e o terror e promover a purgação (catarse) dessas emoções.

O Renascimento italiano foi o ponto de partida da moderna crítica teatral, com a redescoberta e minuciosa análise dos textos greco-romanos. Uma das questões mais controvertidas da teoria teatral renascentista foi a lei das três unidades (ação, tempo e lugar), atribuída a Aristóteles mas formulada explicitamente pela primeira vez em 1570, por Castelvetro. Essa lei postulava que a ação cênica devia transcorrer, durante toda a peça, num único lugar e no tempo real. Transformadas em dogmas inquestionáveis, as proposições aristotélicas, base do classicismo, tiranizaram a produção dramática no Ocidente durante mais de um século.

Na Espanha, a indiferença às normas clássicas foi representada sobretudo pela obra de Lope de Vega. Atacado por Cervantes, veemente defensor do classicismo, Vega defendeu-se em Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo (1609), livro em que afirma conhecer as regras mas ignorá-las propositalmente enquanto escreve, para que sua liberdade de criação não seja obstada por falsos preceitos.

Na Inglaterra, até o final do século XVIII, puritanos como Jeremy Collier atacam os homens de teatro. Enquanto isso, na França, a maior parte dos teóricos defendia resolutamente os preceitos clássicos. Apenas no final do século XVII, Saint-Évremond afirma que a Poética não contém leis válidas universalmente e Diderot, criador do drama burguês, pregou o triunfo do homem natural e de uma civilização liberta de preconceitos.

O reformulador do teatro alemão foi Gotthold Ephraim Lessing, que reestudou o sentido da catarse em Aristóteles e postulou que, para que o público de sua época pudesse se identificar com os personagens e experimentasse compaixão e terror, a cena não devia tratar de reis e príncipes, mas de burgueses. Compreendeu o teatro grego como exemplo de dramaturgia nacional e propôs Shakespeare como novo modelo. Acreditava que o gênio não precisa submeter-se às regras literárias, pois é seu criador.

Na França, no início do século XIX, os jornais diários passaram a contar com uma seção especializada em crítica de arte. Ao escrever para o público leigo, que passou a ter acesso a textos dessa natureza em seu jornal habitual, o crítico ganhou relevância social.

Victor Hugo afirmou-se como líder do romantismo a partir do prefácio ao drama Oliver Cromwell (1827), em que elogia Shakespeare, defende a liberdade do autor, proclama o valor do grotesco na arte e a coexistência de elementos trágicos e cômicos numa mesma obra, pois assim é a vida. O trabalho crítico de Zola tornou-se a teorização mais completa e minuciosa da nova corrente literária naturalista.

O romantismo alemão teve como fundadores os irmãos August Wilhelm e Friedrich Schlegel, que juntos publicaram o ensaio teórico Charakteristiken (1801; Características). Hegel e Nietzsche, dois dos mais importantes filósofos do século XIX, deixaram valiosas contribuições à análise do drama. As idéias de Hegel influenciaram mais tarde o marxismo, que por sua vez determinou a direção do teatro político de Bertolt Brecht e Erwin Piscator. Nietzsche, em Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik (1872; O nascimento da tragédia pelo espírito da música), afirmou que a tragédia é fruto da tensão permanente entre a razão e o que há de emocional, instintivo e irracional no homem.

Na Inglaterra, Coleridge estudou Shakespeare e os outros elisabetanos. William Archer, inimigo do teatro poético, atacou-os e introduziu Ibsen nos palcos ingleses. Bernard Shaw defendeu a arte como meio de propaganda política e ideológica, advogou a peça de tese e admitiu a função educativa, de ordem prática e imediata, do teatro. Em The Quintessence of Ibsenism (1891; A quintessência do ibsenismo) colocou Ibsen acima de Shakespeare, ídolo da crítica oficial.

Já no século XX, Adolphe Appia, cenógrafo suíço, defendeu a primazia da encenação sobre o texto literário, visão condizente com o predomínio do diretor teatral a partir de então. Em Le Thêatre et son double, Artaud expôs sua concepção de teatro da crueldade e contesta o racionalismo burguês e a civilização ocidental. Propõe a renúncia à psicologia, à dissecação dos sentimentos e à presença de elementos sociais, deformados por preconceitos e religiões, na obra teatral.

Na Rússia, foi fundamental o trabalho de Stanislavski, sistematizador de uma nova teoria da interpretação que supõe implicitamente uma visão teórica e crítica do teatro. Entre seus opositores, destacou-se Meyerhold, que propunha a anulação da identidade do ator, visto como um mecanismo biológico a serviço da estética global do espetáculo.

Na Alemanha, Brecht, uma das principais figuras do teatro do século XX, produziu também uma obra crítica fundamental. Sua concepção de realismo socialista não pretende hipnotizar ou convencer o público mas, ao contrário, fomentar a discussão, por meio de um teatro épico e narrativo, preservando o distanciamento crítico do espectador. É importante também a obra de Piscator e Walter Benjamin, esse último autor de algumas das mais expressivas análises de Brecht.

Fonte:
E-Learning. DIGERATI. EL010 (CD-Rom)

Nilto Maciel (Panorama do Conto Cearense – Parte VII)

Fran Martins, nascido Francisco Martins, é natural de Iguatu (13 de junho de 1913) e faleceu em Fortaleza (1996). Filho de Antônio Martins de Jesus e Antônia Leite Martins. Uma das principais figuras do grupo e da revista Clã, cujo número inaugural saiu sob a sua direção. Formou-se em Direito, lecionou na Faculdade de Direito e na de Ciências Econômicas da UFC e escreveu inúmeras obras jurídicas. Colaborou em jornais e revistas de diversos Estados. Redator de A Esquerda e O Estado. Sua obra literária é vasta. No gênero conto estreou com Manipueira (1934), seguindo-se Noite Feliz (1946), Mar Oceano (1948), O Amigo de Infância (1960) e Análise (1989). Escreveu alguns romances: Ponta de Rua (1937), Poço dos Paus (1938), Mundo Perdido (1940), Estrela do Pastor (1942), O Cruzeiro Tem Cinco Estrelas ((1950) e A Rua e o Mundo (1962). É autor também da novela Dois de Ouros (1966), considerada sua melhor obra.

Na opinião de Montenegro, “o atributo dominante da obra de Fran Martins é a lógica.” Mais adiante acrescenta: “A sua atitude literária é sempre infensa à tendência moderna de erguer e sublimar os fenômenos artísticos a um plano essencialmente teórico ou intelectual, o que muita vez implica na efetiva negação da veracidade de certas leis da vida, mas, ao mesmo tempo, eleva o pensamento criador a evidente plenitude de domínio e eficácia. O mundo em que o escritor coloca a ação de seus romances e de seus contos é um mundo de observação, mais que de concepção; de imagem, mais que de símbolo; de percepção, mais que de intuição”. Em outro parágrafo, o crítico faz a seguinte análise: “Se nos contos de Manipueira (1934), seu livro de estréia, encontramo-lo preocupado com assuntos regionais, com os aspectos anedóticos do fanatismo e do cangaço, vemo-lo agora atento aos temas poéticos, palpitantes de vida e humanidade (...)”

No ensaio “Diálogo Intratextual: A Ruptura da Normativa”, (AAA, págs. 159/164), F. S. Nascimento assim se refere a Fran: “Possuindo boa leitura da moderna prosa de ficção em língua inglesa, conhecendo no original Sherwood Anderson, John dos Passos, Ernest Hemingway e outros, presume-se que Fran Martins tenha se inspirado nas lições dos mestres estrangeiros para realizar a experiência que seu novo livro de contos encerra.” Mais adiante comenta”: “Ao escrever “Cão Vadio” (Noite Feliz, 1946), Fran Martins já demonstrava seguro domínio dos elementos fundamentais da moderna ficção, tais como o fluxo da consciência, a voz ou reflexão solitária, o flash-back etc.” O crítico apresenta mais argumentos a favor do conceito de modernidade na obra de Fran Martins: “O que se admite por mais ousado no diálogo de alguns dos novos contos de Fran Martins está, de fato, na ruptura extrema da normativa, sendo rejeitada até a aspa simples”.

Analisando-se as narrativas curtas de Fran Martins, percebe-se o quanto a utilização de determinada técnica de narração pode fazer com que uma obra literária seja desviada do caminho da vulgaridade ou da mediocridade e chegar ao leitor envolta numa aura muitas das vezes de sublimidade. Assim, veja-se “O Amigo de Infância”, primeiro do livro de título homônimo. Dois homens (Chico e Gustavo) se encontram numa rua, relembram a infância, dirigem-se a um café, continuam falando do passado e, finalmente, se despedem. Apenas isto. Seria uma história insossa, menor, não tivesse Fran dado à forma de narrar um tratamento refinado. Até o desenlace seria trivial, com a última fala, a do garçom, de feitio anedótico. Mesmo sendo o desfecho da história, o arremate moral, a dar à narrativa um tom realista, próximo do naturalismo – o retrato do caráter de um dos personagens.

Em “Ventania” muda novamente o contista o rumo de sua arte de narrar. Aqui o protagonista é o narrador, sem nenhuma dúvida. E por que o nome do cavalo como título? O cavalo seria o elo de ligação de dois mundos: o do narrador e o das outras duas personagens (o pai e a mãe). Ventania seria também a causa do alvoroço do narrador, um vento forte a lhe varrer a inocência.

O conflito vai sendo apresentado de forma sutil, na visão do narrador, um menino. E tudo é presente, isto é, não há passado anterior. O drama é narrado linearmente, embora na voz pretérita, porém sem flashback. Tudo se passa em poucos dias, de forma acelerada, como numa corrida. Apesar disso, a narração é lenta, comedida, sem atropelos, correrias. Nas obras anteriormente citadas, as personagens se deslocavam pela rua, pela escola, pelas margens de um rio, pela cidade. Nesta, o narrador vai ao quintal, volta ao quarto, gira ao redor de si mesmo, até quando vai à escola. Faz voltas ao redor de sua dor, embora seu pai saia a cavalo, em busca de outra mulher, e sua mãe chore pela casa.

Caio Porfírio Carneiro escreveu: “Fica a impressão – mais que isto: a certeza – de que a força narrativa do romancista sempre lhe deu sinais, como uma pilha que se não apaga, de que o conto sempre o chamou de volta, e para ele sempre voltou. Não com o ímpeto do romancista, mas com o carinho do cinzelador. Eis porque deixou páginas preciosas de ficção curta”.
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(Manuel) Eduardo (Pinheiro) Campos nasceu em 1923, em Guaiúba, então distrito de Pacatuba. Estreou em 1943, com a coleção Águas Mortas. Seguiram-se, neste gênero, em 1946 Face Iluminada, em 1949 A Viagem Definitiva, em 1965 Os Grandes Espantos, em 1967 As Danações, em 1968 O Abutre e Outras Estórias (constituído por uma seleção dos presumíveis melhores contos), em 1970 O Tropel das Coisas, em 1980 Dia da Caça, em 1993 O Escrivão das Malfeitorias, em 1998 A Borboleta Acorrentada e em 1999 O Pranto Insólito. Tem também peças de teatro, livros de folclore, romances, ensaios, biografias, memórias, além de grande número de produções especiais para o rádio e televisão. Seus principais romances são O Chão dos Mortos e A Véspera do Dilúvio. Durante dez anos dirigiu a Academia Cearense de Letras; foi Secretário de Cultura do Estado, Presidente do Conselho Estadual de Cultura, e é Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará. Figura em antologias nacionais e internacionais de contos. É bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Iniciou-se nas letras escrevendo, dirigindo e representando peças de teatro. Sua peça O Morro do Ouro foi representada 350 vezes; A Rosa do Lagamar, mais de 500. Sua obra teatral foi reunida em dois volumes, contendo O Demônio e a Rosa, O Anjo, Os Deserdados, A Máscara e a Face, Nós, as Testemunhas, no primeiro, A Donzela Desprezada, O Julgamento dos Animais, O Andarilho, além das já mencionadas. Tem pequenas histórias incluídas em dez antologias, das quais duas no Uruguai e uma na Alemanha.

Embora não tenha alcançado notoriedade no resto do Brasil, no restrito espaço da crítica literária, Eduardo Campos tem seu nome gravado em alguns importantes compêndios de História da Literatura. Assim, está presente em A Literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho, pelo menos no ensaio de Herman Lima: (...) “folclorista de altos méritos, tem, naqueles livros (refere-se aos três primeiros da bibliografia do contista), alguns contos regionais e psicológicos da melhor marca, a exemplo de “Os Abutres” e “O casamento”, o último, principalmente, na sua força bem da terra cearense, dos mais belos da atualidade brasileira”.

Eduardo Campos é um mestre do conto psicológico. Em “O Afogado”, do livro As Danações, o drama parece ir se deslocando não de lugar, mas de personagem, sob a óptica do narrador onisciente. O protagonista seria o afogado? Ou seria a podridão moral dos homens? No final, com o surgimento do cadáver, o narrador arremata a narrativa com uma frase moralista: “Foi quando os homens, amesquinhados, começaram a pensar que não era o afogado que malcheirava, mas eles, que haviam apodrecido em vida”.

No livro Três Momentos da Ficção Menor, F. S. Nascimento analisa “O Abutre”, no “Momento III”, e defende a tese de que “já em 1946 esta concepção de “new short story” era praticada no Ceará, efetivando-se na criação de “O Abutre”, de Eduardo Campos.” A seu ver, “O Abutre” se impõe como um modelo da “new short story”, sendo tão atual quanto “Cão Vadio” de Fran Martins, “Os Sete Sonhos” de Samuel Rawet, “A Coisa” de Garcia de Paiva” e qualquer uma das unidades narrativas de O Casarão, de Caio Porfírio Carneiro.”

Eduardo Campos, no entanto, não se repete nas formas de narrar. Assim, em “A Viúva Enganada”, do mesmo livro As Danações, o desenlace se esboça não no começo, mas no título, o que não deixa de ser curioso, se não for original.

Na peça que dá título ao livro o contista também não muda o ponto de vista, e a narração vem recheada de falas curtas e diálogos breves, acrescentado o discurso indireto livre, embora ainda sem muita ousadia.

Na opinião de Braga Montenegro, em “Eduardo Campos, Contista”, apresentação de O Abutre e Outras Estórias (1968), “é no conto onde melhor se manifestam suas qualidades de talento”. E acrescenta que se manifesta, “com maior freqüência, em Eduardo Campos o feitio de um escritor regionalista, no que não lhe vai qualquer restrição”.

Em O Abutre e Outras Estórias, possivelmente escrito logo após As Danações, Eduardo Campos utiliza outros focos narrativos. Assim, em “O Casamento” se vale do ponto de vista do escritor onisciente, que dá voz às personagens em breves diálogos diretos e também em um monólogo interior.

Em “O Ficcionista Eduardo Campos” (Exercícios de Literatura, págs. 135/138), Francisco Carvalho analisa o volume Dia da Caça assim: “São contos de estrutura relativamente simples, em que se evidencia a familiaridade do Autor na abordagem de certas manifestações do lirismo popular, ao lado de uma particular sensibilidade pelos termos ligados à terra e ao homem”.

Passando dos primeiros livros para os mais recentes, como A Borboleta Acorrentada, observa-se que a linguagem do contista em nada mudou, consciente de que os modismos passam e o mais valioso na obra literária não está na aparente transgressão de normas.

Apesar desse apego à narração, o contista não esqueceu as outras linguagens, como o discurso indireto livre. Percebe-se também a presença, embora não muito freqüente, do monólogo interior indireto. E nada de explicações, volteios circenses, excesso de figurantes e cenários.

Na opinião de Herman Lima, “`O Abutre`, de Eduardo Campos, e ‘Lama e Folhas’, de Moreira Campos, por exemplo, são dos mais belos e originais, que já se escreveram entre nós, em qualquer tempo”.

Braga Montenegro (1907-1979), mais conhecido como “crítico de primeira plana, ensaísta agudo e sensível”, no dizer de Herman Lima, o contista e novelista estreou com Uma Chama ao Vento (contos, 1946), reeditado em 1980 pelas Edições UFC, seguindo-se, em 1976, As Viagens e Outras Ficções, (novelas e contos), mais uma seleção dos Contos Derradeiros, até então inéditos em livro. Em Uma Antologia do Conto Cearense esteve presente com “Os Demônios”, editado pela primeira vez em 1959, na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras. Sânzio de Azevedo analisa as histórias do autor de Correio Retardado em “Braga Montenegro, Crítica e Ficção” (Aspectos da Literatura Cearense, págs. 265/276).

Francisco Carvalho estuda a obra de Braga em “A Inquieta Modernidade de Braga Montenegro”, incluído na 2a. edição de Uma Chama ao Vento e em Exercícios de Literatura. E elucida: “um dos aspectos a destacar em Braga Montenegro é o permanente sentido de universalidade que caracteriza os seus trabalhos de ficção. Universalidade nascida da convicção de que o homem é tudo o que importa. Não o têm seduzido, por isso mesmo, os regionalismos tipificadores, com o seu conhecido cortejo de deformações. Muito embora as raízes espirituais do ficcionista mergulhem fundo nas fontes da literatura européia, importa assinalar que isso em nada lhe compromete a originalidade, nem lhe desfigura as matrizes do impulso criador. Não menos digna de nota é a verticalidade com que o ficcionista engendra situações no contexto das suas narrativas e com que tece a teia do acaso em que se envolvem os seus personagens. Em nenhuma das novelas e contos do presente volume a atmosfera ficcional vem a ser comprometida pelo simples devaneio formal ou pelo discurso literário inconseqüente”. Ao se referir às histórias curtas, o crítico vê nelas “peças de extraordinária expressividade e de considerável beleza literária. A austera poesia dessas páginas como que nos fere a sensibilidade com a sua pungência avassaladora. ‘Os Demônios’, ‘O Hóspede’, ‘O Potrinho Pampa’, ‘Agonia’ e ‘Ansiedade’ são, inquestionavelmente, documentos que se impõem pela autenticidade e grande beleza literária com que foram realizados”. Destaca também “O Tesouro”.

Segundo Pedro Paulo Montenegro, na análise crítica de trecho de uma obra de Braga, constante da Antologia Terra da Luz – Prosadores, de 1998, o autor de Uma Chama ao Vento é “cultor de um estilo elegante, culto, que se poderia dizer clássico, na linhagem machadiana”.
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Entretanto, de todos os nomes aqui citados, desde Juvenal Galeno e José de Alencar, passando por outros expoentes da literatura cearense, até hoje (2004), somente um pode ser chamado de contista por excelência ou por natureza – Moreira Campos. Os outros foram mais poetas ou mais romancistas. E isto não é apenas uma opinião, é uma constatação. Vejam-se os estudos, as teses, as monografias, as histórias, as enciclopédias – em todos eles, quando o assunto é conto, o primeiro nome cearense é o de Moreira Campos. São também citados com freqüência os nomes de Caio Porfírio Carneiro e Juarez Barroso. No entanto, ainda há uma imensa lacuna nessas publicações, uma grande omissão, porque estes e outros contistas cearenses têm tanta importância quanto muitos contistas de outros Estados que aparecem em livros de pesquisa e análise editados principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Alfredo Bosi, ao se referir ao Ceará, menciona poucos nomes, omitindo pelo menos três dos mais importantes: Gustavo Barroso, Herman Lima (lembrado apenas como ensaísta) e Moreira Campos. Está escrito na página 482 de sua História Concisa: “O Ceará conta com prosadores que honram a tradição do romance naturalista que lá conheceu o alto exemplo de Oliveira Paiva e Domingos Olímpio, sem falar nos pais da literatura regional brasileira, Alencar e Franklin Távora”. Afirma que depois de Raquel de Queiroz lembra apenas Fran Martins, Braga Montenegro e João Clímaco Bezerra, dos quais cita alguns livros.

Antonio Hohlfeldt, em Conto Brasileiro Contemporâneo, não olvidou o nome de Moreira Campos e fez breves referências a outros contistas cearenses, como Holdemar Menezes, que se radicou no Sul do Brasil e lá escreveu livros, Juarez Barroso, Mario Pontes, Paulo Véras, que nasceu no Piauí mas viveu e escreveu no Ceará, e Socorro Trindad. O crítico gaúcho se dedicou a pesquisas mais amplas e, sem má vontade, escreveu duas páginas a respeito de Moreira Campos, no capítulo V, intitulado “O Conto Rural”, no qual são analisadas também as obras de Guimarães Rosa, Bernardo Élis, Jorge Medauar, Caio Porfírio Carneiro, Guido Wilmar Sassi e José J. Veiga. Para comentar as composições de Moreira Campos, faz constantes transcrições de estudos assinados por Antônio Houaiss, Temístocles Linhares, Hélio Pólvora e Francisco Carvalho.

Temístocles Linhares, em 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, trata apenas de Moreira Campos, no capítulo 11, onde também estuda o baiano Cyro de Mattos e Bárbara de Araújo, e Juarez Barroso, no capítulo 19.

Assis Brasil, em A Nova Literatura – O Conto, comete um enorme erro, ao deixar de lado Moreira Campos. Ou para o crítico piauiense o escritor cearense estaria entre os “velhos contistas”? Ora, a estréia do autor de As Vozes do Morto se deu em 1949, enquanto a de Murilo Rubião é de 1947. Portanto, ignorância ou má vontade. Em outra oportunidade, no entanto, o crítico se redimiu. Pois no Dicionário Prático de Literatura Brasileira não olvidou o nome de Moreira Campos. Incluiu-o no rol dos modernistas, isto é, daqueles que escreveram entre 1922 e 1955.

Hélio Pólvora dedicou um capítulo, “A Espingarda na Parede”, de Itinerário do Conto, a Moreira Campos. Como em outros livros, o único contista cearense estudado no ensaio, se considerarmos Holdemar Menezes um contista catarinense.
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Moreira Campos (José Maria), nascido em Senador Pompeu (6 de janeiro de 1914), é filho do português Francisco Gonçalves Campos e Adélia Moreira Campos. Ingressou na Faculdade de Direito do Ceará, bacharelando-se em 1946. Licenciou-se em Letras Neolatinas em 1967, na antiga Faculdade Católica de Filosofia do Ceará. Na área do magistério iniciou-se como professor de Português, Literatura e Geografia em colégios. Exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará, Curso de Letras, como titular de Literatura Portuguesa. Integrante do Grupo Clã. Pertenceu à Academia Cearense de Letras. Faleceu em Fortaleza, no dia 7 de maio de 1994. Deixou as seguintes coleções: Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), distinguido com o Prêmio Artur de Azevedo, do Instituto Nacional do Livro, As Vozes do Morto (1963), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (1985) e Dizem que os Cães Vêem Coisas (1987). Seus Contos Escolhidos tiveram três edições, Contos foram editados em 1978 e Contos – Obra Completa se publicaram, em dois volumes, em 1996, pela Editora Maltese, São Paulo, com organização de Natércia Campos. Tem também um livro de poemas, Momentos (1976). Participou de diversas antologias nacionais. Algumas de suas peças ficcionais foram traduzidas para o inglês, o francês, o italiano, o espanhol, o alemão.

Sua obra está estudada em importantes livros, como o de José Lemos Monteiro, intitulado O Discurso Literário de Moreira Campos, o de Batista de Lima, Moreira Campos: A Escritura da Ordem e da Desordem, e outros mais abrangentes, como Situações da Ficção Brasileira, de Fausto Cunha; 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, de Temístocles Linhares; e A Força da Ficção, de Hélio Pólvora. Em jornais e revistas se estamparam quase uma centena de artigos e ensaios sobre os seus livros.

Temístocles Linhares classifica o contista de Portas Fechadas de “um de nossos maiores contistas atuais”. E comenta: “Lê-lo, para mim, é reviver, em certos aspectos, transpostos para o ambiente de seu Ceará, os velhos mestres do naturalismo. Como eles, o autor também desconfia das grandes palavras e dos grandes gestos, preferindo tentar substituir os julgamentos de valor pelos julgamentos de existência”.

Assis Brasil escreveu: “Moreira Campos faz, no Ceará, a ligação entre o conto de história, ainda vigente nos primeiros anos do Modernismo, e o conto de flagrante, sugestivo, que as novas gerações, a partir de 1956, desenvolveriam em muitos aspectos criativos”.

Hélio Pólvora opina: Moreira Campos, “embora não sendo um tchekhoviano perfeito, dele (Tchekhov) se aproxima quando livra o conto de uma sobrecarga excessiva e procura atingir logo o alvo, localizar logo o nervo exposto”. E acrescenta: “Moreira Campos seleciona e filtra fatos que às vezes se resumem a instantes, e nesse processo informa ou sugere o conflito vivido pela personagem, mostrando, afinal, o que ela faz para resolver o conflito ou sucumbir”.

Segundo Herman Lima, no ensaio citado na primeira parte, Moreira Campos: (...) “é um mestre do conto moderno, desde o aparecimento do seu primeiro livro, Vidas Marginais (1949), no qual há pelo menos uma obra-prima do conto universal desta hora, “Lama e Folhas”. Diz mais: “As pequenas ou grandes tragédias, as comédias ocultas do cotidiano burguês, fixadas por ele, ganham, em sua mão experiente, uma especificidade que o aproxima dos maiores nomes do conto psicológico de todos os tempos, de Machado de Assis para cá, inclusive e principalmente Tchecov, de sua íntima e fiel convivência, ou, mais perto de nós, de um Joyce dos Dubliners ou um Sherwood Anderson, de Winesburg Ohio”.

Montenegro argumenta: “Moreira Campos será talvez não apenas o contista de maior projeção nas letras cearenses contemporâneas, porém, ainda, juntamente com Osman Lins, Dalton Trevisan e poucos outros, terá ele realizado o que de mais significativo existe no conto moderno brasileiro”.

Sânzio de Azevedo, principalmente no ensaio “Moreira Campos e a Arte do Conto” (Novos Ensaios de Literatura Cearense) faz algumas observações: “Na linhagem de Machado de Assis e por conseguinte na de Tchecov é que se entronca a obra ficcional de Moreira Campos” (...). Segunda: “apesar de haver optado pela narrativa sintética, extremamente despojada, com que tem enriquecido a nossa literatura através de não poucas obras-primas, não renegou os longos contos de seu primeiro livro” (...). Terceira observação: “Em Moreira Campos o que mais importa são os dramas da alma humana, e não a presença da terra, ostensivamente retratada nas páginas de Afonso Arinos e Gustavo Barroso”.

Batista de Lima, no ensaio mencionado linhas atrás, fala da corrosão física dos personagens, dos agentes dessa corrosão, dos defeitos congênitos, da decrepitude, da doença e da morte. A seguir analisa o oposto disso, ou seja, a ordem: “A nova ordem começa a ser instaurada no momento em que o narrador doma a morte, colocando-a no convívio familiar dos personagens.” E, passando da ordem narrada para a ordem vocabular, constata a constante evolução da arte do contista.

Em “As Características da Escritura de Moreira Campos” (O Fio e a Meada: Ensaios de Literatura Cearense, págs. 155/158), Batista é de opinião que o contista “transita com mestria entre momentos impressionistas, neo-realistas e neonaturalistas, sempre conservando uma estrutura linear para suas narrativas, com princípio, meio e fim bem delineados.” Especifica: “As principais características da narrativa de Moreira Campos são: uma tendência para o uso de elementos descritivos em paralelo aos narrativos; os vazios deixados para serem preenchidos pelo leitor; a eliminação de comentários e interpretações paralelas; a quase ausência de diálogos; a atuação do tempo como elemento corrosivo sobre os personagens; o uso das repetições como forma de superação das dificuldades de relacionamento entre as diferentes classes de pessoas; a ironia; a luta pela concisão.”

José Alcides Pinto, em “Um Mundo de Coisas Miúdas” (Política da Arte–II, págs. 51/52), observa: “Moreira Campos, obstinado em sua procura do novo, do mundo brilhante das coisas obscuras, melhor direi de “vidas marginais”, reapanha, com O Puxador de Terço, o início de sua carreira literária, que ele torna cíclica num processo, quase mágico de depuração estilística”. Em “Moreira Campos e a Nova Ficção Brasileira” (PA-I), ao comentar Os Doze Parafusos, afirma: (...) “abrem um novo caminho na ficção de Moreira Campos, já esboçada sob o ponto de vista erótico em outras obras, mas sem a liberdade de como os assuntos são agora tratados, vistos de frente, com um realismo mágico e epidérmico, que se inscreve, com muita propriedade, no fescenino, num clima de autonomia individual e sem o prejuízo de uma linguagem estética – função inequívoca a toda obra de arte”.

Francisco Carvalho, em “A Transparência Formal na Ficção de Moreira Campos” (EL, págs. 124/127), vê nas peças ficcionais de A Grande Mosca no Copo de Leite que “em todas elas a excelência do artesanato literário destaca-se por uma rigorosa economia de palavras e por uma extraordinária transparência formal”. E mais adiante: “A prosa enxuta, a frase carregada de sentido, a noção de ritmo e de musicalidade, o poder de síntese, o rigor no emprego da palavra, a densidade psicológica e a expressividade – são esses alguns dos aspectos que se articulam no contexto ficcional do novo livro de Moreira Campos”. Em “Contos Escolhidos” (Textos e Contextos), analisa a evolução do contista: “Os contos da primeira fase, elaborados sem qualquer preocupação de fidelidade aos paradigmas da chamada “história curta”, já se apresentam numa evidente perspectiva de modernidade”. E mais adiante: “Já nos contos da segunda fase, Moreira Campos persegue obstinadamente os horizontes da síntese, da pura essencialidade”.
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Além dos quatro grandes nomes do conto cearense surgidos com o Grupo Clã, outros escritores se destacaram no cultivo da narrativa curta após 1960. Os mais importantes são Caio Porfírio Carneiro, talvez o escritor mais vocacionado para a composição ficcional curta no Ceará, depois de Moreira Campos; José Alcides Pinto, embora mais dedicado ao romance e ao poema; e Juarez Barroso, falecido muito cedo, mas que deixou dois volumes de contos e um romance.

Caio Porfírio (de Castro) Carneiro é natural de Fortaleza (1º de julho de 1928), tendo se radicado em São Paulo em 1955. Tem cultivado a prosa de ficção curta com regularidade. Sua estréia no gênero se deu em 1961, com o elogiadíssimo Trapiá. Seguiram-se Os Meninos e o Agreste (1969), O Casarão (1975), Chuva – Os Dez Cavaleiros (1977), O Contra-Espelho (1981), Viagem sem Volta (1985), Os Dedos e os Dados (1989), A Partida e a Chegada (1995) e Maiores e Menores (2003). Seus romances são O Sal da Terra (1965) e Uma Luz no Sertão (1973). Publicou as novelas Bala de Rifle (1965), Três Caminhos, Dias sem Sol e A Oportunidade, estas em 1988. É autor também de ensaios, como Do Cantochão à Bossa Nova (ensaio sobre música popular brasileira), literatura juvenil (Profissão: esperança, Quando o Sertão Virou Mar..., Da Terra Para o Mar, do Mar Para a Terra, Cajueiro Sem Sombra), poesia (Rastro Impreciso), reminiscências (Primeira Peregrinação, Mesa de Bar, Perfis de Memoráveis). Tem recebido diversos prêmios, como o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1975.

Chuva (Os Dez Cavaleiros) é quase um romance, se é possível isto. A chave para esta observação se encontra na última narrativa, quando o décimo cavaleiro, dirigindo-se ao seu interlocutor, fala: “Olhe aqui, homem: de toda a multidão que conheci, correndo a planície, a serra do Catolé e todos os lugares que cercam a Lagoa Grande, nove ficaram na minha cabeça. Nove. Todos cavaleiros como eu”. Como se dissesse ter conhecido as outras nove histórias do livro. Nas dez peças há sempre um cavaleiro vestido de capote e coberto de chapéu, e outra personagem, ambos sem nome. A paisagem é composta de chuva, um ambiente de campo, com um casebre ou choupana, com chão de barro batido, às vezes uma vila, com uma pracinha, uma igreja abandonada e gente desvalida, sofrida, com medo. De comum também o espaço apenas referido da serra do Catolé e da Lagoa Grande, sempre muito distantes. Quase uma miragem. Para completar a narrativa, um drama e um desenlace enigmático, de parábola. Os desfechos muitas vezes estão nos títulos das histórias. O fantástico se desenha em quase todas as obras, quer no desenrolar da trama, quer no epílogo. Seria, porém, um fantástico mais próximo da parábola, do simbólico, do enigmático. Outras vezes é apenas uma sugestão. Em todos os contos a narração se dá na terceira pessoa, mais para observador do que para narrador onisciente. Talvez apenas em um trecho de uma das histórias o narrador se faz onisciente. A narração é quebrada, aqui e ali, por breves e ásperos diálogos, em linguagem culta ou literária. Caio manipula a linguagem com sabedoria, valendo-se de muita imaginação e do conhecimento das melhores ferramentas da arte de narrar.

No comentário ao mesmo livro, o escritor Marcos Rey assim se expressou: “Com os mesmos instrumentos de trabalho, a simplicidade aludida, o trato quase bíblico dos personagens, ação e diálogos, a natureza como presença obrigatória, Caio Porfírio Carneiro excede à realidade cotidiana, realizando uma obra de síntese literária envolta em poesia, sobriedade e enigmas”.

Em Os Dedos e os Dados, o contista parte por caminhos menos espinhosos, lamacentos, embora retrate também graves conflitos humanos. E se serve de formas variadas para compor as histórias. “A Promessa” é quase todo um só diálogo, de frases curtas. “A Confissão”, como o título sugere, é um diálogo. Em “A Missão” não ocorre uma só fala e a narração é composta de um longo parágrafo e uma frase curta: “A outro qualquer caberia terminar a tarefa”. É a busca da crucificação, novo Cristo sem algozes. Alguns contos tratam do relacionamento amoroso e podem ser tidos como eróticos.

Caio é um especialista da história curta, breve. No entanto, é capaz de se alongar, como em “Um Segundo”. E aí mora o mistério. Em um segundo ele consegue ser mais expansivo do que em histórias que duram horas.

F. S. Nascimento inicia assim o ensaio “Caio Porfírio Carneiro: O Novo Degrau da Ficção” (AAA, págs. 187/189): “Ao firmar posição entre os melhores contistas brasileiros deste último mear de século, Caio Porfírio Carneiro não se rendeu ao empolgamento dessa conquista, intensificando as suas experiências formais e sutilizando os processos de reconstituição de momentos culminantes ou memoráveis da existência. Essa fase de metafiguração laboratorial se inaugurava com o lançamento de O Casarão (1975), estendendo-se ascencionalmente a Os Dedos e os Dados (SP, Pontes Editores, 1989)”. Em outro parágrafo, o crítico esclarece esse argumento: “O jogo sutil dos enunciados implícitos, que Braga Montenegro admitia como refinamento do estilo na prosa de ficção, é o recurso de que mais se utiliza Caio Porfírio Carneiro para gerar o imponderável em cada fração de vida flagrada pela sua ultra-sensível máquina processadora de imagens e emoções”. Ao se voltar para o modo como o contista apresenta os diálogos, o crítico assinala: “Sucintíssimo no diálogo ou na exteriorização solitária, num ou noutro caso as unidades de sentido assim construídas se reduzem a fragmentos de mínima duração acústica, tornando mais prolongado o silêncio das personagens enquadradas pela objetiva do narrador”.

A Partida e a Chegada é outro livro de construção inusitada, a lembrar uma casa composta de fachada rococó, paredes barrocas, colunatas romanas. Como Chuva, deve ser lido como um todo, conto a conto. Leiam-se os diálogos de abertura do volume, como se fosse um prólogo ou, em termos de arquitetura, o átrio de uma casa romana ou o alpendre de antigas casas sertanejas. Duas personagens, sem nome, conversam, como se resumissem os contos que virão a seguir. A descrição do ambiente é mínima: a lua, as nuvens, as estrelas, o céu. São como cenário singelo de um palco pequeno, onde dois personagens encenassem cinco brevíssimas peças. Tudo muito contido.

Ao contrário de Chuva, todo ambientado no campo, as narrativas deste são, na maioria, de inspiração urbana. No primeiro, “A Carícia”, é narrado assalto a um banco. O contista utiliza alguns procedimentos formais mais ousados, embora não mais de vanguarda (hoje), como o cruzamento de narrações na terceira e na primeira pessoa, além do diálogo indireto e da linguagem oral. “Saparanga” e “Zecapinto” ocorrem num lapso de tempo bem mais longo do que na maioria das histórias de Caio. A contrastar com a tensão da primeira, nestas perpassa um humor circense. Os protagonistas são um tanto picarescos. Há, no entanto, uma variedade de enfoques no livro. Assim, “O Crime” é quase a reconstituição de um fato histórico, em Caucaia, Ceará.
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José Alcides Pinto, nascido em São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú (1923), tem sido muito mais poeta e romancista do que contista. Apesar disso, é também nome fundamental do conto cearense. Seu primeiro livro no gênero é de 1965, Editor de Insônia, seguido de Reflexões. Terror. Sobrenatural. Outras estórias, de 1984. Em 1997 ambos foram reeditados, sob o título Editor de Insônia e outros contos, e, como informa Pedro Salgueiro, organizador da reedição, “muitos outros contos foram resgatados do ineditismo na presente edição”. Seus poemas estão nos livros Noções de poesia & arte (1952), Pequeno caderno de palavras (1953), Cantos de Lúcifer (1954), As pontes (1955), Concreto: estrutura-visual-gráfica (1956), Ilha dos patrupachas (1960), Ciclo único (1964), Os catadores de siri (1966), As águas novas (1975), Os amantes (1979), O Acaraú – biografia do rio (1979), Ordem e desordem (1982), 20 sonetos do amor romântico e outros poemas (1982), Relicário pornô (1982), Guerreiros da fome (1984), Fúria (1986), Águas premonitórias (1986), Nascimento de Brasília – a saga do planalto (1987), O sol nasce no Acre (Chico Mendes) (1992), Poeta fui (Ora direis) (1993), Os cantos tristes da morte (1994), Silêncio branco (1998) e As tágides (2001). Tem dez romances, uma novela, uma peça teatral e três livros de artigos e ensaios.

A obra literária de Alcides Pinto está estudada em dois importantes livros: O Universo Mí(s)tico de José Alcides Pinto, de José Lemos Monteiro, e O Espaço Alucinante de José Alcides Pinto, de Paulo de Tarso (Pardal).

Editor de Insônia é dividido em “livro primeiro” e “livro segundo”. A presença de Edgar Allan Poe é visível em alguns contos: a maldade, a obsessão pelo mau, a impiedade de algumas personagens. E também o mistério, o terror. O “livro segundo” é constituído de contos e peças literárias de gêneros variados ou indefinidos. Daí a impropriedade do título geral do livro, assim como do próprio “livro segundo”.

No geral, as histórias curtas de José Alcides Pinto se afastam das principais características do conto tradicional ou clássico. Assim, ao lado de peças sem nenhum diálogo, apresenta até dois contos em forma de teatro – “Caducos” e “Granjeiros”. Em “Domingão” há apenas dois diálogos. Porém não se libertou das formas tradicionais nos diálogos: “disse”, “exclamou”, “comentou”, “gritou” etc.

José Alcides Pinto é um escritor singular na Literatura Brasileira. Não pode ser visto como um adepto do realismo fantástico ou posto ao lado de contistas como Murilo Rubião e José J. Veiga. Seus contos também não são regionalistas, assim como não o são os de Moreira Campos. Há mistérios nos contos de ambos, embora entre eles não se possa vislumbrar nenhuma semelhança. Mesmo quando os conflitos são do tipo policial, como em “O Fogo das Paixões”, não se trata de conto policial ou realista, como os de Rubem Fonseca.

Como escreveu Francisco Carvalho, na ficção de José Alcides Pinto “não há lugar para os devaneios da retórica nem para as quimeras do lirismo cordial.”
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Juarez (Távora) Barroso (de Albuquerque Ferreira) nasceu em Pernambuquinho, Serra de Baturité, no dia 19 de outubro de 1934. Filho de José Carlos Ferreira e Clélia Albuquerque Ferreira. Apesar de se ter formado em Ciências Jurídicas e Sociais, cedo ingressou no radialismo. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou jornalismo e publicidade. Por diversas vezes voltou a residir em Fortaleza, porém em 1966 se radicou na velha capital da República, onde faleceu em agosto de 1976. Premiado num concurso permanente do antigo Boletim Bibliográfico Brasileiro, em 1958, foi incluído no Panorama do Novo Conto Brasileiro (Editora Júpiter, 1964), organizado por Esdras do Nascimento, e em Uma Antologia do Conto Cearense (Imprensa Universitária do Ceará, 1965). Anunciou um estudo intitulado Estácio – Os Professores do Samba, “pretensiosa pesquisa músico-sociológica sobre o samba nos anos de 20”, segundo o próprio Juarez.

Deixou as narrativas de Mundinha Panchico e o Resto do Pessoal (1969), ganhador do Prêmio José Lins do Rêgo, do ano anterior, e Joaquinho Gato (1976). Tem também um romance, Doutora Isa (Editora Civilização Brasileira, 1978), publicação póstuma. Na “Nota Prévia” do livro, Mario Pontes esclareceu: “Na véspera de viajar, em minha companhia, à capital paulista para lá autografar seu livro (Joaquinho Gato), Juarez adoeceu e foi hospitalizado. Uma semana depois estava morto. Recebi, então, das pessoas mais íntimas do escritor, a incumbência de pôr em ordem os seus papéis. Com algumas interrupções, ocupei-me deles de setembro de 1976 até agora. A história de Margô, felizmente, pôde ser reconstituída”. A Nota é de 5 de fevereiro de 1977.

Uma das primeiras críticas à ainda principiante obra de Juarez é de Braga Montenegro, no estudo diversas vezes aqui mencionado. Comparando-o a José Maia, escreveu o crítico: “é mais espontâneo, telúrico, dono de um estilo original, mas nem sempre correto de forma. Suas estórias, engendradas à maneira tradicional de narração, expressam, entretanto, uma dimensão nova, que as isenta à contingência da realidade elementar e as transfigura em arte. É ele, antes de tudo, um impressionista poderoso, mas com um jeito todo próprio de comunicar suas impressões. Ou, antes: seu impressionismo, por assim dizer, nada tem de visual, e se define em motivos quando não imaginados pelo menos recolhidos de uma realidade subjacente que sugere símbolo”.

Com Mundinha Panchico e o Resto do Pessoal, Juarez Barroso ganhou o Prêmio José Lins do Rego, em 1968. A primeira edição deste livro traz nas dobras da capa um texto de avaliação, sem assinatura. Na primeira parte, intitulada “Sagrada Família”, os contos são ambientados na Serra de Baturité e estão voltados para o “erotismo patriarcal”, “o orgulho idem” e “o culto à macheza”. Na segunda, intitulada “Os Hereges”, os personagens são os descendentes dos primeiros e o ambiente é Fortaleza.

João Antônio, em “A Geografia do Homem”, estampado nas dobras do segundo livro, faz o seguinte comentário: “Joaquinho Gato, cujos contos situam-se geograficamente numa área específica do Ceará, sem o clima trágico do Sul do Estado, é um livro marcado pela violência, reflete um estado de humor pesado, carregado de tensões, vida, angústia de um povo vivendo entre a repressão, a rudeza e as necessidades primárias”. Acrescenta: “Dificilmente se poderá destacar, neste seu novo livro, um conto como ponto mais alto. Todos os trabalhos têm força e garra dignos de representar o flagrante de um momento de previsões negras dentro de nossas realidades. Cururu, para dar um exemplo, é página inesquecível, de fôlego e pulso, só encontrável na grande literatura de Graciliano Ramos”.

Continua... Na próxima parte, Anos 70

Fonte:
Nilto Maciel. Panorama do Conto Cearense. Disponível em http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=986